A edificação e a restauração da igreja constituem tarefas coletivas. No entanto, as Escrituras sempre fundam o coletivo no individual, não o contrário. Efésios 4:16 afirma que a edificação do corpo de Cristo ocorre “segundo a justa cooperação de cada parte”. 1ª de Pedro 2:5, por sua vez, acrescenta que “como pedras vivas” é que “somos edificados casa espiritual”. Tanto a justa cooperação de cada um como a condição de pedra viva são pessoais, o que indica que não há edificação com desrespeito à constituição individual do ser humano.
A parábola do homem que construiu sua casa sobre a rocha ensina como se dá essa edificação: “Todo aquele que vem a mim e ouve as minhas palavras e as pratica, eu vos mostrarei a quem é semelhante. É semelhante a um homem prudente que, edificando uma casa, cavou, abriu profunda vala e lançou o alicerce sobre a rocha; e, vindo a enchente, arrojou-se o rio contra aquela casa e não a pôde abalar, por ter sido bem construída. Mas o que ouve e não pratica é semelhante a um homem que edificou uma casa sobre a terra sem alicerces, e arrojando-se o rio contra ela, logo desabou; e aconteceu que foi grande a ruína daquela casa” (Lc 6:47-49).
Pouco antes de Jesus nascer, Herodes, o Grande, deflagrou o maior surto de construções da História da Palestina até então. A enorme quantidade de edifícios públicos erguida por aquele rei produziu um aumento nunca antes visto do fluxo de riquezas para a Palestina e fez crescer consideravelmente o número de pessoas abastadas na população. Esse fluxo levou à edificação de construções particulares ainda mais numerosas, pelos trabalhadores envolvidos nos empreendimentos públicos, até a grande catástrofe do ano 70, causada pelas pretensões desmedidas da classe rica em expansão, como Josefo bem esclarece.
Nesse contexto, construções sólidas e defeituosas encheram a paisagem da Terra Santa. Não foram poucos os desabamentos de residências e pequenas construções causados pelo mau emprego da arte da edificação. Por ter sido um tekton (carpinteiro ou pedreiro em grego), Jesus deve ter-se engajado pessoalmente no surto de construções da época e adquirido um conhecimento bastante especializado sobre ele. Esse conhecimento foi resumido na afirmação dos resultados opostos das técnicas de construção com e sem fundamento.
O problema do segundo edificador da parábola não consiste em ter edificado a sua casa sobre a terra, mas em não ter usado alicerces. Isso indica que, se a rocha é a palavra de Cristo, a terra também o é. Ou passando do símbolo à realidade, o insensato não ouve a palavra do homem ou da serpente; tampouco fracassa por usar materiais errados, como o crente que se utiliza de madeira, feno e palha em 1ª aos Coríntios 3:10-11. Ele malogra, por causa do modo como constroi no lugar certo e com os materiais adequados, isto é, por usar a técnica de edificação errada.
Essa técnica representa o modo como tomamos a palavra de Cristo. As traduções do Novo Testamento que conhecemos dão a impressão imperfeita de que o dilema que a parábola enfoca se estabelece entre praticar e não praticar as palavras de Cristo. No entanto, o que o texto apresenta é antes a oposição entre dois modos de se tomar aquelas palavras.
O verbo traduzido praticar, em Mateus e Lucas, é poiéo, que é considerado sinônimo de prassó. Porém, em autores sofisticados, como Paulo, pode acontecer de as duas palavras aparecerem na mesma frase, com sentidos levemente contrastantes (Rm 1:32; 7:15). Em Efésios 2:10, o termo traduzido feitura (“pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras”) é a forma substantiva de poiéo e se presta a indicar um ato criador de Deus. Rienecker-Rogers informam que, nesse caso, poíema "pode ter a conotação de obra de arte, especialmente um produto poético" (RIENECKER, Fritz e ROGERS, Cleon. Chave linguística do Novo Testamento grego. São Paulo: Vida Nova, 1988. p. 389).
É provável que uma atividade criadora semelhante esteja implicada em Lucas 6:48. A intenção de Jesus não foi que reproduzíssemos ou refletíssemos as suas palavras no nosso comportamento, assim como o espelho reflete a luz. Isso seria imitação. Jesus e Paulo jamais nos exortaram a desempenhar uma repetição mecânica dos comportamentos recomendados pelo Novo Testamento. Eles nos concitaram, ao contrário, a criar experiências de vida inéditas com a matéria das palavras de Cristo.
Essa novidade grandiosa é representada pelo “novo nome” inscrito na pedrinha branca, que o vencedor da igreja em Pérgamo recebe do próprio Cristo. Ninguém conhece esse nome, a não ser aquele a quem Jesus o concede (Ap 2:17). A pequena pedra é o crente individual, que cria novas experiências com as palavras de Cristo. Esse ato do homem crente não é o fazer criador de Gênesis 1, mas o novo fazer criador de Deus por meio do homem.
Essa é a genuína preparação das pedras para a construção do edifício de Deus, longe do lugar em que será erguido: "Edificava-se a casa com pedras já preparadas nas pedreiras, de maneira que nem martelo, nem machado, nem instrumento algum de ferro se ouviu na casa quando a edificavam" (1 Rs 6:7). Podemos indagar como as pedras puderam ser cortadas e trabalhadas, nas pedreiras, no formato necessário para se encaixar umas nas outras depois. Tudo indica que uma argamassa tenha sido utilizada para encaixá-las, ao serem utilizadas na edificação propriamente dita. Portanto, a edificação não envolve a modelação do individual ao coletivo, mas a sua preservação. Edificar não é modelar o individual ao coletivo, nem o coletivo ao individual. É levar essas duas dimensões do templo de Deus a uma harmonia superior e máxima.
terça-feira, 31 de julho de 2012
sexta-feira, 27 de julho de 2012
O Único Fundamento
Em Mateus 16:16-18, lemos: “Simão Pedro disse: Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo. Então, Jesus lhe afirmou: Bem-aventurado és, Simão Barjonas, porque não foi carne e sangue que to revelaram, mas meu Pai, que está nos céus. Também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela”.
O breve e fundamental diálogo de Jesus com Simão em Cesareia de Filipe foi tomado, pelo Catolicismo Romano, como esteio principal da reivindicação de que Pedro é o fundamento da igreja. Para os católicos, a rocha sobre a qual Jesus afirmou que edificaria sua igreja é o apóstolo Pedro, que teria morrido em Roma e sido sucedido por uma série de bispos locais, mais tarde conhecidos como Papas. Essa sequência de líderes, no entender dos católicos, estende-se até os nossos dias.
Quando foi Prefeito da Sagrada Congregação para a Defesa da Fé, o Papa Bento XVI escreveu três textos e revisou as notas de diversas conferências que proferiu sobre o primado de Pedro a partir de Mateus 16:18, formando com eles o livro Compreender a igreja hoje (RATZINGER, Joseph. 2ª ed., Petrópolis: Vozes, 2005). Nas palavras do Papa, essa obra traça “o fio condutor da Eclesiologia católica” (idem. p. 7).
Dentre os argumentos que Ratzinger emprega em favor da interpretação católica de Mateus 16:18, destaca-se a relação do dito de Jesus sobre a rocha com a narrativa autobiográfica de Paulo em Gálatas 1:18—2:2: “Decorridos três anos, então, subi a Jerusalém para avistar-me com Cefas e permaneci com ele quinze dias [...] Catorze anos depois, subi outra vez a Jerusalém com Barnabé, levando também a Tito [...] e lhes expus o evangelho que prego entre os gentios, mas em particular aos que pareciam de maior influência [...] para, de algum modo, não correr ou ter corrido em vão”.
