É comum os cristãos perguntarem se os apóstolos, profetas, evangelistas, pastores e mestres citados em Efésios 4:11 existiram apenas no primeiro século ou permanecem até hoje. A questão nos remete a outra maior: a de como os cristãos veem o tempo.
A verdade é que não poucos seguidores de Cristo consideram que as regras do passado bíblico devem impor-se ao presente e ao futuro, não importa quanto tempo transcorra. Seja em matéria de fé, seja em questões de conduta, essas pessoas consideram que as práticas da igreja primitiva são as únicas corretas, as únicas que não importam desobediência a Deus. É como se o eterno presente, em que Deus existe e que Santo Agostinho descreveu com propriedade e verve, uma vez projetado no mundo, se transformasse no eterno passado dos crentes.
Desconfio que essa resolução dos dilemas do tempo seja responsável por dois grandes males. O primeiro é a vontade furiosa de retorno ao século I que ela gera no mundo cristão; o outro é a admissão de que as instituições primitivas podem e devem ser superadas, desde que os princípios da igreja apostólica sejam mantidos. Essa segunda posição pode parecer perfeita, mas geralmente abre caminho para uma adesão tão forte a instituições de outras épocas quanto a que o primeiro grupo devota às do século I. Claro que me refiro à atitude das Igrejas históricas (Luterana, Anglicana, Presbiteriana, Metodista, Batista, entre outras), que adotam os princípios bíblicos e consideram normativos os ensinamentos de seus fundadores.
A indagação do sentido dos ofícios de Efésios 4:11 deve ser realizada com funda consciência desses dilemas. O versículo afirma: “Ele mesmo [Cristo] concedeu uns para apóstolos, outros para profetas, outros para evangelistas, e outros para pastores e mestres” (Ef 4:11). Embora as cinco tarefas citadas permaneçam essencialmente as mesmas, ao longo do tempo, o contexto em que se executam, hoje, é muito distinto do da igreja primitiva. Devemos reconhecer que essa mudança de circunstância impõe a necessidade de uma adaptação dos papeis de apóstolo, profeta, evangelista, pastor e mestre.
Assim, por exemplo, no primeiro século, a função dos apóstolos era promover a superação de barreiras geográficas à distribuição dos dons de Cristo à igreja. Comunidades entre si distantes não podiam se comunicar. Por isso, os apóstolos viajavam para levar até elas o que, de melhor, as outras igrejas possuíam em termos de alimento espiritual. Hoje, porém, as barreiras geográficas e de comunicação deixaram de ter a mesma relevância do primeiro século. Por isso, o apostolado passou por uma transformação, uma adaptação às novas circunstâncias. Hoje, ele consiste mais em comunicar o evangelho, à distância (intencionalmente, isto é, com o consentimento de quem o recebe), do que em viajar de lugar a lugar.
Transformações análogas se exigem nas operações de profetizar, pregar o evangelho, apascentar e ensinar. Aliás, tantas foram as mudanças que o tempo impôs às igrejas que, na maior parte delas, as próprias palavras apóstolo e profeta deixaram de ser empregadas para designar pessoas vivas, mulheres e homens da nossa época. Está isso errado? Não o creio. Cada época tem o seu léxico, e é sempre ajuizado respeitá-lo. As circunstâncias históricas tornaram e ainda tornam a omissão dos apóstolos e profetas necessária ou pelo menos útil. E tudo o que é necessário, assim como parte do que é útil permanece fora da seara pútrida do pecado.
Os termos evangelistas, pastores e mestres não caíram tanto em desuso quanto os de apóstolo e profeta, porque as funções a que se referem, ao contrário das destes, permanecem objetivamente definidas. Evangelista é quem anuncia o evangelho. Sabemos o que é o evangelho; logo, sabemos quem é evangelista. Pastor, no sentido moderno, é o líder ordenado de uma igreja evangélica: o clérigo protestante, que se distingue por exercer e centralizar o ministério da palavra. Já o mestre é o professor, o que dá aulas nos meios de comunicação e em instituições como seminários e escolas dominicais.
Não convém nos levantarmos contra as concepções atuais dos ofícios de Efésios 4:11, apenas porque se afastam do que era praticado no primeiro século. Melhor é respeitarmos as respostas que as comunidades desenvolvem às circunstâncias cambiantes da História. Se não podemos revogar ou sair da História, devemos aceitar as suas construções.
Ridículo é pretendermos que as funções de apóstolo, profeta, evangelista, pastor e mestre tenham de continuar a ser hoje o que eram no primeiro século, se a Bíblia é a primeira a atribuir sentidos cambiantes aos mandamentos e instituições que nos apresenta. Ou Moisés não ordenou, com veemência, que o violador do sábado e a mulher pega em adultério fossem mortos (Nm 15:32-36; Lv 20:10)? No entanto, ao descobrir a gravidez de Maria, sem saber, a princípio, que havia sido produzida pelo Espírito Santo, José não a expulsou, antes se retirou, ele próprio, de casa. O surpreendente para quem foi cultivado em concepções tradicionais é que a Escritura não afirma que o pai de Jesus o fez porque era injusto (descumpridor da lei), mas porque “era justo e não a queria infamar” (Mt 1:18-19). Semelhantemente, Jesus observou a lei judaica, mas não mandou matar seus discípulos por terem colhido espigas no sábado (Mt 12:1-8), nem a mulher pega em adultério (Jo 8:3-11).
