A interpretação de Apocalipse passou por várias etapas, durante as quais prevaleceram entendimentos diversos, quase sempre sugeridos por acontecimentos passados. Quando o livro foi escrito, o senso de que seus símbolos representavam Roma e seus Imperadores dominava as mentalidades. Mas quando Roma perdeu poder, a identificação das profecias com o seu Império se tornou mais genérica. A besta passou a ser vista como os povos latinos ou os seus descendentes, já que a palavra latheinos, em grego, tem valor numérico 666. E, quando o Papa se tornou independente do Imperador de Bizâncio e constituiu um Estado cada vez mais dominante, tornou-se comum identificá-lo com Anticristo ou com a grande meretriz do capítulo 17 do livro. Os reformadores do século XVI chegaram a denunciar o Papa como Anticristo. E, no século XIX, Alexander Hislop escreveu: “A mente protestante iluminada jamais teve dificuldade de identificar a mulher que se assenta sobre as sete colinas cujo nome escrito na fronte é ‘Mistério Babilônia, a Grande’ com a apostasia romana” (HISLOP, Alexander. The two Babylons. Introduction, p. 4. Disponível em www.biblebelievers.com).
Esses dados mostram que a tendência a interpretar as profecias com base na História recente é importante e benéfica, mas não deve ser exagerada. A História é um precioso auxiliar, mas não o fator preponderante da interpretação escatológica. Os símbolos de Apocalipse têm relação tão forte uns com os outros que o seu sentido não pode ser determinado somente por acontecimentos históricos. Por exemplo: a mulher é uma espécie simbólica cujo significado depende das suas aparições no livro de João, isto é, da mulher vestida do sol, no capítulo 12, e da prostituta do décimo-sétimo. Não faz sentido uma dessas mulheres significar uma coletividade humana (por exemplo, o povo de Deus), e a outra, algo totalmente diverso, ainda que a História o sugira.
No quadro simbólico de Apocalipse, a prostituta tem estreita relação com a besta. Se esta aparece no sétimo selo (ao qual o capítulo 13 pertence), não é possível desvinculá-la do Império Romano. Afinal, todos os sete selos referem-se a Roma. A despeito dos acontecimentos históricos, essa relação entre os símbolos deve ser preservada.
Outra relação importante é a que se estabelece entre a mulher vestida do sol, a meretriz e o deserto. A primeira representa o povo de Deus dos séculos. Após dar à luz o filho varão, ela se refugia no deserto (Ap 12:5-6), onde aguarda a manifestação final de Cristo. Esse lugar (o deserto) em que o povo de Deus aguarda o retorno de Cristo deve ser o hades. Portanto, o fato de a segunda mulher e a besta terem sido vistas por João no deserto pode indicar que a aliança entre elas se forma no período pós-morte.
Apocalipse 17:18 revela claramente a identidade da meretriz: “A mulher que viste é a grande cidade que reina sobre os reis da terra”. No contexto da época, essa grande cidade só podia ser Roma. Não obviamente suas ruas e praças, mas sua classe dominante, a aristocracia romana, que praticamente governava o mundo e dava ordens aos reis. Embora a cidade de Roma ainda exista, a aristocracia que criou e manteve o culto dos Imperadores (a prostituição espiritual) não está mais na Terra. No entanto, isso não revoga o fato de ter desempenhado o papel da grande meretriz, que será futuramente julgada por Deus, seja na Terra, seja no hades.
