terça-feira, 24 de setembro de 2013

O Romance da Filosofia - artigos reunidos (3)

O Deus de Einstein

A Carta de Deus escrita por Einstein um ano antes de morrer foi levada a leilão, em 2012, com lance mínimo estipulado em três milhões de dólares. Muito se tem debatido o que o cientista pode ter escrito, em tal carta, para justificar o interesse expresso em cifra tão astronômica. A resposta mais correta, embora pouco adequada a um leilão, parece ser nada que ele não tenha afirmado, ao longo de todo o restante da sua existência dedicada à ciência.
O documento tornou-se célebre por ter sido escrito por Einstein e por conter comentários (ao livro de Erik Gutkind intitulado Choose life: the biblical call to revolt) como os seguintes: “Para mim, a palavra de Deus não é mais que a expressão e o produto da fraqueza humana. A Bíblia é uma coleção de lendas primitivas que se mostram honoráveis e, não obstante, infantis. Quanto às sutis interpretações da Bíblia [propostas pelos teólogos], são multiformes em natureza e quase nenhuma relação mantêm com o texto original.” E também: “Para mim, a religião judaica, como todas as outras religiões, é uma encarnação das mais infantis superstições”.
Na sua carta, Einstein contrapõe a visão de mundo bíblica às ideias do “maravilhoso Spinoza”, como ele denomina o filósofo judeu Baruch Spinoza, que viveu no século XVII. Porém, a contraposição foi afirmada, por Einstein, ao longo de toda a sua vida. Por isso, não tem, na carta, a força de testamento, que Richard Dawkins (autor de Deus, um delírio) tenta emprestar-lhe na mídia.
No livro A equação de Deus – como Einstein transformou o conceito de religião (2ª ed., São Paulo: ARX, 2006), Corey S. Powell, editor da revista científica Discover e colaborador de Scientific American, propôs que a devoção do físico alemão à racionalidade do Universo constituiu uma autêntica reorientação da fé religiosa abraçada no colégio católico da infância. Anos mais tarde, Einstein encontrou, em Spinoza, a expressão filosófica mais límpida de suas ideias sobre o Universo. Expressão tão perfeita que o cientista, simplesmente, aderiu a ela. Tornou-se célebre o diálogo em que o rabino Herbert Goldstein, da Sinagoga Institucional de Nova York, perguntou a Einstein se acreditava em Deus, e ele respondeu: “Acredito no Deus de Spinoza, que se revela na harmonia de todos os seres, não no Deus que se interessa pela sorte e ação dos homens”. Para quem não se lembra, o Deus de Spinoza a que Einstein se referiu está na natureza e é idêntico a ela (panteísmo).
Por motivos como esse, Powell considera que a passagem de Einstein do catolicismo ao spinozismo constituiu uma autêntica conversão religiosa, que assumiu expressão científica cada vez mais indelével, conforme ele realizava as suas descobertas. Não foi à toa que, em frases como a citada acima, Einstein exprimiu suas ideias científicas em linguagem religiosa. Ele falava mais sério do que se supõe quando fez aquela declaração e também ao afirmar que “Deus não joga dados” ou que a sua empreitada científica consistia em “saber como Deus criou este mundo". "Não estou interessado neste ou naquele fenômeno", disse, "no espectro deste ou daquele elemento. Quero saber os Seus pensamentos.” Tampouco brincava ao declarar: “Quando julgo uma teoria, eu me pergunto: se eu fosse Deus, teria disposto o mundo dessa maneira?” (POWELL. Corey S. Ob. cit. p. 67).
Mas, se o pensamento de Einstein exprime sua transição de uma ideia teológica a outra e não o abandono de ideias teológicas, reduzir o seu panteísmo ao ateísmo, como Richard Dawkins faz, é filosoficamente tão equivocado quanto explicar a combustão com base no flogisto ou postular a transmutação dos metais inferiores em ouro. Equívocos como o de Dawkins não são incomuns, em tempos em que o conflito teísmo-ateísmo assumiu um grau perigoso de radicalização.
No pensamento dos grandes cientistas, há um espaço plástico e flexível, embora recôndito, reservado à mística. No passado, esse espaço foi ocupado pelo flogisto e pela alquimia newtoniana. Hoje, ele abriga toda sorte de devoção religiosa dos homens de ciência, que deixou de se orientar a entes divinos e se redirecionou a objetos outros, naturais ou ideais. Desse tenebroso espaço, não raro, procedem os grandes mal-entendidos da ciência.
No caso de Einstein, sua devoção à harmonia da natureza levou-o a superar diversos erros da Física Clássica. Levou-o, porém, a superar os erros da crença num Deus pessoal? Einstein deu-se tão bem no campo da Teologia quanto no da Física? Isso é, no mínimo, duvidoso. Se não precisamos deixar o domínio da ciência para encontrar pontos em que Einstein se equivocou, como a interpretação da Física Quântica, que dizer de questões situadas fora da sua especialidade? Como todo ser humano, Einstein acertou e errou. Acertou magnificamente, é claro, ao reconstruir, tijolo a tijolo, a Física. Mas errou ao interpretar a Física Quântica e ao abandonar totalmente a ideia de um Deus pessoal.
Entendo que é crime de lesa-majestade tipificado no Código Penal contestar Einstein. Ainda que a majestade lesada não seja a dele, mas a dos "proprietários" do seu legado, como os cientistas que insistem em atribuir ao grande físico uma visão não teológica do mundo. Resta-me confessar o crime, tanto quanto minha firme admiração pelo cientista, pensador e cidadão Albert Einstein.
Mas convém recordar, também, e sempre, que à ciência se devem os tributos da reflexão respeitosa e da mais perseverante suspeição. Não apenas o primeiro deles. Einstein é tomado como mito, toda vez em que se atribui às suas declarações o grau de infalibilidade que se tem reconhecido à “Carta de Deus”. A isso é preciso resistir.
No fundo, o panteísmo de Spinoza e de Einstein é tanto ateísmo quanto o flogisto é fogo. Infelizmente, as vulgarizações disponíveis do pensamento de Spinoza barateiam demais a equação Deus sive Natura (Deus, isto é, a natureza), que costuma ser citada como suma dele. Embora ele tenha afirmado que Deus é tudo, no seu pensamento, esse tudo é uma substância eterna dotada de infinitos atributos e amplamente incompreensível ao homem. Que pode um homem na Terra entender da ideia abstrata de substância? E ainda mais da substância eterna? E dos infinitos atributos dela? Bem pouco. Deus é, portanto, o muito que permanece fora desse pouco, já que não é o que compreendemos da substância, mas ela própria. De sorte que as fragilidades da substância impessoal de Spinoza se exprimem na pergunta: e se o muito que não compreendemos dela possuir apanágios pessoais?
Demos, porém, a volta ao panteísmo spinoziano. Após o termos examinado pelo lado de Deus e do que não sabemos da substância, vejamo-lo pelo ângulo oposto do que ela efetivamente é. Que é tudo (pan) para o homem, a não ser tudo o que ele é capaz de conhecer? Ora, o que o homem pode conhecer é tanto menor quanto diferente do que existe. Parte considerável do conhecimento humano é atávica e não corresponde ao mundo como é ou foi, mas às necessidades de sobrevivência e homeostase dos nossos ancestrais. Portanto, se Deus inclui o que conhecemos dele, que pobre conceito é!
Tiremos, então, as conclusões que essas considerações tornam necessárias. Se Einstein realizou um giro copernicano, ao abandonar o Deus pessoal e aderir ao spinoziano, não é menos verdadeiro que ele não devotou sua vida a examinar os apanágios pessoais de Deus e sim os impessoais. Digamos que, ao deixar o Deus pessoal, ele deixou de lhe devotar a indispensável atenção. Em que pese o odor iconoclasta que exala, essa interpretação está mais próxima da verdade sobre o pensamento teológico de Einstein do que o incensamento da Carta de Deus com o propósito de torná-la um argumento em favor do ateísmo. Se Einstein passou a vida estudando os fenômenos impessoais do Universo e selou, numa carta, o destino do Deus pessoal, por certo mirou num pássaro e acertou em outro.
O giro pelo qual Einstein substituiu o Deus judaico-cristão pela substância cósmica começou, quando se preparava para o Bar Mitzvah (comemoração judaica do ingresso de uma pessoa na puberdade), antes de completar 13 anos, e leu o pensamento de Xenófanes: “Se os bois pudessem pintar, eles representariam seus deuses em forma de boi” (COHEN, Madleine. Albert Einstein. São Paulo: Globo, 2006. p. 13). A impressão desse dito em Einstein foi tão forte que não houve Bar Mitzvah algum!
