terça-feira, 17 de julho de 2012

Aperfeiçoamento e Edificação

Após o fracasso da maior parte das tentativas de restaurar a igreja num nível mais profundo que aquele em que foi possível fazê-lo durante a Reforma, ainda é sensato se crer numa restauração progressiva, que começa mas não termina no décimo-sexto século? A pergunta tem ressoado ao longo dos últimos séculos. Ao publicar Um sonho de comunhão, procurei oferecer uma resposta bíblica a ela. Sustentei que as Epístolas Pastorais (sobretudo 1ª e 2ª a Timóteo e Tito) e outros textos do Novo Testamento predizem uma apostasia ou desvio espiritual, que devastaria a igreja cristã e o mundo após a era apostólica. A restauração nada mais é que um retorno à condição básica existente antes dessa apostasia. Assim como o erro deveria ocorrer, a restauração também deveria achar ocasião de se desenvolver. Essa é a ideia simples da restauração da igreja, como o Novo Testamento a apresenta.
Para a entendermos um pouco melhor, é útil recapitularmos o que as Epístolas Pastorais afirmam a respeito da apostasia. Como percebido em Timóteo e Tito, esse desvio não se confunde com a rejeição de Jesus pelos judeus, ocorrida por volta do ano 30 d. C., nem com as fábulas mencionadas em Tito 1:14 e 1ª a Timóteo 1:4. Ao contrário desses antigos fatos, a apostasia era um evento futuro em relação à época em que as Pastorais foram escritas.
Portanto, melhor é associarmos o desvio profetizado em Timóteo e em Tito a práticas de engano e dissimulação (1 Tm 4:2) e ao aumento descontrolado tanto do gozo como da proibição de prazeres, no mundo e na igreja (1 Tm 4:3). Essas duas vertentes da grande apostasia desenvolveram-se após o primeiro século.
A restauração, por sua vez, é a reconstrução da igreja arruinada pela apostasia e outros desvios. Só se pode falar em restauração, concedendo-se esse antecedente negativo. Na linguagem simbólica do Antigo Testamento, o antecedente é retratado pela destruição do edifício de Deus em Jerusalém. Portanto, para entendê-lo, também é útil estudarmos a ideia bíblica de edificação.
Efésios 4:7-8,11-13 afirma: “E a graça foi concedida a cada um de nós segundo a proporção do dom de Cristo. Por isso diz: Quando ele subiu às alturas, levou cativo o cativeiro, e concedeu dons aos homens [...] E ele mesmo concedeu uns para apóstolos, outros para profetas, outros para evangelistas, e outros para pastores e mestres, com vistas ao aperfeiçoamento dos santos para o desempenho do seu serviço, para a edificação do corpo de Cristo [...] para que não mais sejamos como meninos, agitados de um lado para outro, e levados ao redor por todo vento de doutrina, pela artimanha dos homens, pela astúcia com que induzem ao erro. Mas, seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo naquele que é o cabeça, Cristo, de quem todo o corpo, bem ajustado e consolidado, pelo auxílio de toda junta, segundo a justa cooperação de cada parte, efetua o seu próprio aumento para a edificação de si mesmo em amor”.
O texto citado fala de uma edificação em duas etapas. A primeira é marcada pelo aperfeiçoamento dos santos; a outra, pela edificação propriamente dita. O aperfeiçoamento ocorre por meio dos dons que Cristo concedeu à igreja, que são os apóstolos, profetas, evangelistas, pastores e mestres. Deus reparte a sua graça entre os membros do corpo, por meio desses homens-dons. Já a edificação, é executada por todos os membros da igreja, sem distinção alguma.
Uma imagem do Antigo Testamento ajuda a esclarecer a separação temporal entre o aperfeiçoamento e a edificação. Aprendemos em 1º dos Reis 6:7 que “edificava-se a casa [de Deus] com pedras já preparadas nas pedreiras, de maneira que nem martelo, nem machado, nem instrumento algum de ferro se ouviu na casa quando a edificavam”. A preparação das pedras nos locais em que foram extraídas corresponde ao aperfeiçoamento dos santos, por meio dos homens-dons; já a edificação da casa, prefigura a da igreja por aqueles que creem.
A edificação não é possível sem que cada pedra, cada pessoa, seja preparada individualmente. E a preparação, como é óbvio, não tem a finalidade de que os indivíduos “sejam felizes”, mas que sejam edificados com outros. Não é uma busca da felicidade, mas de comunhão. Sem que o indivíduo seja adequadamente preparado, trabalhado por Deus, “nas pedreiras”, com os instrumentos representados pelos apóstolos, profetas, evangelistas, pastores e mestres, não há edificação coletiva. Portanto, o ministério dos homens-dons visa mais a essa preparação individual do que à edificação coletiva.