Ratzinger chama a atenção para três pontos nesses versículos: a primeira ida de Paulo a Jerusalém, após sua conversão, com o objetivo de se encontrar com Pedro, o emprego do nome aramaico Cefas para designar esse apóstolo e a frase final “para de algum modo não correr ou ter corrido em vão”. Na compreensão do Papa, o uso do aramaico indica que Paulo evocou a declaração de Jesus em Mateus 16:18. E a frase “para não correr ou ter corrido em vão” sugere que o trabalho realizado sem comunhão com as colunas de Jerusalém (G 2:9) tinha valor espiritual nulo. Ligando esses três pontos, Ratzinger chega à conclusão de que a proeminência de Pedro entre os apóstolos foi reconhecida por Paulo.
Os católicos não estão errados em afirmar que Mateus 16:18 está por trás da narrativa de Paulo. Na boca de um judeu cristão e ainda mais na do apóstolo Paulo, a inserção do aramaico Cefas, num texto grego como Gálatas, não pode ter sido despropositada. De fato, ela deve evocar a declaração de Jesus sobre a rocha.
Um dos argumentos mais fortes a favor da interpretação de que a rocha pode ser Pedro é o que procede por exclusão. Se não for Pedro, a rocha só pode ser a declaração de Pedro. Mas isso nos leva a indagar com muito maior cuidado qual foi, exatamente, essa declaração. Quando afirmam que a rocha é a confissão de que Jesus é o Cristo, os protestantes se esquecem de que Pedro concebia o Messias como um líder político. Esquecem-se de que ele cortou a orelha de Malco por isso e que, quando Jesus ia para Jerusalém pela última vez, Pedro lhe lembrou que podiam usar armas. Portanto, quando disse "Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo", Pedro pensava nesse Messias.
Em outras palavras, uma declaração não é apenas as palavras que alguém pronuncia, mas também a intenção com que as pronuncia. E a intenção de Pedro ao dizer "Tu és o Cristo" me parece bastante nítida. Portanto, se a entendermos também no sentido da sua intenção, a declaração de Mateus 16:18 estará longe do que se requer do verdadeiro fundamento da igreja.
Mas, ainda que venhamos a admitir tudo isso, devemos reconhecer que um é o sentido da declaração de Jesus sobre Pedro, e outro é o que a Igreja Católica medieval lhe atribuiu. Nas circunstâncias políticas e religiosas do primeiro século, os judeus exerciam forte resistência ao culto do Imperador, que Calígula tentou implantar no Templo de Jerusalém pouco antes de Paulo escrever sua Epístola aos Gálatas. Nesse contexto, a ideia de que um homem (Pedro) pudesse ser o fundamento da igreja dificilmente gozaria de aceitação entre os cristãos. Portanto, é errado reconhecer na frase de Paulo até mesmo o germe da doutrina católica do Papa.
Numa casa, o fundamento é ainda mais importante que a pedra angular, para prover solidez e sustentação. Efésios 2:20 menciona essas duas partes da casa de Deus: “edificados sobre o fundamento dos apóstolos e profetas, sendo ele mesmo, Cristo Jesus, a pedra angular”. Se Pedro e os apóstolos são o fundamento, e Cristo, a pedra angular, não é preciso dizer quem é o mais importante deles. Por isso, a expressão “fundamento dos apóstolos e profetas” deve ser entendida não como os próprios apóstolos e profetas, mas como a fundação lançada por eles, que é Cristo (1 Co 3:10-11).
O mesmo se aplica aos fundamentos da Nova Jerusalém, em que estão escritos os nomes dos doze apóstolos (Ap 21:14). Cada parte da cidade de Apocalipse tem significado simbólico. Não é diferente com os fundamentos. Os nomes dos apóstolos inscritos neles não simbolizam eles próprios, mas Cristo.
Jesus foi um mestre das parábolas, hipérboles e outras figuras de linguagem. Certa vez, ele foi acusado de expelir demônios pelo poder de Belzebu e respondeu a seus caluniadores com uma parábola: “Quando o espírito imundo sai do homem, anda por lugares áridos procurando repouso, porém não encontra. Por isso diz: Voltarei para minha casa, donde saí [...] Então, vai e leva consigo outros sete espíritos [...] e o último estado daquele homem torna-se pior do que o primeiro” (Mt 12:43-45).
Se alguém vacila em reconhecer nesses versos uma parábola, o fecho que Jesus lhes aplicou deve bastar para expelir toda dúvida. Ele disse: “Assim também acontecerá a esta geração perversa” (Mt 12:45). A casa à qual o espírito retorna é o homem, e o homem é a geração perversa. Ou se alguém preferir, a casa é um símbolo secundário, e o homem, um símbolo primário da geração perversa.
Não é muito diferente, em Mateus 16:18. A pedra mencionada por Cristo, nesse versículo, de fato representa Pedro, mas Pedro representa Cristo. Só esse Cristo, o Filho do Deus vivo, é o fundamento da igreja. O Pedro católico foi chamado "deus in terris". Esse título lhe foi atribuído, na Idade Média, e basta como evidência do endeusamento papal.
Mas precisamos reconhecer que a Igreja de Roma, há muito, tem abandonado o endeusamento do Papa, embora não totalmente, como a sua interpretação de Mateus 16:18 nos recorda. No entanto, outros Pedros, surgidos a partir do molde do católico, pois há tantos quantos homens foram endeusados, na História da Igreja, não passam de enganos. Embora menos notórios que o Papa, eles já o superam em nocividade. E, como a estátua de Calígula, todos eles atentam contra o único fundamento da igreja.
O breve e fundamental diálogo de Jesus com Simão em Cesareia de Filipe foi tomado, pelo Catolicismo Romano, como esteio principal da reivindicação de que Pedro é o fundamento da igreja. Para os católicos, a rocha sobre a qual Jesus afirmou que edificaria sua igreja é o apóstolo Pedro, que teria morrido em Roma e sido sucedido por uma série de bispos locais, mais tarde conhecidos como Papas. Essa sequência de líderes, no entender dos católicos, estende-se até os nossos dias.
Quando foi Prefeito da Sagrada Congregação para a Defesa da Fé, o Papa Bento XVI escreveu três textos e revisou as notas de diversas conferências que proferiu sobre o primado de Pedro a partir de Mateus 16:18, formando com eles o livro Compreender a igreja hoje (RATZINGER, Joseph. 2ª ed., Petrópolis: Vozes, 2005). Nas palavras do Papa, essa obra traça “o fio condutor da Eclesiologia católica” (idem. p. 7).
Dentre os argumentos que Ratzinger emprega em favor da interpretação católica de Mateus 16:18, destaca-se a relação do dito de Jesus sobre a rocha com a narrativa autobiográfica de Paulo em Gálatas 1:18—2:2: “Decorridos três anos, então, subi a Jerusalém para avistar-me com Cefas e permaneci com ele quinze dias [...] Catorze anos depois, subi outra vez a Jerusalém com Barnabé, levando também a Tito [...] e lhes expus o evangelho que prego entre os gentios, mas em particular aos que pareciam de maior influência [...] para, de algum modo, não correr ou ter corrido em vão”.