Mas, se o Deus pessoal é uma ideia infantil, como Einstein afirmou, o seu abandono pelo grande cientista não foi outra coisa. Ele não ocorreu entre os 12 e os 13 anos como sinal de maturidade. Foi, antes, um movimento infantil que se conservou por toda a vida. Por isso, não é demasiado supor que o abandono do Deus pessoal, por Einstein, não é uma lição científica, mas uma linha a mais no capítulo das devoções informes no interior da ciência, um outro objeto introduzido no quarto sombrio das fés relegadas.

A Ciência no Tribunal de Parmênides

Os capítulos anteriores permitem-nos suspeitar de que o “pecado original” do conhecimento filosófico do Ocidente, se a metáfora religiosa for aqui perdoável, é a Metafísica Clássica. Isso é tão verdadeiro que, se a Filosofia realizou progressos, como crítica do senso comum, ao longo dos séculos, ele consistiu, em boa medida, na contínua superação do vício da substantificação das ideias.
A superação não foi linear, na medida em que sempre se acreditou haver elementos (não facilmente discerníveis) a serem preservados naquela Metafísica. Acrescente-se o fato de muitas tentativas de superação terem-se revelado desorientadas. Para ilustrar a afirmativa com um fato, a maior revolução da Física, no século XX, ao lado da Mecânica Quântica – a Relatividade Geral de Einstein – introduziu problemas teóricos de tal envergadura que as suas resoluções, não raro, envolveram recursos ao erro platônico. O primeiro cientista acima de qualquer contestação a lançar mão desses recursos foi o próprio Einstein, ao repensar as leis físicas em termos teológicos, isto é, como idênticas ao Deus de Spinoza.
A Teoria da Relatividade Geral introduziu a possibilidade de o Universo estar em expansão, o que veio a ser confirmado, por observações empíricas. E coube à expansão reavivar, de certo modo, o antigo problema da origem do cosmos a partir do nada, já que, se sofre expansão, o Universo deve ter estado tão mais comprimido quanto mais recuarmos no tempo. O limite dessa compactação é a “bola de fogo” primordial, que reuniu toda a matéria e energia cósmicas em espaço tão exíguo que tudo o que então existia explodiu. Na concepção mais aceita, essa explosão (big bang) deu origem à expansão, ao tempo e ao próprio Universo que conhecemos.
Ao estabelecer desse modo uma origem para o mundo, a cosmologia do big bang reavivou o problema filosófico da passagem do nada ao cosmo. E o que se viu, na tentativa de solucionar o problema, foi a multiplicação de modelos físicos que tentam explicar tal passagem por métodos teóricos, já que não temos dados empíricos sobre o Universo nos seus primeiros milhares de anos.
O problema dos modelos teóricos que tentam explicar o big bang é não partirem de dados empíricos, o que os expõe, particularmente, ao erro clássico da substantificação. Com efeito, embora partam de um ou outro princípio do mundo empírico, como o movimento quântico ou a relatividade geral, os modelos os modificam com base em princípios do pensamento puro como a não-contradição. Assim, os princípios do pensamento são admitidos como diretrizes do Universo físico, ao lado das leis empíricas.
É possível agrupar os modelos teóricos sobre a grande explosão em duas categorias. De um lado, estão os que pressupõem a existência de Universos numerosos, talvez infinitos, numa vasta estrutura denominada Multiverso. De acordo com essa posição, o mundo em que habitamos teria derivado de um ou mais Universos. A segunda posição, por sua vez, consiste postula a origem do nosso Universo literalmente a partir do nada.
O primeiro tipo de modelo evita o problema do nada, varre-o do território da ciência. E, em seu lugar, introduz o conceito engenhoso do Multiverso. Porém, a despeito dos esforços dos defensores desses modelos, o Multiverso que eles propõem continua regido por leis causais, em que consequentes se seguem invariavelmente a antecedentes.
Apesar das críticas de David Hume e outros pensadores à causalidade, esse princípio permanece solidamente instalado no interior da ciência contemporânea, principalmente enquanto o tomamos como relação geral de antecedentes a consequentes. Tanto a gravitação como o eletromagnetismo e as interações nucleares comportam relações dessa espécie, que se fazem presentes e são representadas nos modelos físicos dos múltiplos Universos.
Porém, embora pemaneça lógica, a representação causal das leis físicas não está livre de vícios metafísicos. O próprio arcabouço da causalidade (a relação de antecedentes a consequentes) assemelha-se tanto à associação de premissas e consequências no plano lógico que nos perguntamos se não seria, ela também, um transplante da ordem mental à realidade. Hume afirmou que a associação de ideias, por meios lógicos, é tão arbitrária quanto a relação que chamamos causal. Pode ser que ela forneça o costume básico, do qual, por imitação, derivou o de associar causas e efeitos.
As tentativas de explicação da origem do cosmo a partir do nada não se saem melhor que as teorias de um Multiverso regido por leis causais.Lawrence Krauss é um expoente desse ponto de vista. Ele demonstra a possibilidade de derivarmos a singularidade quântica de algo muito semelhante ao nada, ou seja, de nenhum espaço, nenhum tempo, energia e matéria nulas. Porém, as ideias de Krauss têm sido questionadas, por partirem das leis do movimento quântico e não exatamente do nada.
Ao defender seu modelo contra essas objeções, Krauss insiste na coincidência entre as leis quânticas e o nada. Porém, do ponto de vista filosófico, a insistência é infundada. O nada não é só um vazio. É também o oposto de um conceito. Todo conceito é formado pela associação de outras idéias, que o compõem. Às vezes, uma das ideias exprime a finalidade da combinação que integra. Por exemplo, o conceito de mesa é constituído pelo de um tampo, um pé e a função de manter objetos ao alcance de um usuário.
O nada é o oposto exato disso. Para concebê-lo, é preciso não associar quaisquer conceitos, já que ele não tem conteúdo. Em outras palavras, o nada é um falso conceito. Mas as leis quânticas não se confundem com uma ausência qualquer de conceitos. Em outras palavras, o modelo de Krauss substantifica não apenas ideias, mas o anticonceito do nada. É o cúmulo do vício da substantificação.
Em dezembro de 2015, físicos e filósofos da ciência reuniram-se na Universidade Ludwig Maximilian, em Munique, a fim de discutir a acusação de que alguns ramos da Física teórica estão a se desgarrar da ciência experimental (CATELVECCHI, Davide. “Is string theory science?”. Nature, 23/12/2015). O encontro, em grande parte ins-pirado por críticas como as do artigo pulicado por George Ellis e Joseph Silk na revista Nature, em 2014 (ELLIS, George e SILK, J. Nature, 2014. nº 516, p. 321-323), o encontro não chegou a qualquer consenso, porém serviu para demonstrar que as acusações se centram mais incisivamente nas teorias do Multiverso e das supercordas. 
Não me refiro a outra coisa, quando afirmo que o erro da substantificação penetrou na ciência contemporânea. Trata-se substancialmente da mesma acusação. Claro que o erro é mais comum na Filosofia, mas pode penetrar, e tem feito isso de maneira substancial, em outros ramos do conhecimento, como as ciências sociais e na própria ciência da natureza.
Da divinização da natureza à substantificação do nada, implícita no modelo de Krauss, a ciência permanece permeada pelo vício metafísico de Parmênides e Platão. Como constituiu o pesadelo da Filosofia, ao longo dos séculos, aquele vício continua ser o problema mais básico da ciência hoje. E é, no mínimo, de questionar se um saber que incide em tais falhas, ao lidar com problemas menores da Metafísica, é capaz de resolver problemas maiores relacionados à existência de Deus.
Se a Filosofia puder ser representada como um tribunal presidido por Parmênides, ao qual pessoas de todos os séculos são intimadas a comparecerem, o conteúdo dos depoimentos colhidos permanece variado e contraditório. Porém, alguns pontos comuns podem ser detectados neles. Talvez o ponto de maior convergência seja a confissão de não poucos depoentes do seu envolvimento com o senso comum e os vícios de que está impregnado.
Entre os últimos a deporem, no tribunal de Parmênides, contam-se Einstein e os físicos que o sucederam. Saíram de lá há tão pouco que as suas declarações ainda não foram sequer analisadas. Ainda não se imprimiram no espírito dos juízes. Tudo que se conhece são rumores e comentários sobre o que nelas realmente se encontra.
Com a analogia do tribunal, desejo mostrar que a ciência contemporânea está tão envolvida com o problema da substantificação das ideias quanto a Filosofia. Por isso, ela tem de comparecer ao tribunal de Parmênides para explicar-se. Embora tenha surgido recentemente e pareça não incidir em antigos vícios do pensamento, a ciência não está livre de ranços substancialistas, tanto quanto a Filosofia. Em que pese o espanto que isso provoca, é de todo inútil perguntar: “Até tu, Brutus?”