Assim, se por nostalgia alguém quiser manter o antigo apóstolo, o profeta arcaico etc., deverá também restaurar a submissão da mulher ao homem e suspirar pelo retorno da escravidão, pois Paulo ordenou que ambas fossem observadas. Ou elas não estão na palavra de Deus? Enquanto não reintroduzem o antigo escravo e a servidão da mulher ao homem, porém, permitam-me lembrar que os restauradores do apóstolo e do profeta primitivos não possuem o crédito de que necessitam para que o seu ensinamento seja seguido.
Por falta de espaço, não multiplicarei os exemplos de superação de costumes e instituições bíblicos, na própria Bíblia, mas devo lembrar que as Escrituras sempre mostram a evolução de ambos. Aliás, a própria Bíblia muda. De maneira quase unânime, os judeus consideravam traduções do Antigo Testamento, a exemplo da Septuaginta, não como subordinadas ao original, mas como trabalhos do próprio Deus que, uma vez consumados (e aceitos pelo seu povo), adquiriam independência do texto hebraico. Não foi por outro motivo que os autores do Novo Testamento citaram passagens da Septuaginta por vezes divergentes, por vezes inconciliáveis com o hebraico. E foi pelo mesmo motivo que as variações entre as traduções, entre estas e o original e entre os próprios manuscritos originais eram todas tidas como divinamente inspiradas.
Quando o autor de Timóteo afirmou que “toda Escritura é inspirada por Deus” (2 Tm 3: 16), ao que tudo indica, era essa grande gama de textos variantes que ele tinha em mente. Creio, portanto, na inspiração literal da Bíblia, mas sob essa concepção bíblica. O que significa que a obediência às Escrituras não implica, nunca implicou, nem implicará no futuro a adoção cega das suas práticas e instituições, mas a adaptação delas às circunstâncias históricas cambiantes.
Os ofícios de Efésios 4:11 não escapam a essa regra. Por meio deles, Deus quis estabelecer um princípio imutável, assim como as Igrejas históricas reconhecem. A esse princípio, é que a fé se dirige, não às circunstâncias do primeiro século ou ao modelo antigo de apóstolo, profeta, evangelista, pastor e mestre. E penso que o princípio por trás de Efésios 4:11 é a destinação do trabalho de apóstolo, profeta, evangelista, pastor e mestre ao aperfeiçoamento dos santos, pois “ele mesmo concedeu uns para apóstolos [etc...] com vistas ao aperfeiçoamento dos santos para o desempenho do seu serviço, para a edificação do corpo de Cristo” (Ef 4:11-12).
Efésios subordina, claramente, os ofícios espirituais ao aperfeiçoamento dos santos, não à edificação da igreja. Isso significa que os ofícios têm finalidade individual, não coletiva. Os apóstolos do primeiro século, para nos atermos de novo a eles, não edificavam diretamente a igreja, mas aperfeiçoavam os santos para que o fizessem. Até porque o apóstolo viajava, e a edificação da igreja exigia a permanência das pessoas umas com as outras. A julgar pelos discursos diários de Paulo na escola de Tirano, pelo espaço de dois anos (At 19:9-10), ou pela fala na residência de Trôade, que se alongou até a alvorada (At 20:7,11), os apóstolos enquanto tais ministravam, muito mais do que recebiam o ministrar de outros, como acontece numa experiência de mutualidade.
Em flagrante contraste com o exemplo apostólico, porém, o que vemos os líderes cristãos realizarem, hoje, é muitas vezes moldar, conformar os indivíduos não a Jesus Cristo, mas às tradições, às práticas e às doutrinas sejam do primeiro século, sejam posteriores. E, ainda mais do que tudo isso, vemo-los enfiar as pessoas a todo custo nos moldes do pensamento homogêneo que tanto caracteriza o rebanho cristão, as igrejas e os ministérios. Ou enfiar os moldes nas pessoas, conforme o caso. Ou ainda as duas coisas ao mesmo tempo, dirão os mais severos críticos, entre os quais espero não me incluir.
O que há de mal nesses fatos não é o afastamento das instituições atuais em relação às que vemos representadas na Bíblia, como tanto e com tanto furor se denuncia. O mal é o líder cristão ter-se especializado em conformar o indivíduo à massa, o individual ao coletivo, o peculiar ao genérico. Essa atividade não apenas dos líderes, mas das instituições cristãs não deixa de produzir a demolição do indivíduo como tal e a exaltação da coletividade no espaço que o cortejo fúnebre dele inaugura solenemente.
Não há como não se reconhecer, na adesão deliberada a essa prática, uma forma de pecado. E que a Bíblia é reduzida por ela a uma jazida de matérias-primas de interpretações literais que, por definição, só podem enxergar no presente a traição do passado. Nessa visão míope, a violação do passado “no tempo que se chama hoje” é alegada, representada, denunciada como pecado, e a alegação, e a representação, e a denúncia servem de timbre do caráter celeste dos ministérios.
Há não muito tempo, um autor chamado Frank Viola lançou um livro de denúncias de praticamente todas as igrejas cristãs, por se terem apartado das práticas e instituições bíblicas. Não duvido da veracidade de boa parte do repertório de informações históricas que o livro traz ou da importância da pesquisa do passado para que a fé cristã se mantenha como verdade presente. Mas o problema simples da vociferante denúncia de Viola é esquecer-se de que não podemos achar no presente a não ser ele próprio. Jamais o passado. Isso é inescapável para o homem. É próprio da condição humana. É um traço que Deus descreveu na areia do tempo para não ser ultrapassado, já que arredar um milímetro da condição humana é flertar com o pecado e conversar com a serpente.