A parábola dos dois casamentos é a chave para a compreensão dos capítulos 7 e 8. Ela mostra, alegoricamente, que o ser humano é semelhante à mulher e que a experiência de crer em Cristo é comparável a uma união matrimonial. Paulo já havia afirmado isso, em 1ª aos Coríntios 6:16-17: “Não sabeis que o que se une à prostituta forma um só corpo com ela? Porque, como se diz, serão os dois uma só carne. Mas aquele que se une ao Senhor é um espírito com ele”. Embora apareça em Coríntios e outras passagens, a união assim enunciada só é totalmente explicada em Romanos.
A parábola de 7:2-4 mostra-nos que a união do crente com Cristo não é um casamento comum, mas um segundo casamento. Em tese, por se tratar de um segundo matrimônio, Paulo poderia colocar um divórcio antes dele, mas opta por colocar a experiência da morte. Afirma que o segundo casamento da mulher é precedido da morte do primeiro marido, o que faz com que a união com Cristo seja impossível sem uma experiência de morte e ressurreição.
Isso não é novidade absoluta, pois, no capítulo 6, o apóstolo já havia afirmado que “os que fomos batizados em Cristo Jesus, fomos batizados na sua morte [...] sepultados com ele na morte pelo batismo; para que, como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai, assim também andemos nós em novidade de vida” (6:3-4). Resta, porém, estabelecer com clareza o que deve morrer para que o homem se una a Cristo. Essa não é uma questão simples, à luz da História da Igreja, uma vez que diferentes pregadores e mestres sugeriram coisas bem diversas sobre o tema.
Vários desses mestres notaram que a Bíblia está repleta de imagens e símbolos. O Cântico dos Cânticos, por exemplo, é um livro inteiramente constituído por esses elementos. Não é diferente em Romanos 7. Nesse capítulo, o primeiro marido é um símbolo de algo negativo para o qual temos de morrer, a fim de nos unirmos a Cristo, o segundo marido.
Vimos, na postagem anterior, que a mulher da parábola é a mente humana, pois, assim como a mulher é dominada pelo primeiro marido, enquanto ele vive, o apóstolo afirma que a mente é subjugada pelo pecado na carne: “Vejo nos meus membros outra lei que, guerreando contra a lei da minha mente, me faz prisioneiro da lei do pecado” (7:23). De maneira que eu, de mim mesmo, com a mente sou escravo da lei de Deus, mas, segundo a carne da lei do pecado” (7:25).
Isso nos mostra que o que deve morrer (o primeiro marido) não é o corpo, nem as suas sensações, nem a mente ou os pensamentos dela, mas as paixões carnais do ser humano. Esse é um primeiro ponto fundamental, que Romanos, mais que qualquer outro livro bíblico, nos ensina.
Há, porém, outro ponto, que também é esclarecido de modo incomparável em Romanos. Refiro-me ao modo como a morte das paixões se dá. Já se observou, com razão, que, em Romanos, o espírito humano tem lugar bastante proeminente. No capítulo 1, Paulo afirma servir a Deus no seu espírito (1:9). No capítulo 7, esse serviço a Deus “em novidade de espírito e não na caducidade da letra” (7:6) é reafirmado. E, no capítulo 8, versículo 10, o apóstolo completa: “Se Cristo está em vós, o corpo, na verdade, está morto, por causa do pecado, mas o espírito é vida por causa da justiça”.
A esses versículos poderíamos acrescentar ainda o que afirma que “o Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus” (8:16). Esses quatro versos dão-nos uma revelação, pois esclarecem, um tanto completamente, a função do espírito humano. Nenhum outro livro bíblico fornece esclarecimento maior ou mesmo comparável ao desses quatro versos, no tocante à função do espírito.
Não que os quatro versículos valham mais do que outros da Bíblia. Mas devemos lembrar que Romanos é o único tratado bíblico escrito com o objetivo de interpretar exaustivamente o evangelho de Cristo. Portanto, o que ele afirma, afirma com intenção de definir. Isso se aplica, de modo especial, ao ensino a respeito do espírito humano, que em Romanos 7 e 8 assume coloração particularmente nítida.