A Porta da Verdade

Um exame realmente isento do impasse criado pelo erro platônico revela que a sucessão de gênios invulgares, surgidos ao longo da História, de modo nenhum bastou para livrar a Filosofia e a própria ciência do lodaçal dos vícios de pensamento em que permanecem atoladas. Apesar da estonteante variedade de doutrinas até hoje propostas, a impressão que se tem, ao considerar a validade sempre condicionada delas, é a de completa ausência de progressos na História da Filosofia.
A repetição disfarçada do mesmo faz lembrar o que o Pregador afirmou, no seu próprio tempo, e que o levou a proclamar o esgotamento da dispensação da lei, em termos tão poéticos quanto universais: “Levanta-se o sol, e põe-se o sol, e volta ao seu lugar onde nasce de novo. O vento vai para o sul, e faz o seu giro para o norte; volve-se e revolve-se, na sua carreira e retorna aos seus circuitos. Todos os rios correm para o mar, e o mar não se enche; ao lugar para onde correm os rios, para lá tornam eles a correr [...] Os olhos não se fartam de ver, nem se enchem os ouvidos de ouvir. Nada há de novo debaixo do sol” (Ec 1:5-9).
A linguagem poética é universal. Não há, pois, confusão alguma em transpô-la da Religião à Filosofia ou desta de volta àquela. Seu poder evocativo não se dissipa por isso. É o que melhor expressa o “lado de dentro” das coisas. E a Filosofia também tem o seu lado de dentro, no qual a ausência de progressos se manifesta como enfado. Por isso, as perguntas parecem mesmo justificadas: há verdades objetivas na Filosofia ou as suas doutrinas são meras interpretações possíveis do real? Há progresso no saber filosófico? Qual é a utilidade dos questionamentos que a Filosofia tece tão longamente quanto Penélope seus panos?É preciso enfrentar tais perguntas, sem fugas ou movimentos circulares. Tenho escrito esta obra na tentativa de enfrentá-las e para propor uma resposta, limitada e modesta, é verdade, mas claramente afirmativa para elas. Creio que, embora o avanço filosófico seja muito mais difícil que o da ciência, a dificuldade não se confunde com impossibilidade. Como a natureza, a Filosofia não dá saltos, antes realiza avanços ao passo da tartaruga do paradoxo.
Os progressos da Filosofia manifestam-se, pouco a pouco, nas suas várias etapas de desenvolvimento. Porém, em dois momentos, eles se intensificam. O primeiro foi o da descoberta da inteligibilidade e do inteligível por Platão. O desenvolvimento dessas noções constituiu uma descoberta, pois até então o espírito, não só entre os gregos, mas em todos os povos, tinha sido concebido como atrelado à matéria. A exceção tinha sido Israel, mas até mesmo ele pensara a transcendência habitada somente por Deus. Os anjos vieram mais tarde.
Coube a Platão propor a existência de uma dimensão metafísica povoada por infinitos seres. Notemos que, embora inverificável em sentido pleno, certas implicações da hipótese platônica podem ser testadas e refutadas ao menos em parte. Não foi por outro motivo que a substantificação das ideias, em que ela incorre, pôde ser apontada como um dos erros mais básicos do pensamento.
O segundo momento de progresso acentuado, na História da Filosofia, foi o início do século XX, quando um acúmulo de descobertas revolucionárias, na Matemática, na Geometria e na Física, levou vários filósofos a repensar não apenas as concepções metafísicas clássicas, mas também as de Kant, Hegel e outros.
Nenhuma escola particular foi responsável pelas descobertas desse período, embora se tenha tornado comum associá-las ao Neopositivismo. Discordo da associação, pois as descobertas da etapa a que me refiro foram realizadas por filósofos de várias escolas, como Ludwig Wittgenstein, Bertrand Russell, Alfred North Whitehead, Karl Popper e outros, o que impede a sua ligação a correntes de pensamento muito determinadas.
Russell utilizou seus conhecimentos matemáticos para refutar as concepções de espaço e de tempo vigentes na sua época, as quais tinham forte influência de Kant e Bergson. Suas ideias sobre esses temas se dão a conhecer na seguinte passagem: “A opinião de que toda separação [entre seres] implica espaço é tida, atualmente, como estabelecida e é empregada dedutivamente para provar que o espaço está implicado onde quer que haja claramente separação, por menor que seja a razão para se suspeitar tal coisa. Assim, as ideias abstratas, por exemplo, se excluem evidentemente: a brancura é diferente da negrura, a saúde é diferente da doença, a estupidez é diferente da sabedoria. Daí todas as ideias abstratas implicarem espaço” (RUSSELL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1969. Livro Quarto, Cap. XXVIII, p. 368).
Nada mais claro: onde há separação de coisas, há espaço. Não se pode negar assertiva tão elementar. Se o corpo A está separado de B, o que há entre eles é espaço. Até aqui, movemo-nos não apenas no âmbito da filosofia de Bergson, mas do senso comum. Porém, as ideias desse pensador correu o mundo, na primeira metade do século XX, e versões mais radicais do seu pensamento foram propostas. O que Russell combate é uma dessas versões: a que generaliza a espacialização do pensamento empírico, que impera na Física, para o pensamento ideal, portanto para conceitos como a brancura. Russell denuncia o vício consistente em considerar que a razão representa não só "as coisas umas ao lado das outras no espaço”, mas também os conceitos como se fossem justapostos.
Essa afirmativa pode ser encontrada, aqui ou ali, na obra de Bergson. Em O que Aristóteles pensou sobre o lugar, ele escreveu: “Se Aristóteles tivesse chegado ao âmago da doutrina um pouco obscura dos pitagóricos, não sei se não se afastaria um pouco de sua própria maneira de ver. Ele teria entendido que o espaço inane – ainda que não possa ser definido ao modo dos físicos – nos é necessário em nossas cogitações, para distinguirmos umas coisas de outras e também umas noções de outras noções” (BERGSON, Henri. O que Aristóteles pensou sobre o lugar. Campinas: Unicamp, 2013. p. 59).
Nesse texto, Bergson afirma que o espaço é necessário não só para distinguirmos um objeto físico de outro, mas também as noções. Porém, ele relaciona essa concepção à “doutrina um pouco obscura dos pitagóricos”. É, pois, uma expansão das ideias de Bergson, que ele tomou emprestado dos pitagóricos. Porém, não é, de maneira alguma, uma ideia central do pensamento do filósofo francês como a duração, a intuição, a evolução criadora ou o élan vital.
Não devemos, portanto, colocar no lugar central do pensamento de Bergson a versão radical da crítica da espacialização pela qual ele chegou a atribuir ao espaço um papel na distinção de conceitos puros. O núcleo da crítica da espacialização de Bergson, não é esse. Pode ser encontrado em obras às vezes mais difíceis e negligenciadas, como Duração e simultaneidade (São Paulo: Martins Fontes, 2006), na qual aquele filósofo comparou cuidadosamente o seu conceito filosófico de duração às descobertas da Teoria Especial da Relatividade, de Einstein, a fim de dar expressão exata ao seu pensamento. Se essa obra de Bergson fosse lida com a necessária frequência e atenção, seria possível extrair dela uma delimitação muito mais precisa da crítica à espacialização do que por vezes se encontra nas fileiras do bergsonismo.
Após uma análise que os filósofos contemporâneos denominariam arqueológica das experiências empíricas e das equações matemáticas das quais Einstein extraiu sua teoria, Bergson resumiu, com bastante clareza, os resultados a que chegou: "No que concerne mais especialmente ao tempo, foi do relógio sideral que [a Física Clássica] fez uso para o desenvolvimento da física e da astronomia; descobiru-se, sobretudo, a lei de atração newtoniana e o princípio da conservação da energia. Mas esses resultados são incompatíveis com a constância do dia sideral, pois, de acordo com eles, as marés devem agir como um freio sobre a rotação da Terra. De modo que a utilização do relógio sideral conduz a consequências que impõem a adoção de um novo relógio. é muito provável que o progresso da física [introduzido pela teoria da relatividade] tenda a nos apre-sentar o relógio óptico - ou seja, a propagação da luz - como o relógio-limite, aquele que está no final de todas essas aproximações sucessivas. A Teoria da Relatividade registra esse resultado. E, como é da essência da física identificar a coisa com sua medida, a linha de luz será concomitantemente a medida do tempo e o próprio tempo" (BERGSON, Ob. cit. p. 149).
Essa é a espacialização que Bergson provou. Devemos denominá-la espacialização do pensamento empírico, não do ideal ou puro. O que vai além dessa conclusão não provém de Bergson. Pelo contrário, é exagero do bergsonismo ou, quando muito, um desdobramento incidental destituído da importância que tem a denúncia da espacialização do pensamento empírico.
