É comum se afirmar que, na primeira parte da Idade Média, a Filosofia foi dominada pelo pensamento de Platão. O que nem sempre se explicita são as vertentes em que o platonismo medieval se dividiu, o conteúdo específico delas e em que medida elas refletiram as concepções originais de Platão.
As principais vertentes filosóficas da Alta Idade Média foram o platonismo patrístico, inspirado em Orígenes e Santo Agostinho, e o neoplatonismo cristão, baseado no Pseudo-Dionísio Areopagita. Embora tenham vigorado até a Idade Média, essas correntes desenvolveram-se ainda na Antiguidade. A primeira, entre os séculos II e V; a outra, no quarto e no quinto séculos. O principal representante medieval da primeira corrente foi Anselmo de Aosta, que viveu no século XI. Os nomes mais destacados da última foram Escoto Erígena (século IX) e Mestre Eckhart (século XIV).
Embora fossem platônicas, essas escolas diferenciavam-se pelo modo de conceber as ideias e pela espécie de realidade que lhes reconheciam. O platonismo patrístico atribuía às ideias o caráter de pensamentos de Deus. Calcava-se, pois, na opinião de Orígenes, Santo Agostinho e outros filósofos dos primeiros séculos. A segunda corrente, por sua vez, sem se apartar daquela afirmação, acrescentava-lhe colorações provenientes da filosofia de Plotino e seus seguidores, que afirmaram as múltiplas emanações do Uno (Deus). Para esses últimos pensadores, as ideias como pensamentos divinos eram uma e somente uma das numerosas dimensões suprassensíveis em que o Universo se divide.
De fato, desde o início, o neoplatonismo primou pela descrição do processo, pelo qual Deus se difunde no Universo, dando origem à multidão de seres que o compõem. Essa processão a partir do Uno equivale a um relançamento do mundo das ideias de Platão em esferas que se abrem e desenvolvem até o nível do Uni-verso físico.
Por metáforas como a da luz, que se apaga quanto mais se difunde, o Uno é apresentado por Plotino como uma hipóstase (substância), que gera um primeiro círculo (sua segunda hipóstase), o Nous ou Espírito. Ao se difundir um pouco mais, o primeiro círculo gera um segundo, constituído pela terceira hipóstase, a Psique ou Alma. Mas, assim como a luz se apaga ao atingir determinada distância da fonte emis-sora, após o segundo círculo, a processão começa a decair qualitativamente. Surge o terceiro círculo, constituído pela matéria. E, se de um círculo mais elevado é possível chegar a outro mais baixo, também é possível trilhar o caminho contrário. É possível retornar da condição inferior da matéria às esferas inteligíveis da Alma, do Espírito e, por fim, ao Uno.
No século V, sob o pseudônimo de Dionísio, o Areopagita, um autor neoplatônico cristianizou essa concepção de Plotino. E o fez de modo tão fascinante que a influência do livro que nos legou, no mundo de língua grega e, mais tarde, no ocidental, tornou-se de-terminante, por toda a Idade Média.
Para o Areopagita (assim como para Plotino), Deus é totalmente transcendente. Transcende tanto o mundo sensível quanto o inteligível. Por isso, “não temos de Deus um conhecimento fundado sobre sua natureza própria (porque esta é incognoscível e ultrapassa toda razão e toda inteligência)” (AREOPAGITA, Pseudo-Dionísio. Obra completa. São Paulo: Paulus, 2004. p. 94). O conhecimento possível de Deus se dá “a partir desta ordem [do mundo material e dos inteligíveis] que descobrimos em todos os seres, uma vez que esta ordem foi instituída por Deus e contém imagens e similitudes dos modelos divinos” (idem).
Pelo conhecimento das essências criadas, podemos remontar ao Criador, que as originou “por um transbordar de sua própria essência” (idem. p. 85), segundo modelos ou “razões produtoras de essências, que preexistem sinteticamente em Deus e que a teologia chama de predefinições ou, ainda, de decretos” (idem).
Deus é, assim, a Causa universal de todas as coisas, “o princípio dos seres; é dele que procedem o próprio ser e tudo o que existe sob qualquer modo que seja [...] Dessa Causa universal procedem também as essências inteligíveis e inteligentes dos anjos que vivem em conformidade com Deus, as das alma, todas as naturezas do universo inteiro, sem dela excluir tudo o que se chama de acidentes ou seres de razão” (idem. p. 82).
As razões produtoras não se confundem com as essências produzidas. A Pequenez é uma razão produtora. Dionísio diz dela: “Jamais encontrarás nada que não participe da ideia do pequeno. É por isso que convém atribuir a Deus a Pequenez porque ele está pre-sente de maneira imediata em toda parte [...] Esta mesma Pequenez é supraessencialmente eterna, impassível: ela permanece em si e se comporta sempre de maneira idêntica” (idem. pp. 105-106). Permanecer em si significa possuir existência própria.
Além da Pequenez, são razões produtoras “a Essencialidade em si, a Vitalidade em si, a Deificação em si”. E “é participando destas potências que cada ser, segundo sua natureza própria, recebe [...] existência, vida, deificação etc.” (idem. p. 120). Note-se que, em Dionísio, a Vitalidade em si corresponde ao dom da vida, a Deificação em si, ao dom da deificação, e a Essencialidade em si, à existência. Isso mostra que, pa-ra ele, a essência é o princípio da existência. Ser uma essência é já existir. Por isso, ao longo de todo o seu livro, Dionísio denomina essências os seres sensíveis e inteligíveis que existem. Para ele, a essência ou conteúdo da ideia é objetivamente existente.
Vê-se quão longe estamos da simples concepção das ideias como pensamentos de Deus, que caracteriza a outra escola. Sem deixarem de ser pensamentos do Uno, para o Areopagita, as ideias são também realidades autônomas. Sob essa condição, é que elas produzem as essências criadas. Só algo real pode produzir outra coisa real. E na medida em que são reais, as ideias não são simples planos ou modelos das coisas na mente de Deus. Este “possui por antecipação a noção, o conhecimento e a essência de todas as coisas” (idem. p. 93). Porém, quando diz “noção” e “conhecimento”, nosso autor se refere a pensamentos, ao passo que, ao acrescentar “a essência de todas as coisas”, ele indica algo real e autônomo em Deus, a saber: as ideias produtoras de essências.
Se já são reais e autônomas em Deus, ao se projetarem fora dele e formarem o primeiro círculo da processão [o Espírito ou Nous], as ideias passam a existir de maneira ainda mais autônoma. Por isso, o Espírito é a “totalidade das coisas”: o mesmo que Platão denomina mundo das ideias.
Escoto Erígena foi o principal expositor da dou-trina do Pseudo-Dionísio, na Idade Média. De tal forma aderiu a ela que pouco a modificou. Acrescentou, porém, novos aspectos à processão a partir do Uno. Por exemplo, afirmou que os modelos existentes em Deus são transformados em causas eficientes (agentes) da criação das coisas, pela ação do Espírito Santo. Desse modo, Erígena cristianizou ainda mais Plotino.
Numa época em que o grego era praticamente desconhecido no Ocidente, Erígena traduziu a obra de Dionísio para o latim e expôs amplamente o seu conteúdo, assim como o de outras obras patrísticas. Com isso, o peso e a amplitude do seu pensamento somaram-se aos de Dionísio para consolidar o neoplatonismo cristão como uma das principais correntes filosóficas da Idade Média. Corrente tão bem-sucedida que teve representantes notáveis por longo tempo, assim como Mestre Eckhart no século XIV.
O caráter bifronte da Filosofia, nesse período, ajuda a explicar a gênese e a importância assumida pelo debate dos universais, que se iniciou no século IX e se intensificou a partir do XI. Sabemos que o debate teve por foco a natureza mental ou extramental das ideias denominadas universais. Duas correntes de opinião se formaram a respeito do tema: a primeira foi o realismo inicialmente defendido por Guilherme de Champeaux; a outra foi o nominalismo, que teve em Roscelin de Compiègne seu primeiro representante célebre. Para a escola realista, os universais têm existência objetiva. Portanto, são res ou coisa. Para a outra escola, são simples nomes ou vocis (voz).
O debate dos universais foi preparado pela formação das escolas neoplatônica e patrística. A primeira foi precursora da concepção segundo a qual os universais possuem existência real. Dionísio, por exemplo, afirmou claramente a existência de “seres de razão”, ou seja, de ideias que não correspondem a qualquer objeto material conhecido. Não é possível afirmação mais clara da posição realista sobre os universais.
Por sua vez, ao confinarem as ideias na mente de Deus, os platônicos patrísticos tornaram-nas subjetivas. Essa posição preparou o caminho para o nominalismo, que levou a afirmação daqueles autores às últimas consequências. Nem a inerência das razões seminais nas coisas, afirmada pela escola patrística, modificou a situação, pois, embora correspondessem às formas dos objetos, aquelas sementes estavam localiza-das no interior da matéria, portanto desligadas do inteligível. A gênese estoica das razões seminais mostra que, desde o início, o significado delas foi o de virtualidades da matéria, não o de algo inteligível no interior do real. Portanto, o platonismo patrístico pavimentou o caminho para o nominalismo posterior.
Essa preparação fica ainda mais cristalina em Orígenes, que se referiu ao que haveria de tornar-se o objeto nuclear da querela dos universais como “questão profunda e misteriosa da natureza dos nomes” (ALEXANDRIA, Orígenes de. Contra Celso. São Paulo: Paulus, 2004, p. 62). E, ao expor em seguida as posições das escolas sobre o tema, continuou a tratar os universais como nomes, embora os integrantes das escolas, em geral, os entendessem diferentemente.
Ouçamos o nosso filósofo: “Serão [os nomes] acaso convencionais, como acredita Aristóteles? Ou, conforme a opinião dos estoicos, são tirados da natureza, em que os primeiros vocábulos imitam os objetos que estão na origem dos nomes [...] Ou então, conforme a doutrina de Epicuro, divergindo da opinião do Pórtico, os nomes existem naturalmente, e os primeiros homens emitem vocábulos adequados às coisas?” (idem. pp. 62-63).
Que Orígenes afirma serem convencionais, na opinião de Aristóteles? Os nomes. Que declara serem tirados da natureza, para os estoicos? Também os nomes. E que existe na natureza, segundo Epicuro? Nova-mente os nomes. Portanto, a despeito da opinião de outros a respeito deles, Orígenes denomina os universais sempre nomes.
A posição patrística, que distingue o universal até dos aspectos que lhes são mais semelhantes no mundo físico, é afirmada também por Gregório de Nissa, segundo o qual “nada daquilo que se vê nos corpos é de per si um corpo: não é a forma, nem a cor, nem o peso, nem a extensão, nem a quantidade, nem tampouco aquilo que se pode pensar pertencente às várias qualidades; ao contrário, cada uma dessas coisas é um conceito (logos)” (NISSA, Gregório de. A alma e a ressurreição. São Paulo: Paulus, 2011. p. 254). Fica claro, por essa afirmação, que para Gregório os conceitos eram inerentes aos corpos, o que se aproxima bastante da posição mais tarde identificada como realismo moderado.
Esse ponto de vista não se confunde com o de Aristóteles, para quem, embora fossem também nomes, os universais tinham existência própria como formas que, como tais, passavam das coisas à mente. Boécio parece prestigiar a posição de Aristóteles na seguinte passagem: “É pela aquisição da justiça [preexistente] que as pessoas ficam justas, e pela aquisição da sabedoria [também preexistente], sábias” (BOÉCIO. A consolação da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2012. p. 79).
A posição de Boécio e a sua diferença em re-lação à patrística torna-se ainda mais explícita, na seguinte passagem: “Tudo o que é tido por imperfeito o é por uma degradação da perfeição. Segue-se que se, em qualquer campo que seja, algo parece imperfeito, é porque existe também nesse campo algo que seja per-feito [a agilidade e a beleza supremas]” (idem.p. 76). Por ter assumido essa posição, Boécio se tornou o elo entre Aristóteles e os representantes medievais do realismo moderado, como Abelardo e Tomás de Aquino. Porém, a sua posição nunca coincidiu da dos autores patrísticos.
À luz das intensas discussões que se travaram sobre os universais, não é possível deixar de atribuir o devido destaque às posições de Orígenes, Gregório e Agostinho, na questão dos universais. Quanto já se exaltou a importância do nominalismo e de Ockham para a emancipação do pensamento humano de vícios inveterados! No entanto, os filósofos patrísticos não só prepararam o terreno para o nominalismo como desenvolveram uma posição superior à dele, na questão dos universais.
É verdade que Agostinho referiu-se a Deus como sumo bem, perfeito amor etc. Com isso, indicou que a semelhança das ideias a Deus é ainda maior que às coisas. É verdade que o Areopagita não se cansou de ensinar que Deus é infinitamente mais do que as ideias. Porém, Agostinho não chegou a esse ponto. Ele se limitou a descrever Deus como a realização mais per-feita das ideias. Vale dizer: como cada uma das ideias elevada ao mais alto grau.
Ao afirmarmos que Deus é amor, não declaramos algo semelhante à frase “Pedro é homem”. A primeira proposição diz algo sobre o modo como Deus se relaciona com outros seres, isto é, que Deus se relaciona com eles com amor. A segunda frase nos diz o que Pedro é, não o que faz, pois conhecemos a sua essência, não a de Deus. Por isso, quando afirmarmos o que Pedro é, referimo-nos à sua essência ou qualidades. Mas, quando dizemos o que Deus é, queremos mais comumente indicar o que faz, não o que é.
Há nisso uma substantificação do amor? Tanto quanto há, ao afirmarmos que Pedro está na sua casa. Ele pode estar ou não estar em casa. A afirmativa abre-se à verificação. Nem por isso, há nela substantificação. O vício da substantificação corresponde à atribuição de substancialidade (a algo ou alguém), cujo equívoco é evidente a priori, isto é, antes de toda verificação. O que só pode ser considerado verdadeiro ou falso, após a verificação, não é vício lógico. É hipótese.
Pode-se indagar se o platonismo medieval não foi todo de uma só espécie. A pergunta não é difícil de responder. A afirmação da existência de seres de razão, para nos atermos a esse exemplo, é impensável em Agostinho, pois leva a uma transmutação no conceito de Deus. Se há seres de razão, a cada ideia corresponde algo real e abstrato. A soma desses objetos (o mundo das ideias, que Plotino chamou Espírito ou Nous) é maior do que o Deus cristão, que é uma pessoa, por-tanto um ser entre outros. É difícil acreditar que, concebendo Deus como pessoal, Orígenes e Agostinho pu-dessem concordar com essa consequência.
Com que perseverança os filósofos de múltiplos séculos desenvolveram a Metafísica como alternativa ao materialismo arraigado na paideia grega! Apesar de todos os retornos do modo de pensar materialista, a Metafísica ganhou sempre novas expressões, na Idade Média. Mas ela também enfrentou dificuldades demasiadas para realizar o que se pode denominar verdadeiras descobertas nessa direção. E teve facilidade demasiada para se desequilibrar em direção ao fantástico.
Mesmo assim, ao olharmos os desenvolvimentos da Filosofia mencionados neste livro, não parece sensato considerar que uma insistência tão grande quanto a dos filósofos em pensar metafisicamente seja infundada. Por que dois platonismos na Idade Média? Por que não um materialismo entre eles? Se o mate-rialismo antigo, segundo o qual tudo é matéria ou está ligado a ela, foi tão natural, por que o esforço filosófico de superá-lo? Não é tal esforço estarrecedor? Por que ele foi levado tão longe? A resposta a essas perguntas revela algo sobre o conteúdo heurístico da Metafísica. Ao desenvolverem esse ramo da Filosofia, os pensadores da Idade Média tinham o íntimo convencimento de realizar uma descoberta ou, pelo menos, de desbravar uma região desconhecida do real. Somente por isso levaram tão longe o seu empreendimento.
Porém, apesar de toda a sua busca metafísica, muitos pensadores medievais contribuíram para a disseminação desordenada do erro da substantificação. As doutrinas neoplatônicas, em particular, seduziram as mentes, com sua promessa de revelar mais de Deus do que de fato é possível conhecer por essa via. Nisso, elas se assemelham à tentação da serpente, que ao primeiro casal sugeriu conhecerem o bem e o mal por meio do fruto proibido. Que é conhecer o bem, senão conhecer Deus?
Que é conhecer a processão de todas as coisas a partir do Bem, senão conhecer o próprio Bem? Que é descobrir que Deus gera o Espírito, e este, a Alma, a não ser entender, pelo poder inerente à razão, um pro-cesso semelhante àquele pelo qual o Pai gerou o Filho na eternidade? Que é descobrir que a Alma engendrou a matéria, a não ser penetrar num inacessível mistério? E a doutrina de que tudo retornará ao Uno: não supõe que a mente é capaz de descobrir, por antecipação, o que ocorrerá após todos os séculos?
O neoplatonismo é a perda de toda medida sobre o que é dado à razão descobrir por si mesma. É a conversão da razão humana em razão divina, a fabricação da pior espécie de ídolo: o ídolo humano. E o neoplatonismo cristão não é mais que a afirmação de que Jesus veio à Terra ordenar que nos prostrássemos ante esse ídolo.
Se, no mundo cristão, o desaparecimento dos textos de Aristóteles levou ao ocaso do pensamento mais técnico e demonstrativo que jamais existira, nos povos muçulmanos, onde eles foram preservados, não ocorreu o mesmo. Étienne Gilson atesta que, enquanto o Ocidente se consumia na reflexão sobre “documentos incompletos”, os árabes se debruçavam sobre “toda a filosofia já dada” (GILSON, Étienne. A Filosofia na Idade Média. 2ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 462-463).
Claro que uma condição tão crucial para o progresso filosófico produziu resultados decisivos para a História do Pensamento, no mundo muçulmano. O principal desses resultados foi o desenvolvimento maior da Filosofia nos povos árabes do que na Europa cristã, entre os séculos X e XII. Ainda que nos limitemos aos maiores expoentes da Filosofia Árabe desse período, o conjunto das obras deixadas por eles parecerá superior à produção filosófica da Europa.
Esse fato foi reconhecido pelos filósofos cristãos do fim do século XII e do século XIII, na medida em que não vacilaram em seguir o caminho trilhado pelos seus pares muçulmanos, isto é, em traduzir para o latim as obras de Aristóteles que estavam perdidas e em se debruçar não só sobre elas, mas também sobre os textos dos pensadores árabes. Essa nova prática preparou a revolução do pensamento filosófico europeu observada, a partir do século XIII, com todos os desdobramentos que teve, como o Renascimento e a Reforma.
Os principais centros dessa renovação dos estu-dos filosóficos foram Paris e Oxford. Ali se formaram as tendências responsáveis pela regeneração do pensa-mento europeu, nos séculos seguintes. Ali se recolheu e concentrou a influência árabe e se definiu o método escolar, pelo qual a renovação se processou. Mas não são esses os pontos que mais interessam, na narrativa sobre o hábito de substantificação de ideias, que empreendemos. Mais do que definir os centros do pensamento filosófico nos séculos X a XIII, interessa-nos considerar as razões da renovação espiritual verificada nessa época e que não foram, primeiramente, de ordem geo-gráfica, mas relacionadas ao conteúdo do pensamento então produzido.
Tão vasta foi a reflexão dos filósofos árabes sobre os livros de Aristóteles que haviam permanecido desconhecidas do Ocidente que é difícil determinar os pontos em que o seu pensamento mais se intensificou e adensou. Mas é importante destacar, ao menos, os tópicos que foram decisivos para aprofundar ou livrar a Filosofia do vício da substantificação das ideias. Sob esse prisma específico, merecem destaque as reflexões de Alfarabi, Avicena e Averrois sobre o Intelecto agente, o Intelecto possível e os universais, assim como as ideias deles e do judeu Maimônides a respeito do ser enquanto ser.
Comum a quase todos os filósofos árabes desse período foi a pretensão fundamental de produzir uma síntese dos sistemas de Platão e Aristóteles. Como já se passara, no Ocidente, alguns séculos antes, por muito tempo, predominaram, nas sínteses árabes, as cores da filosofia de Platão. Porém, à diferença do que se passou na Europa até o encontro de águas com o pensamento proveniente do Oriente Médio, a partir de Averrois, o ideal de síntese foi abandonado em favo do pensamento de Aristóteles.