Em O homem espiritual, Watchman Nee explicou, detidamente, o que, em Teologia, se costuma denominar tricotomia, isto é, a existência do espírito, da alma e do corpo no homem. Ao fazê-lo, Nee desenvolveu uma doutrina das partes do homem. De fato, para ele, o espírito, a alma e o corpo são partes do ser humano, como se depreende das seguintes passagens da sua obra:
“O resultado de nossos achados, tanto no estudo da Palavra como na experiência, diz-nos que, com cada experiência espiritual (por exemplo, o novo nascimento), realiza-se uma mudança especial em nosso homem interior. Chegamos à conclusão de que a Bíblia divide o homem em três partes: o espírito, a alma e o corpo” (NEE, Watchman. O homem espiritual. São Paulo: Betânia. Primeiro Prólogo. p. 6).
“É por meio do corpo que o homem entra em contato com o mundo material. Daí podemos qualificar o corpo como a parte que nos faz conscientes do mundo. A alma é formada pelo intelecto, que nos ajuda no presente estado de existência, e as emoções, que procedem dos sentidos. Posto que a alma pertence ao próprio eu do homem e revela sua personalidade, é chamada a parte que tem autoconsciência de si mesma. O espírito é a parte mediante a qual nos comunicamos com Deus, e só por ela podemos perceber e adorar a Deus” (idem. p. 20).
Ao chamar o espírito, a alma e o corpo partes do homem, Nee apenas reflete o que estava posto no embate das correntes que defendem que o homem é composto de corpo e alma (dicotomia) e de corpo, alma e espírito (tricotomia). Os próprios termos dicotomia e tricotomia contêm o radical tomo, que significa parte. Portanto, a discussão que se propôs, há muito tempo, por meio deles, nunca foi se o homem tem partes, mas se tem duas ou três.
Infelizmente, quando posto dessa maneira, o problema da dicotomia e da tricotomia se torna não só insolúvel como induz a outros equívocos. Por exemplo, o de que a alma e o espírito também têm partes, o que Nee ensinou ao escrever:
“Segundo os ensinamentos da Bíblia e a experiência dos crentes, pode-se dizer que o espírito humano compreende três partes. Ou, expresso de outro modo, se pode dizer que tem três funções principais. Estas são a consciência, a intuição e a comunhão” (idem. p. 25).
“Neste breve estudo bíblico se torna evidente que a alma do homem possui a parte conhecida como vontade, a parte conhecida como mente ou intelecto e a parte conhecida como emoção” (idem. p. 35).
“As partes proeminentes da alma são a mente, a vontade e a emoção do homem. A vontade é o órgão da decisão e em consequência o dono do homem. A mente é o órgão do pensamento, enquanto que a emoção é o do afeto” (idem. p. 44).
Essas divisões do ser humano em partes tendem a inculcar a ideia de que cada parte exclui a outra. Como a mente, por exemplo, se localiza na alma, não pode estar no espírito. Disso se conclui que, se o espírito tem a importância que Paulo lhe atribui, em Romanos, o mesmo não se pode dizer da mente.
Mas não é isso que Paulo ensina. Para ele, o espírito é, sim, o ponto de partida da salvação de Deus, mas de modo nenhum exclui a mente. O espírito não é uma não-mente. Se a mulher da parábola de 7:2-4 representa a mente e serve a Deus “em novidade de espírito” (6:7), o espírito não pode excluir a mente.
Só aparentemente, o espírito tem natureza não mental. Em 1ª aos Coríntios 14:14-15, Paulo afirmou: “Se eu orar em outra língua, o meu espírito ora de fato, mas a minha mente fica infrutífera. Que farei, pois? Orarei com o espírito, mas também orarei com a mente; cantarei com o espírito, mas também cantarei com a mente” (1 Co 14:14-15).