O que Russell refuta, portanto, é muito menos o pensamento de Bergson do que s aplicação exagerada dele por seus discípulos. Ele lança mão da Matemática Moderna para desenvolver a refutação desses últimos: “Se, com os matemáticos, evitarmos a suposição de que o movimento é também descontínuo, não cairemos nas dificuldades dos filósofos. Num cinematógrafo [projetor], em que há um número infinito de quadros [formando um filme], não há um único quadro seguinte, porque um número infinito vem entre dois quadros quaisquer” (idem. p. 370). Por que é assim? Porque onde cabem números, cabem infinitos deles. Russell quer sugerir que, se a Matemática é aplicável à Física, como a ciência parece indicar, o movimento é formado por infinitos atos.
É surpreendente, mas Russell encontra infinitos momentos entre dois momentos de um movimento, assim como encontra infinitos números entre dois números. Os princípios dessa concepção, que ele utiliza para refutar a continuidade do movimento, aplicam-se tão bem às noções kantianas de espaço e de tempo subjetivos: “Se adotamos a tese, que na física se tem por assentada, de que os nossos perceptos [objetos de percepção] têm causas externas que são (em certo sentido) materiais, somos levados à conclusão de que todas as qualidades reais dos perceptos são diferentes das de suas causas [por exemplo, os comprimentos de ondas que percebemos como cores não são verdadeiras cores], mas que há uma certa semelhança estrutural entre o sistema de perceptos e o sistema de suas causas. Há, por exemplo, uma correlação entre as cores (tais como são percebidas) e os comprimentos de onda (tais como são inferidos pelos físicos). Deve haver, do mesmo modo, uma correlação entre o espaço como ingrediente dos perceptos e o espaço como ingrediente do sistema das causas não percebidas dos perceptos. Tudo isto se baseia na máxima ‘mesma causa, mesmo efeito’, com o seu anverso ‘diferentes efeitos, diferentes causas’” (idem. Cap. XX, p. 267).
Não precisamos considerar que Russell esteja certo em todos os pontos dessa refutação para entendermos que ele se baseia em avanços muito bem demonstrados da Matemática, da Geometria e da Física. Podemos perguntar, com razão, para que insistir no subjetivismo espacial de Kant, se a ciência estabeleceu correlação clara e objetiva entre o espaço real e a nossa percepção dele.
Algo semelhante pode ser afirmado do tempo: “Uma coisa-em-si A produz a minha percepção do relâmpago, e outra coisa-em-si B produz a minha percepção do trovão, mas [para Kant] A não foi anterior a B, já que o tempo só existe nas relações de perceptos [na mente humana]. [...] Tomemos um caso como o seguinte: ouvimos um homem falar, respondemo-lhe e ele nos ouve. O seu ato de escutar [...] sucede a nossa resposta. Ademais o seu falar precede a nossa ação de escutar [...] Está claro que a relação [designada pelas palavras] precede e sucede deve ser a mesma em todas estas proposições [algumas das quais se referem a ocorrências mentais, e outras, a extramentais]” (idem. pp. 265, 268).
De novo, encontramos a correlação. Russell não hesita em concluir que “não há nenhum sentido em que o tempo perceptual seja subjetivo” (idem. p. 268). Suas críticas podem parecer diletantismo de filósofos, ocupados ou desocupados, mas não o são. Para entender por que, basta recordar que, neste ponto da nossa dissertação, das categorias aristotélicas, resta só pó. E as kantianas, que as substituíram, estão interditadas pela Defesa Civil, por risco de desabamento. E, ao sermos despojados das categorias aristotélicas e as kantianas, não ficamos só sem brinquedos filosóficos. Ficamos sem uma imagem do mundo, já que não é possível entender coisa alguma do que ocorre sem o tempo, o espaço e as 12 categorias que Kant deles deduz.
Ou não deduz? Alguém negará que as categorias kantianas (unidade, pluralidade, totalidade, realidade, negação, limitação, substância, causalidade, comunidade, possibilidade, existência e necessidade) derivam do espaço e do tempo e não subsistem sem eles? Que diz Kant a esse respeito? Ele escreve: “Chamo dedução transcendental o exame do modo como conceitos a priori podem ser aplicados a objetos e o distingo da dedução empírica” (KANT, Emmanuel. Critique of pure reason. In Great books of the western world. 2ª ed., Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1993. Vol. 39, p. 54).
Com essa diferenciação, Kant quer enfatizar que há conceitos a priori derivados de outros. Esses conceitos de que outros derivam a priori são, antes de tudo, as categorias. A razão desse fato é fácil de perceber: “Podemos colher dos fenômenos uma lei, segundo a qual isso ou aquilo usualmente acontece, mas o elemento de necessidade não será encontrado” (idem. p. 47). A experiência não nos autoriza a entender qualquer objeto sob as relações necessárias a que as categorias os sujeitam. Portanto, temos de concluir que a necessidade é ínsita às categorias enquanto noções a priori, não aos fenômenos.
Mas e as próprias categorias: são deduzidas de leis empíricas ou de puros conceitos? Kant rejeita o caminho da dedução empírica. E acrescenta: “Há apenas duas condições de possibilidade do conhecimento de objetos: primeiramente, a intuição [percepção] [...] em segundo lugar, o conceito [a categoria], por meio do qual o objeto que corresponde àquela intuição é pensado” (idem. p. 47).
A categoria é, para Kant, o que faz o objeto corresponder à intuição. É o que o conforma a ela. Por isso, o entendimento se subordina à intuição, não o contrário. De sorte que o fundamento do suntuoso edifício lógico do conhecimento são o tempo e o espaço a priori.
Mas as dificuldades criadas pela crítica de Russell não nos autorizam a substituir o espaço e o tempo de Kant pelo espaço-tempo de Einstein, a fim de salvar o edifício do conhecimento, já que, na teoria de Einstein, o espaço-tempo é deduzido empiricamente, ao passo que, em Kant, eles integram um procedimento transcendental. A dedução empírica não combina com a transcendental. Fica ainda pior como remendo de pano novo em vestido velho. Portanto, só há uma solução: substituir o edifício inteiro das categorias kantianas, que está em vias de desmoronar.
Melhor desistir? Não, pois sem as categorias não há como formar uma imagem do mundo. E sem imagem do mundo, não podemos sequer nos comunicar. Toda tentativa de comunicação é como nuvem de palha ao vento. É como pólvora não detonada.
Infelizmente, Russell não se preocupou em reapresentar as categorias, após ter destruído as de Kant, o que nos leva a indagar se, como filósofo da linguagem, ele não cavou a sepultura daquela escola, com a pá de sua crítica. Comunicar o quê, se não há tempo, espaço ou categorias? Se as 12 pedras foram sepultadas no rio Jordão?
A Filosofia é um método lógico, que só pode ser bem exercido com uma base de conhecimentos empíricos ampla e atualizada. Por isso, é de todo indispensável desenvolvermos o método filosófico pari passu com o científico e a Filosofia à luz da ciência. Mas essa não é uma tarefa em que alguém possa obter sucesso, pela simples utilização simultânea dos dois saberes. Abordagens interdisciplinares não bastam. Tampouco a conversa hoje disseminada de transdisciplinaridade. Numa direção reflexiva muito diferente dessas, é preciso encontrar, na História do Pensamento, os exatos pontos em que os dois conhecimentos se interceptam do modo mais luminoso e construir sobre eles.
Isso se realizou de forma exemplar, no início do século passado, quando avanços científicos extraordinários bateram à porta da Filosofia, e alguns comensais a abriram. Marx tinha realizado algo parecido, na interface da Economia e da Filosofia Social. O que obteve de mais perene constitui seu legado específico. Mas fatos tão incomuns quanto esses passaram quase despercebidos. E o pior é que, em ocasiões anteriores e posteriores, descobertas tão ou mais extraordinárias bateram à porta da Filosofia, e ninguém lhes abriu.
As descobertas matemáticas que Russell utiliza têm o potencial senão de salvar totalmente, ao menos de preservar um conteúdo para as categorias clássicas. Na concepção desse filósofo, elas não devem corresponder a nada. Antes de Russell, Hume tinha propugnado um ponto de vista semelhante. Depois dele, a Física Quântica o reforçou ainda mais. De modo que as categorias foram envolvidas em dúvidas, mas não exatamente desintegradas. Forçoso é desenvolver um tratamento para essas dúvidas, o que tentarei em outros textos.
Drummond escreveu: “A porta da verdade/ Estava aberta/ Mas só deixava passar/ Meia pessoa de cada vez”. Mostrou-nos, com isso, como é difícil entrar pela porta. Mas o pior sobrevém, quando a própria verdade é barrada ou quando tomamos a chave da porta, não entramos e não permitimos que entrem os que o desejam (Lc 11:52). Quantos achados científicos deixaram de ser trabalhados, no âmbito filosófico, com a minúcia e o domínio que Russell, Whitehead, Popper e outros alcançaram dos seus! Quantos permanecem sob o pó do esquecimento e o ávido olhar das traças!