Essa a grande mudança ocorrida, na Filosofia, no período situado entre o fim do século XII e o fim do XIV. Ela se fez sentir como um adensamento, a princípio titubeante, das preocupações com o ser. Porém, conforme os sistemas mais consistentes se impunham, os progressos reflexivos se generalizaram, e o pensa-mento se alçou a um patamar nunca antes alcançado, na História da Filosofia.
No quadro das posições filosóficas que procuramos seguir no capítulo anterior, os filósofos de orientação patrística tendiam a conceber o ser como realidade análoga, ao passo que os pensadores marcados pelo neoplatonismo, como Dionísio, Erígena e Mestre Eckhart, o consideravam unívoco ou, pelo menos, redutível a um nível fundamental. Com o tempo, apesar da divergência em relação a Santo Agostinho, essa posição se tornou muito influente, no mundo cristão.
De Parmênides a Hegel, passando por Erígena, os adeptos da univocidade do ser sempre o consideraram necessário. Ora, cada parte de um ser necessário e unívoco deve ser, ela própria, também necessária. Porém, não devemos aos gregos ou à Europa cristão e sim a Avicena (nascido em 980) a mais consistente formulação desse ponto de vista, na História do Pensamento.
Avicena partiu da constatação de que o ser acompanha todas as nossas representações, mas nem por isso é uma realidade simples. Há ser necessário e possível. O possível se manifesta como possível puro, enquanto sua causa não está posta, ou possível por essência, que é no fundo necessário, pois sua causa existe e o produz infalivelmente (idem. p. 435).
O fato de o necessário e o possível existirem não cria uma clivagem no ser, já que o último tem todos os elementos para se tornar, ele próprio, necessário, se tão-somente lhe for dada uma causa que o exija. Para Avicena, esse procedimento ocorreu muitas vezes, na História do Universo. O próprio Universo veio a existir por ele. Deus é o Primeiro de todos os seres. Como Primeiro, ele é simples, necessário e uno, do que se segue a univocidade fundamental do ser. Porém, o ser uno e Primeiro, ao conhecer-se a si mesmo, produz o que Avicena chama o Primeiro Causado. Essa geração não se dá por causalidade física, mas inteligível, uma vez que, no nível mais elevado do real, a matéria ainda não existe. Por isso, tanto o Primeiro como o Primeiro Causado são Inteligências.
O processo de produção (poderíamos também chamá-lo geração ou emanação) do Primeiro Causado repete-se vezes sem fim no Universo. O que mostra que o Primeiro Causado é o primeiro de uma série entre outras. Cada um desses Primeiros Causados produz ou-tros seres Causados que, por sua vez, geram outros. Até que se chega ao que Avicena chama última Inteligência separada, que encerra as emanações, por não possuir mais a força necessária para gerar outras Inteligências (idem. p. 437).
Desse ponto em diante, surgem, no mundo, as almas, que são mistos de Inteligência e matéria. Surgem também os corpos. O Universo povoa-se de seres de várias ordens, cada qual contingente em si mesmo, mas necessário na conexão que mantém com sua causa.
Essa vertiginosa cosmogonia é, ao mesmo tempo, cosmologia, já que faculta uma visão completa do mundo físico. Por ela se chega a uma fundamentação do Universo e, o que é ainda mais impressionante, a uma fundamentação que mantém intocado o princípio de que o real é uno e necessário, pois posto por um ser que se pensa necessariamente e, ao pensar-se, produz outros seres que dão continuidade à criação e ao povoamento do cosmos, com base na mesma necessidade inteligível.
Contra essa fundamentação do ser ou certos aspectos dela, ergueu-se Averrois (nascido em 1126). Sua posição se tornou notória, pois, pela vez primeira, na História, um pensador de grandeza inconteste deixou o arraial platônico, sem que isso significasse deixar também Aristóteles. Aliás, foi para abraçar exclusivamente o aristotelismo que Averrois renunciou a Platão.
A solução de Averrois ao problema do ser constitui um dos mais importantes cortes já verificados, na História da Filosofia, pois depois dele não só o ser passará a ser entendido de modo distinto como uma nova série de provas da existência de Deus virá à luz, a partir da novel concepção metafísica. Não que a com-preensão do ser de Averrois fosse nova, pois era a filosofia aristotélica reafirmada. Mas consequências novas foram extraídas dela, senão pelo próprio Averrois, por Maimônides e Tomás de Aquino.
Pela divisão do ser em necessário e possível, Avicena já mostrara que, se houvesse apenas possíveis, nada existiria. De sorte que, se existem possíveis (do que não podemos duvidar), tem de existir um ser necessário como sua causa. Esse ser é Deus (idem. p. 435). Averrois concorda com essa conclusão de Avicena, mas se decide a fundá-la não num sistema monista ou univoco e sim numa concepção análoga do ser.
Para Averrois, “o ser se diz em dois sentidos: o verdadeiro e o oposto ao nada. Este último se divide em dez categorias das quais é o gênero, e é anterior aos seres entendidos no outro sentido. O ser entendido como verdadeiro é uma intenção mental que expressa que a ideia existente na mente é tal como existe fora dela. Quanto à essência [das coisas], não é uma essência real em sentido próprio, mas a expressão do sentido do no-me” (AVERROIS. In HERNANDEZ, M. Cruz. Averrois: vida, obra, pensamento, influencia. Córdoba: Monte de Piedad y Caha de Ahorros de Córdoba, 1986. p. 103).
Quantas lições estão implícitas nessa declaração! Ser é o que está fora do nada: isso seria óbvio, se não implicasse que o oposto do nada não é verdadeiro, pois “o ser se diz em dois sentidos: o verdadeiro e o oposto ao nada”. A classificação do ser de Averrois desafia a Metafísica clássica, ao postular o verdadeiro como algo determinado, não como o oposto do nada, não como tudo.
O verdadeiro é a essência invariável nos indivíduos de um grupo. Como ser, esse quid é também real. Não real em sentido próprio, já que a essência é apenas um nome ou o sentido de um nome que atribuímos ao invariável. O nome não é o mesmo que a coisa que ele designa. Portanto, não é o invariável, mas a intenção com que nos referimos a ele.
Por outro lado, o ser como oposto do nada divide-se nas categorias aristotélicas. Não se pode predicar esse ser, univocamente ou da mesma maneira, de tudo o que é, pois ele se desdobra nas 10 categorias (GILSON, Étienne. Ob. cit. p. 445). Se é 10, não é um. Logo, o ser não é unívoco. Tampouco é equívoco, pois cada categoria é uma divisão do ser. Portanto, o ser é análogo.
Quão longe essa doutrina está da concepção de Parmênides! Quão longe da de Platão! Caberá a Tomás de Aquino retirar dela a lapidar consequência da existência de Deus, como o escultor tira a obra de arte do bloco de pedra. Se o ser é análogo, o necessário e o contingente devem existir, mas o que é por necessidade deve constituir o fundamento do possível. Deve haver igualmente o simples e o composto, porém o último se funda no primeiro, não o contrário.
Enfim, os caminhos ou provas da existência de Deus (Tomás aponta cinco, mas devem existir outros) nada mais são que reafirmações variadas de um mesmo dado. “Por mais diversos que sejam na aparência, esses caminhos em direção a Deus comunicam-se entre si por um elo secreto. Cada um deles parte, com efeito, da constatação de que, pelo menos sob um de seus aspectos, um determinado ser dado na realidade não contém a razão suficiente de sua própria existência” (idem. p. 660).
Essa falha, essa brecha na existência das coisas constitui o mais sólido fundamento para se postular a existência de Deus. Ela é um dado do real. Ao olharmos para ela, não vemos um fantasma. Vemos o que realmente é. A fratura metafísica, o defeito na superfície do ser que identificamos como o possível é real e fundamental, não uma ilusão causada pelo vício da substantificação.
Ainda que retiremos a concepção plurívoca do ser, que realça a existência da falha, ainda que em seu lugar instalemos de volta a concepção unívoca, a filosofia árabe mostra que o possível continua a existir e a demandar explicação. Nem um mundo unívoco pode reivindicar a homogeneidade. Também nele se verificam um enrugamento aqui, um ponto rarefeito ali, o que exige a postulação do possível.
A bifurcação entre o necessário e o possível é por demais fundamental para não a observarmos com o cuidado com que o geólogo investiga a falha tectônica. É o que basta para a falha na existência, a fratura metafísica, evidenciar-se. A falha pede uma explicação, que Avicena, Averrois e São Tomás identificaram com Deus. Porém, só à obra de Tomás a conclusão se engasta como o sol no firmamento do quarto dia.
As principais vertentes filosóficas da Alta Idade Média foram o platonismo patrístico, inspirado em Orígenes e Santo Agostinho, e o neoplatonismo cristão, baseado no Pseudo-Dionísio Areopagita. Embora tenham vigorado até a Idade Média, essas correntes desenvolveram-se ainda na Antiguidade. A primeira, entre os séculos II e V; a outra, no quarto e no quinto séculos. O principal representante medieval da primeira corrente foi Anselmo de Aosta, que viveu no século XI. Os nomes mais destacados da última foram Escoto Erígena (século IX) e Mestre Eckhart (século XIV).
Embora fossem platônicas, essas escolas diferenciavam-se pelo modo de conceber as ideias e pela espécie de realidade que lhes reconheciam. O platonismo patrístico atribuía às ideias o caráter de pensamentos de Deus. Calcava-se, pois, na opinião de Orígenes, Santo Agostinho e outros filósofos dos primeiros séculos. A segunda corrente, por sua vez, sem se apartar daquela afirmação, acrescentava-lhe colorações provenientes da filosofia de Plotino e seus seguidores, que afirmaram as múltiplas emanações do Uno (Deus). Para esses últimos pensadores, as ideias como pensamentos divinos eram uma e somente uma das numerosas dimensões suprassensíveis em que o Universo se divide.
De fato, desde o início, o neoplatonismo primou pela descrição do processo, pelo qual Deus se difunde no Universo, dando origem à multidão de seres que o compõem. Essa processão a partir do Uno equivale a um relançamento do mundo das ideias de Platão em esferas que se abrem e desenvolvem até o nível do Uni-verso físico.
Por metáforas como a da luz, que se apaga quanto mais se difunde, o Uno é apresentado por Plotino como uma hipóstase (substância), que gera um primeiro círculo (sua segunda hipóstase), o Nous ou Espírito. Ao se difundir um pouco mais, o primeiro círculo gera um segundo, constituído pela terceira hipóstase, a Psique ou Alma. Mas, assim como a luz se apaga ao atingir determinada distância da fonte emis-sora, após o segundo círculo, a processão começa a decair qualitativamente. Surge o terceiro círculo, constituído pela matéria. E, se de um círculo mais elevado é possível chegar a outro mais baixo, também é possível trilhar o caminho contrário. É possível retornar da condição inferior da matéria às esferas inteligíveis da Alma, do Espírito e, por fim, ao Uno.
No século V, sob o pseudônimo de Dionísio, o Areopagita, um autor neoplatônico cristianizou essa concepção de Plotino. E o fez de modo tão fascinante que a influência do livro que nos legou, no mundo de língua grega e, mais tarde, no ocidental, tornou-se de-terminante, por toda a Idade Média.
Para o Areopagita (assim como para Plotino), Deus é totalmente transcendente. Transcende tanto o mundo sensível quanto o inteligível. Por isso, “não temos de Deus um conhecimento fundado sobre sua natureza própria (porque esta é incognoscível e ultrapassa toda razão e toda inteligência)” (AREOPAGITA, Pseudo-Dionísio. Obra completa. São Paulo: Paulus, 2004. p. 94). O conhecimento possível de Deus se dá “a partir desta ordem [do mundo material e dos inteligíveis] que descobrimos em todos os seres, uma vez que esta ordem foi instituída por Deus e contém imagens e similitudes dos modelos divinos” (idem).
Pelo conhecimento das essências criadas, podemos remontar ao Criador, que as originou “por um transbordar de sua própria essência” (idem. p. 85), segundo modelos ou “razões produtoras de essências, que preexistem sinteticamente em Deus e que a teologia chama de predefinições ou, ainda, de decretos” (idem).
Deus é, assim, a Causa universal de todas as coisas, “o princípio dos seres; é dele que procedem o próprio ser e tudo o que existe sob qualquer modo que seja [...] Dessa Causa universal procedem também as essências inteligíveis e inteligentes dos anjos que vivem em conformidade com Deus, as das alma, todas as naturezas do universo inteiro, sem dela excluir tudo o que se chama de acidentes ou seres de razão” (idem. p. 82).
As razões produtoras não se confundem com as essências produzidas. A Pequenez é uma razão produtora. Dionísio diz dela: “Jamais encontrarás nada que não participe da ideia do pequeno. É por isso que convém atribuir a Deus a Pequenez porque ele está pre-sente de maneira imediata em toda parte [...] Esta mesma Pequenez é supraessencialmente eterna, impassível: ela permanece em si e se comporta sempre de maneira idêntica” (idem. pp. 105-106). Permanecer em si significa possuir existência própria.
Além da Pequenez, são razões produtoras “a Essencialidade em si, a Vitalidade em si, a Deificação em si”. E “é participando destas potências que cada ser, segundo sua natureza própria, recebe [...] existência, vida, deificação etc.” (idem. p. 120). Note-se que, em Dionísio, a Vitalidade em si corresponde ao dom da vida, a Deificação em si, ao dom da deificação, e a Essencialidade em si, à existência. Isso mostra que, pa-ra ele, a essência é o princípio da existência. Ser uma essência é já existir. Por isso, ao longo de todo o seu livro, Dionísio denomina essências os seres sensíveis e inteligíveis que existem. Para ele, a essência ou conteúdo da ideia é objetivamente existente.
Vê-se quão longe estamos da simples concepção das ideias como pensamentos de Deus, que caracteriza a outra escola. Sem deixarem de ser pensamentos do Uno, para o Areopagita, as ideias são também realidades autônomas. Sob essa condição, é que elas produzem as essências criadas. Só algo real pode produzir outra coisa real. E na medida em que são reais, as ideias não são simples planos ou modelos das coisas na mente de Deus. Este “possui por antecipação a noção, o conhecimento e a essência de todas as coisas” (idem. p. 93). Porém, quando diz “noção” e “conhecimento”, nosso autor se refere a pensamentos, ao passo que, ao acrescentar “a essência de todas as coisas”, ele indica algo real e autônomo em Deus, a saber: as ideias produtoras de essências.
Se já são reais e autônomas em Deus, ao se projetarem fora dele e formarem o primeiro círculo da processão [o Espírito ou Nous], as ideias passam a existir de maneira ainda mais autônoma. Por isso, o Espírito é a “totalidade das coisas”: o mesmo que Platão denomina mundo das ideias.
Escoto Erígena foi o principal expositor da dou-trina do Pseudo-Dionísio, na Idade Média. De tal forma aderiu a ela que pouco a modificou. Acrescentou, porém, novos aspectos à processão a partir do Uno. Por exemplo, afirmou que os modelos existentes em Deus são transformados em causas eficientes (agentes) da criação das coisas, pela ação do Espírito Santo. Desse modo, Erígena cristianizou ainda mais Plotino.
Numa época em que o grego era praticamente desconhecido no Ocidente, Erígena traduziu a obra de Dionísio para o latim e expôs amplamente o seu conteúdo, assim como o de outras obras patrísticas. Com isso, o peso e a amplitude do seu pensamento somaram-se aos de Dionísio para consolidar o neoplatonismo cristão como uma das principais correntes filosóficas da Idade Média. Corrente tão bem-sucedida que teve representantes notáveis por longo tempo, assim como Mestre Eckhart no século XIV.
O caráter bifronte da Filosofia, nesse período, ajuda a explicar a gênese e a importância assumida pelo debate dos universais, que se iniciou no século IX e se intensificou a partir do XI. Sabemos que o debate teve por foco a natureza mental ou extramental das ideias denominadas universais. Duas correntes de opinião se formaram a respeito do tema: a primeira foi o realismo inicialmente defendido por Guilherme de Champeaux; a outra foi o nominalismo, que teve em Roscelin de Compiègne seu primeiro representante célebre. Para a escola realista, os universais têm existência objetiva. Portanto, são res ou coisa. Para a outra escola, são simples nomes ou vocis (voz).
O debate dos universais foi preparado pela formação das escolas neoplatônica e patrística. A primeira foi precursora da concepção segundo a qual os universais possuem existência real. Dionísio, por exemplo, afirmou claramente a existência de “seres de razão”, ou seja, de ideias que não correspondem a qualquer objeto material conhecido. Não é possível afirmação mais clara da posição realista sobre os universais.
Por sua vez, ao confinarem as ideias na mente de Deus, os platônicos patrísticos tornaram-nas subjetivas. Essa posição preparou o caminho para o nominalismo, que levou a afirmação daqueles autores às últimas consequências. Nem a inerência das razões seminais nas coisas, afirmada pela escola patrística, modificou a situação, pois, embora correspondessem às formas dos objetos, aquelas sementes estavam localiza-das no interior da matéria, portanto desligadas do inteligível. A gênese estoica das razões seminais mostra que, desde o início, o significado delas foi o de virtualidades da matéria, não o de algo inteligível no interior do real. Portanto, o platonismo patrístico pavimentou o caminho para o nominalismo posterior.
Essa preparação fica ainda mais cristalina em Orígenes, que se referiu ao que haveria de tornar-se o objeto nuclear da querela dos universais como “questão profunda e misteriosa da natureza dos nomes” (ALEXANDRIA, Orígenes de. Contra Celso. São Paulo: Paulus, 2004, p. 62). E, ao expor em seguida as posições das escolas sobre o tema, continuou a tratar os universais como nomes, embora os integrantes das escolas, em geral, os entendessem diferentemente.
Ouçamos o nosso filósofo: “Serão [os nomes] acaso convencionais, como acredita Aristóteles? Ou, conforme a opinião dos estoicos, são tirados da natureza, em que os primeiros vocábulos imitam os objetos que estão na origem dos nomes [...] Ou então, conforme a doutrina de Epicuro, divergindo da opinião do Pórtico, os nomes existem naturalmente, e os primeiros homens emitem vocábulos adequados às coisas?” (idem. pp. 62-63).
Que Orígenes afirma serem convencionais, na opinião de Aristóteles? Os nomes. Que declara serem tirados da natureza, para os estoicos? Também os nomes. E que existe na natureza, segundo Epicuro? Nova-mente os nomes. Portanto, a despeito da opinião de outros a respeito deles, Orígenes denomina os universais sempre nomes.
A posição patrística, que distingue o universal até dos aspectos que lhes são mais semelhantes no mundo físico, é afirmada também por Gregório de Nissa, segundo o qual “nada daquilo que se vê nos corpos é de per si um corpo: não é a forma, nem a cor, nem o peso, nem a extensão, nem a quantidade, nem tampouco aquilo que se pode pensar pertencente às várias qualidades; ao contrário, cada uma dessas coisas é um conceito (logos)” (NISSA, Gregório de. A alma e a ressurreição. São Paulo: Paulus, 2011. p. 254). Fica claro, por essa afirmação, que para Gregório os conceitos eram inerentes aos corpos, o que se aproxima bastante da posição mais tarde identificada como realismo moderado.
Esse ponto de vista não se confunde com o de Aristóteles, para quem, embora fossem também nomes, os universais tinham existência própria como formas que, como tais, passavam das coisas à mente. Boécio parece prestigiar a posição de Aristóteles na seguinte passagem: “É pela aquisição da justiça [preexistente] que as pessoas ficam justas, e pela aquisição da sabedoria [também preexistente], sábias” (BOÉCIO. A consolação da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2012. p. 79).
A posição de Boécio e a sua diferença em re-lação à patrística torna-se ainda mais explícita, na seguinte passagem: “Tudo o que é tido por imperfeito o é por uma degradação da perfeição. Segue-se que se, em qualquer campo que seja, algo parece imperfeito, é porque existe também nesse campo algo que seja per-feito [a agilidade e a beleza supremas]” (idem.p. 76). Por ter assumido essa posição, Boécio se tornou o elo entre Aristóteles e os representantes medievais do realismo moderado, como Abelardo e Tomás de Aquino. Porém, a sua posição nunca coincidiu da dos autores patrísticos.