A prostituição espiritual de Roma foi extremamente grave, como demonstrado pelo episódio em que Caio Calígula tentou se fazer adorar como deus, no Templo de Jerusalém. Fílon de Alexandria deixou um relato dramático da trama que envolveu esse intento imperial: “Caio começou por querer passar por semideus, como Baco, Hércules, Castor e Pollux, Tristão, Anfiauro, Anfíloco e outros [...] Mas a loucura de Caio não se deteve. Foi pouco para ele igualar-se aos semideuses; ele quis mesmo igualar-se aos deuses. Começou por querer passar por Mercúrio [...] Outra vez, para se parecer com Apolo, coroou a cabeça com uma auréola [...] Os judeus foram os únicos capazes de se opor aos seus desígnios, pois desde a infância aprenderam de seus antepassados, por uma constante tradição e ainda mais por suas santas leis, que existe um só Deus [...] À luz dessas ideias, não poderia haver empreendimento mais ousado e mais ímpio do que pretender trocar um homem mortal num deus imortal [...] No entanto, o Imperador [Calígula] ordenou que se colocasse a sua estátua no santuário [de Jerusalém] e que se escrevesse na coluna o nome de Júpiter” (Relato de Fílon. In Josefo, Flávio. História dos Hebreus – obra completa. 5ª ed., Rio de Janeiro: CPAD, 1999. pp. 764-766,771) .
Tal foi a prostituição da grande Babilônia. Simplesmente, não é possível confundi-la com os atos do Papa ou da Igreja Católica. Nem aquele, nem esta é a grande Babilônia. O poder que produziu e comandou o culto ao Imperador, somente ele, o é. Por isso, ele é comparado à Babilônia do Antigo Testamento e, ao mesmo tempo, diferenciado dela por uma palavra: grande. Roma é, no Novo Testamento, o que Babilônia foi para a idolatria no Antigo, com a única diferença de que a sua obra maligna é muito mais profunda. Por isso, a nova Babilônia é chamada grande em comparação com a antiga. Por isso também, o seu nome não é só um símbolo, como os outros nomes, mas também um mistério (Ap 17:5).
Essa é a mulher que cavalga a besta. O fato de Anticristo ser um poder vindouro implica que a mulher também o é. Do contrário, não lhe seria possível cavalgar a besta. Muito menos ser destruída pelos dez governantes representados pelos chifres desta. Mas isso não significa que uma aristocracia como a da época em que Roma governou o orbe será restaurada ou assumirá função análoga à que teve no primeiro século. A mulher é a cidade de Roma (Ap 17:18), que existiu no passado, existe hoje e existirá no futuro. Os governantes de Roma vindoura, não os do passado ou os do presente, é que montarão a besta, provavelmente por meio de acordos internacionais.
A meretriz, porém, não é qualquer governante. Ela é um símbolo dos governantes prostituídos pela adoração ao Imperador. Como essa adoração ocorreu no passado e não há garantia bíblica de que será explicitamente retomada no futuro, é preciso supor que um dos líderes da adoração a César, nos primeiros séculos, retornará ao mundo como governante da grande cidade. É o que significa a besta, o oitavo rei, emergir do abismo, o lugar dos mortos.
No texto sobre Anticristo, vimos que a besta deve ser Nero, e o fato de ele retornar à Terra e assumir o governo de Roma e seus domínios basta para atribuir a esse poder restaurado o significado de uma prostituição espiritual. Como chefe do movimento que implantou a prostituição, Nero não pode senão representá-la. Não pode também deixar de trazê-la de volta. Só não sabemos em que medida o fará e se a restauração do movimento idólatra será visível, ostensiva e formal, como foi nos primeiros séculos. Como já disse, o fato de Nero reviver e assumir o governo de Roma basta para tornar seu governo uma forma de prostituição.
Apocalipse foi escrito para mostrar que os pecados não ficarão impunes. E que aos maiores pecados corresponderão os maiores juízos. “Quem é injusto, faça injustiça ainda: e quem está sujo, suje-se ainda; e quem é justo, faça justiça ainda; e quem é santo, santifique-se ainda. Eis que cedo venho e está comigo a minha recompensa, para retribuir a cada um segundo a sua obra” (Ap 22:11-12). A prostituição da grande Babilônia é a maior de todas as injustiças, e a resistência a ela, um dos mais heróicos capítulos da História.