quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Quinquagésimo Ano

Há poucos dias, comemorou-se os 50 anos do célebre discurso em favor dos direitos civis pronunciado por Martin Luther King, diante da estátua de Lincoln, em Washington. Podemos perguntar se há, realmente, algo a comemorar, tendo em vista os parcos avanços realizados nesse tema desde aquela época. Mesmo assim, os meios de comunicação noticiaram, e as pessoas celebraram, às vezes efusivamente, a data.
A fala de Luther King naquele grande dia foi, de fato, arrebatada como poucas, na História dos movimentos sociais. Talvez mereça até ser arrolada entre os mais importantes discursos da História do Cristianismo, já que Luther King foi um pastor batista, e as palavras que pronunciou diante de Lincoln eternizado estão crivadas de citações bíblicas e cânticos espirituais. E poucos negarão que, nesse sentido, a dimensão religiosa do discurso do ativista norteamericano transcende a própria problemática dos direitos civis.
"I have a dream" lembra-nos que o sentido da fé deve ser encontrado em questões que interessam à humanidade toda e não somente a igrejas ou grupos religiosos, quaisquer que eles sejam: “A América deu aos negros um cheque sem fundos. Mas nos recusamos a crer que o banco da justiça esteja falido”! Talvez essas palavras não exprimam, literalmente, a pertença do sonho de Luther King à humanidade inteira. Afinal, elas se referem à América. Mas a fé com que King Jr. as pronunciou as torna universais. Mais universais do que as partes do discurso cuja linguagem é claramente voltada à humanidade toda.
A fé que encontro no discurso de Luther King é, antes de tudo, sua fé religiosa. Daí as citações bíblicas que o permeiam. Daí os cânticos que evoca. Mas é preciso acrescentar que toda fé em Deus é, ao mesmo tempo, recusa a crer. É recusa a crer em ídolos e em todo símbolo destituído de significado. Que são esses ídolos, esses símbolos, essas palavras vazias com que certos políticos nos querem iludir, a não ser cheques sem fundos? Crer em Deus é, por isso, também recusar-se a crer nas palavras deles.
Vejam que a recusa a crer nas palavras falsas de governos e governantes não constitui incitação à violência ou à desobediência. Luther King legou-nos a mais clara de todas as advertências, a esse respeito: “Não extingamos nossa sede de liberdade com o cálice da amargura e do ódio!” No contexto da época, a amargura e o ódio eram a paga da violência com a violência.
O mal não se combate com o mal. Vence-se, em primeiro lugar, com a firme recusa a crer no próprio mal. Essa é a alvorada de toda resistência bem-sucedida ao mal que vemos triunfar no mundo. A rejeição de falsas promessas a que King se referiu é, pois, um caso particular da ampla recusa do mal, que caracteriza a fé em Deus.
Olhamos para o mundo, ao comemorar os 50 anos de tão extraordinário discurso (se há mesmo o que comemorar), e vemos a violência no Egito, a violência na Síria. Vemos, ainda mais, a erva daninha de toda essa violência associada à mentira. Que faz o novo governo egípcio? Promove um banho de sangue e processa o ditador deposto, Mohammed Mursi, por incitação à violência. Massacra a população civil em geral e aproveita para perseguir os cristãos coptas, a quem atribui planos conspiratórios.
E Bashar al-Assad? O governante da Síria lança gás Sarin contra a população civil. No entanto, nega tê-lo lançado e culpa os rebeldes por o fazerem. Vai à ONU pedir sua intervenção, vale dizer, proteção contra represálias injustas. Dá entrevista a uma rede de televisão americana, negando a autoria dos ataques. Que representam esses atos, a não ser, novamente, as núpcias da violência com a mais desbragada mentira?
As negativas de Assad só tornam mais clara a extensão que se deve dar ao emprego da suspeição contra ditadores sanguinolentos. A associação da violência à mentira é justificativa suficiente para a comunidade internacional colocar sob suspeição os regimes totalitários. E o aumento da suspeição, além de determinado limite, deve bastar como fundamento para a ação concertada das Nações Unidas contra eles. Essa é a situação posta na Síria, desde a escalada de atrocidades que culminou com o ataque com gás.