À luz das intensas discussões que se travaram sobre os universais, não é possível deixar de atribuir o devido destaque às posições de Orígenes, Gregório e Agostinho, na questão dos universais. Quanto já se exaltou a importância do nominalismo e de Ockham para a emancipação do pensamento humano de vícios inveterados! No entanto, os filósofos patrísticos não só prepararam o terreno para o nominalismo como desenvolveram uma posição superior à dele, na questão dos universais.
É verdade que Agostinho referiu-se a Deus como sumo bem, perfeito amor etc. Com isso, indicou que a semelhança das ideias a Deus é ainda maior que às coisas. É verdade que o Areopagita não se cansou de ensinar que Deus é infinitamente mais do que as ideias. Porém, Agostinho não chegou a esse ponto. Ele se limitou a descrever Deus como a realização mais per-feita das ideias. Vale dizer: como cada uma das ideias elevada ao mais alto grau.
Ao afirmarmos que Deus é amor, não declaramos algo semelhante à frase “Pedro é homem”. A primeira proposição diz algo sobre o modo como Deus se relaciona com outros seres, isto é, que Deus se relaciona com eles com amor. A segunda frase nos diz o que Pedro é, não o que faz, pois conhecemos a sua essência, não a de Deus. Por isso, quando afirmarmos o que Pedro é, referimo-nos à sua essência ou qualidades. Mas, quando dizemos o que Deus é, queremos mais comumente indicar o que faz, não o que é.
Há nisso uma substantificação do amor? Tanto quanto há, ao afirmarmos que Pedro está na sua casa. Ele pode estar ou não estar em casa. A afirmativa abre-se à verificação. Nem por isso, há nela substantificação. O vício da substantificação corresponde à atribuição de substancialidade (a algo ou alguém), cujo equívoco é evidente a priori, isto é, antes de toda verificação. O que só pode ser considerado verdadeiro ou falso, após a verificação, não é vício lógico. É hipótese.
Pode-se indagar se o platonismo medieval não foi todo de uma só espécie. A pergunta não é difícil de responder. A afirmação da existência de seres de razão, para nos atermos a esse exemplo, é impensável em Agostinho, pois leva a uma transmutação no conceito de Deus. Se há seres de razão, a cada ideia corresponde algo real e abstrato. A soma desses objetos (o mundo das ideias, que Plotino chamou Espírito ou Nous) é maior do que o Deus cristão, que é uma pessoa, por-tanto um ser entre outros. É difícil acreditar que, concebendo Deus como pessoal, Orígenes e Agostinho pu-dessem concordar com essa consequência.
Com que perseverança os filósofos de múltiplos séculos desenvolveram a Metafísica como alternativa ao materialismo arraigado na paideia grega! Apesar de todos os retornos do modo de pensar materialista, a Metafísica ganhou sempre novas expressões, na Idade Média. Mas ela também enfrentou dificuldades demasiadas para realizar o que se pode denominar verdadeiras descobertas nessa direção. E teve facilidade demasiada para se desequilibrar em direção ao fantástico.
Mesmo assim, ao olharmos os desenvolvimentos da Filosofia mencionados neste livro, não parece sensato considerar que uma insistência tão grande quanto a dos filósofos em pensar metafisicamente seja infundada. Por que dois platonismos na Idade Média? Por que não um materialismo entre eles? Se o mate-rialismo antigo, segundo o qual tudo é matéria ou está ligado a ela, foi tão natural, por que o esforço filosófico de superá-lo? Não é tal esforço estarrecedor? Por que ele foi levado tão longe? A resposta a essas perguntas revela algo sobre o conteúdo heurístico da Metafísica. Ao desenvolverem esse ramo da Filosofia, os pensadores da Idade Média tinham o íntimo convencimento de realizar uma descoberta ou, pelo menos, de desbravar uma região desconhecida do real. Somente por isso levaram tão longe o seu empreendimento.
Porém, apesar de toda a sua busca metafísica, muitos pensadores medievais contribuíram para a disseminação desordenada do erro da substantificação. As doutrinas neoplatônicas, em particular, seduziram as mentes, com sua promessa de revelar mais de Deus do que de fato é possível conhecer por essa via. Nisso, elas se assemelham à tentação da serpente, que ao primeiro casal sugeriu conhecerem o bem e o mal por meio do fruto proibido. Que é conhecer o bem, senão conhecer Deus?
Que é conhecer a processão de todas as coisas a partir do Bem, senão conhecer o próprio Bem? Que é descobrir que Deus gera o Espírito, e este, a Alma, a não ser entender, pelo poder inerente à razão, um pro-cesso semelhante àquele pelo qual o Pai gerou o Filho na eternidade? Que é descobrir que a Alma engendrou a matéria, a não ser penetrar num inacessível mistério? E a doutrina de que tudo retornará ao Uno: não supõe que a mente é capaz de descobrir, por antecipação, o que ocorrerá após todos os séculos?
O neoplatonismo é a perda de toda medida sobre o que é dado à razão descobrir por si mesma. É a conversão da razão humana em razão divina, a fabricação da pior espécie de ídolo: o ídolo humano. E o neoplatonismo cristão não é mais que a afirmação de que Jesus veio à Terra ordenar que nos prostrássemos ante esse ídolo.
A Reviravolta Árabe
Se, no mundo cristão, o desaparecimento dos textos de Aristóteles levou ao ocaso do pensamento mais técnico e demonstrativo que jamais existira, nos povos muçulmanos, onde eles foram preservados, não ocorreu o mesmo. Étienne Gilson atesta que, enquanto o Ocidente se consumia na reflexão sobre “documentos incompletos”, os árabes se debruçavam sobre “toda a filosofia já dada” (GILSON, Étienne. A Filosofia na Idade Média. 2ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 462-463).
Claro que uma condição tão crucial para o progresso filosófico produziu resultados decisivos para a História do Pensamento, no mundo muçulmano. O principal desses resultados foi o desenvolvimento maior da Filosofia nos povos árabes do que na Europa cristã, entre os séculos X e XII. Ainda que nos limitemos aos maiores expoentes da Filosofia Árabe desse período, o conjunto das obras deixadas por eles parecerá superior à produção filosófica da Europa.
Esse fato foi reconhecido pelos filósofos cristãos do fim do século XII e do século XIII, na medida em que não vacilaram em seguir o caminho trilhado pelos seus pares muçulmanos, isto é, em traduzir para o latim as obras de Aristóteles que estavam perdidas e em se debruçar não só sobre elas, mas também sobre os textos dos pensadores árabes. Essa nova prática preparou a revolução do pensamento filosófico europeu observada, a partir do século XIII, com todos os desdobramentos que teve, como o Renascimento e a Reforma.
Os principais centros dessa renovação dos estu-dos filosóficos foram Paris e Oxford. Ali se formaram as tendências responsáveis pela regeneração do pensa-mento europeu, nos séculos seguintes. Ali se recolheu e concentrou a influência árabe e se definiu o método escolar, pelo qual a renovação se processou. Mas não são esses os pontos que mais interessam, na narrativa sobre o hábito de substantificação de ideias, que empreendemos. Mais do que definir os centros do pensamento filosófico nos séculos X a XIII, interessa-nos considerar as razões da renovação espiritual verificada nessa época e que não foram, primeiramente, de ordem geo-gráfica, mas relacionadas ao conteúdo do pensamento então produzido.
Tão vasta foi a reflexão dos filósofos árabes sobre os livros de Aristóteles que haviam permanecido desconhecidas do Ocidente que é difícil determinar os pontos em que o seu pensamento mais se intensificou e adensou. Mas é importante destacar, ao menos, os tópicos que foram decisivos para aprofundar ou livrar a Filosofia do vício da substantificação das ideias. Sob esse prisma específico, merecem destaque as reflexões de Alfarabi, Avicena e Averrois sobre o Intelecto agente, o Intelecto possível e os universais, assim como as ideias deles e do judeu Maimônides a respeito do ser enquanto ser.
Comum a quase todos os filósofos árabes desse período foi a pretensão fundamental de produzir uma síntese dos sistemas de Platão e Aristóteles. Como já se passara, no Ocidente, alguns séculos antes, por muito tempo, predominaram, nas sínteses árabes, as cores da filosofia de Platão. Porém, à diferença do que se passou na Europa até o encontro de águas com o pensamento proveniente do Oriente Médio, a partir de Averrois, o ideal de síntese foi abandonado em favo do pensamento de Aristóteles.
Essa a grande mudança ocorrida, na Filosofia, no período situado entre o fim do século XII e o fim do XIV. Ela se fez sentir como um adensamento, a princípio titubeante, das preocupações com o ser. Porém, conforme os sistemas mais consistentes se impunham, os progressos reflexivos se generalizaram, e o pensa-mento se alçou a um patamar nunca antes alcançado, na História da Filosofia.
No quadro das posições filosóficas que procuramos seguir no capítulo anterior, os filósofos de orientação patrística tendiam a conceber o ser como realidade análoga, ao passo que os pensadores marcados pelo neoplatonismo, como Dionísio, Erígena e Mestre Eckhart, o consideravam unívoco ou, pelo menos, redutível a um nível fundamental. Com o tempo, apesar da divergência em relação a Santo Agostinho, essa posição se tornou muito influente, no mundo cristão.
De Parmênides a Hegel, passando por Erígena, os adeptos da univocidade do ser sempre o consideraram necessário. Ora, cada parte de um ser necessário e unívoco deve ser, ela própria, também necessária. Porém, não devemos aos gregos ou à Europa cristão e sim a Avicena (nascido em 980) a mais consistente formulação desse ponto de vista, na História do Pensamento.
Avicena partiu da constatação de que o ser acompanha todas as nossas representações, mas nem por isso é uma realidade simples. Há ser necessário e possível. O possível se manifesta como possível puro, enquanto sua causa não está posta, ou possível por essência, que é no fundo necessário, pois sua causa existe e o produz infalivelmente (idem. p. 435).
O fato de o necessário e o possível existirem não cria uma clivagem no ser, já que o último tem todos os elementos para se tornar, ele próprio, necessário, se tão-somente lhe for dada uma causa que o exija. Para Avicena, esse procedimento ocorreu muitas vezes, na História do Universo. O próprio Universo veio a existir por ele. Deus é o Primeiro de todos os seres. Como Primeiro, ele é simples, necessário e uno, do que se segue a univocidade fundamental do ser. Porém, o ser uno e Primeiro, ao conhecer-se a si mesmo, produz o que Avicena chama o Primeiro Causado. Essa geração não se dá por causalidade física, mas inteligível, uma vez que, no nível mais elevado do real, a matéria ainda não existe. Por isso, tanto o Primeiro como o Primeiro Causado são Inteligências.
O processo de produção (poderíamos também chamá-lo geração ou emanação) do Primeiro Causado repete-se vezes sem fim no Universo. O que mostra que o Primeiro Causado é o primeiro de uma série entre outras. Cada um desses Primeiros Causados produz ou-tros seres Causados que, por sua vez, geram outros. Até que se chega ao que Avicena chama última Inteligência separada, que encerra as emanações, por não possuir mais a força necessária para gerar outras Inteligências (idem. p. 437).
Desse ponto em diante, surgem, no mundo, as almas, que são mistos de Inteligência e matéria. Surgem também os corpos. O Universo povoa-se de seres de várias ordens, cada qual contingente em si mesmo, mas necessário na conexão que mantém com sua causa.
Essa vertiginosa cosmogonia é, ao mesmo tempo, cosmologia, já que faculta uma visão completa do mundo físico. Por ela se chega a uma fundamentação do Universo e, o que é ainda mais impressionante, a uma fundamentação que mantém intocado o princípio de que o real é uno e necessário, pois posto por um ser que se pensa necessariamente e, ao pensar-se, produz outros seres que dão continuidade à criação e ao povoamento do cosmos, com base na mesma necessidade inteligível.
Contra essa fundamentação do ser ou certos aspectos dela, ergueu-se Averrois (nascido em 1126). Sua posição se tornou notória, pois, pela vez primeira, na História, um pensador de grandeza inconteste deixou o arraial platônico, sem que isso significasse deixar também Aristóteles. Aliás, foi para abraçar exclusivamente o aristotelismo que Averrois renunciou a Platão.
A solução de Averrois ao problema do ser constitui um dos mais importantes cortes já verificados, na História da Filosofia, pois depois dele não só o ser passará a ser entendido de modo distinto como uma nova série de provas da existência de Deus virá à luz, a partir da novel concepção metafísica. Não que a com-preensão do ser de Averrois fosse nova, pois era a filosofia aristotélica reafirmada. Mas consequências novas foram extraídas dela, senão pelo próprio Averrois, por Maimônides e Tomás de Aquino.
Pela divisão do ser em necessário e possível, Avicena já mostrara que, se houvesse apenas possíveis, nada existiria. De sorte que, se existem possíveis (do que não podemos duvidar), tem de existir um ser necessário como sua causa. Esse ser é Deus (idem. p. 435). Averrois concorda com essa conclusão de Avicena, mas se decide a fundá-la não num sistema monista ou univoco e sim numa concepção análoga do ser.
Para Averrois, “o ser se diz em dois sentidos: o verdadeiro e o oposto ao nada. Este último se divide em dez categorias das quais é o gênero, e é anterior aos seres entendidos no outro sentido. O ser entendido como verdadeiro é uma intenção mental que expressa que a ideia existente na mente é tal como existe fora dela. Quanto à essência [das coisas], não é uma essência real em sentido próprio, mas a expressão do sentido do no-me” (AVERROIS. In HERNANDEZ, M. Cruz. Averrois: vida, obra, pensamento, influencia. Córdoba: Monte de Piedad y Caha de Ahorros de Córdoba, 1986. p. 103).
Quantas lições estão implícitas nessa declaração! Ser é o que está fora do nada: isso seria óbvio, se não implicasse que o oposto do nada não é verdadeiro, pois “o ser se diz em dois sentidos: o verdadeiro e o oposto ao nada”. A classificação do ser de Averrois desafia a Metafísica clássica, ao postular o verdadeiro como algo determinado, não como o oposto do nada, não como tudo.
O verdadeiro é a essência invariável nos indivíduos de um grupo. Como ser, esse quid é também real. Não real em sentido próprio, já que a essência é apenas um nome ou o sentido de um nome que atribuímos ao invariável. O nome não é o mesmo que a coisa que ele designa. Portanto, não é o invariável, mas a intenção com que nos referimos a ele.
Por outro lado, o ser como oposto do nada divide-se nas categorias aristotélicas. Não se pode predicar esse ser, univocamente ou da mesma maneira, de tudo o que é, pois ele se desdobra nas 10 categorias (GILSON, Étienne. Ob. cit. p. 445). Se é 10, não é um. Logo, o ser não é unívoco. Tampouco é equívoco, pois cada categoria é uma divisão do ser. Portanto, o ser é análogo.
Quão longe essa doutrina está da concepção de Parmênides! Quão longe da de Platão! Caberá a Tomás de Aquino retirar dela a lapidar consequência da existência de Deus, como o escultor tira a obra de arte do bloco de pedra. Se o ser é análogo, o necessário e o contingente devem existir, mas o que é por necessidade deve constituir o fundamento do possível. Deve haver igualmente o simples e o composto, porém o último se funda no primeiro, não o contrário.
Enfim, os caminhos ou provas da existência de Deus (Tomás aponta cinco, mas devem existir outros) nada mais são que reafirmações variadas de um mesmo dado. “Por mais diversos que sejam na aparência, esses caminhos em direção a Deus comunicam-se entre si por um elo secreto. Cada um deles parte, com efeito, da constatação de que, pelo menos sob um de seus aspectos, um determinado ser dado na realidade não contém a razão suficiente de sua própria existência” (idem. p. 660).
Essa falha, essa brecha na existência das coisas constitui o mais sólido fundamento para se postular a existência de Deus. Ela é um dado do real. Ao olharmos para ela, não vemos um fantasma. Vemos o que realmente é. A fratura metafísica, o defeito na superfície do ser que identificamos como o possível é real e fundamental, não uma ilusão causada pelo vício da substantificação.
Ainda que retiremos a concepção plurívoca do ser, que realça a existência da falha, ainda que em seu lugar instalemos de volta a concepção unívoca, a filosofia árabe mostra que o possível continua a existir e a demandar explicação. Nem um mundo unívoco pode reivindicar a homogeneidade. Também nele se verificam um enrugamento aqui, um ponto rarefeito ali, o que exige a postulação do possível.
A bifurcação entre o necessário e o possível é por demais fundamental para não a observarmos com o cuidado com que o geólogo investiga a falha tectônica. É o que basta para a falha na existência, a fratura metafísica, evidenciar-se. A falha pede uma explicação, que Avicena, Averrois e São Tomás identificaram com Deus. Porém, só à obra de Tomás a conclusão se engasta como o sol no firmamento do quarto dia.
Aquino Versus Ockham
A filosofia platônica foi a primeira aplicação sistemática do princípio de Parmênides que relaciona o pensamento ao ser. Talvez por isso, ao descobrirmos os defeitos que ela contém, somos tentados a atribuir a Platão e à Filosofia, em geral, a tendência a transformar pensamentos em coisas ou a substantificá-los.
O pensamento humano se permeou dessa espécie de substantificação. Que fazemos ao sonhar, a não ser acreditar que o que se apresenta no sonho é real? Dir-se-á que, ao acordarmos, deixamos de crer na realidade das coisas sonhadas. Porém,no passado, as pessoas criam nos sonhos, enquanto dormiam e acordadas. Elas acreditavam que a alma realmente via as imagens noturnas ou era avisada pelos deuses sobre elas. Por essa razão, os sonhos foram tantas vezes denominados visões ou designados por palavras com sentido semelhante.
A própria crença em “leis naturais”, numerosas ou raras, severas ou brandas, justas ou menos justas, também é imemorial. Quase sempre, elas foram conce-bidas como inscritas na ordem das coisas. Portanto, como anteriores ao homem, assim como a natureza lhe é anterior. Tal crença não é um exemplo menor da objetivação de ideias (de normas, no caso), que só existem na mente do homem.
Poderia multiplicar os exemplos desse hábito mental, nas mais diferentes áreas do pensamento, mas fatigaria o leitor. Só lembrarei que o efeito de certas drogas no cérebro, as alienações mentais, muitos trans-tornos psíquicos,as experiências fora do corpo (EFC’s), assim como a arte e a religião são profundamente mar-cados pelo hábito da substantificação, quando não se reduzem a ele. Aliás, a relação é tão estreita que somos impelidos a indagar se o hábito em questão não compõe a própria estrutura da alma humana.
No entanto, se a substantificação de ideias é tão difundida e universal, não pode ter sido inventada por Parmênides ou por Platão. Pelo contrário, ela deve ter suas raízes profundamente lançadas nos sonhos e no inconsciente de maneira geral. Desse nível do pensa-mento humano, a substantificação passou à cultura, não sem uma ajuda considerável da religião. Platão apenas produziu a primeira reflexão completa a respeito do há-bito em apreço. E ao fazê-lo, ele também o justificou e inseriu no interior de uma filosofia sofisticada.
Na Idade Média, um intenso debate acendeu-se sobre a natureza das ideias abstratas ou universais. Vimos que o debate levou à formação de correntes opostas, que se tornaram conhecidas como realismo e nominalismo. O lado nominalista da discussão teve em Guilherme de Ockham um de seus maiores representantes. Ockham refutou extensamente e com bons argumentos a posição realista. Porém, a exposição do ponto de vista de Aristóteles a respeito do tema foi realizada do modo mais perfeito por um representante da corrente oposta: São Tomás de Aquino.
O filósofo escolástico mostrou que, embora Aristóteles tenha-se referido aos universais como nomes, estes representam coisas. E o fazem consistente-mente, pois sua gênese está associada a sensações das próprias coisas. De fato, o intelecto não tem papel passivo, durante e após as sensações, mas age de modo a constituir imagens dos objetos com elas.