Ratzinger chama a atenção para três pontos nesses versículos: a primeira ida de Paulo a Jerusalém, após sua conversão, com o objetivo de se encontrar com Pedro, o emprego do nome aramaico Cefas para designar esse apóstolo e a frase final “para de algum modo não correr ou ter corrido em vão”. Na compreensão do Papa, o uso do aramaico indica que Paulo evocou a declaração de Jesus em Mateus 16:18. E a frase “para não correr ou ter corrido em vão” sugere que o trabalho realizado sem comunhão com as colunas de Jerusalém (G 2:9) tinha valor espiritual nulo. Ligando esses três pontos, Ratzinger chega à conclusão de que a proeminência de Pedro entre os apóstolos foi reconhecida por Paulo.
Os católicos não estão errados em afirmar que Mateus 16:18 está por trás da narrativa de Paulo. Na boca de um judeu cristão e ainda mais na do apóstolo Paulo, a inserção do aramaico Cefas, num texto grego como Gálatas, não pode ter sido despropositada. De fato, ela deve evocar a declaração de Jesus sobre a rocha.
Um dos argumentos mais fortes a favor da interpretação de que a rocha pode ser Pedro é o que procede por exclusão. Se não for Pedro, a rocha só pode ser a declaração de Pedro. Mas isso nos leva a indagar com muito maior cuidado qual foi, exatamente, essa declaração. Quando afirmam que a rocha é a confissão de que Jesus é o Cristo, os protestantes se esquecem de que Pedro concebia o Messias como um líder político. Esquecem-se de que ele cortou a orelha de Malco por isso e que, quando Jesus ia para Jerusalém pela última vez, Pedro lhe lembrou que podiam usar armas. Portanto, quando disse "Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo", Pedro pensava nesse Messias.
Em outras palavras, uma declaração não é apenas as palavras que alguém pronuncia, mas também a intenção com que as pronuncia. E a intenção de Pedro ao dizer "Tu és o Cristo" me parece bastante nítida. Portanto, se a entendermos também no sentido da sua intenção, a declaração de Mateus 16:18 estará longe do que se requer do verdadeiro fundamento da igreja.
Mas, ainda que venhamos a admitir tudo isso, devemos reconhecer que um é o sentido da declaração de Jesus sobre Pedro, e outro é o que a Igreja Católica medieval lhe atribuiu. Nas circunstâncias políticas e religiosas do primeiro século, os judeus exerciam forte resistência ao culto do Imperador, que Calígula tentou implantar no Templo de Jerusalém pouco antes de Paulo escrever sua Epístola aos Gálatas. Nesse contexto, a ideia de que um homem (Pedro) pudesse ser o fundamento da igreja dificilmente gozaria de aceitação entre os cristãos. Portanto, é errado reconhecer na frase de Paulo até mesmo o germe da doutrina católica do Papa.
Numa casa, o fundamento é ainda mais importante que a pedra angular, para prover solidez e sustentação. Efésios 2:20 menciona essas duas partes da casa de Deus: “edificados sobre o fundamento dos apóstolos e profetas, sendo ele mesmo, Cristo Jesus, a pedra angular”. Se Pedro e os apóstolos são o fundamento, e Cristo, a pedra angular, não é preciso dizer quem é o mais importante deles. Por isso, a expressão “fundamento dos apóstolos e profetas” deve ser entendida não como os próprios apóstolos e profetas, mas como a fundação lançada por eles, que é Cristo (1 Co 3:10-11).
O mesmo se aplica aos fundamentos da Nova Jerusalém, em que estão escritos os nomes dos doze apóstolos (Ap 21:14). Cada parte da cidade de Apocalipse tem significado simbólico. Não é diferente com os fundamentos. Os nomes dos apóstolos inscritos neles não simbolizam eles próprios, mas Cristo.
Jesus foi um mestre das parábolas, hipérboles e outras figuras de linguagem. Certa vez, ele foi acusado de expelir demônios pelo poder de Belzebu e respondeu a seus caluniadores com uma parábola: “Quando o espírito imundo sai do homem, anda por lugares áridos procurando repouso, porém não encontra. Por isso diz: Voltarei para minha casa, donde saí [...] Então, vai e leva consigo outros sete espíritos [...] e o último estado daquele homem torna-se pior do que o primeiro” (Mt 12:43-45).
Se alguém vacila em reconhecer nesses versos uma parábola, o fecho que Jesus lhes aplicou deve bastar para expelir toda dúvida. Ele disse: “Assim também acontecerá a esta geração perversa” (Mt 12:45). A casa à qual o espírito retorna é o homem, e o homem é a geração perversa. Ou se alguém preferir, a casa é um símbolo secundário, e o homem, um símbolo primário da geração perversa.
Não é muito diferente, em Mateus 16:18. A pedra mencionada por Cristo, nesse versículo, de fato representa Pedro, mas Pedro representa Cristo. Só esse Cristo, o Filho do Deus vivo, é o fundamento da igreja. O Pedro católico foi chamado "deus in terris". Esse título lhe foi atribuído, na Idade Média, e basta como evidência do endeusamento papal.
Mas precisamos reconhecer que a Igreja de Roma, há muito, tem abandonado o endeusamento do Papa, embora não totalmente, como a sua interpretação de Mateus 16:18 nos recorda. No entanto, outros Pedros, surgidos a partir do molde do católico, pois há tantos quantos homens foram endeusados, na História da Igreja, não passam de enganos. Embora menos notórios que o Papa, eles já o superam em nocividade. E, como a estátua de Calígula, todos eles atentam contra o único fundamento da igreja.
domingo, 22 de julho de 2012
As Igrejas e o Tempo
É comum os cristãos perguntarem se os apóstolos, profetas, evangelistas, pastores e mestres citados em Efésios 4:11 existiram apenas no primeiro século ou permanecem até hoje. A questão nos remete a outra maior: a de como os cristãos veem o tempo.
A verdade é que não poucos seguidores de Cristo consideram que as regras do passado bíblico devem impor-se ao presente e ao futuro, não importa quanto tempo transcorra. Seja em matéria de fé, seja em questões de conduta, essas pessoas consideram que as práticas da igreja primitiva são as únicas corretas, as únicas que não importam desobediência a Deus. É como se o eterno presente, em que Deus existe e que Santo Agostinho descreveu com propriedade e verve, uma vez projetado no mundo, se transformasse no eterno passado dos crentes.
Desconfio que essa resolução dos dilemas do tempo seja responsável por dois grandes males. O primeiro é a vontade furiosa de retorno ao século I que ela gera no mundo cristão; o outro é a admissão de que as instituições primitivas podem e devem ser superadas, desde que os princípios da igreja apostólica sejam mantidos. Essa segunda posição pode parecer perfeita, mas geralmente abre caminho para uma adesão tão forte a instituições de outras épocas quanto a que o primeiro grupo devota às do século I. Claro que me refiro à atitude das Igrejas históricas (Luterana, Anglicana, Presbiteriana, Metodista, Batista, entre outras), que adotam os princípios bíblicos e consideram normativos os ensinamentos de seus fundadores.
A indagação do sentido dos ofícios de Efésios 4:11 deve ser realizada com funda consciência desses dilemas. O versículo afirma: “Ele mesmo [Cristo] concedeu uns para apóstolos, outros para profetas, outros para evangelistas, e outros para pastores e mestres” (Ef 4:11). Embora as cinco tarefas citadas permaneçam essencialmente as mesmas, ao longo do tempo, o contexto em que se executam, hoje, é muito distinto do da igreja primitiva. Devemos reconhecer que essa mudança de circunstância impõe a necessidade de uma adaptação dos papeis de apóstolo, profeta, evangelista, pastor e mestre.
