quarta-feira, 11 de julho de 2012

As Profecias e o Tempo (11): A Mulher e o Dragão

É comum se considerar que o dragão do Livro de Apocalipse representa Satanás. Em prol dessa interpretação, costuma-se invocar o capítulo 20 do livro, que se refere ao dragão, à serpente, ao Diabo e a Satanás como uma só pessoa (Ap 20:2), e ApocaIipse 12:9: "Foi expuIso o grande dragão, a antiga serpente, que se chama diabo e Satanás".
Porém, se considerarmos cuidadosamente a estrutura literária e os sentidos de Apocalipse, teremos de reconhecer que as visões do livro são formadas por símbolos que, como tais, não têm sentido literal. Não é diferente com o dragão, também denominado serpente, Diabo e Satanás, que aparece mencionado nos capítulos 12 e 20. Também ele é um símbolo e não o objeto representado pelo símbolo. Portanto, é de todo inegável que Satanás aparece em Apocalipse, mas como símbolo e não como o significado dele. E de uma coisa podemos estar certos: se todo símbolo é usado para representar algo diferente dele, a única certeza cabível a respeito do dragão é de que não representa o querubim a que o Novo Testamento se refere pelo nome de Satanás.
No capítulo 12 lemos: “Viu-se, também, outro sinal no céu, e eis um dragão, grande, vermelho, com sete cabeças, dez chifres e, nas cabeças, sete diademas" (Ap 12:3). Se o dragão não é Satanás, quem ele representa? A melhor resposta a essa pergunta é a que identifica o dragão com o Império Romano ou seus líderes. Não o Império histórico, pois esse é representado por outros símbolos, particularmente os do sexto selo de Apocalipse. Tampouco é a besta, já que o dragão tem várias diferenças em relação a ela. É, portanto, um ser intermediário, um ser existente entre o Império Romano histórico e a besta que emergirá do abismo.
Essa interpretação do dragão do capítulo 12 baseia-se em várias evidências. Primeiramente, o dragão contrapõe-se à mulher. Eles formam um par antagônico, pois têm atributos comuns, como a capacidade de se locomover do céu para a terra e vice-versa, mas o fazem com propósitos opostos. De modo que, se a mulher representa o povo de Deus dos séculos, é razoável entender que o dragão também seja uma entidade coletiva, porém maligna, a saber: os governantes que introduziram a adoração do Imperador, não no período da sua existência na Terra, mas da sua existência no hades.
O fato de a besta emergir do grande mar quando o dragão se posta na areia indica a relação entre os dois. A emersão da besta tem uma causa espiritual, invisível, que é a atuação intensificada do dragão na Terra. Isso parece indicar um retorno maciço das almas de governantes romanos do passado para o planeta, nos corpos de outras pessoas.
A assimilação do dragão a Roma parece bastante segura, mas é modificada pelo fato de ele e a mulher aparecerem ora no céu, ora na terra. Em Apocalipse, a capacidade de estar em lugares tão diferentes e passar de um para o outro é atribuída a seres não encarnados, assim como os anjos, que ora são mencionados no céu, ora na terra. Quando se refere a seres encarnados, assim como a besta, o falso profeta, as nações e vários outros, Apocalipse os faz atuar na terra e somente nela. Por isso, se a mulher e o dragão se movem do céu à terra, devemos concluir que o último é constituído por integrantes do Império Romano passados à condição angélica.
É de interesse que, em Apocalipse 12, por duas vezes, a mulher vai ao deserto, mas não o dragão. Após o nascimento do filho varão, ela “fugiu para o deserto, onde lhe havia Deus preparado lugar para que nele a sustentem durante mil duzentos e sessenta dias” (Ap 12:6). E novamente: “Foram dadas à mulher as duas asas da grande águia, para que voasse até ao deserto, ao seu lugar” (Ap 12:14). O fato de Deus ter preparado lugar para a mulher, no deserto, e ele ser denominado “seu” significa que o deserto foi especialmente modelado para recebê-la.
O deserto deve ser o hades, pois é lá que o povo de Deus permanece após a morte. Assim como as coisas da civilização não podem ser encontradas num deserto real, as coisas do presente mundo não estão no hades. O lugar preparado por Deus para a mulher deve ser entendido como uma seção especial do hades reservada aos que temem a Deus, mas destituída dos bens da presente vida. Na parábola do rico e de Lázaro, ele é denominado seio de Abraão (Lc 16:22). Na cruz, Jesus o chamou paraíso (Lc 23:43). Embora seja capaz de ir ao céu, o dragão não pode entrar nesse lugar, pois ele foi reservado à mulher (Ap 12:14-17).