Do mesmo modo, após constituir as imagens, o intelecto continua ativo, pois passa a elaborar a espécie inteligível, por um processo que Aristóteles chama abstração. Esse processo consiste no despojamento das imagens do que têm de particular, de modo a restar apenas o que lhes é comum. Assim, das imagens de um campo com flores de cheiros, formas e cores vários, o intelecto abstrai a ideia de flor, sem cheiro, sem forma e sem cores determinados.
A espécie inteligível não é ainda a ideia. Ela é obra do intelecto agente, que a forma a partir das sensações e imagens. Para que a ideia surja, é necessário que o intelecto possível intervenha. Desse modo, segundo Tomás, é que passamos do conhecimento individual ao universal.
A radicalidade do pensamento de Guilherme de Ockham se mostra na negação da necessidade da espécie inteligível para explicar o conhecimento. De um lado, temos os objetos individuais do conhecimento; de outro, as idéias abstratas deles. Não precisamos supor intermediários, como as espécies inteligíveis, para explicar a passagem de uns a outros.
Mas a radicalidade de Ockham alcança o ponto máximo,conforme ele desenvolve a sua noção de universal. Toda uma série de pensadores tinha negado que os universais possuíssem existência objetiva. O que os diferencia de Ockham é o fato de este negar não apenas a existência dos universais, mas também a semelhança dos individuais, assim como a que costumamos identificar entre dois cavalos. Por muito tempo, essa semelhança tinha constituído o fundamento da crença de que os universais possuem algum tipo de objetividade.Com a negação da semelhança dos individuais, a objetividade dos universais pôde ser dispensada e desapareceu.
Assim, o problema dos universais foi resolvido por Ockham. A solução tem consequências revolucionárias. Uma delas é o encerramento das discussões metafísicas, que a Idade Média tinha cultivado em tão alto grau. Não há por que debater com o interesse de antes o que não tem existência individual ou objetividade. A discussão sobre os universais se justificara, enquanto sua objetividade fora admitida. Quando ela foi reduzida a uma concepção do intelecto, a discussão perdeu, se-não o interesse, ao menos a importância anterior.
O mistério do ser manteve a Teologia sob seu controle enquanto se pensou que um número incalculável de proposições sobre Deus podem ser canceladas por considerações a respeito do ser. Quando Ockham mostrou que os entes metafísicos não têm objetividade, viu-se que não podem afetar Deus ou suas obras. Desde então, a Teologia alcançou independência total da Metafísica.
O mesmo sucedeu a vários outros campos do conhecimento, que tinham sido atrelados à Metafísica por razões semelhantes às que levara à dependência da Teologia em relação a ela. Hoje, é comum se pensar que a Física, a Química, a Biologia e todas as outras ciências positivas não podem ser afetadas pela Metafísica. Devemos a essência dessa convicção a Ockham.
Porém, por motivos misteriosos, a conclusão radical de Ockham não foi imediatamente aplicada a um grupo particular de universais: as categorias, que, por muito tempo, continuaram a ser tratadas como dados objetivos. Essa resistência ao nominalismo foi e continua a ser decisiva, pois a História da Filosofia e do conhecimento depende, em grande medida, das decisões relativas a ela. Se a Teologia e as ciências surgiram e foram libertadas da Metafísica, com base na intuição de Ockham sobre os universais, se a intuição estiver errada, o destino dessas disciplinas sofrerá sérias consequências.
O problema é que, apesar de sedutora, a intuição de Ockham não pode ser provada. Ele parece sustentá-la por provas, ao derivá-la do princípio de que tudo o que existe é individual. De fato, se assim é, o universal não existe, e essa há de ser uma verdade absoluta. Mas as coisas não são tão simples. A afirmação de que tudo o que existe é individual é, no mínimo, equívoca, já que a palavra individual indica um modo de ser entre outros. Individual é o que é concentrado, o que está num lugar e não em vários. Mas é possível imaginar entes reais difusos, espalhados ou dispersos por vários lugares. Não é essa a natureza do espaço? Não é, de certo modo, também a do que denominamos tempo?
Podemos até pensar que só o espaço e o tempo individuais existem, mas isso não pode ser provado. O contrário também pode ser verdade. Talvez o espaço seja a soma de espaços menores dotados da mesma natureza dele. E o tempo pode ser a soma de instantes com uma só natureza básica. Não estamos em condições de determinar qual dessas concepções do tempo e do espaço é a verdadeira.
Kant criou um rol de categorias diferente do de Aristóteles e as transferiu do mundo real para o intelecto. Porém, essa é só uma solução possível do problema das categorias. É a solução nominalista, que Kant rea-firmou. No entanto, a solução conhecida como realismo básico mantém tanto atrativo quanto ela.
Olhemos de perto a explanação de Aristóteles sobre as categorias. Ele abriu o livro que as toma por tema com a classificação dos nomes ou expressões. E em seguida, timbrou: “As expressões não compostas significam substância, quantidade, qualidade, relação, lugar, tempo, posição, situação, ação e paixão. Para transmitir sucintamente o que pretendo com essas palavras, exemplos de substância são homem e cavalo, de quantidade são dois cúbitos ou três cúbitos, de qualidade são branco e gramatical. Dobro, metade e maior pertencem à categoria da relação; ‘no mercado’, ‘no Liceu’ à de lugar; ontem e ‘no ano passado’ indicam tempo. Deitado e sentado sugerem posição; derramado e armado, situação; lançar e cauterizar, ação; e ‘ser lançado’ e ‘ser cauterizado’, paixões” (On categories. In Great boboks of the western world. Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1993. Vol. Cap. 4. pp. 5-6).
Do modo como não se estendeu sobre as categorias de tempo, lugar e situação, porque seus alunos as compreendiam, Aristóteles se limitou a afirmar que as categorias são espécies de nomes, sem esclarecer a relação entre estes e as coisas. A razão desse seu procedimento foi a existência de uma compreensão cultural prévia daquela relação, que Aristóteles simplesmente adotou.
Na abertura do livro das categorias, ele assentou ainda que “as formas de expressão podem ser simples ou compostas [...] Já as próprias coisas” etc. (idem. Cap. 2, p. 5). Nesse modo de dizer, as expressões (palavras) e as coisas estão claramente contrapostas. Que se pode extrair disso? A contraposição não sugere uma relação entre os termos contrapostos, isto é, que as pa-lavras remetem às coisas? Do contrário, por que aproximar os dois conceitos, por que os contrapor? E se as categorias são nomes, elas não nos remetem também a coisas?
Aristóteles respondeu essas perguntas afirmativamente. Por isso, não pôde deixar de incorrer no vício da substantificação. Ele entendeu a relação entre as categorias e o mundo no sentido comum e não as protegeu contra os vícios desse tipo de pensamento, antes as substantificou.
Em Aristóteles, as categorias são, sim palavras, mas palavras que exprimem o modo de ser das coisas. Palavras que projetam ideias nas coisas. Tintas empregadas para colorir o mundo um tanto à maneira humana. As seguintes passagens tornam isso extremamente claro: “O termo homem é predicado do homem individual, mas não está presente em sujeito algum” (idem. p. 7). Como “estar presente num sujeito não significa encontrar-se nele como as partes se encontram no todo, mas ser incapaz de existir à parte dele” (idem. Cap. 2. p. 5), segue-se que o termo homem é capaz de existir à parte de todo e qualquer sujeito. Ou não se segue? Ou não é essa uma escancarada forma de substantificação?
Aristóteles introduziu correções substanciais no platonismo. O mesmo se pode afirmar de Tomás de Aquino, em relação às filosofias medievais. No quadro dessas duas séries de filosofias inspiradas em Platão, o conhecimento do universal foi desconectado das sensações e considerado uma participação direta nas ideias. Aristóteles e Aquino o religaram à experiência sensível e descreveram não mais como participação, mas como abstração de dados daquela experiência. O problema que restou foi o peso considerável da substantificação implícita nas categorias do ser.
Não há dúvida de que o nominalismo livrou-nos desse peso. Mas não é demasiado afirmar que a filoso-fia de Ockham não é a única solução para o problema da substantificação pelas categorias. Ao suavizar o caráter objetivo das categorias, o realismo básico as pensa como difusas, porém dotadas de objetividade. É o que basta para evitar o erro da substantificação.
Da decisão do nominalismo ou do realismo bá-sico dependem concepções teológicas e científicas mui-to diversas. Dependendo da decisão que tomarmos, nesse terreno, as concepções resultantes da Teologia, das ciências e do mundo serão muito diversas. A diferença entre as visões concorrentes, porém, poderá ser definida com precisão como o teor metafísico de cada uma.
A Revolução Abortada
O quadro Era da Reforma, de Wilhelm von Kaulbach, a que me referi anteriormente, apresenta Martinho Lutero no centro, a erguer uma Bíblia aberta. Dezenas de pessoas estão ao seu redor, mas apenas du-as parecem dirigir-lhe o olhar e notar o seu gesto simbólico, o que, de algum modo, sugere que a Bíblia que o reformador tem nas mãos foi aberta, mas ninguém a examinou.
A figura de Lutero a empunhar a Bíblia descer-rada e de tantas pessoas alheias a ele não é mais apropriada à própria era da Reforma do que ao tempo atual. Lutero bradou: “Sola scriptura!” Mas o livre exame das Escrituras se adiantou tão pouco! No século imediato ao dele, a Filosofia foi liberta do jugo à Teologia, no entanto a última nunca foi solta da prisão das interpretações impostas pela autoridade.
Como um luterano entende a Bíblia hoje? Basicamente do modo como Lutero a interpretou. Como o faz um presbiteriano? Entende-a como Calvino. E um metodista? E um adventista? Eles interpretam a Bíblia como Wesley, William Miller e Ellen White ensinaram. Não pretendo, com isso, afirmar a existência de uma uniformidade total na interpretação da Bíblia, em cada ramo do Protestantismo, mas assinalar o quanto a Teologia Protestante é determinada por mecanismos de po-der constituídos com a matéria-prima das interpretações dos estudiosos citados.
Se estar no luteranismo significa entender a Bíblia como Lutero, se estar numa Igreja Presbiteriana implica entendê-la como Calvino e assim por diante, segue-se que a interpretação não é realmente livre. Não há livre exame das Escrituras, nas Igrejas originárias da Reforma, ou há muito pouco, assim como o quadro de Kaulbach sugere na sua mudez eloquente.
O fato de o Protestantismo abrir-se num leque de confissões e Igrejas, cada qual com uma doutrina única, pode ser explicado de várias maneiras. Mas a traição do livre exame há de ser reconhecida para que qualquer explicação funcione. Não existindo, no Protestantismo, o compromisso com o magistério da Igreja de Roma, é natural que surjam interpretações divergentes entre si, no seu bojo. Porém, na medida em que ele não é só uma Reforma impávida e bem-sucedida, mas também uma reprodução das relações medievais de poder, não é menos natural que, em cada Igreja protestante, subsista uma única interpretação das Escrituras.
Isso significa que a Reforma aboliu ao mesmo tempo em que reproduziu o modelo católico romano. Sua obra duradoura está possuída dessa contradição. O filósofo Ernst Troeltsch escreveu, com algum exagero, mas atento ao exato desenvolvimento das Igrejas da Re-forma: “Não se pode supor que o protestantismo tenha aberto o caminho para o mundo moderno. Ao contrário, ele parece ser, por princípio, e a despeito de todas as suas novas grandes ideias, um reavivamento e um re-forço do ideal de uma civilização eclesiástica imposta pela autoridade” (TROELTSCH, Ernst. Protestantism and progress. Boston: Beacon Press, 1958. p. 85). É crucial recordar que essa autoridade começa pela interpretação única da Bíblia, no seio de cada Igreja.
Em suma, o Protestantismo foi e continua a ser, na sua vertente ortodoxa tanto quanto nas seitas que se desgarraram das doutrinas aceites, uma espécie de modernidade abortada. É o que Troeltsch nos ensinou, com razão e a despeito de todas as grandes ideias que o movimento protestante trouxe ao mundo. Como lembrou Rubem Alves, no nascedouro da Reforma, esteve um grito de liberdade reprimido por séculos e que foi solto pelos reformadores. Porém, com o tempo, o grito se transformou na indiferença que o quadro de Kaulbach retrata.
Ao menos é assim que o Protestantismo se mostra, sob o ângulo teológico. Mas e do ponto de vista da Filosofia? Como o Protestantismo se revela, sob esse ponto de vista? Parece-me que, do prisma filosófico, ele representa ainda mais a modernização abortada que se tornou no terreno teológico. Para entender por que nada é mais útil do que considerar a figura do seu fundador.
Lutero teve dupla formação. Graduou-se em Filosofia e em Teologia. Numa carta escrita pouco depois de 1500, queixou-se de ser compelido a estudar a primeira “com todas as suas forças”. A confissão não é despropositada, já que o Protestantismo surgiu num tempo e lugar em que o movimento humanista crepitava. Esse movimento consistiu na restauração do interesse pelos clássicos da Antiguidade, tanto na Literatura como na História, na Filosofia e na Teologia (Bíblica e Patrística). Porém, o interesse pelos filósofos antigos, quando as limitações do platonismo e do aristotelismo se tornavam cada vez mais manifestas, não foi um presságio muito alvissareiro nesse campo particular.
Devido ao ambiente da época, a filosofia em que Lutero se formou e que ele aprendeu de modo mais sistemático foi a ockhamista, que havia desenvolvido as mais importantes críticas a Platão até então. Por isso, sob o prisma filosófico, a Reforma nasceu como uma significativa promessa de avanços.
Porém, Lutero levou seu repúdio a Platão tão longe quanto o repúdio a Aristóteles e à Escolástica, o que o transformou num quase inimigo da Filosofia. Ele próprio pergunta: “Que são as universidades? Pelo menos até agora, foram instituídas para ser apenas, como diz o livro dos Macabeus, ginásios de febos e da glória grega, nos quais se leva uma vida libertina, pouco se estuda a Sagrada Escritura e a fé cristã e reina apenas o cego e idólatra mestre Aristóteles, até mesmo acima de Cristo. O meu conselho seria o de que os livros de Aristóteles Physica, Metaphysica, De anima e Ethica, que até agora são reputados como os melhores, fossem abolidos juntamente com todos os outros que falam de coisas naturais [...] Sei muito bem o que estou dizendo! Conheço Aristóteles tão bem quanto tu e teus semelhantes, pois o li e ouvi com maior atenção do que a santo Tomás ou Escoto, do que posso muito bem me vangloriar, sem presunção, e até, se necessário demons-trá-lo. Não me importa que, durante tantas centenas de anos, tantos intelectos sublimes se tenham debruçado sobre ele. Tais argumentos não me preocupam, porque está claro que, embora eles tenham feito alguma coisa, no entanto, tantos erros permaneceram por tantos anos no mundo e nas universidades” (LUTERO, Martinho. Citado em REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario. História da Filosofia. São Paulo: Paulus, 1990. Vol. 2, p. 105).
Lutero levou a sua polêmica contra a Filosofia ainda mais longe do que a passagem citada deixa entrever, pois generalizou seu juízo negativo sobre aquela disciplina. É o que verificamos na seguinte passagem das suas notas sobre a Epístola aos Romanos: "Devo ao Senhor esta obediência de ladrar contra a filosofia e de aconselhar os homens a olhar para a Sagrada Escritura [...] para que acabem rapidamente com esses estudos e para que tenham como única preocupação a de não estabelecê-los e defendê-los, mas, sim, a de tratá-los como nós, quando aprendemos habilidades inúteis com o fim de destruí-las e aprendemos erros com o fim de refutá-los cabalmente [...] Por conseguinte, o apóstolo está certo quando, em Cl 3 [2:8], fala contra a filosofia, dizendo: 'Cuidado, para que ninguém vos engane por meio da filosofia e de falácias vazias, conforme a tradição dos homens'. É óbvio que, se o apóstolo quisesse dar a entender que alguma filosofia é útil e boa, ele não a teria condenado de modo tão cabal" (LUTERO, Martinho. A Epístola aos Romanos. In Martinho Lutero - Obras selecionadas. São Leopoldo: Sinodal/Concórdia, 2003. Vol. 8, pp. 303-304).
No entanto, em muitas outras passagens das suas obras Lutero lançou mão de partes da Filosofia, a fim de realizar suas demonstrações teológicas. Na realidade, ele nunca quis condenar toda a Filosofia. Lutero foi um homem da sua época. Como tal, condenou a Antiguidade Pagã, o que Dante já tinha feito na sua Comédia. As passagens transcritas acima são a Divina comédia de Lutero ou da Reforma. Com ela, Lutero quis alertar contra os perigos de um retorno excessivo aos antigos. Mas é preciso lembrar que ele foi monge agostiniano e não renegou Santo Agostinho, antes ou depois de a Reforma explodir e se estabelecer. Sabemos o que Agostinho representa na História da Filosofia e o que representou para Lutero.
Em seus livros, Lutero poupa Agostinho das críticas que dirige à Filosofia. Não só Agostinho, aliás. Outros filósofos que ele poupa, nas suas condenações, são Ockham e Gabriel Biel, por meio de quem Lutero teve contato com o nominalismo. Sem mencionar seu contemporâneo Melanchton, o orgulho de Lutero, que ele chama "adversário de Satanás e dos escolásticos". A profunda admiração de Lutero pelo humanista Melanchton é impensável sem concessão igualmente profunda à Antiguidade Clássica. Portanto, as invectivas do reformador foram muito mais direcionadas à Filosofia e à razão sem a graça salvadora de Cristo do que a toda e qualquer forma delas. Para Lutero, a Filosofia e a razão eram vãs, sem a fé em Cristo. Contudo, por meio da fé, elas podiam ser redimidas, como todo o restante da atividade humana.
Considerando a formação de Lutero, seu exacerbado antiaristotelismo e as invectivas que lançou em face da “porca razão” não têm o sentido de um repúdio ilimitado. Tivesse Lutero repudiado de modo total a razão e teríamos de esquecê-lo, já que a negação, culta ou bronca, da razão (pois há as duas espécies) é a putrefação filosófica por definição, o achaque mais essencial à natureza humana. Contudo, por trás do repúdio à razão, o que se nota não é a desrazão, mas a silhueta do ockhamismo em que Lutero procurou e encontrou substrato para, ao mesmo tempo, aferrar-se à vontade de Deus e considerar falso o racionalismo estribado no homem – entenda-se na soberba humana.
Pode-se questionar se, no seu repúdio à Filoso-fia e à razão, Lutero não correu o risco de “lançar fora a criança com a água do banho”. De banir a razão junta-mente com os erros dela. Parece-me que correu, mas, a julgar pela declaração mais importante que fez, em toda a sua existência, quando a Dieta de Worms o instou a retratar-se dos erros que o Papa tinha apontado em seus livros, Lutero não chegou a tal ponto. Naquela ocasião solene, ele declarou: “Sereníssimo imperador! Ilustres príncipes, graciosos senhores! [...] Se não for convencido com testemunhos da Escritura, ou por evidentes razões, se não me persuadirem pelas próprias passagens que citei, e se não tornarem assim a minha consciência cativa da palavra de Deus, não posso e não quero retra-tar coisa alguma” (D’AUBIGNÉ, J. H. MERLE. História da Reforma do décimo-sexto século. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana. Vol. II, p. 243).
Em muitas passagens de suas obras, Lutero reafirmou essa posição de alcance vastíssimo, por ter sido firmada no momento decisivo da sua existência. Uma das mais claras encontramo-la no segundo livro do reformador sobre a Santa Ceira, em que ele se bateu Com Zuínglio e Ecolampádio pelo respeito às regras fundamentais da Lógica: "Eu não sabia que Ecolampádio é um lógico ou dialético tão miseravelmente pobre, a ponto de trocar a substância pela qualidade e de fazer conclusões do acidente para a substância. No caso de Zuínglio, isso não admira, pois ele é um doutor autodidata; esses costumam dar nisso. Em verdade, quem quer debater e não conhece os elementos rudimentares da lógica, que pode conseguir ele de bom? Ecolampádio me irrita tanto com isso que doravante não espero nenhuma prova de inteligência dele. Pois, ainda que não seja necessário que conheça as sutilezas e sofismas inúteis dos sofistas [os escolásticos tardios, na linguagem peculiar de Lutero], deveria conhecer pelo menos os rudimentos, isso é, a dialética simples, como as regas da dedução, as formas dos silogismos, as espécies de argumentação, etc." (LUTERO, Martinho. Da ceia de Cristo - Confissão. In Obras selecionadas São Leopoldo: Sinodal/Concórdia, 1993. Vol. 4, p. 303).