O edifício da verdade está interditado. Sua porta, lacrada. Mas poucos parecem ligar. O antiprofeta já os consolou: “Temos arte o bastante para não morrer da verdade!” Como se houvera bradado: Viva o edifício da arte! Dane-se o da verdade!

Causalidade ou Probabilidade?

Tantas são as realizações da ciência, na explicação do real e na aplicação do conhecimento à técnica, que se torna enfadonho enumerá-las. Mas o inventário encolhe, repentinamente, quando ingressamos no terreno metafísico. Não que a ciência não tenha realizado contribuições, nesse campo, mas, a julgar pelos problemas descritos nos capítulos anteriores, elas se fizeram acompanhar por dificuldades lógicas tão formidáveis que tornam necessário um juízo ponderado, ao tentarmos medir os prós e os contras do emprego do método científico em questões metafísicas.
Os fatos recomendam desinflarmos o entusiasmo pela ciência, no campo da Filosofia. Nenhum imperativo racional se vislumbra, que nos obrigue a aderir ao neopositivismo ou a outra filosofia recente ou clássica. Porém, tudo parece aconselhar o direcionamento de atenção abundante às descobertas científicas, no fatigante trabalho de girar em torno das questões metafísicas.
Se a Teoria da Evolução é o ramo da ciência que mais afetou a Teologia, a Física Quântica é o que mais pesa sobre a Metafísica. Esse ramo do saber dedica-se à realidade do nível do átomo para baixo. Porém, por ser tão revolucionária e contrária ao senso comum, a Física Quântica tem sido interpretada de dezenas de modos diferentes. Felizmente para nós, com o tempo, a maioria dos físicos convergiu para a interpretação de Niels Bohr, chamada positivista, por definir a realidade do objeto quântico com base na observação empírica.
Tanto a Física Clássica como a Quântica descrevem sistemas físicos considerados como “fragmentos concretos da realidade que foram separados para estudo” (www.wikipedia.org/mecanicaquantica). Uma das características principais dos “sistemas físicos é não serem estáticos, mas evoluírem". Um sistema evoluir significa “dar origem a resultados experimentais diferentes” (idem).
Uma partícula quântica (um elétron, um próton, um nêutron, um bóson, um létpon etc.) é considerado sistema, por apresentar resultados experimentais diferentes, chamados estados, em momentos distintos. E por estado, entendemos a “quantidade matemática que determina completamente os valores das propriedades físicas do sistema [...] ou as probabilidades de cada um de seus valores possíveis serem medidos, quando se trata de uma teoria probabilística” (idem).
O que torna a Física Quântica peculiar são duas características das observações a que os seus sistemas se sujeitam. A primeira são as configurações de partícula e onda. A Física Clássica (newtoniana) trata os corpúsculos ou partículas como entidades distintas das ondas. O que apresenta características corpusculares não se pode comportar como onda e vice-versa. No nível quântico da realidade, porém, os átomos, as partículas e as ondas que eles emitem têm tanto propriedades corpusculares quanto ondulatórias. Desde Max Born, estas últimas têm sido interpretadas como o arco de probabilidades que a partícula tem de ocupar diferentes posições em momentos diversos.
A segunda peculiaridade dos objetos quânticos é o fato de as propriedades corpusculares e ondulatórias não serem observáveis ao mesmo tempo. Quando uma onda é percebida, sua partícula desaparece; quando a partícula é detectada, a onda se esvai.
Duas explicações principais foram propostas para esse fenômeno bizarro. A primeira afirma que as ondas associadas à partícula entram em colapso, quando ela é observada. Os adeptos da segunda interpretação, por sua vez, consideram arbitrária a ideia de colapso e explicam a impossibilidade de observação simultânea com base na limitação da mente humana.
A primeira explicação é muito mais subjetiva que a outra, pois coloca o real na dependência do observador. A segunda interpretação é objetiva, pois se sustenta na premissa de que o real é o que é, independentemente da observação humana.
A interpretação majoritária tende a admitir que só é possível afirmar a existência do que é efetivamente observado. Isso é positivismo extremado. Podemos podar os excessos da interpretação, sem a abandonarmos, livrando-nos do excesso positivista, isto é, cortando o prepúcio filosófico da teoria, pela admissão de que o arco de probabilidades quântico não descreve somente “futuros possíveis” da partícula, entendidos como o estar aqui ou ali, mas as suas interações presentes e efetivas com os pontos do espaço que designamos como aqui e ali. As ondas só indicam algo realmente futuro, por descreverem o presente, pois são as interações atuais que determinam as futuras.
Assim entendidas, as diferenças da Física Quântica em relação à Clássica inscrevem-se numa base comum a ambas. Tanto numa como na outra, as interações presentes de um sistema determinam as futuras. A diferença surge, quando percebemos que a determinação do futuro, pela medição, é certa na Física Clássica e incerta na Física Quântica.
O estabelecimento do que há de certo e determinado, bem como do incerto e probabilístico, em cada tipo de sistema (clássico e quântico) é fundamental para entendermos onde se encontra o novo, o inusitado, no último. Guilherme de Ockham enunciou o princípio lógico, segundo o qual, entre duas teorias igualmente possíveis e demonstradas, deve-se aderir à que envolve o menor número de premissas.
Esse princípio, conhecido como “navalha de Ockham”, foi adotado como um cânone das ciências naturais, principalmente da Física. Ele mostra que, se a realidade total pode ser explicada sob a premissa de que o presente determina o futuro, não se deve apelar para teorias que adotem essa premissa para o mundo clássico e outra muito diversa para o mundo quântico.
Entre o clássico e o quântico há similaridades, que não podem ser apagadas. Eles não são estanques, estranhos, impermeáveis um ao outro. As diferenças entre os dois níveis da realidade surgem, quando consideramos o modo como a determinação do futuro acontece. Num sistema de tipo clássico, a determinação do futuro a partir do presente é causal; num sistema quântico, ela é probabilística. Mas, em ambos os casos, a um prius (estado anterior) segue-se um post (estado posterior), com maior ou menor grau de necessidade.
De acordo com esse princípio, deve-se julgar que, quando a partícula quântica é detectada, o feixe de ondas desaparece, não por obra e graça do observador, mas porque a partícula e suas ondas formam um sistema. Para uma interação aumentar a ponto de ser percebida, é preciso que as outras decresçam proporcionalmente. Esse decréscimo está associado ao desaparecimento do feixe ou pacote de ondas. Pode-se supor que a interação predominante torna-se perceptível, ao atingir probabilidade próxima de um, mas para isso as probabilidades das outra interações do sistema têm de cair a níveis próximos de zero.
A energia total do sistema formado pela partícula e seu feixe de ondas concentra-se ou se dispersa, no tempo. Quando a concentração aproxima-se do ponto máximo, a partícula se torna detectável. Quando ela diminui, a energia do sistema se dispersa, a partícula desaparece, e os estados quânticos assumem diferentes probabilidades. Sob essa última configuração, o sistema não se torna irreal, mas indetectável, o que sugere que a existência não se define pelo ato de observação.
Werner Heisenberg mostrou que, quanto maior a amplitude de uma onda do feixe ou pacote associado à partícula, maior a probabilidade de esta vir a ocupar aquele lugar, e quanto menor uma onda, menor essa probabilidade. Mostrou ainda que, se confinarmos a partícula numa região menor, sua posição variará menos, mas seu momentum (amplitude das forças que nela se manifestam) ficará mais variável. A diminuição do número de posições fará aumentar os valores possíveis do momentum. No limite, a detecção da posição tornará impossível a do momento, e vice-versa.
Por que é assim? Porque a dualidade posição-momento segue o feitio probabilístico da dualidade partícula-onda. Assim como a cada partícula corresponde um feixe de ondas ou nuvem de probabilidades, a cada posição correspondem múltiplos momentos.
Quero sugerir que, sem abandonarmos a interpretação majoritária da Física Quântica, é possível abrandarmos o positivismo implícito em só reconhecer realidade ao que é medido. Esse positivismo parece um exagero da posição majoritária. Um exagero que encobre a relação entre as ondas de probabilidades e o real, ao tornar aquelas virtuais e relacioná-las ao futuro, quando as ondas são sempre reais e representam o presente da partícula.
Os estados que a partícula pode assumir também têm realidade própria, independentemente de serem ocupados ou não por ela. Eles são objetos reais, embora indetectáveis. De sorte que a concepção predominante, segundo a qual a observação define a existência quântica tem as características de uma antiguidade positivista no interior da Física. Um vício que ainda a inquina.