Aparentemente, nesses versículos, a mente não é o espírito, e o espírito não é a mente. Mas, se olharmos com atenção, perceberemos que os dois não são tão estanques. A mente que fica infrutífera é a do homem que ora sem compreender o que diz, por falta de quem o interprete. Paulo atribui a oração assim realizada ao espírito e não à mente. Porém, o não envolvimento da mente não implica que, se a oração for feita na língua comum, o espírito não orará. A oração numa língua estranha não ser compreendida pela mente não implica que a oração na língua comum não será compreendida pelo espírito. Romanos sugere, ao contrário, que o espírito e a mente oram, quando o homem se dirige a Deus com palavras inteligíveis. Por isso diz: "Orarei com o espírito, mas também orarei com a mente; cantarei com o espírito, mas também cantarei com a mente" (1 Co 14:15).
O espírito não é feito de não-pensamento, pois nada há, no homem interior, que não seja algum tipo de pensamento. Por isso Paulo nos diz que o espírito do homem “conhece as coisas do homem” assim como o Espírito de Deus conhece as de Deus (1 Co 2:11). Não há conhecer sem pensar. Portanto, o saber do espírito humano é um pensar.
Só não é um pensar consciente, um pensar comandado pela faculdade da atenção. Assim como o coração bate, independentemente da nossa atenção, o espírito pensa e conhece, independentemente de nos darmos conta. Não é preciso mais para indicar que o que, nas epístolas paulinas, se denomina “espírito da mente” (Ef 4:23), em Psicanálise, é o inconsciente individual.
O espírito humano é o homem dobrado sobre si mesmo, voltado para dentro de si, para as suas profundezas. É o homem enquanto não tem e não usa qualquer conhecimento advindo do mundo externo, o homem mergulhado no universo da sua memória e que só se relaciona com o que encontra ali.
Paulo diz que esse espírito é o próprio homem, não parte dele. Pergunta: “Qual dos homens sabe as coisas do homem?” E responde: “senão o seu próprio espírito que nele está?” (1 Co 2:11). Portanto, o espírito não é parte do homem, mas o homem todo, pois a sua memória é tudo o que ele jamais viveu.
Paulo acrescenta: “Assim também as coisas de Deus ninguém as conhece, senão o Espírito de Deus” (1 Co 2:11). Nesse versículo, as palavras “assim também” estabelecem claro paralelo entre o espírito do homem e o de Deus. Do modo como o espírito humano conhece as coisas do homem, o Espírito de Deus conhece as de Deus. Como as conhece? Se estabelecemos que o espírito do homem conhece pela lembrança, devemos concluir que o Espírito de Deus conhece da mesma maneira.
Deus é infinitamente sábio. Essa sabedoria, enquanto relacionada à criação e ao mundo material, é o Logos (Cristo); enquanto relacionada à mente de Deus ou de Cristo (1 Co 2:16), é o Espírito. Tudo isso é conhecimento. Nada é isento de conhecimento.
Nada há de errado com o ensinamento de que o espírito humano é a cabeça de ponte da salvação de Deus. Ele o é, pois a salvação começa nele. Por isso, quando declara que “os que se inclinam para a carne cogitam das coisas da carne, e os que se inclinam para o espírito, das coisas do espírito” (8:6), Paulo toca o grande mistério. Dá-nos, ao mesmo tempo, a aplicação prática de tudo o que ministrou antes.
A aplicação da salvação de Deus envolve o espírito humano, porque Deus ali habita. Quem se une a uma prostituta se torna uma só carne com ela, mas “aquele que se une ao Senhor é um espírito com ele” (1 Co 6:17). “O Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus” (8:16). Esses versos confirmam que o espírito é o posto avançado, a cabeça de ponte da salvação, porque algo diferenciado acontece nele. Não algo diferenciado por não envolver a mente ou a razão, mas ao contrário por envolver um novo tipo de pensar, que Paulo denomina cogitar das coisas do Espírito: “Porque os que se inclinam para a carne cogitam das coisas da carne; mas os que se inclinam para o Espírito, das coisas do Espírito” (8:6).
O segredo do espírito não é o não pensar, o pensar menos ou o pouco pensar. É, antes, o novo pensar e o pensar o radicalmente novo.