Assim, por exemplo, no primeiro século, a função dos apóstolos era promover a superação de barreiras geográficas à distribuição dos dons de Cristo à igreja. Comunidades entre si distantes não podiam se comunicar. Por isso, os apóstolos viajavam para levar até elas o que, de melhor, as outras igrejas possuíam em termos de alimento espiritual. Hoje, porém, as barreiras geográficas e de comunicação deixaram de ter a mesma relevância do primeiro século. Por isso, o apostolado passou por uma transformação, uma adaptação às novas circunstâncias. Hoje, ele consiste mais em comunicar o evangelho, à distância (intencionalmente, isto é, com o consentimento de quem o recebe), do que em viajar de lugar a lugar.
Transformações análogas se exigem nas operações de profetizar, pregar o evangelho, apascentar e ensinar. Aliás, tantas foram as mudanças que o tempo impôs às igrejas que, na maior parte delas, as próprias palavras apóstolo e profeta deixaram de ser empregadas para designar pessoas vivas, mulheres e homens da nossa época. Está isso errado? Não o creio. Cada época tem o seu léxico, e é sempre ajuizado respeitá-lo. As circunstâncias históricas tornaram e ainda tornam a omissão dos apóstolos e profetas necessária ou pelo menos útil. E tudo o que é necessário, assim como parte do que é útil permanece fora da seara pútrida do pecado.
Os termos evangelistas, pastores e mestres não caíram tanto em desuso quanto os de apóstolo e profeta, porque as funções a que se referem, ao contrário das destes, permanecem objetivamente definidas. Evangelista é quem anuncia o evangelho. Sabemos o que é o evangelho; logo, sabemos quem é evangelista. Pastor, no sentido moderno, é o líder ordenado de uma igreja evangélica: o clérigo protestante, que se distingue por exercer e centralizar o ministério da palavra. Já o mestre é o professor, o que dá aulas nos meios de comunicação e em instituições como seminários e escolas dominicais.
Não convém nos levantarmos contra as concepções atuais dos ofícios de Efésios 4:11, apenas porque se afastam do que era praticado no primeiro século. Melhor é respeitarmos as respostas que as comunidades desenvolvem às circunstâncias cambiantes da História. Se não podemos revogar ou sair da História, devemos aceitar as suas construções.
Ridículo é pretendermos que as funções de apóstolo, profeta, evangelista, pastor e mestre tenham de continuar a ser hoje o que eram no primeiro século, se a Bíblia é a primeira a atribuir sentidos cambiantes aos mandamentos e instituições que nos apresenta. Ou Moisés não ordenou, com veemência, que o violador do sábado e a mulher pega em adultério fossem mortos (Nm 15:32-36; Lv 20:10)? No entanto, ao descobrir a gravidez de Maria, sem saber, a princípio, que havia sido produzida pelo Espírito Santo, José não a expulsou, antes se retirou, ele próprio, de casa. O surpreendente para quem foi cultivado em concepções tradicionais é que a Escritura não afirma que o pai de Jesus o fez porque era injusto (descumpridor da lei), mas porque “era justo e não a queria infamar” (Mt 1:18-19). Semelhantemente, Jesus observou a lei judaica, mas não mandou matar seus discípulos por terem colhido espigas no sábado (Mt 12:1-8), nem a mulher pega em adultério (Jo 8:3-11).
Assim, se por nostalgia alguém quiser manter o antigo apóstolo, o profeta arcaico etc., deverá também restaurar a submissão da mulher ao homem e suspirar pelo retorno da escravidão, pois Paulo ordenou que ambas fossem observadas. Ou elas não estão na palavra de Deus? Enquanto não reintroduzem o antigo escravo e a servidão da mulher ao homem, porém, permitam-me lembrar que os restauradores do apóstolo e do profeta primitivos não possuem o crédito de que necessitam para que o seu ensinamento seja seguido.
Por falta de espaço, não multiplicarei os exemplos de superação de costumes e instituições bíblicos, na própria Bíblia, mas devo lembrar que as Escrituras sempre mostram a evolução de ambos. Aliás, a própria Bíblia muda. De maneira quase unânime, os judeus consideravam traduções do Antigo Testamento, a exemplo da Septuaginta, não como subordinadas ao original, mas como trabalhos do próprio Deus que, uma vez consumados (e aceitos pelo seu povo), adquiriam independência do texto hebraico. Não foi por outro motivo que os autores do Novo Testamento citaram passagens da Septuaginta por vezes divergentes, por vezes inconciliáveis com o hebraico. E foi pelo mesmo motivo que as variações entre as traduções, entre estas e o original e entre os próprios manuscritos originais eram todas tidas como divinamente inspiradas.
Quando o autor de Timóteo afirmou que “toda Escritura é inspirada por Deus” (2 Tm 3: 16), ao que tudo indica, era essa grande gama de textos variantes que ele tinha em mente. Creio, portanto, na inspiração literal da Bíblia, mas sob essa concepção bíblica. O que significa que a obediência às Escrituras não implica, nunca implicou, nem implicará no futuro a adoção cega das suas práticas e instituições, mas a adaptação delas às circunstâncias históricas cambiantes.
Os ofícios de Efésios 4:11 não escapam a essa regra. Por meio deles, Deus quis estabelecer um princípio imutável, assim como as Igrejas históricas reconhecem. A esse princípio, é que a fé se dirige, não às circunstâncias do primeiro século ou ao modelo antigo de apóstolo, profeta, evangelista, pastor e mestre. E penso que o princípio por trás de Efésios 4:11 é a destinação do trabalho de apóstolo, profeta, evangelista, pastor e mestre ao aperfeiçoamento dos santos, pois “ele mesmo concedeu uns para apóstolos [etc...] com vistas ao aperfeiçoamento dos santos para o desempenho do seu serviço, para a edificação do corpo de Cristo” (Ef 4:11-12).
Efésios subordina, claramente, os ofícios espirituais ao aperfeiçoamento dos santos, não à edificação da igreja. Isso significa que os ofícios têm finalidade individual, não coletiva. Os apóstolos do primeiro século, para nos atermos de novo a eles, não edificavam diretamente a igreja, mas aperfeiçoavam os santos para que o fizessem. Até porque o apóstolo viajava, e a edificação da igreja exigia a permanência das pessoas umas com as outras. A julgar pelos discursos diários de Paulo na escola de Tirano, pelo espaço de dois anos (At 19:9-10), ou pela fala na residência de Trôade, que se alongou até a alvorada (At 20:7,11), os apóstolos enquanto tais ministravam, muito mais do que recebiam o ministrar de outros, como acontece numa experiência de mutualidade.
Em flagrante contraste com o exemplo apostólico, porém, o que vemos os líderes cristãos realizarem, hoje, é muitas vezes moldar, conformar os indivíduos não a Jesus Cristo, mas às tradições, às práticas e às doutrinas sejam do primeiro século, sejam posteriores. E, ainda mais do que tudo isso, vemo-los enfiar as pessoas a todo custo nos moldes do pensamento homogêneo que tanto caracteriza o rebanho cristão, as igrejas e os ministérios. Ou enfiar os moldes nas pessoas, conforme o caso. Ou ainda as duas coisas ao mesmo tempo, dirão os mais severos críticos, entre os quais espero não me incluir.