Essas observações não distorcem o que se conhece de Física Quântica. Valem-se do desnível entre a existência dos fenômenos quânticos, reconhecida por todos os cientistas, e as incertezas sobre as interpretações deles. Estas aumentam ao se concentrarem nas relações entre o real e as nossas representações dele. O feixe de ondas de uma partícula é a representação mais importante dela. Por isso, a sua relação com o real é o que há de mais controverso na Física. Questionar os significados do feixe não é negar a teoria quântica. É mover-se na gama de interpretações possíveis dela.
Mas as interpretações quânticas também têm pontos de convergência. O mais importante deles é o caráter probabilístico dos eventos. Sobre esse ponto, as possibilidades interpretativas são mais restritas. Pouca dúvida há de que a probabilidade quântica importa uma radical transformação do princípio clássico da causalidade e da fomulação filosófica dele por Kant.
Sabemos que toda relação envolve ações e reações, muito mais do que ações e paixões. Mas, normalmente, não é possível predizer qual dos entes relacionados praticará a ação, e qual, a reação. Só na relação causal, essa ordem é predeterminada, já que a causa deve vir antes do efeito. Ao menos foi o que se entendeu por causalidade até as críticas de David Hume à concepção convencional desse conceito. Porém, o que Hume desafiou não foi a existência da relação causal como conjunção entre a causa e o efeito. Foi, antes, a nossa interpretação mental desse fato, que inclui a precedência da causa. Hume considerava real a conjunção regular que chamamos causal, mas concluiu que a determinação do efeito pela causa era uma construção da mente.
Verdade é que essa é apenas uma interpretação da crítica da causalidade desenvolvida por Hume, contudo ela tem emergido da releitura atenta de sua obra por vários especialistas. Galen Strawson, por exemplo, mostrou que Hume nunca negou a existência da relação causal, mas apenas a nossa possibilidade de conhecer a sua natureza. O que sabemos daquela relação é a conjunção entre a causa e o efeito. O mais, assim como a determinação de um pelo outro, é pura construção mental (STRAWSON, Galen. The hidden connexion. Londres: Oxford Press, 2012).
Para os que, como eu, consideram exagerado o subjetivismo de Kant, a posição de Hume tem grande atrativo, pois fornece a inspiração necessária para o retorno a um realismo básico provido de categorias, sem abrir mão das conquistas críticas. De Descartes a Hume e Kant, a Filosofia desenvolveu-se com engenho e persistência, numa direção eminentemente crítica. Uma consequência inevitável, porém nefasta disso foi a desintegração das categorias, já que, sem elas, é difícil conceber qualquer pensamento humano. Hume e a Física Quântica ajudam-nos a superar tal dilema.
Com efeito, um exercício sedutor de Filosofia, que salva o que é possível da doutrina das categorias sem abrir mão da postura crítica, consiste em reconhecer que Kant excedeu-se ao tornar o tempo, o espaço e as 12 categorias irremediavelmente subjetivos e que Hume pode ser relido de modo a minimizar a herança subjetivista daquele filósofo e ampliar o espaço para um realismo tão básico quanto baseado na ciência.
Que consequência têm essas descobertas para a filosofia do ser? Para tentar responder essa angustiante pergunta, é útil lembrar que, embora tenha levado seu subjetivismo tão longe, Kant manteve um espaço para a Metafísica, no interior do seu sistema. Fundamentou-a, porém, de maneira nova: não mais na essência ou na existência do ser, como as escolas anteriores haviam feito, mas no conhecimento. Para Kant, os conceitos metafísicos permanecem invulneráveis como formas ou pressupostos do conhecimento humano, não como essências existentes ou não. Sem aqueles conceitos, o conhecimento simplesmente não se desenvolve. Permanece mirrado, raquítico. Isso vale não só para Deus, a alma e a liberdade, mas também para as categorias, o tempo e o espaço. Por isso, Kant nos oferece a primeira posição possível em matéria metafísica, na era contemporânea.
A outra posição é a da maioria dos pensadores que tentam superar Kant. Esses filósofos sustentam que, se os conceitos metafísicos não correspondem a objetos reais, não se pode discorrer sobre eles. E aquilo de que não se pode falar deve ser calado. Essa é a outra solução mais comum do mistério do ser.
Hume fornece a inspiração para uma terceira posição, ao obviar o salto no precipício da questão metafísica, na medida em que não chega ao subjetivismo de Kant, porém abandona as posturas dogmáticas a respeito do espaço, do tempo e da causalidade. Permite, assim, considerar relevantes esses conceitos por uma conexão com o real que pode ser denominada realismo básico.
Trata-se de uma posição filosófica bastante fecunda. De uma verdadeira janela que se abre, na casa fechada da Filosofia atual, para o realismo básico e para a Metafísica. As consequências dessa posição para a Teodiceia são espetaculares. Por ela, ao Deus morto de Nietzsche sucede algo inteiramente imprevisto.

A Existência de Deus

Tantos são os argumentos propostos, ao longo da História das Ideias, sobre a existência de Deus que não é possível abordá-los todos de modo analítico, num curto espaço. Porém, como introdução ao tema, é útil lembrar as considerações que alguém como Kant desenvolveu sobre ele.
Para Kant, três argumentos se destacam, na História do Pensamento, sobre a existência de Deus: o argumento ontológico, o cosmológico e o físico-teológico, que tratou como variação do segundo. Kant dirigiu boa parte dos seus esforços a refutar o primeiro argumento. E procurou mostrar, em seguida, que os outros dois são versões modificadas dele, de modo que a refutação da prova ontológica aplica-se também a eles.
Comecemos por examinar, com cuidado, o argumento ontológico. Sua inadequação como prova da existência de Deus foi admitida por vários pensadores, antes e depois de Kant. Não precisamos, pois, necessariamente, ir ao filósofo de Königsberg para encontrar a refutação mais robusta dele. Karl Barth, por exemplo, escreveu sobre o tema uma monografia indispensável, por demonstrar não apenas que o argumento não prova a existência de Deus como que nunca foi objetivo de Santo Anselmo prová-la. Para Barth, o que Anselmo pretendia  está claramente indicado nas fórmulas de sua autoria que podem ser utilizadas como critérios de elucidação do clássico argumento: Credo ut intelligam (creio para compreender) e Fides quaerens intellectum (fé que busca compreensão).
Essas fórmulas mostram que Anselmo usava a razão para desenvolver algo dado anteriormente na fé. Buscava provar que o dogma a que chegamos por fé é também racional, vale dizer, que é possível extrair do dogma de que Deus é o ser supremo uma consequência relevante por meios racionais, a saber: que, se Deus não existisse, algo maior do que ele existiria, o que implicaria contradição. Portanto, se não quisermos que a Teologia albergue contradições, teremos de admitir que Deus existe não só no intelecto, mas também objetivamente.
Nas palavras do próprio Barth: "O que Anselmo considera como tendo sido provado [...] é que a coisa descrita como aliqiud quo maius cogitari non valet [Deus] tem existência não somente no intelecto, mas também tem existência objetiva (e até esse ponto genuína). Agora, até onde isso foi provado? Até onde foi mostrado que Deus existe no intelecto do ouvinte quando o Nome de Deus [exatamente o aliqiud quo maius] é proclamado, entendido e ouvido. Mas, ele não pode meramente existir no intelecto do ouvinte, pois um Deus que existe meramente assim permanece em uma contradição impossível com o seu próprio Nome" (BARTH, Karl. Fé em busca de compreensão - fides quaerens intellectum. 2ª ed., São Paulo: Fonte, 2003. pp. 137-138).
Barth conclui: “Se essa é uma prova, então é a prova de um artigo de fé que ainda continua sendo verdadeiro mesmo à parte de toda prova. A afirmação positiva [a existência de Deus] não pode ter a sua origem examinada, pois ela se origina na revelação" (idem. pp. 138-139).
Isso significa que o argumento ontológico, como Anselmo o concebeu, prova que um item de fé, o Nome de Deus (aliqiud quo maius), implica a existência de Deus, nada além disso. Um item de fé não é um dado da realidade. Só podemos derivar a existência de algo de um dado da realidade. Não é diferente com Deus. Até esse ponto, portanto, a prova ontológica permanece um procedimento analítico que, como tal, não envolve substantificação de ideias.
Mas o argumento foi apropriado, tanto por teólogos como por filósofos, e utilizado de um modo que passou a envolver substantificação. No século XVII, por exemplo, Spinoza adaptou as ideias de Anselmo à sua visão de Universo dominada pela substância única, dotada da maior quantidade possível de atributos. Essa substância é, para Spinoza, o que entendemos por natureza, somente elevada à igualdade com o Ser Supremo. O filósofo percebe que, se retirarmos um atributo (a existência) do vasto conjunto formado pela substância única, ela deixará de possuir a maior quantidade possível de atributos. Por isso, Spinoza atribui-lhe a existência.