Essas considerações convergem com a opinião de Troeltsch mencionada no início. Se tivermos de situar a Reforma em alguma das divisões (sempre relativas) da História, será melhor inseri-la na Idade Média do que na Modernidade. Mas é preciso apresentar uma ressalva ao fazê-lo. Por tudo o que a antecedeu, pelo que foi e também pelo que a sucedeu, a Reforma do século XVI foi genuinamente revolucionária. Seu problema é que a revolução que ela procurou implantar nunca se completou. Porém, isso não invalida o que o movimento tinha de vanguardista.
Quando olhamos para o quadro filosófico que a preparou e a opção de Lutero e outros reformadores por ideias ockhamistas, o caráter da Reforma faz-se ainda mais nítido. Lutero não só se declarou ockhamista como esclareceu ter absorvido totalmente os ensinamentos dessa corrente, como lemos na sua Resposta aos mestres de Lovaina e Colônia: “Por que iria eu resistir também a minha seita, a saber à occamista ou à dos modernos, que tenho assimilado totalmente” (LUTERO, Martinho. Resposta de Lutero à condenação doutrinal feita pelos mestres de Lovaina e Colônia. In Obras Selecionadas. 2ª ed., São Leopoldo: Sinodal/Concórdia, 2000. p. 95).
É instrutivo, portanto, lembrar o que Gilson ministrou sobre essa seita: "O ockhamismo [aqui incluído o de Gabriel Biel, com o qual Lutero teve contato], não era uma simples reforma, mas uma revolução. As doutrinas precedentes se contradisseram mutuamente sobre a interpretação de certos princípios que lhes eram comuns; em vez de se somar a elas como um novo en-saio da mesma ordem, o ockhamismo nega todas elas, arruinando o realismo em que repousavam" (GILSON, Étienne. A Filosofia na Idade Média. 2ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 885).
A um leitor apressado pode ocorrer que Ockham foi, sim, revolucionário, mas ele não foi Lutero, nem os outros reformadores. Portanto, Lutero e a Reforma não foram realmente revolucionários. Esse juízo é equivocado. Os mais importantes precursores da Reforma, como Wyclif, Huss e Jerônimo de Praga, não só são citados entre os realistas como entre os mais extremistas deles. Eram todos teólogos platônicos. Lutero e seus seguidores não. A questão importante aqui não é o grau de ockhamismo deles, mas o fato de estarem, filosoficamente, mais próximos de Ockham do que de Platão. Mais próximos da revolução ockhamista que de seus próprios precursores teológicos. Isso contribui para ressaltar o conteúdo revolucionário da Reforma.
Ao colocar as evidentes razões ao lado das Escrituras, às quais dedicou a sua existência e em que depositou toda a sua fé, Lutero mostrou claramente o juízo que tinha a respeito do entendimento iluminado pela fé. Mostrou que sua obra foi, ao mesmo tempo, uma demanda pelas Escrituras e por uma razão evidente, não obscura como a que as filosofias do seu tempo ofereciam em tão grande medida.
Não há como não dar ouvidos a essa justa demanda. Os amantes da verdade, em seus sempre múltiplos sentidos, não andam em busca de repúdios totais. Não recusam, pois, a luz da Filosofia, mas demandam luz clara, não impenetrável. Querem a verdade, mas verdade inteligível. Infelizmente, a Antiguidade e a Idade Média tinham visto nascer filosofias impenetráveis. A Metafísica do tempo de Lutero tornara-se, em grande parte, isso.
Nesse contexto, a dupla revolta do reformador contra o cativeiro papal e o aristotélico chega a constituir a sua contribuição central ao campo sobre o qual me debruço. Aliás, ao focarmos o pensamento de Lutero com a precisão necessária, percebemos que a sua investida contra o senso comum da época deu-se mais no terreno da Filosofia Social que no da Metafísica.
Pela importância que tem como contestador de um arranjo social construído sobre a autoridade, é que Lutero deve ser lembrado na História da Filosofia. A crítica veemente, mas ilustrada que ele desenvolveu da razão é mais um apelo que a Idade Média dirigiu à docta ignorantia. No entanto e ao mesmo tempo, é uma recordação dos limites a que o intelecto humano está sujeito. Limite que não se aplica somente ao que podemos conhecer de Deus, mas também da natureza.
Há nessa posição uma sabedoria herdada dos antigos mosteiros que, ao recolherem o escólio da Gré-cia, o tornaram secundário à Bíblia. Assim procederam Orígenes e Santo Agostinho, mas também os primeiros monges do deserto. Assim também procedeu Lutero, embora com gume crítico peculiar.
A quase rusticidade das descrições bíblicas da natureza (com exceção do que encontramos em textos, como Gênesis 1 e 2), sobre a qual Lutero se colocou, pode parecer uma base suspeita, mas não deixa de cons-tituir um refúgio contra certos erros filosóficos. Refúgio que, aliado à demanda de Worms por razões evidentes e às contribuições para o pensamento social, garantem ao solitário Lutero um papel no romance da filosofia.
A Teofania de Spinoza
Séculos após a adoção do princípio de Parmênides pela filosofia platônica e da proliferação de ilusões substancialistas que se seguiu, muitas críticas a esse procedimento tinham aparecido. Porém, todas tinham revelado um caráter parcial e a conseqüente insuficiência de que padeciam para pôr freio à influência platô-nica. Não é possível apresentar conclusão distinta se-quer em relação às críticas que Aristóteles, Aquino e Ockham desenvolveram a Platão.
Como tenho procurado mostrar, o maior reduto de resistência à substantificação iniciada por Platão, na História da Filosofia, foi a filosofia patrística do período de Orígenes a Santo Agostinho. Claro que os segui-dores desses filósofos merecem igual menção, mas os originadores da corrente de resistência foram os filósofos dos séculos III a V.
As promessas revolucionárias da Reforma, cujos reflexos na Filosofia iam ao ponto da abolição de Platão e Aristóteles, não se colocaram à altura daquela resistência, pois não tardaram em se resolver em desilusão. O historiador maior da Reforma, no século XIX, J. H. Merle D'Aubigné, admitiu-o ao declarar que “a história da reforma não é a do protestantismo. Na primeira, tudo traz a marca de uma regeneração da humanidade, de uma transformação religiosa e social que emana de Deus. Na segunda vê-se muitas vezes uma degeneração notável de princípios primitivos” (D'AUBIGNÉ, J. H. Merle. História da Reforma do décimo-sexto século. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana. Vol. I, p. 5).
O fato de a Reforma ter influído tão pouco no debate filosófico pode ser considerado um dos sinais da degeneração a que D'Aubigné se referiu. Apenas um século depois dela, Descartes propôs a emancipação da Filosofia em relação à Teologia e ao poder eclesiástico. Seu passo libertário foi a contribuição maior do cartesianismo ao pensamento filosófico. Outras o seguiram. Porém, o objetivo deste capítulo é tratar do filósofo que, na trilha aberta por Descartes, influiu de maneira decisiva no desenvolvimento posterior da Metafísica.
Refiro-me a Baruch Spinoza, cuja obra principal, a Ética, se abre com uma série de definições de termos. Os termos que ali se encontram e as definições que Spinoza lhes empresta nada tinham de estranho aos leitores da época, já que tinham sido herdados da Filosofia Clássica. Sua gênese remonta a Platão e à Metafísica de Aristóteles. No entanto, é significativo que, da definição deles, Spinoza derive consequência de todo nova, com o potencial de lançar o pensamento substancialista em direção diversa daquela em que Parmênides o tinha impulsionado originalmente e na qual o platonismo o confirmara.
A reviravolta substancialista de Spinoza consistiu em unificar o pluralismo aristotélico, que supunha várias substâncias irredutíveis umas às outras. Para fazê-lo, Spinoza desenvolveu um monismo, no qual o conjunto de todas as substâncias perfaz uma única, uni-versal e indivisível, que ele denominou Deus. Não é preciso acrescentar que essa consequência revolucioná-ria do substancialismo aristotélico, essa visão de Deus que teve de Spinoza e que chamarei Nova Metafísica, foi recebida com grande escândalo pela Europa cristã e judaica.
Infelizmente, a dependência das definições de que Spinoza parte, na Ética, em relação a Aristóteles as expõe a críticas como a que Bertrand Russell desenvolveu ao comparar esse filósofo com Aristóteles. Diz Russell que “é difícil decidir por onde começar a descrição da metafísica de Aristóteles, mas talvez o melhor lugar seja a sua crítica da teoria das ideias e sua própria doutrina alternativa dos universais [...] Aristóteles torna evidente que, quando um número de indivíduos [ou coisas] participa de uma qualidade [por exemplo, a cor branca ou azul], isso não pode ser devido à relação com algo da mesma espécie que eles, mas com algo mais ideal [o universal]” (RUSSELL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1969. Livro Primeiro, pp. 187-188).
Indivíduos e coisas são chamados substâncias ou formas por Aristóteles; as qualidades que eles possuem chamam-se universais. O problema apontado por Russell, nessa concepção, é que as formas aristotélicas são “substâncias que existem independentemente da matéria [...] Portanto, elas têm para Aristóteles, como as ideias têm para Platão, uma existência metafísica própria, condicionando todas as coisas individuais” (idem. pp. 192-193). Russell quer dizer que a forma aristotélica, ao mesmo tempo, radica nas coisas e é capaz de existir fora delas.
Essa concepção altamente imaginativa da forma dotada de substancialidade é fatal para o filósofo grego, e veremos que também para Spinoza. Russell conclui: “Não vejo de que maneira Aristóteles poderia ter encontrado uma resposta a esta crítica” (idem. p. 193). Em outras palavras, a crítica parece fatal. Porém, embora isso esteja claro para a maioria dos filósofos, hoje, não se pode afirmar o mesmo da época de Spinoza (século XVII). E continua a não ser assim para a maior parte das pessoas, que adotam as ideias spinozianas com entusiasmo, mas sem compreender totalmente a procedência das críticas que receberam ao longo da História.
A substância spinoziana é a mesma da Metafísica Clássica. Assim como, para Aristóteles, a realidade é composta por indivíduos ou substâncias, para Spinoza, “na natureza, nada há além de substâncias” (SPINOZA, Baruch. Ethics. In Great books of the western world. Vol. 28, First Part, Proposition 6, p. 590). E como naquele filósofo a forma pode existir fora do intelecto, em Spinoza, “nada há fora do intelecto, por meio de que as coisas podem ser distinguidas umas das outras, a não ser as substâncias ou seus atributos” (idem. First Part, Proposition 4, p. 590).
É verdade que a substância spinoziana, diferentemente da de Aristóteles, só existe fora do intelecto. No entanto, Spinoza atribui a capacidade de existir dentro e fora da mente à essência, que é por ele definida como o que o intelecto percebe da substância. Assim, o erro substancialista de Aristóteles é transferido da for-ma à essência.
Desse modo, a dupla existência da forma (para Aristóteles) reproduz-se na essência spinoziana. Ambos os conceitos pairam invisivelmente sobre as coisas e, desse éter, passam a elas. Ambos são, pois, fantasmagóricos.
É verdade que a essência spinoziana radica na substância, que tem consistência real. Porém, a essência também existe fora das coisas, isto é, no intelecto. E nenhuma explicação satisfatória é dada do processo pelo qual ela se desarraiga das coisas e se implanta no intelecto. Tampouco é explicado como a essência duplica-se, sem se alterar, em esferas tão diferentes do real. O que é capaz de flutuar sobre a face das coisas não está imbuído de dons fantasmagóricos?
A substância spinoziana só pode ser compreendida, sob a forma fantasmagórica da essência. Portanto, para afirmar que a natureza é a substância única, é preciso pensá-la também como essência. Esse é o grave problema da filosofia de Spinoza, que se tornou o de um número de cientistas contemporâneos, que adotaram o seu pensamento, a exemplo de Albert Einstein, Stephen Hawking e Antonio Damásio. E é no mínimo espantoso que o filósofo de tão requintada ciência seja um dos que mais claramente incidiram no erro platônico.
Aliás, sofisticações filosóficas à parte, a concepção da natureza como Deus impessoal já revela arraigada tendência de atribuir concretude a uma ideia. Ela está presente na Nova Metafísica de Spinoza e no pensamento dos cientistas que a adotam. Essa concepção vem antes de toda demonstração. É a encarnação de uma ideia autoevidente. Mas isso é lá aceitável a uma ciência que pretende dar a prova de suas afirmações? A uma ciência que se quer tendente à exatidão?
Fato é que, nas mentes de não poucos, nem pouco ilustres cientistas, o Deus de Spinoza se transfigurou na natureza que eles perscrutam, ou esta naquele. Que vem a ser essa incrível mistificação, essa autêntica teofania, a não ser o erro de Platão ressurgido? Se Spinoza se fez tão fundamental à ciência, por influência de Einstein talvez, igualmente fundamentais não se tornaram os problemas do seu pensamento? Fraturas não se abriram no pilar da ciência? Fico a pensar se a frase de Russell sobre a Metafísica não se tornou aplicável a essa ciência: não vejo de que maneira ela pode se salvar dessa crítica parcial. Pode?
O Giro Copernicano
Aristóteles denominou opinião (doxa) o conhecimento de tudo o que não constitui a essência universal de uma coisa, em oposição ao conhecimento científico (epistéme), que desvenda exatamente essa essência. A cor, o tamanho e o modo de ser de uma coisa são objetos de opinião, que é inerentemente incerta, seja porque o sujeito se pode enganar, seja porque os objetos se podem alterar (mudar de cor, de tamanho, de posição etc.). Já a ciência, não se sujeita a erro.
O alcance da concepção de conhecimento formada a partir dessa distinção é revelado de maneira precisa, por Karl Popper, na seguinte passagem: “[Aristóteles] via como alvo derradeiro de qualquer indagação a compilação de uma enciclopédia que contivesse as definições de todas as essências, isto é, seus nomes juntamente com suas fórmulas definidoras” (POPPER, Karl. A sociedade aberta e seus inimigos. São Paulo: USP/Itatiaia, 1987. Tomo 2, p. 18), pois “só podemos conhecer [cientificamente] uma coisa conhecendo-lhe a essência” (idem. p. 17).
Por esse motivo, o conhecimento de essências permaneceu o ideal da ciência por muitos séculos, até que Emmanuel Kant mostrou que o universal não revela a essência das coisas. Essa conclusão ele a extraiu, em parte, da segmentação do conhecimento numa espécie a priori e outra a posteriori. Diz-se a priori o conhecimento que possuímos antes de observar objetos e que usamos para observá-los. A posteriori, por sua vez, é o conhecimento que os objetos fazem nascer no nosso intelecto, durante a observação em-pírica, e que interpretamos como autênticas características deles.
O conhecimento do universal é incapaz de nos revelar a essência, porque, ao observar os objetos, inserimos neles certos conteúdos provenientes do conhecimento a priori, constituindo-os ao mesmo tempo em que os observamos. Kant descreveu meticulosamente como essa constituição se dá. Podemos resumi-la na afirmação de que a essência das coisas não se dá a descobrir, pois a sua constituição por meio do instrumental a priori impede qualquer certeza sobre o que, no conhecimento, provém de nós e o que provém das coisas.
Essa descoberta abalou, de maneira perene, a confiança na existência de um conhecimento certo e necessário do mundo, como o preconizado por Aristóteles. O acordo dos filósofos posteriores a Kant, que até hoje vigora, é no sentido de que um conhecimento com tais apanágios é impossível, já que não somos capazes de separar os atributos objetivos das coisas do que inserimos nelas.
A essa predominância do elemento a priori, na cognição, e à consequente centralidade do sujeito, na Filosofia, Kant denominou revolução copernicana. A alusão a Copérnico tem sentido metafórico, mas a metáfora é eloquente, pois indica que a gravitação do objeto ao redor do sujeito tem um papel tão fundamental na Filosofia quanto a revolução dos astros na Física.
Vale a pena recordar o que o próprio Kant assentou sobre esse giro copernicano: “Até agora, admitia-se que todo o nosso conhecimento se devia regular pelos objetos [...] Mas faça-se a prova consistente em ver se não seríamos mais afortunados nos problemas da metafísica formulando a hipótese de que os objetos devem se regular pelo nosso conhecimento” (KANT, Emmanuel. Citado em REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario. História da Filosofia. 2ª ed., São Paulo: Paulus, 1990. Vol. 2, pp. 876-877).
Com essa nova fundamentação do saber humano, Kant dá por aniquilada a doutrina platônica, segundo a qual vimos ao mundo com concepções latentes sobre as essências das coisas. No diálogo Fédon, essa doutrina é exposta por Sócrates nos seguintes termos: “Se, olhando para um objeto, alguém observa que ele almeja ser de uma maneira [determinada pela ideia a que corresponde], porém não chega a realizar plenamente essa sua tendência, pode-se concluir que a pessoa, que tira essa conclusão, já tinha um conhecimento prévio do padrão, a que o objeto tende [...] E se adquirimos esse conhecimento antes de termos nascido, ou seja, se já nascemos fazendo uso desse conhecimento, então conhecemos [...] não apenas a igualdade, mas a beleza, bondade, justiça, santidade e tudo o mais, em que imprimimos,como selo distintivo, o nome de essência” (PLATÃO. Phaedo. In Great books of the western world. 2ª ed., Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1993. Vol. 6, p. 229).
Por que Kant considera essa doutrina aniquilada, morta e sepultada? Porque ele percebe, com nitidez, o erro do essencialismo em que está baseada. E por percebê-lo, ele não se dedica a destruí-la segunda vez, mas a demolir o que restou do mesmo erro, na filosofia de Aristóteles. Para este, o conhecimento dos fatos se estabelece por meio de premissas (afirmações ou negações que provam uma conclusão). Um fato é considerado verdadeiro, se corresponde às premissas de que deriva. Se nos dedicarmos a conferir a verdade dessas premissas, teremos de nos reportar a ainda outras premissas e assim sucessivamente, o que torna o conhecimento um retorno infinito a premissas cada vez mais remotas.
Como essa espécie de retorno é impossível, Aristóteles coloca no início do vasto sistema da ciência certas premissas básicas, cujo conhecimento se obtém pela observação direta dos objetos e não pelo retorno a premissas anteriores. Assim, ele encerra o conhecimento humano nos limites do mundo material, sem precisar de um mundo das ideias para fundamentá-lo. Não é preciso lembrar que essa explicação do conhecimento foi capaz de atravessar o tempo, como se verifica pela sua presença no ensinamento da Lógica em todos os séculos.
A realização maior de Kant consistiu em demolir a fundamentação aristotélica e não somente isso, mas em colocar em seu lugar uma outra, que denominou Lógica Transcendental. De acordo com Kant, essa nova Lógica se distingue pela consciência de que conhecer é usar as formas a priori da sensibilidade e do entendimento, a fim de moldar os objetos. E se moldamos o que conhecemos, nenhuma apreensão imediata é possível das essências objetivas das coisas. Claro que tampouco vimos ao mundo com um conhecimento latente daquelas essências.
Para podermos julgar o giro copernicano de Kant, precisamos entender um pouco melhor o processo que ele põe no lugar do conhecimento latente das coisas (próprio da filosofia platônica) e da apreensão imediata das suas essências (afirmada por Aristóteles), a começar pela distinção entre noumeno e fenômeno. Para Kant, noumeno é a coisa em si, o objeto como se encontra no mundo e não como o constituímos por meio do conhecimento. Já o fenômeno, é aquilo que conhecemos do objeto ou, para nos expressarmos com maior precisão, aquilo em que o constituímos. Para Kant, a única certeza possível sobre os objetos fora de nós é de que existem. O que eles são, sua essência e o restante do seu conteúdo, permanecem envoltos em total mistério.