O que há de mal nesses fatos não é o afastamento das instituições atuais em relação às que vemos representadas na Bíblia, como tanto e com tanto furor se denuncia. O mal é o líder cristão ter-se especializado em conformar o indivíduo à massa, o individual ao coletivo, o peculiar ao genérico. Essa atividade não apenas dos líderes, mas das instituições cristãs não deixa de produzir a demolição do indivíduo como tal e a exaltação da coletividade no espaço que o cortejo fúnebre dele inaugura solenemente.
Não há como não se reconhecer, na adesão deliberada a essa prática, uma forma de pecado. E que a Bíblia é reduzida por ela a uma jazida de matérias-primas de interpretações literais que, por definição, só podem enxergar no presente a traição do passado. Nessa visão míope, a violação do passado “no tempo que se chama hoje” é alegada, representada, denunciada como pecado, e a alegação, e a representação, e a denúncia servem de timbre do caráter celeste dos ministérios.
Há não muito tempo, um autor chamado Frank Viola lançou um livro de denúncias de praticamente todas as igrejas cristãs, por se terem apartado das práticas e instituições bíblicas. Não duvido da veracidade de boa parte do repertório de informações históricas que o livro traz ou da importância da pesquisa do passado para que a fé cristã se mantenha como verdade presente. Mas o problema simples da vociferante denúncia de Viola é esquecer-se de que não podemos achar no presente a não ser ele próprio. Jamais o passado. Isso é inescapável para o homem. É próprio da condição humana. É um traço que Deus descreveu na areia do tempo para não ser ultrapassado, já que arredar um milímetro da condição humana é flertar com o pecado e conversar com a serpente.
A verdade é que não poucos seguidores de Cristo consideram que as regras do passado bíblico devem impor-se ao presente e ao futuro, não importa quanto tempo transcorra. Seja em matéria de fé, seja em questões de conduta, essas pessoas consideram que as práticas da igreja primitiva são as únicas corretas, as únicas que não importam desobediência a Deus. É como se o eterno presente, em que Deus existe e que Santo Agostinho descreveu com propriedade e verve, uma vez projetado no mundo, se transformasse no eterno passado dos crentes.
Desconfio que essa resolução dos dilemas do tempo seja responsável por dois grandes males. O primeiro é a vontade furiosa de retorno ao século I que ela gera no mundo cristão; o outro é a admissão de que as instituições primitivas podem e devem ser superadas, desde que os princípios da igreja apostólica sejam mantidos. Essa segunda posição pode parecer perfeita, mas geralmente abre caminho para uma adesão tão forte a instituições de outras épocas quanto a que o primeiro grupo devota às do século I. Claro que me refiro à atitude das Igrejas históricas (Luterana, Anglicana, Presbiteriana, Metodista, Batista, entre outras), que adotam os princípios bíblicos e consideram normativos os ensinamentos de seus fundadores.
A indagação do sentido dos ofícios de Efésios 4:11 deve ser realizada com funda consciência desses dilemas. O versículo afirma: “Ele mesmo [Cristo] concedeu uns para apóstolos, outros para profetas, outros para evangelistas, e outros para pastores e mestres” (Ef 4:11). Embora as cinco tarefas citadas permaneçam essencialmente as mesmas, ao longo do tempo, o contexto em que se executam, hoje, é muito distinto do da igreja primitiva. Devemos reconhecer que essa mudança de circunstância impõe a necessidade de uma adaptação dos papeis de apóstolo, profeta, evangelista, pastor e mestre.
Assim, por exemplo, no primeiro século, a função dos apóstolos era promover a superação de barreiras geográficas à distribuição dos dons de Cristo à igreja. Comunidades entre si distantes não podiam se comunicar. Por isso, os apóstolos viajavam para levar até elas o que, de melhor, as outras igrejas possuíam em termos de alimento espiritual. Hoje, porém, as barreiras geográficas e de comunicação deixaram de ter a mesma relevância do primeiro século. Por isso, o apostolado passou por uma transformação, uma adaptação às novas circunstâncias. Hoje, ele consiste mais em comunicar o evangelho, à distância (intencionalmente, isto é, com o consentimento de quem o recebe), do que em viajar de lugar a lugar.
Transformações análogas se exigem nas operações de profetizar, pregar o evangelho, apascentar e ensinar. Aliás, tantas foram as mudanças que o tempo impôs às igrejas que, na maior parte delas, as próprias palavras apóstolo e profeta deixaram de ser empregadas para designar pessoas vivas, mulheres e homens da nossa época. Está isso errado? Não o creio. Cada época tem o seu léxico, e é sempre ajuizado respeitá-lo. As circunstâncias históricas tornaram e ainda tornam a omissão dos apóstolos e profetas necessária ou pelo menos útil. E tudo o que é necessário, assim como parte do que é útil permanece fora da seara pútrida do pecado.
Os termos evangelistas, pastores e mestres não caíram tanto em desuso quanto os de apóstolo e profeta, porque as funções a que se referem, ao contrário das destes, permanecem objetivamente definidas. Evangelista é quem anuncia o evangelho. Sabemos o que é o evangelho; logo, sabemos quem é evangelista. Pastor, no sentido moderno, é o líder ordenado de uma igreja evangélica: o clérigo protestante, que se distingue por exercer e centralizar o ministério da palavra. Já o mestre é o professor, o que dá aulas nos meios de comunicação e em instituições como seminários e escolas dominicais.
Não convém nos levantarmos contra as concepções atuais dos ofícios de Efésios 4:11, apenas porque se afastam do que era praticado no primeiro século. Melhor é respeitarmos as respostas que as comunidades desenvolvem às circunstâncias cambiantes da História. Se não podemos revogar ou sair da História, devemos aceitar as suas construções.
Ridículo é pretendermos que as funções de apóstolo, profeta, evangelista, pastor e mestre tenham de continuar a ser hoje o que eram no primeiro século, se a Bíblia é a primeira a atribuir sentidos cambiantes aos mandamentos e instituições que nos apresenta. Ou Moisés não ordenou, com veemência, que o violador do sábado e a mulher pega em adultério fossem mortos (Nm 15:32-36; Lv 20:10)? No entanto, ao descobrir a gravidez de Maria, sem saber, a princípio, que havia sido produzida pelo Espírito Santo, José não a expulsou, antes se retirou, ele próprio, de casa. O surpreendente para quem foi cultivado em concepções tradicionais é que a Escritura não afirma que o pai de Jesus o fez porque era injusto (descumpridor da lei), mas porque “era justo e não a queria infamar” (Mt 1:18-19). Semelhantemente, Jesus observou a lei judaica, mas não mandou matar seus discípulos por terem colhido espigas no sábado (Mt 12:1-8), nem a mulher pega em adultério (Jo 8:3-11).
Assim, se por nostalgia alguém quiser manter o antigo apóstolo, o profeta arcaico etc., deverá também restaurar a submissão da mulher ao homem e suspirar pelo retorno da escravidão, pois Paulo ordenou que ambas fossem observadas. Ou elas não estão na palavra de Deus? Enquanto não reintroduzem o antigo escravo e a servidão da mulher ao homem, porém, permitam-me lembrar que os restauradores do apóstolo e do profeta primitivos não possuem o crédito de que necessitam para que o seu ensinamento seja seguido.