Efésios relaciona a edificação que sucede o aperfeiçoamento dos santos à unidade da fé, ao pleno conhecimento do Filho de Deus e à estatura máxima da igreja como varão perfeito (Ef 4:13). Esses três pontos remetem-nos ao futuro. Nem a unidade da fé, nem o pleno conhecimento de Cristo, nem a estatura máxima da igreja são realidades presentes hoje. Menos ainda eles podem ser alcançados, na Terra, por todos os crentes ao mesmo tempo. Portanto, a maior parte da edificação da igreja não se dá na Terra.
Verdade é que Efésios 2:20-22 declara que os gentios já estão edificados sobre o fundamento, que é Cristo. Porém, essa edificação é mais ideal que presente, mais precária que definitiva. Afirmações ideais são comuns em Efésios e não devem ser tomadas como realidades consumadas. É o caso da afirmação de que os gentios estão assentados nos lugares celestiais (Ef 2:6). Cristo nos ensinou a orar: “Faça-se a tua vontade, assim na terra como no céu” (Mt 6:10). Se a vontade de Deus já fosse feita aqui como lá, não precisaríamos pedi-lo. O céu já estaria refletido na Terra. Então, se o pedimos, é porque a manifestação do reino de Deus aqui ainda é muito imperfeita.
Nem toda fé deve-nos impedir de reconhecer que o reflexo das situações ideais na realidade presente é sempre bastante pálido. Em 1ª aos Coríntios 3, Paulo definiu seu alcance, ao afirmar claramente que a edificação em andamento, nos nossos dias, pode ou não ser bem-sucedida. Sobre o fundamento, que é Cristo, é possível se edificar com ouro, prata, pedras preciosas, madeira, feno ou palha. Nos três primeiros casos, a obra de edificação permanecerá; nos últimos três, ela será destruída (1 Co 3:12-15). Isso confirma que a edificação em desenvolvimento, hoje, é limitada e precária.
Outras passagens do Novo Testamento também deixam espaço para o entendimento de que a maior parte da edificação da igreja ocorrerá no futuro. Jesus afirmou: “sobre essa rocha edificarei a minha igreja” (Mt 16:18). O tempo futuro empregado no verso indica que a edificação não estava em andamento, quando Cristo se referiu a ela. É comum se afirmar que ela começou com o derramamento do Espírito Santo, em Atos 2. Porém, essa conclusão não se extrai da declaração de Jesus. Pelo contrário, após declarar que edificaria a sua igreja, ele proclamou que as portas do hades não prevaleceriam contra ela. A declaração identifica o hades e suas portas como os mais sérios obstáculos à edificação. Se ambos representam a morte do corpo, como de fato representam, devemos concluir que a edificação se dá, principalmente, após a morte. Esse e somente esse é o tempo, em que a igreja chegará à unidade da fé, ao pleno conhecimento de Cristo e à sua estatura máxima.
A destruição que antecede a restauração pode, portanto, incidir tanto na obra de aperfeiçoamento dos santos, prefigurada pela preparação das pedras longe do lugar do Templo, como na edificação precária, representada pela montagem final do santuário em Jerusalém. O que não ocorre, num e no outro caso, é a edificação definitiva, imperfectível que muitos apregoam. Tal qual o Templo foi destruído pelos neobabilônios, reedificado, destruído de novo e um dia será reconstruído, toda edificação defeituosa da igreja terá de passar por um ou mais processos de restauração.
Onde estamos, nesse fazer e refazer infinitos? Aonde é preciso chegar na restauração? Que deve ser restaurado? Essas foram as perguntas enfrentadas em Um sonho de comunhão. A resposta que encontrei para elas à época foi: tudo o que Deus mandou e um dia existiu, na igreja, deve ser restaurado. Não tudo ao mesmo tempo, por certo. Porém, tudo e nada menos que tudo.
Se em Atos 2 a 6 houve comunhão pura, desinteressada e sem mediação do poder, nada menos que isso deve ser restaurado na igreja. Mas é possível, sim, é perfeitamente possível que as circunstâncias históricas não nos permitam encontrar tal comunhão no nosso tempo de vida. Nesse caso, cumpre-nos continuar a almejar a comunhão da época dos primeiros apóstolos. Fazê-lo não significará de modo algum saudosismo ou nostalgia. Significará viver para a restauração e orar voltado para Jerusalém.
Atos 2 a 6 é o limite da experiência temporal da restauração. Cristo não morreu para que o povo de Deus dos séculos provasse menos que isso na Terra. E não se assentou no céu para não comer conosco, um dia, o banquete perfeito e definitivo. Porém, a transição de um para o outro desses estágios de edificação não se dá facilmente, num único momento histórico, ainda que seja o de um avivamento. Aprouve a Deus encerrar num contexto muito mais amplo a experiência que o salmista expressou: "A minha alma suspira e desfalece pelos átrios do Senhor; o meu coração e a minha carne exultam pelo Deus vivo! O pardal encontrou casa, e a andorinha, ninho para si [...] eu, os teus altares, Senhor dos Exércitos" (Sl 84:2-3).