Isso é radicalmente distinto da doutrina platônica das ideias e da apreensão imediata das essências, a que Aristóteles se referiu. Mas ainda assim, podemos ter do mundo um conhecimento fenomênico, moldado a priori, muito rico em conteúdo e passível de aplicações tão prodigiosas quanto as da tecnologia moderna. Podemos também viver, pensar e agir no mundo, por meio do conhecimento.
Não há dúvida de que a indeterminação das coisas, a indisponibilidade do seu conteúdo ao conhecimento, torna a filosofia de Kant uma “dessubstantificação” oposta à substantificação platônica. Não há substância sem conteúdo. Se nenhum conhecimento é possível do conteúdo das coisas, tampouco é possível substantificar algo. Por isso, o pensamento de Kant pode ser considerado o mais potente antídoto contra o velho vício da substantificação.
Mas tão potente é o antídoto que deixa o eu inteiramente desacompanhado de outras substâncias, como um náufrago a flutuar no oceano incógnito. Deve-se perguntar se essa é a face da verdade final, a sorrir para o homem que se despojou da ilusão e enfrentou inimigos portentosos para alcançá-la. Se esse é o fundamento filosófico mais adequado à ciência esplêndida do nosso tempo.
Se o for, aquela verdade e aquele fundamento serão inteiramente inaceitáveis ao homem, por contrariarem a natureza da sua alma. O homem não quer perecer, como é o destino do náufrago. Tampouco o ensinarão a fazê-lo. E se nada se pode saber do mundo, os seres que habitam o eu (suas ideias e sensações) não são seus pares, seus iguais ou seus companheiros, pois não compartilham sua natureza. O eu é real; as ideias e sensações que estão nele são meros espectros a flutuar sobre o oceano vazio. Assim, o giro kantiano se transforma em pesadelo.
Não admira que o homem nunca se tenha convencido de que sua condição seja a de tal náufrago. Tampouco surpre-ende que semelhante filosofia nunca tenha sido proposta antes de Kant e que ele próprio, com todo o seu senso lógico, a tenha escamoteado atrás de objetos com um único atributo certo: a existência. Esse atributo solitário sempre foi uma inconsistência, no vasto conjunto do pensamento kantiano, pois não se escora em necessidade lógica alguma. Nenhuma premissa o impõe, sequer o sugere ou chora suplicante. A existência das coisas é um deus ex machina, um heroi que o pensador faz baixar, no palco da sua filosofia, para realizar o que nenhuma personagem do drama pôde.
O giro copernicano é a negação total do vício da substantificação. Mas pasmem: a negação revela-se exagerada, soluciona demais, ministra uma dose fatal do remédio que avia para combater o grande vício. Se uma conclusão me ocorre de udo isso, é a de que a consistência absoluta nem sempre produz bom saber, pois este, em última instância, é fé, e a fé se alimenta da inconsistência e de toda lacuna atroz no conhecimento.
Quero dizer que, se é preciso extrair das premissas acima que as coisas podem ser ou não ser como os sentidos as representam, entre essas duas hipóteses, a decisão cabe à fé. Não decorre de qualquer das premissas. É preciso aceitar que é antes um salto que se dá com o coração trêmulo.
Se o homem comum nunca foi capaz de se guiar por razão tão robusta quanto a dos filósofos, não é natural que tenha formulado a questão da existência das coisas, por comparação com fantasmas e outros objetos de sua imaginação? E que tenha respondido sempre por fé a questão assim formulada? E que a evolução da espécie tenha-se encarregado de generalizar sua resposta? Por que deveríamos supor, contra tudo isso, que o conhecimento se estruturou por um método crítico, que só grandes mentes podem operar?
O método pelo qual o conhecimento humano se estruturou e estrutura até hoje é o utilizado pelo homem comum. É o método da espécie, não o dos filósofos e cientistas. Kant dá a impressão de perder a pista desse método, em certo momento, e de fundar o conhecimento em procedimentos que só os muito doutos podem realizar.
Se não anulam a eficácia do giro kantiano, as considerações acima inserem alguns problemas na sua estrutura. Não há dúvida de que, ao lermos Kant, colocamo-nos perante um dos maiores gênios filosóficos da História. Mas esse gênio tão incomum tornou a sua obra também incomum. E o caráter incomum dela, sua inusitada estranheza, acabou por limitar o poder explicativo da Lógica Transcendental. De fato, se o conhecimento é uma realização da espécie humana, há de no mínimo ser tida por estranha a gravitação consistente em manter o sujeito no centro e fantasmas à sua volta.
A Encarnação das Ideias
Ao giro copernicano proposto por Kant, no âmbito da Filosofia, seguiu-se outro, anticopernicano e reacionário, no da política europeia. Após a derrota de Napoleão, na campanha da Rússia, em 1812, e o fim da difusão dos ideais da Revolução Francesa que aquele estadista representou, uma onda de restaurações do Antigo Regime varreu a Europa.
Esses movimentos envolveram não só o retorno de dinastias antigas ao poder, mas o restabelecimento de um tipo autoritário de sociedade empregado com relativo sucesso para “manter a ordem”, durante milênios. É inegável que o uso da autoridade, nesses casos, infligiu um sacrifício brutal de vidas e de bem-estar às populações, mas não se pode deixar de notar que, embora comprada a esse preço, a “manutenção da ordem" continuou a parecer indispensável ao menos às pessoas que assistiram aos sacrifícios sem os padecer. É que a ordem sempre foi, para as sociedades, o que a sobrevivência é para a natureza. Assim como os animais lutam e não podem senão lutar pela sobrevivência, as sociedades combatem e têm de combater para não se romperem, ou seja, para manterem sua ordem interna.
No entanto, nenhuma condição histórica é como outra natural. Nenhuma condição histórica é eterna ou está fadada a um destino único e inevitável. Cedo ou tarde, soa sua hora final, e a vida tem de ser reinventada, pelos homens, senão com liberdade plena, ao menos sob condições históricas totalmente novas. A era moderna foi o início dessa hora, para a civilização ocidental. Nela, os povos começaram a notar a possibilidade de manterem a ordem sem o sacrifício de vidas e bem-estar oferecido durante tanto tempo. E compreenderam que valia a pena lutar por isso.
Mas como é difícil reinventar a vida humana! A cada grande avanço, seguem-se retrocessos. Foi o que se verificou na Europa, com o fim da Revolução Francesa, até que a modernização fosse retomada com os movimentos de 1848, a Comuna de 1870 e o avanço do pensamento socialista. Nesse intervalo encravado na Era das Revoluções, manifestou-se um violento movimento de reação às ideias de 1789 e à renovação da vida social. No campo da Filosofia, essa reação expressou-se de modo particularmente significativo no pensamento de Georg Wilhelm Friedrich Hegel.
Popper recorda: “O autoritarismo medieval começou a dissolver-se com o Renascimento. Mas, no continente europeu, a sua réplica política, o feudalismo medieval, não fora seriamente ameaçado antes da Revolução Francesa. (A Reforma apenas o fortalecera.) A luta pela sociedade aberta só voltou a começar com as ideias de 1789, e as monarquias feudais logo sentiram a seriedade desse perigo. Quando, em 1815, o partido reacionário começou a retomar o poder na Prússia, achou-se na extrema necessidade de uma ideologia. Hegel foi indicado para suprir essa necessidade” (POPPER, Karl. A sociedade aberta e seus inimigos. São Paulo: USP/Itatiaia, 1987. Tomo 2, p. 37).
O mesmo autor mostra que a filosofia política de Hegel foi moldada aos objetivos da dinastia no poder, na Prússia: “O coletivismo radical de Hegel depende tanto de Platão quanto depende de Frederico Guilherme II, rei da Prússia, no período crítico durante e após a Revolução Francesa. Sua doutrina é a de que o estado é tudo, e o indivíduo, nada, pois deve tudo ao estado, tanto sua existência física como espiritual” (idem. pp. 37-38). É algo evidente que essa doutrina foi forjada, por Hegel, para prestigiar as ambições de poder de Frederico.
Tal gênese política não é exclusiva da filosofia de Hegel. Pelo contrário, perpassa toda a Filosofia Moderna. Onde a separação entre Igreja e Estado implantou-se, a Filosofia deixou de derivar da fé para derivar do poder. A particularidade de Hegel foi a sua ligação com o soberano. Outros pensadores modernos associaram-se mais a instituições e partidos do que a líderes. Mas o comum a todos é que, ao se desconectarem da fé, aliaram-se ao poder. Não é demasiado cogitar que, sob essas novas condições, ao se emancipar da Teologia, a Filosofia não adquiriu o almejável status libertatis: antes, tornou-se escrava da política. E poucas vezes esse seu novo modo de ser foi visto em estado tão puro quanto em Hegel.
Cabe indagar, nesse caso: e o mérito interno da filosofia hegeliana? E o gênio desse pensador? Não foram determinantes para o enorme sucesso alcançado por ele? As opiniões variam muito a esse respeito. Schopenhauer, que o conheceu pessoalmente, declarou: “Hegel foi imposto de cima pelos poderes vigentes como o Grande Filósofo oficializado”. Notem bem as maiúsculas.
O contemporâneo de Hegel continua a descrevê-lo um tanto impiedosamente: “Era um charlatão de cérebro estreito, insípido, nauseante, ignorante, que alcançou o pináculo da audácia por garatujar e forjicar as mais malucas e mistificantes tolices” (SCHOPENHAUER, Arthur. Obras. Vol. II, p. 17).
O pior é que um filósofo como Popper, em vez de discordar desse parecer, ratificou-o. Para Popper, a mediocridade de Hegel como filósofo levou-o a lançar mão de uma linguagem às vezes impenetrável e propositadamente ininteligível. Motivada por mediocridade ou grandeza (não é o que mais importa), a ininteligibilidade permanece um fato. Popper deu dela o seguinte exemplo: “Escreve [Hegel]: O som é a mudança verificada na condição específica de segregação das partes materiais e na negação dessa condição; é meramente uma idealidade abstrata ou ideal, por assim dizer, dessa especificação. Mas essa mudança, em consequência, é imediatamente em si mesma a negação da subsistência específica material; o que é, portanto, a idealidade real da gravidade específica e da coesão, isto é, o calor. O aquecimento de corpos sonoros, assim como dos percutidos ou atritados, é a aparência de calor que se origina conceitualmente juntamente com o som” (POPPER, Karl. Ob. cit. p. 43). Uma verdadeira conversa de Caetano e Gil, nos bons tempos de Chico Anysio...
Mas é preciso pôr freio à muita radicalização. Às atribuições de mediocridade filosófica e às acusações congêneres, em que Schopenhauer e Popper incidem. Autor prolífico, dono de erudição incontestável e genuinamente interessado em questões metafísicas, Hegel foi grande a ponto de merecer sua inclusão na História da Filosofia, independentemente das relações que manteve com o poder em sua época. É preciso, porém, diferenciar grandeza de espírito do que se pode talvez denominar retidão filosófica. Não faltou grandeza intelectual a Hegel, mas lhe faltaram retidão e lisura. Hegel abusou conscientemente do hermetismo, do esoterismo, do solipsismo linguístico. Empregou toda sorte de artifícios para dobrar os espíritos. Teve lapsos de megalomania. E exerceu um poder brutal por meio do conhecimento.
Enfim, a proximidade do poder absoluto não caiu bem a Hegel. A frase de Lord Acton ressoa, nesse caso, como o grito abafado de um fantasma: “O poder corrompe, e o poder absoluto corrompe absolutamente”. O poder absoluto parece ter corrompido absolutamente a filosofia do grande Hegel.
Examinemos, porém, mais de perto, as linhas mestras do pensar desse filósofo e sofista. O ponto de partida de Hegel, sua verdade inicial e inamovível são as ideias platônicas. Ele percebe que, concebidas à maneira de Platão, as ideias se tornam inconciliáveis com o materialismo que impregna tanto o senso comum quanto a ciência. Parte, pois, do velho pressuposto de que, se as ideias existem, a matéria não pode ser considerada a realidade fundamental. E, para combater os vícios materialistas arraigados em toda cultura, recomenda o remédio da dialética.
Que originalidade há nesse ponto de partida da filosofia de Hegel? Nenhuma. É platonismo puro. Que mérito há nele, além da inventividade palpável? Bem pouco, pois vimos que a atribuição de realidade às ideias não é mais que um vício do pensamento. E o método dialético: introduz algo novo? Sim, a contradição. Para Hegel, a contradição pode parecer ausente do mundo, somente quando o imobilizamos. No seu fluir, o real é pura e simples contradição, pois as coisas sempre fluem para o oposto: o que é quente esfria-se, o que se move, desacelera-se e tende ao repouso, o que vive caminha para a morte. Fluir é mover-se em direção ao oposto. Portanto, se a imobilidade é substancial, o movimento é dialético. Claro: esquecia-me de mencionar que Platão já dera essa descrição do movimento, na passagem do Fédon em que mencionou "o princípio geral da geração, segundo o qual das coisas contrárias é que nascem as coisas que lhes são opostas [...] O mesmo acontece com aquilo que se chama misturar-se, separar-se, aquecer, esfriar, e todas as outras coisas" (PLATÃO. Fédon. In Diálogos. São Paulo: Hemus. p. 118).
O problema é que o senso comum e a ciência baseiam-se no princípio de não contradição, que não pode ser aplicado ao que é precisamente contraditório. Isso não implica menos que a falsidade de todo o senso comum e de toda a ciência. De sorte que é preciso forjar outra lógica dos movimentos reais, que Hegel chama dialética.
Em que consiste essa lógica? Que procedimentos assinalam o pensar dialético? Hegel ensina que a dialética é o movimento em que as ideias (que ele denomina Absoluto) refletem-se em si mesmas. O primeiro momento dessa reflexão é a configuração das ideias em si. O segundo é o seu movimento para fora de si, que envolve a sua negação (contradição). Por fim, o terceiro momento é o retorno das ideias a si.
O primeiro momento dialético tem como resultado líquido o que Hegel denomina Ideia; o segundo gera a Natureza, em que as ideias adquirem um corpo, portanto se encarnam; por fim, o terceiro momento resulta no Espírito. Embora constitua um retorno da ideia a si mesma, o Espírito não se realiza numa sobrenatureza, mas na História (isto é, na Prússia!).
Hegel vai além. Enuncia três leis, que presidem os movimentos do real nos vários momentos dialéticos. A primeira lei é a da transformação da quantidade em qualidade e vice-versa. O aumento da quantidade de qualquer elemento de um ser, além de determinado limite, produz uma transformação qualitativa. Friedrich Engels deu o seguinte exemplo da atuação dessa lei: “Se três átomos [de oxigênio] se agruparem em uma molécula, em vez dos dois átomos habituais [que formam o oxigênio], teremos o ozônio, corpo muito diferente do oxigênio ordinário, quer por sua cor, quer por sua ação” (ENGELS, Friedrich. A dialética da natureza. 6ª ed., São Paulo Paz e Terra, 2000. p. 37).
A segunda lei, por sua vez, enuncia a interpenetração e a conversibilidade dos opostos. Isso porque, para passar de uma coisa ao seu oposto, é preciso que a primeira contenha o último e vice-versa. A segunda lei explica os movimentos atrativos dos opostos, assim como os das cargas que se atraem, por tenderem ao estado uma da outra.
Por fim, a terceira lei dialética assevera que a toda negação corresponde outra de sentido contrário. Não se pode deixar de ver, nessa lei, uma generalização da ação e reação enunciadas por Newton: a toda ação corresponde uma reação de mesma intensidade e sentido contrário. Com a única ressalva de que Hegel vê a ação como uma primeira negação destinada a ser, ela própria, negada. Devido à terceira lei, tudo tende a retornar à sua forma originária.
Não convém passarmos sem um exemplo da terceira lei: "Se [um grão de cevada] cai em solo adequado e sofre as transformações certas por influência da umidade e do calor, o grão em questão germina. Isso significa que o grão deixa de existir. Ele é negado. No seu lugar, surge uma planta, que é a negação do grão. Qual é, entretanto, o processo normal de vida dessa planta? Ela cresce, floresce, é fertilizada e, ao final, produz outros grãos de cevada. Tão-logo amadurecem, estes últimos grãos, por sua vez, também morrem. Também eles são negados. Em consequência desta negação da negação, temos de novo um grão de cevada, não mais, aliás, um grão individual, mas dez, vinte, trinta deles" (ENGELS, Friedrich. Anti-Dühring. Chapter 13. Disponível em: http://www.marxists.org). O exemplo é tão eloquente quanto claro. E tem a indefectível vantagem do ar de parábola materialista...
Não há distância intransponível entre a realização dialética das ideias, em Hegel, e a processão de todas as coisas a partir do Uno, em Plotino. Pelo contrário, há imitação desta doutrina naquela. A Ideia resultante do primeiro momento dialético não é muito diferente do Espírito e da Alma plotinianos. A Natureza de Hegel é a matéria plotiniana. E o Espírito é o retorno das coisas ao Uno.
Verdade é que os esquemas também apresentam certas diferenças. Além dos nomes variantes que atribuem aos momentos do devir geral, para Hegel, todas as etapas do movimento dialético são positivas. Ou, para dizê-lo melhor, cada etapa representa uma autorrealização mais plena do ser. Já para Plotino, a processão é um movimento decadente, até o abismo da matéria. Só o retorno ao Uno é ascendente.
Mas essas diferenças perfunctórias escondem a similitude profunda dos dois esquemas. A criatividade da dialética de Hegel é a de Plotino, retocada aqui e ali. O único problema é que elas padecem de um mal idêntico ao de todos os grandes sonhos: não são reais. Pior: tomam a ilusão por verdade, o vulto por corpo, a sombra por luz. Se isso é admissível na arte, na ciência é fatal.
Verdade é que Plotino e Hegel têm a favor de si uma atividade criadora de mundos sem paralelo na História do Pensamento, uma vocação demiúrgica que lhes escorre dos poros. Enfim, um método de realização que parece assimilado da encarnação do Logos no cristianismo. Mas que haveremos de replicar a um velho marxista rebelde que, parodiando, sugerir que Cristo trouxe à luz a tragédia, Plotino, a farsa, e a Hegel restou matar-nos de rir com a comédia?
Em Hegel, a Filosofia faz-se comédia. Platão fornece a matéria da mais pura objetivação das ideias; como um novo Plauto, Hegel lhes sopra a forma que, na História, não lhes tinha sido antes atribuída.
Redução à Matéria
Na Crítica da razão pura, Kant lançou a semente de um novo tipo de materialismo, ao afirmar que “a harmonia que existe no mundo torna evidente o caráter contingente da forma, não da matéria, isto é, da substância do mundo” (KANT, Emmanuel. Critique of pure reason. In Great books of the western world. 2ª ed., Chicago: 1993. Vol. 39, Transcendental Logic, Second Division, Book II, Chapter II, Section VI, p. 190).
Nessa passagem com cheiro de materialismo grego, a matéria é considerada a substância do mundo, a realidade última e não contingente, isto é, necessária. Verdade é que Kant nunca extraiu claramente as consequências dessa afirmação, que se duplica aqui e ali na sua obra. Ele parece ter feito questão de manter seu materialismo esboçado e latente, à sombra das extremidades da sua Crítica. Porém, não muito tempo depois, Ludwig Feuerbach deu pleno desenvolvimento a essas implicações da obra de Kant (e a outras da de Hegel), ao propor a primeira argumentação moderna que parece inteiramente plausível, em prol de uma filosofia claramente materialista.
Em A essência do Cristianismo, Ludwig Feuerbach resumiu sua tese de que o conceito de Deus se reduz ao do homem nos seguintes termos: “Mostro então que o verdadeiro significado da teologia é a antropologia, que entre os predicados da essência divina e humana [...] também entre o sujeito ou a essência divina e humana não há distinção, são idênticos” (FEUERBACH, Ludwig. A essência do Cristianismo. 2ª ed., Campi-nas: Papirus, 1988. p. 30).
O conceito de essência aludido
por Feuerbach tem sua origem em Aristóteles, o que fica claro não apenas em
razão de o conceito aristotélico ser de uso comum, no século XIX, mas na
própria obra de Feuerbach: "Sempre que os predicados [...] expressam a essência
do sujeito, não existe distin-ção entre predicado e sujeito, podendo o predicado
ser posto no lugar do sujeito, pelo que indico a Analítica de
Aristóteles ou ainda a Introdução [Isagoge] de Porfírio" (idem).
