Em Mateus 16:16-18, lemos: “Simão Pedro disse: Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo. Então, Jesus lhe afirmou: Bem-aventurado és, Simão Barjonas, porque não foi carne e sangue que to revelaram, mas meu Pai, que está nos céus. Também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela”.
O breve e fundamental diálogo de Jesus com Simão em Cesareia de Filipe foi tomado, pelo Catolicismo Romano, como esteio principal da reivindicação de que Pedro é o fundamento da igreja. Para os católicos, a rocha sobre a qual Jesus afirmou que edificaria sua igreja é o apóstolo Pedro, que teria morrido em Roma e sido sucedido por uma série de bispos locais, mais tarde conhecidos como Papas. Essa sequência de líderes, no entender dos católicos, estende-se até os nossos dias.
Quando foi Prefeito da Sagrada Congregação para a Defesa da Fé, o Papa Bento XVI escreveu três textos e revisou as notas de diversas conferências que proferiu sobre o primado de Pedro a partir de Mateus 16:18, formando com eles o livro Compreender a igreja hoje (RATZINGER, Joseph. 2ª ed., Petrópolis: Vozes, 2005). Nas palavras do Papa, essa obra traça “o fio condutor da Eclesiologia católica” (idem. p. 7).
Dentre os argumentos que Ratzinger emprega em favor da interpretação católica de Mateus 16:18, destaca-se a relação do dito de Jesus sobre a rocha com a narrativa autobiográfica de Paulo em Gálatas 1:18—2:2: “Decorridos três anos, então, subi a Jerusalém para avistar-me com Cefas e permaneci com ele quinze dias [...] Catorze anos depois, subi outra vez a Jerusalém com Barnabé, levando também a Tito [...] e lhes expus o evangelho que prego entre os gentios, mas em particular aos que pareciam de maior influência [...] para, de algum modo, não correr ou ter corrido em vão”.
Ratzinger chama a atenção para três pontos nesses versículos: a primeira ida de Paulo a Jerusalém, após sua conversão, com o objetivo de se encontrar com Pedro, o emprego do nome aramaico Cefas para designar esse apóstolo e a frase final “para de algum modo não correr ou ter corrido em vão”. Na compreensão do Papa, o uso do aramaico indica que Paulo evocou a declaração de Jesus em Mateus 16:18. E a frase “para não correr ou ter corrido em vão” sugere que o trabalho realizado sem comunhão com as colunas de Jerusalém (G 2:9) tinha valor espiritual nulo. Ligando esses três pontos, Ratzinger chega à conclusão de que a proeminência de Pedro entre os apóstolos foi reconhecida por Paulo.
Os católicos não estão errados em afirmar que Mateus 16:18 está por trás da narrativa de Paulo. Na boca de um judeu cristão e ainda mais na do apóstolo Paulo, a inserção do aramaico Cefas, num texto grego como Gálatas, não pode ter sido despropositada. De fato, ela deve evocar a declaração de Jesus sobre a rocha.
Um dos argumentos mais fortes a favor da interpretação de que a rocha pode ser Pedro é o que procede por exclusão. Se não for Pedro, a rocha só pode ser a declaração de Pedro. Mas isso nos leva a indagar com muito maior cuidado qual foi, exatamente, essa declaração. Quando afirmam que a rocha é a confissão de que Jesus é o Cristo, os protestantes se esquecem de que Pedro concebia o Messias como um líder político. Esquecem-se de que ele cortou a orelha de Malco por isso e que, quando Jesus ia para Jerusalém pela última vez, Pedro lhe lembrou que podiam usar armas. Portanto, quando disse "Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo", Pedro pensava nesse Messias.
Em outras palavras, uma declaração não é apenas as palavras que alguém pronuncia, mas também a intenção com que as pronuncia. E a intenção de Pedro ao dizer "Tu és o Cristo" me parece bastante nítida. Portanto, se a entendermos também no sentido da sua intenção, a declaração de Mateus 16:18 estará longe do que se requer do verdadeiro fundamento da igreja.
Mas, ainda que venhamos a admitir tudo isso, devemos reconhecer que um é o sentido da declaração de Jesus sobre Pedro, e outro é o que a Igreja Católica medieval lhe atribuiu. Nas circunstâncias políticas e religiosas do primeiro século, os judeus exerciam forte resistência ao culto do Imperador, que Calígula tentou implantar no Templo de Jerusalém pouco antes de Paulo escrever sua Epístola aos Gálatas. Nesse contexto, a ideia de que um homem (Pedro) pudesse ser o fundamento da igreja dificilmente gozaria de aceitação entre os cristãos. Portanto, é errado reconhecer na frase de Paulo até mesmo o germe da doutrina católica do Papa.
Numa casa, o fundamento é ainda mais importante que a pedra angular, para prover solidez e sustentação. Efésios 2:20 menciona essas duas partes da casa de Deus: “edificados sobre o fundamento dos apóstolos e profetas, sendo ele mesmo, Cristo Jesus, a pedra angular”. Se Pedro e os apóstolos são o fundamento, e Cristo, a pedra angular, não é preciso dizer quem é o mais importante deles. Por isso, a expressão “fundamento dos apóstolos e profetas” deve ser entendida não como os próprios apóstolos e profetas, mas como a fundação lançada por eles, que é Cristo (1 Co 3:10-11).
O mesmo se aplica aos fundamentos da Nova Jerusalém, em que estão escritos os nomes dos doze apóstolos (Ap 21:14). Cada parte da cidade de Apocalipse tem significado simbólico. Não é diferente com os fundamentos. Os nomes dos apóstolos inscritos neles não simbolizam eles próprios, mas Cristo.
Jesus foi um mestre das parábolas, hipérboles e outras figuras de linguagem. Certa vez, ele foi acusado de expelir demônios pelo poder de Belzebu e respondeu a seus caluniadores com uma parábola: “Quando o espírito imundo sai do homem, anda por lugares áridos procurando repouso, porém não encontra. Por isso diz: Voltarei para minha casa, donde saí [...] Então, vai e leva consigo outros sete espíritos [...] e o último estado daquele homem torna-se pior do que o primeiro” (Mt 12:43-45).
Se alguém vacila em reconhecer nesses versos uma parábola, o fecho que Jesus lhes aplicou deve bastar para expelir toda dúvida. Ele disse: “Assim também acontecerá a esta geração perversa” (Mt 12:45). A casa à qual o espírito retorna é o homem, e o homem é a geração perversa. Ou se alguém preferir, a casa é um símbolo secundário, e o homem, um símbolo primário da geração perversa.
Não é muito diferente, em Mateus 16:18. A pedra mencionada por Cristo, nesse versículo, de fato representa Pedro, mas Pedro representa Cristo. Só esse Cristo, o Filho do Deus vivo, é o fundamento da igreja. O Pedro católico foi chamado "deus in terris". Esse título lhe foi atribuído, na Idade Média, e basta como evidência do endeusamento papal.
Mas precisamos reconhecer que a Igreja de Roma, há muito, tem abandonado o endeusamento do Papa, embora não totalmente, como a sua interpretação de Mateus 16:18 nos recorda. No entanto, outros Pedros, surgidos a partir do molde do católico, pois há tantos quantos homens foram endeusados, na História da Igreja, não passam de enganos. Embora menos notórios que o Papa, eles já o superam em nocividade. E, como a estátua de Calígula, todos eles atentam contra o único fundamento da igreja.