Por falta de espaço, não multiplicarei os exemplos de superação de costumes e instituições bíblicos, na própria Bíblia, mas devo lembrar que as Escrituras sempre mostram a evolução de ambos. Aliás, a própria Bíblia muda. De maneira quase unânime, os judeus consideravam traduções do Antigo Testamento, a exemplo da Septuaginta, não como subordinadas ao original, mas como trabalhos do próprio Deus que, uma vez consumados (e aceitos pelo seu povo), adquiriam independência do texto hebraico. Não foi por outro motivo que os autores do Novo Testamento citaram passagens da Septuaginta por vezes divergentes, por vezes inconciliáveis com o hebraico. E foi pelo mesmo motivo que as variações entre as traduções, entre estas e o original e entre os próprios manuscritos originais eram todas tidas como divinamente inspiradas.
Quando o autor de Timóteo afirmou que “toda Escritura é inspirada por Deus” (2 Tm 3: 16), ao que tudo indica, era essa grande gama de textos variantes que ele tinha em mente. Creio, portanto, na inspiração literal da Bíblia, mas sob essa concepção bíblica. O que significa que a obediência às Escrituras não implica, nunca implicou, nem implicará no futuro a adoção cega das suas práticas e instituições, mas a adaptação delas às circunstâncias históricas cambiantes.
Os ofícios de Efésios 4:11 não escapam a essa regra. Por meio deles, Deus quis estabelecer um princípio imutável, assim como as Igrejas históricas reconhecem. A esse princípio, é que a fé se dirige, não às circunstâncias do primeiro século ou ao modelo antigo de apóstolo, profeta, evangelista, pastor e mestre. E penso que o princípio por trás de Efésios 4:11 é a destinação do trabalho de apóstolo, profeta, evangelista, pastor e mestre ao aperfeiçoamento dos santos, pois “ele mesmo concedeu uns para apóstolos [etc...] com vistas ao aperfeiçoamento dos santos para o desempenho do seu serviço, para a edificação do corpo de Cristo” (Ef 4:11-12).
Efésios subordina, claramente, os ofícios espirituais ao aperfeiçoamento dos santos, não à edificação da igreja. Isso significa que os ofícios têm finalidade individual, não coletiva. Os apóstolos do primeiro século, para nos atermos de novo a eles, não edificavam diretamente a igreja, mas aperfeiçoavam os santos para que o fizessem. Até porque o apóstolo viajava, e a edificação da igreja exigia a permanência das pessoas umas com as outras. A julgar pelos discursos diários de Paulo na escola de Tirano, pelo espaço de dois anos (At 19:9-10), ou pela fala na residência de Trôade, que se alongou até a alvorada (At 20:7,11), os apóstolos enquanto tais ministravam, muito mais do que recebiam o ministrar de outros, como acontece numa experiência de mutualidade.
Em flagrante contraste com o exemplo apostólico, porém, o que vemos os líderes cristãos realizarem, hoje, é muitas vezes moldar, conformar os indivíduos não a Jesus Cristo, mas às tradições, às práticas e às doutrinas sejam do primeiro século, sejam posteriores. E, ainda mais do que tudo isso, vemo-los enfiar as pessoas a todo custo nos moldes do pensamento homogêneo que tanto caracteriza o rebanho cristão, as igrejas e os ministérios. Ou enfiar os moldes nas pessoas, conforme o caso. Ou ainda as duas coisas ao mesmo tempo, dirão os mais severos críticos, entre os quais espero não me incluir.
O que há de mal nesses fatos não é o afastamento das instituições atuais em relação às que vemos representadas na Bíblia, como tanto e com tanto furor se denuncia. O mal é o líder cristão ter-se especializado em conformar o indivíduo à massa, o individual ao coletivo, o peculiar ao genérico. Essa atividade não apenas dos líderes, mas das instituições cristãs não deixa de produzir a demolição do indivíduo como tal e a exaltação da coletividade no espaço que o cortejo fúnebre dele inaugura solenemente.
Não há como não se reconhecer, na adesão deliberada a essa prática, uma forma de pecado. E que a Bíblia é reduzida por ela a uma jazida de matérias-primas de interpretações literais que, por definição, só podem enxergar no presente a traição do passado. Nessa visão míope, a violação do passado “no tempo que se chama hoje” é alegada, representada, denunciada como pecado, e a alegação, e a representação, e a denúncia servem de timbre do caráter celeste dos ministérios.
Há não muito tempo, um autor chamado Frank Viola lançou um livro de denúncias de praticamente todas as igrejas cristãs, por se terem apartado das práticas e instituições bíblicas. Não duvido da veracidade de boa parte do repertório de informações históricas que o livro traz ou da importância da pesquisa do passado para que a fé cristã se mantenha como verdade presente. Mas o problema simples da vociferante denúncia de Viola é esquecer-se de que não podemos achar no presente a não ser ele próprio. Jamais o passado. Isso é inescapável para o homem. É próprio da condição humana. É um traço que Deus descreveu na areia do tempo para não ser ultrapassado, já que arredar um milímetro da condição humana é flertar com o pecado e conversar com a serpente.
terça-feira, 17 de julho de 2012
Aperfeiçoamento e Edificação
Após o fracasso da maior parte das tentativas de restaurar a igreja num nível mais profundo que aquele em que foi possível fazê-lo durante a Reforma, ainda é sensato se crer numa restauração progressiva, que começa mas não termina no décimo-sexto século? A pergunta tem ressoado ao longo dos últimos séculos. Ao publicar Um sonho de comunhão, procurei oferecer uma resposta bíblica a ela. Sustentei que as Epístolas Pastorais (sobretudo 1ª e 2ª a Timóteo e Tito) e outros textos do Novo Testamento predizem uma apostasia ou desvio espiritual, que devastaria a igreja cristã e o mundo após a era apostólica. A restauração nada mais é que um retorno à condição básica existente antes dessa apostasia. Assim como o erro deveria ocorrer, a restauração também deveria achar ocasião de se desenvolver. Essa é a ideia simples da restauração da igreja, como o Novo Testamento a apresenta.
Para a entendermos um pouco melhor, é útil recapitularmos o que as Epístolas Pastorais afirmam a respeito da apostasia. Como percebido em Timóteo e Tito, esse desvio não se confunde com a rejeição de Jesus pelos judeus, ocorrida por volta do ano 30 d. C., nem com as fábulas mencionadas em Tito 1:14 e 1ª a Timóteo 1:4. Ao contrário desses antigos fatos, a apostasia era um evento futuro em relação à época em que as Pastorais foram escritas.
Portanto, melhor é associarmos o desvio profetizado em Timóteo e em Tito a práticas de engano e dissimulação (1 Tm 4:2) e ao aumento descontrolado tanto do gozo como da proibição de prazeres, no mundo e na igreja (1 Tm 4:3). Essas duas vertentes da grande apostasia desenvolveram-se após o primeiro século.
A restauração, por sua vez, é a reconstrução da igreja arruinada pela apostasia e outros desvios. Só se pode falar em restauração, concedendo-se esse antecedente negativo. Na linguagem simbólica do Antigo Testamento, o antecedente é retratado pela destruição do edifício de Deus em Jerusalém. Portanto, para entendê-lo, também é útil estudarmos a ideia bíblica de edificação.
Efésios 4:7-8,11-13 afirma: “E a graça foi concedida a cada um de nós segundo a proporção do dom de Cristo. Por isso diz: Quando ele subiu às alturas, levou cativo o cativeiro, e concedeu dons aos homens [...] E ele mesmo concedeu uns para apóstolos, outros para profetas, outros para evangelistas, e outros para pastores e mestres, com vistas ao aperfeiçoamento dos santos para o desempenho do seu serviço, para a edificação do corpo de Cristo [...] para que não mais sejamos como meninos, agitados de um lado para outro, e levados ao redor por todo vento de doutrina, pela artimanha dos homens, pela astúcia com que induzem ao erro. Mas, seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo naquele que é o cabeça, Cristo, de quem todo o corpo, bem ajustado e consolidado, pelo auxílio de toda junta, segundo a justa cooperação de cada parte, efetua o seu próprio aumento para a edificação de si mesmo em amor”.