Claro que a situação apresenta diferenças importantes, em relação à do Iraque, antes da invasão ocidental. Saddam Hussein tinha usado armas químicas contra os curdos, alguns anos antes da Segunda Guerra do Golfo, mas os relatos de W. Bush de que ele mantinha armas de destruição em massa tinham graves inconsistências. Na Síria, a situação é diferente. O uso do gás Sarin foi filmado recentemente. Todos o admitem. O próprio governo sírio, ao se pronunciar sobre ele, na entrevista citada, não afirmou, nem negou possuir um arsenal dessas armas. Que se há de entender pela não negativa da existência do arsenal? Especialmente se Assad, dois dias depois, propôs entregá-lo? E que se há de extrair do emprego rápido e eficiente das armas químicas filmado recentemente, a não ser sua relação com o arsenal do governo?
Acreditar que o governo de al-Assad não o tenha feito é dar bom dia a cavalo. É apoucar o princípio da suspeição de regimes totalitários entregues à violência. É enfim recusar-se a entender que a violência que vemos na Síria é daquela velha espécie que se manifesta associada à mentira e cumpre finalidades totalitárias.
Esse é o mundo com que nos defrontamos, ao comemorar os 50 anos de “I have a dream”. Um mundo que não mudou em princípio. Um mundo no qual a violência continua a prosperar, pela umbilical aliança que mantém com a mentira. Ou vamo-nos esquecer de que, um dia antes de ordenar a invasão da Polônia, Hitler fez representar a paródia de várias invasões simultâneas do território alemão por “soldados poloneses” uniformizados? Que foram tais “invasões”, a não ser o requinte da mentira associado à mais brutal violência? Requinte porque os soldados eram da SS e receberam de seus superiores os trajes do Exército polonês que utilizaram para “invadir” a Alemanha e criar um pretexto para Hitler, em atitude “claramente defensiva”, anexar a Polônia.
E o pacto germano-soviético de não agressão, celebrado naqueles dias com o mesmo propósito? Visava ele a tudo, menos à não agressão. Isso tanto da parte alemã como da soviética. Quando Hitler pediu a Stalin que o pacto fosse assinado em, no máximo, dois dias não era para preservar logo a paz, mas para invadir a Polônia sem sofrer represálias dos soviéticos.
Sabemos que Stalin aceitou imediatamente a oferta de Hitler. Não tinha, aquele ditador, conhecimento de que o Exército alemão se deslocara para a fronteira com a Polônia? Não antevia a invasão arquitetada por Hitler? Se antevia, por que celebrou o pacto? Por que ajudou a Alemanha a invadir a Polônia e a partilhou com Hitler? Terá sido por acreditar na paz com os nazistas? Diz a crônica que, após assinar o pacto com o Ministro Ribbentrop, da Alemanha, Stalin ergueu uma taça e propôs um brinde à saúde do Führer, que ele tanto odiava. Que significaram esse ato e o acordo então assinado, a não ser a aliança da mais brutal violência com a mais pungente mentira?
Historicamente, a violência e a mentira em escala caminham de mãos dadas. São amigas íntimas, gêmeas univitelinas uma da outra e também do poder. Acreditaremos que, no caso da Síria, é diferente? Que Assad não usou armas químicas contra a população e atirou a culpa em outros?
Mas uma pergunta merece ser formulada mais do que outras, a propósito dos 50 anos de “I have a dream”: qual é o significado da fé, num mundo como o nosso? Num mundo governado, sim, pela violência e pela mentira? Quiséramos talvez encontrar essas duas – a violência e a mentira – nos fracos, mas as achamos concentradas nos poderosos. Quiséramos que fossem estratégias ocasionais de autodefesa dos despossuídos e fragilizados, mas vemos esses pequeninos sustentarem tantas vezes a verdade até o fim e a um alto preço. Vemo-los também denegar os falsos direitos da violência. E, em contraste com tudo isso, encontramos os fortes a usar a mentira para encobrir a violência, à mais leve provocação e pelos mais torpes motivos. Vemo-los utilizar a mentira para encobrir a chacina, até mesmo a chacina de cada dia.