A cauda do dragão arrasta a terça parte das estrelas (Ap 12:4). Esse dado é normalmente interpretado como alusão ao levante de Satanás. Porém, não creio que seja essa a lição do versículo, pois a visão que João teve refere-se a fatos futuros (Ap 12:4). Portanto, a rebelião de Lúcifer é o símbolo, não o significado dele.
A cauda é usada pelos animais para golpear uma presa ou um adversário sem que ele o perceba. Tanto os gafanhotos semelhantes a escorpiões como os cavalos do capítulo 9 de Apocalipse usam suas caudas para desferir golpes (Ap 9:3,5,19). Não é diferente com o dragão, que precipita os anjos por um movimento da sua cauda. Os anjos precipitados pelo dragão são seres corrompidos pelas hordas espirituais romanas, ao longo da História. A terra e o mar em que eles são precipitados (Ap 12:12) não são o planeta inteiro, mas as vizinhanças da Terra Santa e o Mar Mediterrâneo, como o profeta João os denominava.
Como tem a capacidade de passar do céu à terra e desta de novo ao céu, o dragão coloca-se perante a mulher na iminência de dar à luz no céu (Ap 12:2-3), mas é expulso de lá, por Miguel e seus anjos (Ap 12:7,9). Estes não são o arcanjo de mesmo nome e outros ministros celestes de Deus. São os que creem em Cristo, cujas vestes foram lavadas no sangue do Cordeiro. Por isso se diz que Miguel e os seus anjos pelejam contra o dragão, e os que foram lavados no sangue do Cordeiro o vencem (Ap 12:7,11). Miguel e os que foram lavados no sangue de Cristo são uma só entidade. Após o triunfo deles, não se permite mais ao dragão entrar no céu (Ap 12:8).
A expulsão do dragão é o primeiro ato do julgamento divino contra ele. O segundo é o acorrentamento no abismo durante mil anos, em Apocalipse 20:1-2. Esse abismo é o mesmo do qual a besta procede (Ap 17:8). Assim como os justos têm um lugar reservado por Deus (o deserto) em que outros não têm autorização para entrar, o abismo é o lugar em que os espíritos maus permanecem presos.
As sete cabeças do dragão são os reis mencionados pelo anjo em Apocalipse 17:9-10. Eles são dispostos em duas sequências de cinco e dois. A primeira sequência é constituída pelos Imperadores Augusto, Tibério, Calígula, Cláudio e Nero. A outra, por Domiciano e Nerva. Claro que houve outros Imperadores maus, mas estes representam todos. Eles têm em comum o fato de terem sido deificados em vida.
Os chifres do dragão são reis com os quais os romanos se aliaram, à medida em que enfraqueceram. Nas suas notas sobre Apocalipse, Isaac Newton os identificou como os reis “dos vândalos e alanos, na Espanha e África; dos suevos, na Espanha; dos visigodos; dos alanos, na Gália; dos burgúndios; dos francos; dos bretões; dos hunos; dos lombardos” (As profecias do Apocalipse e o Livro de Daniel – as raízes do código da Bíblia. São Paulo: Pensamento, 2008. pp. 45 e seguintes). Assim como um animal usa os chifres para golpear outros, os romanos se serviram desses reis para enfrentar os seus inimigos. Até os próprios chifres se tornarem inimigos deles.
Muito se discute se os mil anos são literais e se a vinda de Cristo os precede ou sucede. Várias correntes escatológicas se originaram das soluções propostas para esses problemas. Porém, na época de João, nenhuma profecia mencionava extensões de tempo tão vastas. A Iigação com Salmo 90:4 (“Mil anos, aos teus olhos, são como o dia de ontem”) tampouco corresponde ao pensamento escatológico do primeiro século como refletido em Apocalipse. Não é comum esse livro se tecer com os fios poéticos dos Salmos, mas com os escatológicos de Daniel, Ezequiel, Joel e Zacarias.