O texto citado fala de uma edificação em duas etapas. A primeira é marcada pelo aperfeiçoamento dos santos; a outra, pela edificação propriamente dita. O aperfeiçoamento ocorre por meio dos dons que Cristo concedeu à igreja, que são os apóstolos, profetas, evangelistas, pastores e mestres. Deus reparte a sua graça entre os membros do corpo, por meio desses homens-dons. Já a edificação, é executada por todos os membros da igreja, sem distinção alguma.
Uma imagem do Antigo Testamento ajuda a esclarecer a separação temporal entre o aperfeiçoamento e a edificação. Aprendemos em 1º dos Reis 6:7 que “edificava-se a casa [de Deus] com pedras já preparadas nas pedreiras, de maneira que nem martelo, nem machado, nem instrumento algum de ferro se ouviu na casa quando a edificavam”. A preparação das pedras nos locais em que foram extraídas corresponde ao aperfeiçoamento dos santos, por meio dos homens-dons; já a edificação da casa, prefigura a da igreja por aqueles que creem.
A edificação não é possível sem que cada pedra, cada pessoa, seja preparada individualmente. E a preparação, como é óbvio, não tem a finalidade de que os indivíduos “sejam felizes”, mas que sejam edificados com outros. Não é uma busca da felicidade, mas de comunhão. Sem que o indivíduo seja adequadamente preparado, trabalhado por Deus, “nas pedreiras”, com os instrumentos representados pelos apóstolos, profetas, evangelistas, pastores e mestres, não há edificação coletiva. Portanto, o ministério dos homens-dons visa mais a essa preparação individual do que à edificação coletiva.
Efésios relaciona a edificação que sucede o aperfeiçoamento dos santos à unidade da fé, ao pleno conhecimento do Filho de Deus e à estatura máxima da igreja como varão perfeito (Ef 4:13). Esses três pontos remetem-nos ao futuro. Nem a unidade da fé, nem o pleno conhecimento de Cristo, nem a estatura máxima da igreja são realidades presentes hoje. Menos ainda eles podem ser alcançados, na Terra, por todos os crentes ao mesmo tempo. Portanto, a maior parte da edificação da igreja não se dá na Terra.
Verdade é que Efésios 2:20-22 declara que os gentios já estão edificados sobre o fundamento, que é Cristo. Porém, essa edificação é mais ideal que presente, mais precária que definitiva. Afirmações ideais são comuns em Efésios e não devem ser tomadas como realidades consumadas. É o caso da afirmação de que os gentios estão assentados nos lugares celestiais (Ef 2:6). Cristo nos ensinou a orar: “Faça-se a tua vontade, assim na terra como no céu” (Mt 6:10). Se a vontade de Deus já fosse feita aqui como lá, não precisaríamos pedi-lo. O céu já estaria refletido na Terra. Então, se o pedimos, é porque a manifestação do reino de Deus aqui ainda é muito imperfeita.
Nem toda fé deve-nos impedir de reconhecer que o reflexo das situações ideais na realidade presente é sempre bastante pálido. Em 1ª aos Coríntios 3, Paulo definiu seu alcance, ao afirmar claramente que a edificação em andamento, nos nossos dias, pode ou não ser bem-sucedida. Sobre o fundamento, que é Cristo, é possível se edificar com ouro, prata, pedras preciosas, madeira, feno ou palha. Nos três primeiros casos, a obra de edificação permanecerá; nos últimos três, ela será destruída (1 Co 3:12-15). Isso confirma que a edificação em desenvolvimento, hoje, é limitada e precária.
Outras passagens do Novo Testamento também deixam espaço para o entendimento de que a maior parte da edificação da igreja ocorrerá no futuro. Jesus afirmou: “sobre essa rocha edificarei a minha igreja” (Mt 16:18). O tempo futuro empregado no verso indica que a edificação não estava em andamento, quando Cristo se referiu a ela. É comum se afirmar que ela começou com o derramamento do Espírito Santo, em Atos 2. Porém, essa conclusão não se extrai da declaração de Jesus. Pelo contrário, após declarar que edificaria a sua igreja, ele proclamou que as portas do hades não prevaleceriam contra ela. A declaração identifica o hades e suas portas como os mais sérios obstáculos à edificação. Se ambos representam a morte do corpo, como de fato representam, devemos concluir que a edificação se dá, principalmente, após a morte. Esse e somente esse é o tempo, em que a igreja chegará à unidade da fé, ao pleno conhecimento de Cristo e à sua estatura máxima.
A destruição que antecede a restauração pode, portanto, incidir tanto na obra de aperfeiçoamento dos santos, prefigurada pela preparação das pedras longe do lugar do Templo, como na edificação precária, representada pela montagem final do santuário em Jerusalém. O que não ocorre, num e no outro caso, é a edificação definitiva, imperfectível que muitos apregoam. Tal qual o Templo foi destruído pelos neobabilônios, reedificado, destruído de novo e um dia será reconstruído, toda edificação defeituosa da igreja terá de passar por um ou mais processos de restauração.
Onde estamos, nesse fazer e refazer infinitos? Aonde é preciso chegar na restauração? Que deve ser restaurado? Essas foram as perguntas enfrentadas em Um sonho de comunhão. A resposta que encontrei para elas à época foi: tudo o que Deus mandou e um dia existiu, na igreja, deve ser restaurado. Não tudo ao mesmo tempo, por certo. Porém, tudo e nada menos que tudo.
Se em Atos 2 a 6 houve comunhão pura, desinteressada e sem mediação do poder, nada menos que isso deve ser restaurado na igreja. Mas é possível, sim, é perfeitamente possível que as circunstâncias históricas não nos permitam encontrar tal comunhão no nosso tempo de vida. Nesse caso, cumpre-nos continuar a almejar a comunhão da época dos primeiros apóstolos. Fazê-lo não significará de modo algum saudosismo ou nostalgia. Significará viver para a restauração e orar voltado para Jerusalém.
Atos 2 a 6 é o limite da experiência temporal da restauração. Cristo não morreu para que o povo de Deus dos séculos provasse menos que isso na Terra. E não se assentou no céu para não comer conosco, um dia, o banquete perfeito e definitivo. Porém, a transição de um para o outro desses estágios de edificação não se dá facilmente, num único momento histórico, ainda que seja o de um avivamento. Aprouve a Deus encerrar num contexto muito mais amplo a experiência que o salmista expressou: "A minha alma suspira e desfalece pelos átrios do Senhor; o meu coração e a minha carne exultam pelo Deus vivo! O pardal encontrou casa, e a andorinha, ninho para si [...] eu, os teus altares, Senhor dos Exércitos" (Sl 84:2-3).
Para a entendermos um pouco melhor, é útil recapitularmos o que as Epístolas Pastorais afirmam a respeito da apostasia. Como percebido em Timóteo e Tito, esse desvio não se confunde com a rejeição de Jesus pelos judeus, ocorrida por volta do ano 30 d. C., nem com as fábulas mencionadas em Tito 1:14 e 1ª a Timóteo 1:4. Ao contrário desses antigos fatos, a apostasia era um evento futuro em relação à época em que as Pastorais foram escritas.