Quando Feuerbach afirma
que, em alguns predicados, a essência coincide com o sujeito, como explicado
na Analítica e na Isagoge, a essência, o sujeito e o predicado
são claramente empregados no sentido dos autores daquelas obras, isto é, de Aristóteles
e de Porfírio. Por isso, na cons-trução da sua tese sobre a redução do divino
ao humano, ele parte de tais conceitos.
Porém, Feuerbach
modifica o conceito aristotélico num ponto fundamental ao afirmar que, “na
vida lida-mos com indivíduos, na ciência com gêneros. Mas somente um ser para o
qual o seu próprio gênero, a sua quididade [essência], torna-se objeto pode
ter por objeto outras coisas" (idem. p. 43).
Nessa passagem, a essência
não é tomada como conteúdo da definição, como em Aristóteles, mas como
sinônimo de gênero. Por isso, os dois conceitos são postos em paralelo na frase
“o seu próprio gênero, a sua quididade”, que é a essência.
Como o gênero é o
conjunto de características comuns a certo número de seres, com a modificação
que rea-liza, Feuerbach passa a pensar a essência muito mais como o gênero do
que como a definição. É o que fica claro também na seguinte afirmação: “A vida
interior do homem é a vida relacionada com o seu gênero, com a sua essência”. E
nesta outra: “O homem é para si ao mesmo tempo Eu e Tu; ele pode se colocar no
lugar do outro exatamente porque o seu gênero, a sua essência, não somente a
sua individualidade, é para ele objeto”.
Notemos que ta afirmação
“ele pode se colocar no lugar do outro exatamente porque o seu gênero, a sua
essência [...] é para ele objeto” reproduz exatamente a anterior: “somente um
ser para o qual o seu próprio gênero, a sua quididade, torna-se objeto pode ter
por objeto outras coisas”. Comparando-as, não se torna apenas claro, mas
inequívoco que Feuerbach emprega as palavras essência e quididade como
sinônimas, mas faz o conceito respectivo equivaler ao de gênero.
Mas o gênero, que é?
Quanto a isso, não creio errar quanto penso que os seres humanos são
inumeráveis e cada um deles possui características exclusivas e outras comuns
à espécie. Estas, quando abstraídas e reunidas, formam o gênero humano, que
Feuerbach faz corresponder à essência. Assim, a essência é transfigurada no
conteúdo comum a todos os indivíduos.
Dou, pois, a
identificação da essência com o gênero como certa. E, com base nela, gostaria
de tecer uma avaliação, talvez diferente da que comumente ouvimos, da tese
central de A essência do Cristianismo.
A ideia de essência,
isto é, do gênero, aparece já nesse título. E não é preciso muito esforço para
extrair da leitura da obra que o conteúdo da essência do Cristianismo (Deus e o
divino) a que Feuerbach se refere já no seu título é o humano, pois ele afirma
expressamente que “entre a essên-cia divina e a humana não há distinção, são
idênticas”. Esse é
o real sentido da redução da teologia à antropologia operada por Feuerbach.
Para entendermos as
consequências desse mo-do de pensar e da crítica à ideia de Deus que Feuerbach
formulou com base nele, nada melhor do que retornar um instante ao conceito
de essência de Aristóteles. Já afirmei que, nesse autor, a essência corresponde
à definição de um objeto. Por isso, pode ser bem entendida como o mínimo que
basta para diferenciá-lo de outros objetos. Ou, se quisermos empregar as
palavras por meio das quais o próprio Aristóteles exprimia uma definição, ela
é a soma do gênero próximo e da diferença específica, o que implica que não é
só o gênero, mas também aquilo que o diferencia.
Curiosamente, o que
Feuerbah chamou gênero está bem longe de ser o mesmo que o gênero que
Aristóteles consideou parte da definição. Vimos que, para Feuerbah, o gênero
era a essência ou quididade de um ser. Portanto, o que é comum a todos os
indivíduos daquele tipo. Para Aristóteles, muito diferentemente, o gênero
incluído na definição não era o do ser definido, mas outro mais vasto, assim
como o gênero animal no caso do homem.
A definição, para
Aristóteles, é esse gênero vasto reduzido e singularizado por meio da diferença
específica. E, embora esta pertença a todos os indivíduos do gênero, não é
qualquer característica compartilhada por todos eles, mas uma apta a
diferenciar o gênero amplo a tal ponto que o ser definido (o homem, no exemplo
dado) não se confunda com qualquer outro.
Assim concebida, a
definição aristotélica se diferencia da essência feuerbachiana. Esta é uma
universalidade, um conjunto de características comuns a indivíduos de um mesmo
tipo e nada mais. O gênero não supõe que as características nele reunidas
estejam dispostas em determina-da ordem. A essência aristotélica, ao contrário,
o supõe. A essência é a mesma universalidade que enunciamos pela palavra
gênero organizada de determinada maneira. No caso do ser humano, é o conjunto
de traços comuns aos animais dispostos sob o critério organizador da
racionalidade.
É provável que Feuerbach
tenha tomado o seu conceito de essência do hegelianismo alemão. Não o encontro
em Kant, nem explicitamente em Hegel, mas em Marx e Feuerbach, que foram
hegelianos. Marx escreveu: "O Cristianismo é a religião kat exohin, a
essência da religião, o homem deificado sob a forma de uma religião particular.
Semelhantemente, a democracia é a essência de toda constituição política, o
homem socializado sob a forma de uma particular constituição do Estado, a qual
se relaciona a outras constituições como o gênero à sua espécie" (MARX,
Karl. Critique of Hegel’s Philosophy of right.Part 2, c, d. Disponível em www.marxists.org).
Marx refere-se ao Cristianismo como o homem
deificado. Pensa a religião cristã como fruto da confusão de Deus com o homem,
em conformidade com Feuerbach. E prossegue para afirmar que o Cristianismo é a
essência da religião, e a democracia, a essência de toda constituição
política. A democracia é o homem tornado Estado, como o Cristianismo é o homem
tornado Deus. Aquela é a ilusão política; este, a ilusão religiosa. E arremata:
a democracia relaciona-se aos outros regimes como o gênero à espécie. Chama, assim,
a democracia gênero, e os outros regimes, espécies. Claro que, se a democracia
é a essência dos regimes políticos, segue-se que o gênero é a essência, em Marx
como em Feuerbach.
Marx toma a essência
pelo gênero exatamente e com tanat convicção quanto Feuerbach: "Se as formas da existência social do homem, assim como
a família, a sociedade civil, o Estado etc., devem ser consideradas como a
atualização, a objetivação da essência humana, então [...] o homem permanece
como o conteúdo essencial dessas realidades, e elas como a sua universalidade
atualizada, portanto como algo comum a todos os homens" (idem).
A essência aqui
mencionada não é a aristotélica. Não são os atributos animais organizados sob
critério racional. É antes o gênero, o agregado puro e simples daqueles
atributos. A única diferença é que, segundo a filosofia de Hegel (seguida neste
passo por Marx), esse agregado assume as formas concretas da família, da
sociedade civil e do Esta-do, que são a essência humana objetivada. Isso basta como indicação de que o hegelianismo foi responsável por modificar o significado clássico da essência, e que o novo conceito surgido naquele momento foi utilizado por vários filósofos. Basta também para mostrar que, ao invocar Aristóteles e Porfírio, Feuerbach usou o conceito modificado como se correspondesse ao original.
Mas a verdade é que o
novo conceito é muito diferente do antigo. A essência genérica mencionada por
Feuerbach e Marx não é o mesmo que a essência como definição de um objeto. É,
antes, o contrário dela. É a definição desagregada, a definição cujos
elementos se desprenderam do eixo organizador e se dispuseram sob outra ordem.
O problema é que a noção
de essência genérica encontrada na tradição hegeliana rompe com o conceito
sedimentado de essência de quase todo o restante da tradição filosófica, o
que causa um grave problema de comunicação e de compreensão.
As consequências dessa ruptura não foram pequenas.
Por meio dela, Feuerbach construiu a sua tese de que a essência de Deus é igual
à do homem e, por isso, Deus é uma invenção humana. A sugestão tem fascínio.
Brilha como uma descoberta da razão pura, mas não o é, pois nada nos diz sobre
a confusão da definição de Deus com a definição do homem, que é toda uma outra
coisa.
Apenas se admitirmos o
giro filosófico tentado pelos hegelianos, a crítica de Feuerbach faz sentido.
Só nesse universo conceitual, a essência de Deus confunde-se com a do homem e,
ainda assim, de maneira vaga e não claramente comprovada. Se nos movermos em
outro universo (aquele fundado pela Analítica
de Aristóteles), chegaremos a conclusão muito distinta. Penso que esse outro
universo conceitual é muito superior ao de Hegel, que se desmancha em
inconsistências.
Ao acusar o Cristianismo
de tomar a essência de Deus como se fosse a do homem, Feuerbach acusou-o de
substantificar a essência humana sob a forma de Deus. Se a acusação fosse
procedente, o Cristianismo seria a mais vasta e grosseira de todas as substantificações
de ideias já realiza-das. Mas Feuerbach tomou a essência como o gênero. Afirmou
que Deus é o que os indivíduos humanos têm em comum. Se isso fazia sentido no
universo hegeliano, por certo não faz sentido naquele fundado em Lógica mais
rigorosa. Os indivíduos humanos têm em comum seus erros. Deus é perfeito. Eles têm em comum um poder mínimo, quimérico. Deus é todo-poderoso. Os homens têm em comum a mortalidade; Deus é imortal. Claro que, por levar a consequências como essas, a crítica de Feuerbach não parece realmente se sustentar.
Em cada um dos capítulos de A essência do Cristianismo, um ou outro aspecto do Deus cristão é referido ao gênero humano. Página após página, a sôfrega racionalidade humana, a não menos sôfrega moralidade dos homens, a encarnação, o sofrimento, a relação mãe-filho, a relação pai-filho, os fenômenos naturais e tantas outras coisas humanas são convertidas em experiências de Deus, sem provar coisa alguma sobre a confusão (ou não) das definições de Deus e do homem.
Apesar dessas deficiências, a crítica de Feuerbach foi saudada como grande conquista do saber humano. Em alemão, o nome Feuerbach significa riacho de fogo. Troçando, Marx afirmou que não é possível ingressar no pensamento crítico, sem passar pelo riacho de fogo da filosofia de Feuerbach. Ao que tudo indica, ele quis, com isso, se referir precisamente à crítica do conceito de Deus por aquele filósofo. Mas a que parte o riacho realmente nos leva? Para muitos, leva à consciência crítica de que, ao adorar a Deus, o homem adora a si mesmo e, ao falar de Deus, fala de si. Para outros, porém, leva somente a um feixe de tolices.
O Materialismo Revolucionado
Este é um tempo estranho, em que se requer do homem que viva no mundo sem uma visão de mundo. Continuamos a ter um mundo para viver e decifrar, e olhem que ele nunca foi tão complexo. Porém, ao contrário de todas as outras épocas, hoje não possuímos visões de mundo que nos ajudem a entender e a viver neste complexo orbe. Visões de conjunto diversas das que integram o senso comum tornaram-se tão raras que parecem um luxo, um capricho, quando não são tratadas como coisas inalcançáveis.
Mas, se a impossibilidade de visões de mundo fosse verdadeira, tanto a Filosofia como a Teologia estariam, de chofre, inviabilizadas. Não seriam possíveis, pois nada mais são que instrumentos de construção de visões de conjunto das coisas. Dediquei minha vida a essas duas disciplinas. E dos grandes teólogos e filósofos que pude estudar, dois me atraíram mais a atenção: Santo Agostinho e Karl Marx.
Curioso é que são pensadores em tudo opostos. Agostinho teve uma formação romana clássica. Estudou letras e retórica. Na tenra idade, assimilou o modo grego de pensar mais do que o cristianismo de sua mãe, Mônica, em relação ao qual cultivou admiração e ressalvas. E não o fez sem motivos. As doutrinas de que Agostinho se enamorou, nesse tempo, mostram que ele se inclinou com ímpeto para as visões de mundo materialistas (no caso, o maniqueísmo) e céticas (academicismo) que circulavam no Império. Só a partir de sua conversão, aos 33 anos, Santo Agostinho trocou o materialismo típico da cultura grega pela fé cristã, da qual se tornou o pensador exemplar e o maior referencial doutrinário, durante quase toda a Idade Média.
Marx realizou o percurso contrário. Nasceu numa família de rabinos e se criou numa sociedade (a da Prússia) em que a filosofia reinante, promovida pelo próprio Estado, era o idealismo teológico de Hegel. Durante sua vida, Marx transitou dessas influências para o materialismo histórico que ele próprio criou, com ajuda de Friedrich Engels. Apesar de todas as dificuldades de interpretação do mundo social em que se envolveu, o materialismo de Marx pode ser considerado o mais bem-sucedido exemplar dessa orientação filosófica em toda a História.
O motivo primeiro de meu igual interesse por pensadores tão opostos quanto Agostinho e Marx foi o propósito de empreender o exame mais honesto possível das filosofias que pudesse percorrer. Nada faculta análise mais proveitosa de uma doutrina do que o exame igualmente acurado da doutrina oposta. Como, desde o início de minha trajetória filosófica, eu me inclinara para o pensamento cristão, o aprofundamento na obra de Marx permitiu-me o contato com um modo diverso e inverso de ver o mundo. Permitiu-me estudá-lo também ao avesso e indagar seriamente se a visão de mundo materialista, porventura, não seria mais fecunda que o cristã.
Porém, há outro motivo tão fundamental quanto esse para o meu interesse por Agostinho e Marx. É que, embora as teologias e as filosofias facultem construir distintas visões de mundo, a História parece apontar a existência de duas e somente duas metavisões. Refiro-me ao materialismo, que Marx tão bem representa, e à metafísica, à qual a Teologia foi quase sempre anexada. Agostinho está entre os mais destacados cultores da metavisão teológico-metafísica.
Se a visão de mundo é uma interpretação global da realidade ou de parte significativa dela, a metavisão é mais do que isso. É um agregado de visões distintas, mas convergentes. Pode-se propor que uma metavisão é uma visão de visões do mundo. Talvez, na História do Pensamento, não haja mais do que duas metavisões capazes de agregar todas as concepções filosóficas propostas. São elas o materialismo e a metafísica.
Isso se torna claro, quando lançamos à História do Pensamento um olhar a partir do alto. Ao fazê-lo, divisamos um período inicial de formação em que a Filosofia grega foi, antes de tudo, materialista. Logo em seguida, as obras de Platão e Aristóteles desafiaram e chegaram a abalar os pressupostos dos materialismos pré-socráticos e da cultura grega como um todo. Isso ocorreu desde que Platão ousou propor a existência de um nível da realidade subsistente à parte da matéria: aquele que hoje denominamos espírito e que ele chamou mundo inteligível ou das ideias. Discorri mais amplamente sobre os motivos profundos dessa revolução filosófica, no artigo sobre o Logos divino.
Porém, o condicionamento exercido pelo modo grego de pensar, o peso total da cultura grega, fez com que, após o desaparecimento de Platão e Aristóteles, os filósofos tornassem progressivamente às visões de mundo materialistas. Os seguidores de Platão foram a exceção a esse movimento, pois continuaram a defender concepções metafísicas.
Por terem permanecido praticamente os únicos a defenderem a novidade metafísica é que os platônicos se tornaram tão importantes na Filosofia Antiga. Por isso também, foram tão associados ao cristianismo. Só ao nos darmos conta da oposição persistente entre materialismo e metafísica, compreendemos por que, desde o século II, o cristianismo juntou suas águas às do platonismo em escala tão ampla. Não é exagero afirmar que o elemento platônico e o cristão se fundiram quase totalmente, devido às afinidades que os associavam no plano da metavisão. No entanto, a fusão nunca resultou em confusão. Os grandes pensadores, ao menos, sempre discerniram perfeitamente o que, no pensamento cristão medieval, era platonismo, e o que era fruto do cristianismo primitivo.
Essa fusão de platonismo e cristianismo foi responsável pelo verdadeiro funeral dos materialismos, ocorrido entre os séculos IV e V. Não se tratou de um enterro individual, mas coletivo, do sepultamento de toda uma civilização, da cultura pagã inteira, que feneceu nesses séculos e arrastou para a cova os materialismos filosóficos penosamente construídos. Até os pressupostos vulgares, entranhados na maneira grecorromana de ver o real como matéria, foram então abandonados. O materialismo exauriu-se até a última gota e desapareceu do mundo cristão.
Os motivos desse espantoso acontecimento constituem um dos mais empolgantes capítulos da História, pois poucos movimentos nos levam mais diretamente ao significado da Idade Média e da Modernidade como antítese dela. A era medieval foi fruto do desmoronamento da cultura pagã, cujas sementes não se perderam, mas cuja forma foi varrida da face da Terra. E, se a Modernidade pode ser definida de várias maneiras, do ponto de vista das visões de mundo, o elemento central dela há de ser identificado como o reaparecimento do materialismo no mundo.
Continuemos, porém, a olhar os acontecimentos a partir do ponto elevado a que me referi. Ao fazê-lo, descobriremos que os materialismos ressurgidos na Idade Moderna destruíram os sistemas metafísicos apenas para serem, eles próprios, refutados em seguida. De fato, nenhum dos materialismos filosóficos propostos, na Modernidade, manteve-se íntegro. Todos foram reduzidos a pó. Arrastaram também consigo as metafísicas, mas por outro motivo, a saber: porque demonstraram que estas eram irrefutáveis, estavam fora do campo da ciência e, portanto, eram inúteis para fazer avançar o conhecimento.
Não descrevo esse traçado da Filosofia e mais amplamente das Ideias como resposta a questões formuladas na busca do conhecimento, mas como recolocação das próprias questões. O reconhecimento das metavisões materialista e metafísica é um modo de interrogar os fatos da História do Pensamento. É um modo de perguntar aonde esse incrível traçado de reflexões nos conduz.
Nesse ponto, precisamente, a consideração das obras de Santo Agostinho e de Marx se torna fundamental. Se a refutação do materialismo antigo, na época de Agostinho, teve bons fundamentos, e dificilmente se pode duvidar desse fato, a compreensão do estado atual das metavisões passa pela indagação do grau em que a metafísica agostiniana foi abalada pelos materialismos modernos e pelo de Marx, em particular. Verdade é que esses materialismos se preocuparam com as metafísicas clássicas, com Platão e Aristóteles, mais do que com Agostinho e com o próprio Tomás, mas o corpus agostiniano foi o que mais as revitalizou e proveu as condições indispensáveis para a metafísica continuar a existir no futuro incerto das reflexões filosóficas. Não foi sem motivos que a Alta Idade Média se fez agostiniana e que a Reforma afundou suas raízes no teólogo de Hipona.
Por outro lado, quando o materialismo voltou a florescer, no século XIX, a variedade que se impôs às demais, tanto no campo da práxis como no das ideias, foi o marxista. Chamemo-lo pelo nome mais adequado dentre os que foram usados para designá-lo, ora corretamente, ora de modo impreciso. Chamemo-lo materialismo histórico.
Essa variedade de materialismo não se tornou dominante por motivos casuais, mas por conter, desde o início, a mais consistente proposta de liquidação da metafísica dentre as que já haviam sido apresentadas. Melhor não apenas por ter sido a mais longamente gestada, por Marx e Engels, mas por ter sido a única que, ao mesmo tempo, inverteu o materialismo antigo e os seus equivalentes modernos que, na época de Marx, eram os da chamada esquerda hegeliana.
Os materialismos da Antiguidade, que Santo Agostinho enterrara, e os modernos, hegelianos, tinham como denominador comum o enviezamento abstrato. Marx alcançou tanto sucesso em colocar o seu próprio materialismo num patamar superior aos demais, por tê-lo tornado concreto. Por isso, a expressão materialismo histórico, mais que materialismo dialético ou socialismo científico, faz jus ao sentido básico do marxismo. Histórico invoca antes de tudo o concreto, o não abstrato. Não acontece o mesmo com as expressões materialismo dialético e socialismo científico.