O insuperável problema desse modo de racionar é incorrer (outra vez) no vício metafísico da substantificação de conceitos. A ideia de Deus, sua substância e atributos são todos conceitos. Embora refiram-se a algo real, esses conceitos não se confundem com ele. Uma coisa são os conceitos pelos quais representamos a natureza; outra coisa é a própria natureza. Eles são tão diferentes entre si quanto o conceito de gato se distingue de um gato real.
É inevitável que, assim concebido, o argumento ontológico incorra no vício lógico da substantificação. Anselmo tinha-o evitado, ao usar o argumento para demonstrar as consequências de um dogma de fé. Spinoza nada fez de semelhante. Pelo contrário, retirou do argumento sua referência à fé revelada, que neutralizava o poder substantificador, e o estendeu ao absurdo. O mesmo fizeram vários pensadores, tanto antes como depois dele.
Esse é o argumento ontológico, na sua formulação clássica, que Kant e vários outros pensadores dissecaram. Uns o abraçaram, após o terem analisado; outros o rejeitaram. É o caso de Aquino, Kant e Barth, entre outros. Todavia, nem na versão de Anselmo, nem na de Aquino, muito menos na de Spinoza, o argumento ontológico prova a existência objetiva de Deus, pelo motivo básico, mas fatal de que a existência não pode ser derivada de um conceito, qualquer que ele seja.
Curiosamente, os críticos do argumento citado adotaram posições diversas, após o terem refutado. Aquino desenvolveu outras vias, igualmente ontológicas, de argumentação para provar a existência de Deus. Kant procurou aplicar os princípios da refutação do argumento ontológico às outras provas clássicas, a fim de refutá-las também. Seguirei a trilha de Tomás, antes de tentar entender aonde a de Kant nos leva.
O ponto de partida das cinco vias pelas quais Tomás mostrou a existência de Deus é a sua concepção de ser. Embora tenha partido, substancialmente, da metafísica de Aristóteles, Tomás também a superou ao propor divisões do ser cujo sentido ultrapassa muito as categorias daquele filósofo. Com efeito, Aristóteles tinha mostrado que não é necessário supor uma base unívoca do ser para assegurar a unidade interna do mundo. Em lugar de tal base, era possível colocar outra, que chamarei plurívoca por permitir entender que o ser tem diferentes significados sem perder a sua unidade básica e se converter num caos. Esses significados tornam o ser um conceito intrinsecamente análogo.
Mas o filósofo foi além desse ponto. Mostrou que a evidência dos sentidos decide a pendência que pode existir entre as concepções unívoca e análoga do ser em favor da última, já que o real se decompõe em tantos seres que não é possível reduzi-los a um conceito global, ainda que ele seja o do ser. O máximo a que chegamos, na observação do que existe, é às categorias do ser. Tudo o que é, é uma substância localizada no tempo e no espaço, tem relação com outras substâncias, existe em certa quantidade, apresenta qualidades, age e sofre a ação de outros, tem posição e situação. Porém, o tempo em que existe não é o espaço, a quantidade é diferente da qualidade, a ação, da paixão, a posição, da situação, e uma substância não é a outra.
A evidência empírica decide, pois, a pendência teoricamente indecidível entre as concepções unívoca e análoga do ser em favor da última. Sabemos que o ser é análogo, porque sempre se apresenta a nós como intrinsecamente diverso. A diversidade não é uma ilusão de ótica. É um fato do qual podemos partir como de uma base segura, a fim de extrair consequências.
A evidência empírica dessa diversidade é tão torrencial que podemos suspender, sem risco, o juízo crítico até que evidências contrárias venham a infirmá-la. Podemos tomá-la como pressuposto: é o que fazemos, aliás, o tempo todo, ao pensar. Não retornamos ao problema da univocidade ou plurivocidade do ser, ao pensar e agir cada dia. Nem os filósofos e cientistas, nem o homem comum o fazem, pois todos aceitam a plurivocidade básica do real, ao realizar seu trabalho intelectual.
Tomás mostra, na Suma, que a existência de Deus pode ser extraída das evidências sobre o caráter análogo do ser. Se as categorias não são as únicas diferenciações fundamentais do ser, se além delas há outras, mais mediatas, mas não menos certas, como o possível e o necessário, o temporal e o eterno, o finito e o infinito, o efeito causado e o não causado, o composto e o simples, pode-se propor que a divisão do ser nas categorias aristotélicas não exprime mais que os pressupostos de uma visão de mundo comum na Grécia, ao passo que a de Tomás exprime a visão de mundo medieval. A concepção grega, como Aristóteles a codifica, constitui a metafísica clássica; a de Aquino a cristianiza e alarga.
O encaixe das diferenciações metafísicas que chamarei segundas, apresentadas por São Tomás, na doutrina clássica do ser foi a grande realização dos filósofos medievais. Assim eles expandiram o caráter análogo do ser para além dos limites que Aristóteles lhe tinha fixado. E extraíram dessa expansão consequências bem claras para a doutrina da existência de Deus, que expressaram nos seguintes termos: para haver o possível, deve existir o necessário, para o transitório ser, o eterno tem de existir, para o finito ser real, é preciso que o infinito também o seja e para se produzir a cadeia de efeitos é necessário o não causado. Em outras palavras, o imperfeito requer um princípio ou fundamento, que os filósofos medievais identificaram com o perfeito.
Os sentidos nos mostram não só muitos seres possíveis, contingentes, mas que alguns deles são causa dos outros. Podemos admitir que um possível, durante a sua existência, origine outro, que por sua vez origine ainda outro e assim sucessivamente. A formação do Universo pode ser explicada por esse processo, mas a explicação é prosaica demais para ser posta como fundamento das complexidades e maravilhas do cosmo. E o pior é que a origem de um ser possível a partir de outro nos leva a possíveis eternos e não causados, o que desloca o fundamento do efêmero e do causado para dentro dele mesmo.
Claro que os céticos podem fazer o necessário, o não causado etc. retroceder para trás da sequência de possíveis transitórios, mas isso equivale a reconhecer a sua transcendência. No máximo, atrasa o recurso à dimensão absoluta, cuja existência se quer provar ou refutar. A diferença entre essa explicação e a de cunho teísta é que a primeira adia o recurso ao divino, ao passo que a outra o faz concentrar-se logo na figura fortíssima do Ser Supremo e Criador.
O problema das provas sutis da existência de Deus desenvolvidas por São Tomás foi apontado por Kant: consiste em não serem menos ontológicas que a prova de Anselmo. Embora partam da observação do que existe, os cinco caminhos dependem de uma concepção (análoga) do ser e funcionam de modo inteiramente a priori. São, como tais, verdadeiras lições ontológicas, rivais da prova de Anselmo, mas que padecem dos mesmos problemas dela.
Esse o caminho argumentativo seguido por São Tomás, após ter firmado a insuficiência da prova ontológica. A pretensão de Kant, ao chegar a esse mesmo ponto, foi diferente da de Aquino. Em vez de construir outro argumento ontológico para substituir o que invalidou, Kant aplicou a refutação alcançada às outras provas clássicas da existência de Deus. Vale a pena entender como o fez.
“Se algo existe”, escreve a respeito da prova cosmológica, "um ser absolutamente necessário deve também existir. Como eu, pelo menos, existo, segue-se que um ser absolutamente necessário também existe. E posto que o objeto de toda experiência possível é o mundo, este argumento é denominado cosmológico [...] Nota-se que ele começa da experiência e não é totalmente a priori, como o ontológico. Nota-se também que não faz referência a qualquer propriedade dos objetos sensíveis [...] E, sob esse aspecto, ele se diferencia da prova físico-teológica baseada na consideração da peculiar constituição do nosso mundo sensível”(KANT, Emmanuel. Critique of pure reason. In Great books of the western world. 2ª ed., Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1993. Vol. 39, pp. 182-183).
A versão do argumento cosmológico a que Kant se refere é a de Leibniz. De acordo com ele, se o mundo existe (Leibniz supôs evidente que também se move), Deus existe, pois só algo imutável pode tê-lo posto em movimento. Verdade é que, se algo imutável no próprio mundo tiver dado início ao movimento, Deus pode não ser causa dele. Mas, nesse caso, o mundo ou algo nele seria causa de si mesmo, o que é por concepção impossível.
Assim formulado, o argumento de Leibniz parece indestrutível, pois de uma só pitada de experiência (a premissa de que o mundo muda) extrai sua conclusão por necessidade e sem incorrer no erro substancialista. Porém, Kant encontra, nesse argumento, o ontológico, posto que, nele, “a experiência meramente auxilia a razão a extrair a conclusão de que um ser necessário existe” (idem. p. 183). Como “as propriedades desse ser não podem ser aprendidas da experiência, a razão a abandona por completo e passa a procurá-lo na esfera dos conceitos puros [...] em que ela indaga qual, dentre todas as coisas possíveis, contém o requisito da absoluta necessidade” (idem). Não é preciso dizer que, para Kant, a razão acha em Deus (no conceito deste) a resposta que procura.