Acaso não desligamos a televisão para não vermos mais essas cenas? Não clamamos aos céus para que o banho de sangue seja, afinal, estancado? Temos contemplado esse espetáculo e aprendido a ligá-lo a regimes totalitários. Afinal, não é assim que o explicam, na mídia e até nas universidades? E se um dia o encontrarmos reproduzido, com os mesmos requintes de mentira, em regimes democráticos? Hoje, afirmamos que a associação da violência à mentira é própria do totalitalitarismo. Salvamos, assim, a derradeira utopia: a democrática. E então, que diremos?
Sei responder: nada teremos para dizer, porque nada nos restará. Tirante a democracia, não temos mais utopias políticas em que acreditar, só ruínas espirituais. Mas Deus proíba a vinda daquele dia. Ele só o fará, se adotarmos a atitude de Luther King. Se, como ele, “nos recusarmos a crer que o banco da justiça faliu”. Recusar a crer são, de fato, as palavras centrais do discurso de 50 anos atrás, pois a História é a oposição dessa recusa à violência e à mentira que devastam a face da Terra, ou é uma farsa sem sentido e sem graça.
“I have a dream” contém um surdo clamor. O clamor do profeta Isaías: “Senhor, envia-me a mim!” e de Francisco de Assis: “Senhor, fazei-me instrumento de vossa paz!” A oração continua: “Onde houver ódio que eu leve o amor”. Podemos perguntar: Como? Alguém em são juízo ainda acredita que o amor pode ser levado aonde há tanto ódio? Nenhuma pergunta soa tão sensata, tão ajuizada, quanto esta. Mas, felizmente, não é preciso respondê-la para nos opormos ao mistério do mal. Podemos não saber dar resposta alguma. Ainda assim, há uma resposta, que King Jr. não se preocupou em detalhar. Basta-nos crer na resposta para ingressar na universal corrente da resistência eficaz à injustiça.
Luther King bradou tantas vezes, em seu discurso: “I have a dream!” Que é sonhar com “o dia em que os filhos dos antigos escravos e os filhos dos antigos donos de escravos da Geórgia sentar-se-ão juntos à mesa da fraternidade”? Sonhar é, aqui, o mesmo que crer. E crer e sonhar são o mesmo que resistir. Ninguém pense que a resistência assim oferecida é pequena ou inútil, diante da dimensão da injustiça. Não o é, e a prova disso é a História. É o fato de o mal não ter a palma, no palco do mundo.
Ou a fé se opõe à violência e à mentira mancomunadas, ou nada é capaz de o fazer. Luther King ensinou-nos que a violência não se opõe realmente à violência. Seu Senhor e o nosso já o tinha declarado. Tinha também afirmado que a mentira tampouco se opõe à mentira. Viver é manter essa fé. Não a manter apenas em situações extremas, mas principalmente “ao trabalharmos juntos, ao orarmos juntos, ao nos esforçarmos juntos, ao sermos presos juntos e ao nos levantarmos juntos pela liberdade, sabedores de que um dia seremos realmente livres”.
Podemos pensar que a vida é uma aventura errante, como escreveu Vinícius de Morais, que ela não faz o menor sentido. Mas isso é o oposto do que o pastor Luther King lembrou há 50 anos. Ele nos disse que uma força sobrenatural opera na fé que simplesmente trabalha, ora, esforça-se, vai para a prisão e se ergue pela liberdade.
A maior parte dos grandes acontecimentos dá razão a Vinícius, pois a única lógica que os preside é a da violência e da mentira. Não creio que Vinícius denominasse sentido essas coisas. Mas, felizmente, os pequenos fatos, em profusão, nos mostram que Luther King estava certo. Que as pessoas vencem o mal com o bem, quando fazem pequenas coisas juntas, desde que as façam com a fé dos que sofrem e cantam com seus irmãos de dores: “Free at last! Free at last!/ Thank God Almighty, we are free at last!”
Ergamos, pois, nossas taças, não aos Führers do mundo, mas aos comezinhos fatos que conspiram contra eles! Guardemos o amor, a paz, a alegria e todas as outras coisas que Luther King pregou, pois só possuindo-as poderemos compartilhá-las.