O materialismo não fora tão amplamente abandonado, entre os séculos IV e XVII, sem bons motivos. Essa conclusão é confirmada, quando nos debruçamos sobre o problema maior que as concepções metafísicas do real serviram para propagar, a saber: o vício da substantificação. Como esse vício não pode ser corretamente atribuído a Platão, mas ao senso comum, é possível mostrar a sua presença inclusive nas correntes materialistas de pensamento. O monismo de Spinoza é um exemplo, mas podemos citar outros, como os materialismos da esquerda hegeliana.
Praticamente todos os materialismos antigos e diversos dentre os modernos estão gravemente maculados pelo vício de pensamento central da História da Filosofia. Não é diferente sequer com o de Marx, na medida em que adota a “crítica do céu” de Feuerbach. Porém, há um sentido em que o materialismo de Marx pode ser emancipado de Feuerbach. Há um sentido em que ele funciona independentemente das categorias daquele filósofo. Esse é exatamente o sentido concreto do materialismo histórico.
Marx não encanta tanto por ter invertido a metafísica, o que ele também realizou, mas por ter invertido o próprio materialismo antigo e moderno e, com eles, a substantificação de que estão impregnados. Essa, a meu ver, é a razão da superioridade do materialismo de Marx às outras variedades da mesma doutrina. O materialismo histórico é melhor que a ampla maioria dos outros por ter maior consciência desse problema central da História da Filosofia. Tão central, aliás, que, em certos momentos, chega a se confundir com ela.
Na perspectiva proporcionada pela História da Filosofia, portanto, o período em que a objetivação das ideias foi mais superada, na Antiguidade, foram os séculos III a V e, na Modernidade, os séculos XIX e XX. A inversão mais recente, porém, não se deu em todas as vertentes materialistas, nem por influência delas, mas sobretudo a partir da influência do materialismo histórico.
E, se esses dois períodos conheceram as mais significativas superações da substantificação, podemos perguntar qual foi o impacto do materialismo de Marx sobre a metafísica agostiniana. A que espécie de conclusão o cotejo dessas versões da metafísica e do materialismo conduz? Marx permite remover a metafísica do período dos pais da igreja?
Na verdade, como as metafísicas são irrefutáveis por definição, é claro que a agostiniana não foi destronada pelo materialismo histórico. Por outro lado, ela própria não fornece os instrumentos necessários para refutar o marxismo construído tantos séculos depois de Santo Agostinho, sobre evidências desconhecidas por ele. Tudo o que se pode fazer, digamos, é comparar as duas grandes doutrinas, é entender que Santo Agostinho construiu uma doutrina da liberdade de Deus e do homem. Para ele, Deus é a verdade, e a verdade é libérrima. Nesse sentido, Agostinho antecipa Escoto e Ockham: o Universo é como é, porque Deus o quis. Mais do que isso, quando se torna conhecida do homem, a verdade rompe todos os seus grilhões. “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (Jo 8:32). A verdade libérrima promove a libertação do homem. Isso é Santo Agostinho. Marx, por sua vez, ancora sua obra no valor da igualdade e o promove muito mais do que a liberdade. Isso torna o materialismo histórico praticamente incomparável com a metafísica de Santo Agostinho Portanto, nenhum dos dois sistemas refuta o outro.
Michel Foucault foi historiador e filósofo materialista. Para ele, “à diferença do mundo cristão, universalmente tecido pela aranha divina [...] o mundo da história efetiva conhece apenas um único reino, onde não há nem providência, nem causa final, mas somente as mãos de ferro da necessidade que sacode o copo de dados do acaso” (FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1999. p. 28).Mas, em Foucault, pressupostos materialistas como estes não importam tanto. A contribuição por excelência dele consistiu na tradução do pensamento de Marx em linguagem política, na extração de toda uma série de consequências políticas que tinham permanecido à sombra do corpus marxista e careciam de desenvolvimento. Foucault mostrou que o poder não se encarna num sujeito particular, por mais privilegiado que seja (por exemplo, o Estado ou uma classe), mas se difunde no tecido social. Por isso, o poder é impessoal. Sempre que se apresenta personificado ou concentrado, ele não é mais que a miragem de um fato complexo não discernido ou a cristalização provisória de uma potência prestes a se desagregar.
Nada melhor que as palavras do próprio Foucault sobre o tema: “O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem. O poder funciona e se exerce em rede” (idem. p. 183).
Embora vacile ao se ver questionado sobre a natureza do poder, Foucault tende afinal a considerá-lo a expressão de uma luta. O contorno dos fatos, do real histórico, “não obedece a uma destinação, nem a uma mecânica, mas ao acaso da luta” (idem. p. 28). Essa concepção é tributária da noção de igualdade de Marx. Ambas afirmam a igualdade com prejuízo, maior ou menor, para a liberdade. Por maior que tenha sido a boa vontade de Foucault, não é possível concluir que a luta constante produza outro resultado. Ao menos como a vimos travar-se até hoje, é preciso concluir que a luta por si só não liberta, mas acorrenta.
Marx falou da revolução permanente. Que é tal revolução, a não ser a luta contínua? Na imensa rede de conflitos que ela envolve, o homem não pode ser livre. Permanece cativo. De quem? De ninguém. Apenas da própria luta. Lutar, lutar e lutar, sem solução e sem fim, torna-se o destino dele.
É essa uma doutrina da liberdade? Não aparenta. Marx e Foucault criaram doutrinas que priorizam a igualdade, mas que conduzem à ampliação demasiada e à perpetuação dos conflitos, não à pacificação social. Portanto, não à libertação do homem. A não ser que creiamos que o “acaso da luta” trará paz à Terra e libertará o homem da violência.
A partir do século XVIII, em muitas sociedades, a fé em Deus foi parcialmente substituída por utopias políticas como a de Marx. Quase todas as vezes em que isso ocorreu, uma versão de materialismo, teórico ou prático, operou a transição entre as duas. Mas Deus e a política são incomensuráveis. Deus é o transcendente, a política, o imanente. Deus é invisível, a política, visível. Deus é o atemporal; a política, o temporal. Deus, o incompreensível, a política é o que compreendemos da sociedade. Não há elemento comum entre eles. Por isso, não podem ser aproximados e comparados. E, se não o podem, como é possível opô-los ou substituir um pelo outro? Toda e qualquer substituição operada, por esse meio, padecerá de uma falha lógica cujo preço será um dia cobrado.
No entanto, que fazem os materialismos modernos quase sem exceção? Comparam Deus e a política. Não contente, Marx ainda compara a libertação promovida por Deus com a igualdade alcançável pela política. À primeira chama ópio do povo, por desviar da outra. Não há, nessa vindicação da política, uma pretensão excessiva? Pode Marx, por qualquer outro método, chamar ópio a religião, a não ser comparando-a com a política? Mas a comparação é devida?
Se o melhor dos materialismos tem esse fim, que dizer dos piores? Por outro lado, o valor científico nulo das metafísicas ficou demonstrado, ao longo da História. Assim se chegou não à falência, mas ao paradoxo do conhecimento atual, que faz sentir e pressentir a escassa disponibilidade de visões de mundo que nos ajudam realmente a viver. Resta indagar se o paradoxo permite novos tratamentos para a histórica disjunção entre Deus e a matéria.
O Super-Homem
A desintegração dos mundos sociais materialistas, no fim do século XX e início do XXI, e a sua substituição por mundos erigidos sobre uma base econômica oposta (capitalista), no contexto de um movimento internacional também oposto (a globalização), têm especial significado para a História da Filosofia Cristã. Não poderia ser diferente. Se a História do Pensamento reflete a dos mundos sociais, a derrocada das sociedades materialistas contemporâneas está a nos gri-tar que há algo de errado com a sua metavisão de mundo.
O percurso das escolas filosóficas mais recentes tem algo a nos dizer sobre esse problema. Se o traçado do pensamento oitocentista é o de uma proliferação e profunda diversificação de propostas, a nos segredarem a insuficiência do materialismo, do lado metafísico, as variações não foram menores. Para abordá-las com maior facilidade, é útil dividi-las em doutrinas cristãs, numa banda do rio Lete, e não cristãs, na outra banda.
Na primeira banda do rio, observamos o contínuo desenvolvimento de filosofias históricas, como o tomismo escolástico e o nominalismo medievo. No seu reaparecimento, durante o século XIX, a primeira e a última dessas filosofias foram adotadas mais como inspiração do que como sistemas completos e acabados. A primeira foi adotada, algumas vezes, como uma espécie de philosophia universalis. Não é difícil perceber que, nesse caudal de pensamento, inserem-se Jolivet, Mercier, Maritain e outros filósofos neotomistas. O Papa Bento XVI também representa essa corrente.
Não há maior novidade, nas acomodações ocorridas, no interior desses arraiais. Exceções luminosas são as doutrinas de um Kierkegaard, de um Bergson e de uma Hannah Arendt, que inalam a inspiração cristã e tentam desenvolver algo novo. Mas, em geral, o cheiro desse amplo movimento é de monastério ou, pior, de sacristia.
No entanto, o que de maior valor metafísico se produziu, nesse período, não veio da margem cristã do rio que cruza o Hades, mas da outra banda. Refiro-me às correntes de pensamento emanadas de Nietzsche e de Heidegger. O primeiro pouco se preocupa em fundamentar o que afirma. Isso é próprio do seu pensamento. Não é muito diferente em Heidegger, apesar das longas apresentações históricas que fornece de suas teses. Mas o raro da demonstração e da fundamentação, nos dois casos, decorre consequentemente das premissas do pensamento deles.
Tanto Nietzsche como Heidegger esforçam-se para se emancipar da Metafísica Antiga. O primeiro encontra motivo para fazê-lo no momento histórico único, que o décimo-nono século descortina. Para descrevê-lo e anunciar o futuro que se fará, Nietzsche cria uma ilustre personagem, Zaratustra, mestre e profeta da sociedade por vir.
Heidegger é um dos mais autorizados intérpretes desse ponto da filosofia de Nietzsche. Vale a pena escutá-lo: “Com o nome super-homem [cujo advento Zaratustra anuncia], Nietzsche não se refere à superdimensionalização do homem até hoje vigente. Ele também não pensa uma espécie de homem que descarta o humano e que faz da arbitrariedade nua e crua a lei e da fúria titânica, a regra. Tomando, antes, a palavra em sentido literal, o super-homem (Über-mensch) é o homem que vai para além do homem até hoje vigente [...] Mas de onde vem o clamor pela necessidade do super-homem? Por que o homem não é mais suficiente? Porque Nietzsche reconhece o instante histórico em que o homem se prepara para entrar na total dominação da Terra [devido ao amplo desenvolvimento da ciência e da técnica]. Nietzsche é o primeiro pensador que, considerando a história do mundo tal como esta pela primeira vez nos chega, coloca a pergunta decisiva e a pensa através de toda sua amplitude metafísica. A pergunta é: o homem enquanto homem, em sua constituição de essência até hoje vigente, está preparado para assumir a dominação da terra?” (HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 91).
Não só isso. Heidegger introduz outro ponto. Embora cheio de todas as pulsões e de todos os ideais do homem antigo, grego e romano, Zaratustra anuncia o super-homem, exatamente porque as novas condições sociais tornaram o atual inadequado e até superado. Sobre esse segundo ponto, nosso autor discorre nos seguintes termos:
“Qual a ponte que permite a ultrapassagem para o super-homem e assim permite ao ultrapassante [ao próprio super-homem] ir-se embora do homem até hoje vigente, de modo tal que ele possa enfim dele livrar-se? A obra Assim falava Zaratustra, que deve mostrar a ultrapassagem do ultrapassante, está de tal modo estruturada que a resposta é dada na parte II [...] ‘Pois que o homem seja redimido da vingança: isto é para mim a ponte para a mais elevada esperança e um arco-íris após longa intempérie’ [...] Segundo a palavra de Nietzsche, o pensamento até hoje vigente é determinado pelo espírito de vingança. Como então pensa Nietzsche a essência da vingança, posto que ele a pensa metafisicamente? Na segunda parte de Assim falava Zaratustra, no discurso já mencionado ‘Da redenção’, Nietzsche deixa seu Zaratustra dizer: ‘Isto, sim, isto somente é a própria vingança: a recalcitrância da vontade contra o tempo e o seu era’ [...] Como poderá o homem assumir a dominação da Terra, como pode ele tomar a Terra como Terra sob sua guarda, se e enquanto ele subestima o que é terreno, à medida que o espírito de vingança determina sua reflexão? Se isto, a saber, salvar a Terra como Terra, procede, então, primeiro, é preciso que o espírito de vingança desapareça” (idem. pp. 95,99,101).
Heidegger não vacila em apontar o caráter destoante de tal anúncio, em relação à obra de Nietzsche. Este é o apologista da vontade de poder e da política da guerra, como os elementos primários da História, até a subversão judaico-cristã, que ele vê como o envenenamento do homem, pois cunhou os pseudovalores da humildade, da compaixão etc., para impor o reinado dos fracos (e patifes) sobre os fortes, contra tudo o que a vontade de viver instituiu, no plano da Natureza, e a vontade de poder instaurou, no da História. Porém, diz Nietzsche, a mais exata expressão da vontade de poder, o espírito de vingança que atravessa a História, deve desaparecer, para que a dominação do super-homem se implante.
Vale a pena avaliar com cuidado esse imponente edifício de ideias. Se a Filosofia e o pensamento humano se fazem significativos, na medida em que dão origem a modos de ser sociais, temos de perguntar se as de Nietzsche e Heidegger têm tal utilidade. Para não adotarmos suspeições pouco claras, como as do envolvimento propalado (e comprovado) de Heidegger com o nacional-socialismo, podemos observar que essa nova e extraordinária forma de Metafísica não contribuiu, ao menos até agora, para o advento de uma só sociedade nova. O super-homem não veio. Pelo contrário, no espaço de tempo em que devia ter-se manifestado, o homem produziu duas Guerras Mundiais.
É escusado duvidar do real advento desse novo homem, um século e duas Guerras Mundiais depois de Nietzsche. Ainda mais com a agravante de as guerras terem sido movidas num espírito nada distante do que a filosofia dele pregava. Tampouco estamos autorizados a interpretar a redenção da vingança a que Nietzsche se refere como algo mais que uma nova forma dela.
No entanto, o decisivo para renegar a filosofia de Nietzsche e de Heidegger não é a promessa sempre adiada do super-homem e do aparecimento do mundo novo, mas a desconexão entre eles. É o fato de a situação histórica propícia para a entrada do homem na dominação da Terra ter passado, sem que o super-homem tivesse vindo. Vivemos no brave new world sobrevivente daquela situação: um montão de problemas ecológicos graves e a conjugação ameaçadora de tecnologias de destruição em massa e fundamentalismos religiosos. Pouco aproveita justificar os elementos positivos dessa nova ordem, se não conseguimos, com eles, fazer recuar a ameaça representada pelos que são negativos. Sem contar a lembrança viva de duas Guerras Mundiais, da transformação que as seguiu de uma metade do mundo em socialista e do estrepitoso desmoronamento dela.
Esse meio mundo realmente desabou, e o materialismo contemporâneo com ele, como o antigo havia desabado após o aparecimento da Metafísica e sua combinação com o cristianismo. Reanimar esse novo e finado materialismo é, portanto, recalcitrar contra a História Social e a Filosofia. Daí a importância de Nietzsche e de Heidegger, que foram argutos o suficiente para perceberem que, se a Filosofia devia-se revestir de um modo de ser não cristão, era preciso encontrá-lo fora do materialismo, o que equivale a afirmar dentro da Metafísica.
Mas a tão grande distância das condições históricas que Nietzsche vislumbrou presentes e considerou favoráveis ao aparecimento do super-homem, já não é mais possível esperá-lo. Pergunto-me até se é possível uma Metafísica sem Teodiceia, uma Filosofia sem Deus, como Nietzsche e Heidegger pretenderam. Pergunto-me, enfim, se a margem não cristã do Lete continua habitável.
Se a filosofia de Nietzsche proclama o super-homem numa situação histórica, o término dessa situação não pode deixar de lhe ser debitado. A menos que acreditemos que o eterno retorno em que aquele filósofo erigiu o seu pensamento trará a situação de volta... Mas rezar para Nietzsche e Heidegger e esperar essa volta são práticas pouco consistentes com a cena atual do mundo.
Se filósofos são como pedreiros e carpinteiros, se eles ajudam a erguer mundos sociais, onde estão os da margem esquerda do Lete anunciados no século XIX? Não estão em parte alguma, nem podem estar. Mundos não se erguem sobre sonhos, mas sobre fés, religiosas ou não. Pergunto-me se Nietzsche e Heidegger não inviabilizaram o seu próprio projeto, ao reduzirem o papel da fé. Pergunto-me, enfim, se a desagradável sensação que deixaram, ao seccionar o cristianismo da História da Filosofia como carne pútrida, não foi o seu erro fatal.
Voltemo-nos, porém, um instante, à acusação de falta de fundamentação formulada em face de Nietzsche, pois merece maior atenção. A acusação pode ser estendida, também, às teses centrais de Heidegger. A Metafísica antiga era um método de fundamentação, na medida em que era conduzida pela razão. Na terminologia própria de Aristóteles, ela era um método de estabelecimento das causas das coisas, ou seja, da sua explicação. A nova Metafísica, ao superar a antiga, livra-se daquelas causas, mas também do império da razão. Heidegger mostra que a nova Metafísica é atravessada pela vontade, como a antiga o era pela razão. Daí a dívida da filosofia de Nietzsche e da de Heidegger para com a arte e a força indômita da existência humana.
Mas explicar pelas causas não é só afirmar o encadeamento delas. É ao mesmo tempo manter consciência do princípio da razão suficiente. Em casos extremos, o que existe empiricamente pode não ser efeito de causa alguma. Nem por isso está livre de ter uma razão suficiente para existir, o que nos mantém nos domínios da Lógica. Portanto, embora a vontade tenha um papel relevante na Metafísica, o ser não pode ser pensado fora dos limites lógicos.
A força dessa verdade manifesta-se na afirmação nuclear de que a Metafísica Antiga é um método de fundamentação, e a nova Metafísica, sua negação, não o é. O silogismo em que essa assertiva se funda (A é diferente de B; se A é C, logo B não pode ser C) cheira a Aristóteles. A dependência da nova Metafísica para com esse silogismo de modo nenhum confirma sua independência da antiga forma de razão. De fato, há em Heidegger mais do que a Metafísica destilada da vontade. A antiga Metafísica, vertida do alambique da razão, também está presente nele e no próprio alicerce. De modo que a separação das duas não é de maneira alguma clara.
Perguntamos como Nietzsche e Heidegger podem voar para longe da antiga razão metafísica, se tanto dependem dela? Como podem construir de modo tão consequente sobre aquela razão, e a despedir, num instante e sem carta de divórcio? Não será, a nova Metafísica, no fundo, a antiga transfigurada? Enfim, onde estamos, ao ler Nietzsche e Heidegger: na Metafísica antiga ou na nova?
Curvemo-nos aos imperativos existenciais que Heidegger tanto encarece. Admitamos que eles justifiquem o seu pensamento. Consideremos ainda, em toda a extensão, esse misterioso dom que a arte possui de apascentar o coração humano. Embora a questão existencial, no mundo de hoje, seja mais complexa do que tudo isso, aquiesçamos e admitamos apresentá-la dessa maneira. Ainda assim, a Filosofia é mais do que o existencialismo heideggeriano parece sugerir. E tanto mais do que Nietzsche pretende fazê-la.
A Filosofia é uma corda de três dobras. Uma das dobras é a função existencial que desempenha. As outras são a razão e a base empírica do pensamento. É preciso não enfraquecer a razão para afirmar a existência e atualizá-las em relação à base de conhecimento empírico de cada época. Só assim a Filosofia é capaz de exercer o seu magistério no campo da Teodiceia. Só assim ela pode pensar o homem como ser genérico.
Estão essas tarefas além das possibilidades de qualquer filósofo? Sem dúvida, porém não além do que a própria Filosofia sempre guiou o homem a buscar e do que o esforço coordenado dos filósofos pode talvez, um dia, alcançar.