Kant invalida o argumento de Leibniz, sob acusação de procurar a agulha no palheiro errado. De procurá-la entre os conceitos da razão pura, quando deveria buscá-la na experiência ou, ao menos, no campo da experiência possível. Para Kant, tudo o que existe está nesse palheiro. Não pode ser diferente com o fundamento necessário dos movimentos do mundo (Deus). Implícito fica, pois, que, se Leibniz tivesse encontrado a agulha no palheiro da experiência, teria evitado o retorno vicioso ao conceitual, que retira valor probatório ao seu argumento.
Assim, a discussão kantiana dos argumentos históricos a favor da existência de Deus termina com a conclusão de que não há prova especulativa possível de um Ser Supremo. Proporá, alhures, um argumento não ontológico, nem cosmológico e sim moral em prol da existência de Deus, mas a desconstrução dos argumentos clássicos é, a meu ver, a conclusão mais importante da sua obra, sobre o tema. Conclusão, aliás, convergente com a demonstração de que o argumento ontológico fracassa sempre que usado para provar a existência de Deus e que muitas versões dos outros argumentos estão impregnadas do procedimento ontológico.
A exceção me parece ser o argumento de Leibniz. Não era desconhecido desse filósofo e matemático que os movimentos do mundo podem ser explicados por uma ou mais causas imutáveis, nem todas identificáveis com Deus: a Primeira Causa cristã e as múltiplas causas imutáveis do Universo eterno dos gregos. Se optou por explicá-los por meio de um Criador, foi por considerar evidente que a outra alternativa (a das causas imutáveis imanentes) está sujeita a um sério problema.
Ao reconhecer o problema com as causas eternas e imanentes, Leibniz nada mais fez que manter-se em conformidade com a ciência de sua época que, em fatos empíricos reiterados e invariáveis, reconhecia a atuação de uma lei universal e, com base nela, previa o que haveria de suceder em condições idênticas. A gravidade fora submetida a esse tratamento, no tempo de Leibniz. Embora a maior parte do cosmo não tivesse sido jamais observada (longe disso), os cientistas tinham concluído que a interação gravitacional, como hoje a denominamos, se manifesta em toda parte, o que equivalia a afirmar que tudo sofre mudanças gravitacionais.
Leibniz não divergiu desse entendimento, antes o adotou. E, do modo como os cientistas tinham generalizado os dados da sua observação, de modo a estabelecer a lei da gravidade, ele próprio tratou de generalizar a mudança a toda a natureza física. Assim, afastou-se da opinião dos antigos gregos a respeito das causas imutáveis do mundo.
No contexto do século XVIII, em que viveu, é improvável que Leibniz tenha compartilhado a opinião dos antigos gregos sobre corpos imutáveis imanentes em detrimento da ciência moderna. Pelo contrário, ele abraçou a refutação daquela antiga opinião, que Galileu, Newton e outros tinham realizado. Adotou tal refutação como razão suficiente para eliminar a possibilidade de que as mudanças do mundo proviessem de seres celestes físicos, mas imutáveis, ou de qualquer outra parte no interior do Universo.
Como o firmamento já havia sido vasculhado com ajuda de telescópios, que evidenciaram a ubiquidade da mudança, Leibniz julgou justificado introduzir o pressuposto a priori de que a mudança é inerente a todas as partes do mundo físico. Não incidiu, com isso, em qualquer despropósito, antes realizou algo semelhante ao que tinham realizado os filósofos, que concluíram que o ser é análogo, após verificarem as divisões e subdivisões a que se sujeita, e os cientistas, ao postularem a lei da gravidade. Como explicar é designar uma causa ou princípio externo ao objeto explicado, só se pode fundamentar o movimento em algo imóvel. Por isso, Leibniz concluiu que a causa imóvel do movimento tem de ser Deus.
Kant rejeitou esse argumento, ao cobrar de seus adeptos provas de “que as coisas são incapazes de produzir por si mesmas a harmonia e a ordem” (idem. p. 189). Mas que vem a ser isso?  Ainda que o filósofo se recuse a fechar o argumento em si mesmo com a melhor de todas as chaves (a do conceito de causa ou princípio, que exige a fundamentação de um ser em outro e não em si mesmo), a prova que podemos buscar no cosmo há de ser necessariamente negativa. Há de ser prova de que algo não acontece, e isso em contexto tão vasto quanto o Universo. Para chegar a tal prova, porém, é preciso supor senão a investigação de cada milímetro e de cada partícula do cosmo, ao menos a de partes substanciais dele. O rastreamento cabal do espaço nem a Hércules pode ser cometido. Portanto, a prova possível há de consistir na observação de um grande número de mudanças, sem exceções ou lacunas que permitam afirmar a não mudança.
Para ser conclusiva, uma prova deve ser consistente e clara. Na época de Kant, a prova da ubiquidade da mudança estava sujeita a dúvidas. Mas talvez não seja esse o caso hoje. Após séculos da mais competente varredura do Universo em busca de algo físico que não esteja sujeito a algum tipo de mudança, é preciso admitir que a situação do argumento de Leibniz não é a mesma do século XVIII.
Nada achamos de imutável, no mundo material, após a imensa varredura levada a cabo pela ciência. O átomo, as partículas em que se decompõe, os vários tipos de ondas, todos desfazem-se, em condições determinadas. Sofrem, portanto, mudanças. Tudo é causado, precedido, por algo que constitui seu princípio. A alternativa é negar totalmente a existência de um princípio para o mundo. Mas a alternativa escamoteia a simples imolação do pensamento. Se chegamos até aqui pensando, negar um princípio ao mundo não é só colocar o arbítrio acima da razão, é aniquilar a um tempo os dois.
Temos, pois, suficiente respaldo para concluir que não há objetos materiais não mutáveis, no imenso concerto do Universo, pois a evidência maciça da mudança acumulada pela ciência operou uma modificação no panorama do argumento de Leibniz. Eliminou o remanescente daquela complexidade que turvava o argumento para Kant. Acrescentou-lhe clareza e o tornou não direi totalmente conclusivo, mas o mais claro argumento já construído sobre a existência de Deus.
O princípio da razão suficiente demanda que uma coisa seja explicada por outra, nunca por ela própria. O temporal não pode ser explicado pelo temporal, o finito pelo finito, o movimento pelo movimento, o causado pelo causado ou o contigente pelo contingente. Já o sabia Aristóteles. Num ponto, porém, as coisas mudaram daquela época ao tempo atual. A ciência mostrou, por meio de provas robustas, que o imóvel não está presente no mundo físico.
Não me adiantarei a afirmar que a existência de Deus está dada ou provada dessa maneira. A falibilidade de todo conhecimento impede a comprovação, em sentido último, de qualquer enunciado. Como a todas as outras construções da mente humana, a dúvida adere também a essa. Mas ela não tem, hoje, mais a compleição da época de Kant. É antes um fio de dúvida.
Não estamos mais em tempos, como os de Fílon, em que tudo o que se podia invocar como apresentação do argumento cosmológico eram “os montes e as planícies repletos de animais e de plantas, as torrentes dos rios e dos riachos, a extensão dos mares, o clima bem temperado, a regularidade do ciclo das estações, e depois, o sol e a lua dos quais dependem o dia e a noite, as revoluções e os movimentos dos outros planetas e das estrelas fixas” (ALEXANDRIA, Fílon de. As leis especiais. I, 32-35. Citado em REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. São Paulo: Paulus, 2001. Vol. IV, p. 239). Tivemos de esperar o desenvolvimento de uma ciência suficientemente exaustiva para tornar o argumento mais conclusivo. Penso ser essa a situação dele hoje, após as revoluções científicas que nos revelaram o infinitamente grande, de Galileu a Einstein, e o infinitamente pequeno, da Física Quântica à Biologia Molecular. É significativo demais que o rastreamento dessas duas dimensões do real não tenha revelado uma só substância imutável. Que ele tenha, pois, revelado de certo modo, a agulha de Deus no palheiro da experiência.
Das dúvidas que a humanidade cultivou e que a Filosofia ajudou a ressaltar e a apresentar, esta é, sem dúvida, a maior. Tão grande é o tema da existência de Deus que, se o argumento de Leibniz continuar a ser afiado na pedra fria dos fatos, talvez venha a ser possível afirmar, um dia, que a Metafísica existe para mostrar-nos Deus. Por ora, porém, a questão permanece envolta na névoa do grande Himalaia que o sherma filosófico ajuda a escalar.