Tudo isso mostra que o milênio não tem antecedente expresso na Bíblia. Portanto, eIe deve ligar-se aos períodos de mil anos da História Sagrada, com os quais o profeta João tinha intimidade. De fato, os tratos de Deus com o homem se dão no arcabouço formado por períodos de mil anos. De Adão até (o nascimento de) Noé decorreram mil anos; de Noé até (o nascimento de) Abraão, outros mil; de Abraão à primeira vitória de Israel sobre os cananeus, após o assentamento, ainda outros mil; dessa vitória ao fim da era dos profetas, no Antigo Testamento, mil; dali ao estabelecimento da maior Igreja da História, em Roma, mais mil; da formação da Igreja Romana aos reformadores, mil; e dos reformadores ao fim das 2.300 tardes e manhãs (Dn 8:13-14), que assinalam o fim dos tempos, os últimos mil. O tempo total abrangido nas Escrituras, de Adão ao último acontecimento datado do Antigo Testamento, perfaz sete períodos de mil anos. A extensão dos períodos não é imaginada ou presumida. É dada em paIavras cIaras.
O milênio é o oitavo e último período de (aproximadamente) mil anos, após aqueles sete. Aprouve a Deus dividir dessa forma a História. Se uma série de acontecimentos devia ter lugar, na etapa final do tempo bíblico, assim como a restauração da dinastia de Davi (Am 9:11), a paz sem precedentes em IsraeI (Is 65:18,25), o prolongamento de vida às nações (Dn 7:12), o reinado de um descendente de Davi sobre elas (Am 9:12) e uma mudança profunda na natureza (Is 11:6-9; 65:25), não havia sentido em essa única etapa ficar sem duração definida, ao contrário de todas as outras. Por isso, João mencionou mil anos como a extensão aproximada dela.
Logo após os mil anos, ocorre a invasão de Israel pela coligação mencionada em Ezequiel 38: “Gogue, da terra de Magogue, príncipe de Rôs, de Meseque e Tubal [...] persas e etíopes e Pute com eles [...] Gômer e todas as suas tropas; a casa de Togarma, da banda do norte” (Ez 38:2,5-6). Eles vêm “depois de muitos dias [...] à terra que se recuperou da espada, ao povo que se congregou dentre muitos povos sobre os montes de Israel [...] contra os que estão em repouso, que vivem seguros, que habitam, todos, sem muros e não têm ferrolhos nas portas” (Ez 38:8,11). Tudo isso ocorre “nos últimos dias” (Ez 38:16).
A profecia de Ezequiel é a primeira de cunho apocalíptico nas Escrituras. João a retoma expressamente: “Quando, porém, se completarem os mil anos, Satanás será solto da sua prisão e sairá a seduzir as nações que há nos quatro cantos da terra, Gogue e Magogue, a fim de reuni-las para a peleja” (Ap 20:7-8). Que peleja é essa, a não ser a invasão descrita em Ezequiel?
Sempre que recepciona um oráculo escatológico, João lhe mantém o sentido. É o que ocorre com as profecias de Daniel, que se entrelaçam, mas não conflitam com Apocalipse, e com o oráculo contra Gogue em Ezequiel 38 e 39. Por isso, a peleja a que João se refere é a mesma de Ezequiel. A libertação de Satanás, após os mil anos, se dá para que esse oráculo não fique sem cumprimento. João não concebia a terrível invasão chefiada por Gogue, num contexto em que o dragão estivesse preso. Somente o dragão, Roma na sua nova condição angélica, é responsável por enganar e insuflar as nações contra o povo de Deus, assim como Roma histórica determinara que povos do mundo todo perseguissem os cristãos. Por isso, é preciso soltá-lo para que o pano dos tempos desça sobre a última insurreição.
Quando isso acontece, o dragão, a antiga serpente, que se chama Diabo e Satanás, é lançado no lago de fogo (Ap 20:10), onde a besta e o falso profeta já estavam (Ap 19:20). A diferença entre esse acontecimento e o juízo final (Ap 20:11-15) é que ele não é precedido de um julgamento. No grande trono branco, livros são abertos, obras, analisadas, mérito e demérito, sopesados. O mesmo não ocorre nos casos do dragão, da besta e do falso profeta. Ficamos com a impressão de que, simplesmente, não há o que se analisar. Trata-se de consumar a questão, de pôr um ponto final na ação pecaminosa dessa tríade do mal, o que se realiza por meio do lago que arde com fogo e enxofre.