Portanto, melhor é associarmos o desvio profetizado em Timóteo e em Tito a práticas de engano e dissimulação (1 Tm 4:2) e ao aumento descontrolado tanto do gozo como da proibição de prazeres, no mundo e na igreja (1 Tm 4:3). Essas duas vertentes da grande apostasia desenvolveram-se após o primeiro século.
A restauração, por sua vez, é a reconstrução da igreja arruinada pela apostasia e outros desvios. Só se pode falar em restauração, concedendo-se esse antecedente negativo. Na linguagem simbólica do Antigo Testamento, o antecedente é retratado pela destruição do edifício de Deus em Jerusalém. Portanto, para entendê-lo, também é útil estudarmos a ideia bíblica de edificação.
Efésios 4:7-8,11-13 afirma: “E a graça foi concedida a cada um de nós segundo a proporção do dom de Cristo. Por isso diz: Quando ele subiu às alturas, levou cativo o cativeiro, e concedeu dons aos homens [...] E ele mesmo concedeu uns para apóstolos, outros para profetas, outros para evangelistas, e outros para pastores e mestres, com vistas ao aperfeiçoamento dos santos para o desempenho do seu serviço, para a edificação do corpo de Cristo [...] para que não mais sejamos como meninos, agitados de um lado para outro, e levados ao redor por todo vento de doutrina, pela artimanha dos homens, pela astúcia com que induzem ao erro. Mas, seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo naquele que é o cabeça, Cristo, de quem todo o corpo, bem ajustado e consolidado, pelo auxílio de toda junta, segundo a justa cooperação de cada parte, efetua o seu próprio aumento para a edificação de si mesmo em amor”.
O texto citado fala de uma edificação em duas etapas. A primeira é marcada pelo aperfeiçoamento dos santos; a outra, pela edificação propriamente dita. O aperfeiçoamento ocorre por meio dos dons que Cristo concedeu à igreja, que são os apóstolos, profetas, evangelistas, pastores e mestres. Deus reparte a sua graça entre os membros do corpo, por meio desses homens-dons. Já a edificação, é executada por todos os membros da igreja, sem distinção alguma.
Uma imagem do Antigo Testamento ajuda a esclarecer a separação temporal entre o aperfeiçoamento e a edificação. Aprendemos em 1º dos Reis 6:7 que “edificava-se a casa [de Deus] com pedras já preparadas nas pedreiras, de maneira que nem martelo, nem machado, nem instrumento algum de ferro se ouviu na casa quando a edificavam”. A preparação das pedras nos locais em que foram extraídas corresponde ao aperfeiçoamento dos santos, por meio dos homens-dons; já a edificação da casa, prefigura a da igreja por aqueles que creem.
A edificação não é possível sem que cada pedra, cada pessoa, seja preparada individualmente. E a preparação, como é óbvio, não tem a finalidade de que os indivíduos “sejam felizes”, mas que sejam edificados com outros. Não é uma busca da felicidade, mas de comunhão. Sem que o indivíduo seja adequadamente preparado, trabalhado por Deus, “nas pedreiras”, com os instrumentos representados pelos apóstolos, profetas, evangelistas, pastores e mestres, não há edificação coletiva. Portanto, o ministério dos homens-dons visa mais a essa preparação individual do que à edificação coletiva.
Efésios relaciona a edificação que sucede o aperfeiçoamento dos santos à unidade da fé, ao pleno conhecimento do Filho de Deus e à estatura máxima da igreja como varão perfeito (Ef 4:13). Esses três pontos remetem-nos ao futuro. Nem a unidade da fé, nem o pleno conhecimento de Cristo, nem a estatura máxima da igreja são realidades presentes hoje. Menos ainda eles podem ser alcançados, na Terra, por todos os crentes ao mesmo tempo. Portanto, a maior parte da edificação da igreja não se dá na Terra.
Verdade é que Efésios 2:20-22 declara que os gentios já estão edificados sobre o fundamento, que é Cristo. Porém, essa edificação é mais ideal que presente, mais precária que definitiva. Afirmações ideais são comuns em Efésios e não devem ser tomadas como realidades consumadas. É o caso da afirmação de que os gentios estão assentados nos lugares celestiais (Ef 2:6). Cristo nos ensinou a orar: “Faça-se a tua vontade, assim na terra como no céu” (Mt 6:10). Se a vontade de Deus já fosse feita aqui como lá, não precisaríamos pedi-lo. O céu já estaria refletido na Terra. Então, se o pedimos, é porque a manifestação do reino de Deus aqui ainda é muito imperfeita.
Nem toda fé deve-nos impedir de reconhecer que o reflexo das situações ideais na realidade presente é sempre bastante pálido. Em 1ª aos Coríntios 3, Paulo definiu seu alcance, ao afirmar claramente que a edificação em andamento, nos nossos dias, pode ou não ser bem-sucedida. Sobre o fundamento, que é Cristo, é possível se edificar com ouro, prata, pedras preciosas, madeira, feno ou palha. Nos três primeiros casos, a obra de edificação permanecerá; nos últimos três, ela será destruída (1 Co 3:12-15). Isso confirma que a edificação em desenvolvimento, hoje, é limitada e precária.
Outras passagens do Novo Testamento também deixam espaço para o entendimento de que a maior parte da edificação da igreja ocorrerá no futuro. Jesus afirmou: “sobre essa rocha edificarei a minha igreja” (Mt 16:18). O tempo futuro empregado no verso indica que a edificação não estava em andamento, quando Cristo se referiu a ela. É comum se afirmar que ela começou com o derramamento do Espírito Santo, em Atos 2. Porém, essa conclusão não se extrai da declaração de Jesus. Pelo contrário, após declarar que edificaria a sua igreja, ele proclamou que as portas do hades não prevaleceriam contra ela. A declaração identifica o hades e suas portas como os mais sérios obstáculos à edificação. Se ambos representam a morte do corpo, como de fato representam, devemos concluir que a edificação se dá, principalmente, após a morte. Esse e somente esse é o tempo, em que a igreja chegará à unidade da fé, ao pleno conhecimento de Cristo e à sua estatura máxima.
A destruição que antecede a restauração pode, portanto, incidir tanto na obra de aperfeiçoamento dos santos, prefigurada pela preparação das pedras longe do lugar do Templo, como na edificação precária, representada pela montagem final do santuário em Jerusalém. O que não ocorre, num e no outro caso, é a edificação definitiva, imperfectível que muitos apregoam. Tal qual o Templo foi destruído pelos neobabilônios, reedificado, destruído de novo e um dia será reconstruído, toda edificação defeituosa da igreja terá de passar por um ou mais processos de restauração.
Onde estamos, nesse fazer e refazer infinitos? Aonde é preciso chegar na restauração? Que deve ser restaurado? Essas foram as perguntas enfrentadas em Um sonho de comunhão. A resposta que encontrei para elas à época foi: tudo o que Deus mandou e um dia existiu, na igreja, deve ser restaurado. Não tudo ao mesmo tempo, por certo. Porém, tudo e nada menos que tudo.
Se em Atos 2 a 6 houve comunhão pura, desinteressada e sem mediação do poder, nada menos que isso deve ser restaurado na igreja. Mas é possível, sim, é perfeitamente possível que as circunstâncias históricas não nos permitam encontrar tal comunhão no nosso tempo de vida. Nesse caso, cumpre-nos continuar a almejar a comunhão da época dos primeiros apóstolos. Fazê-lo não significará de modo algum saudosismo ou nostalgia. Significará viver para a restauração e orar voltado para Jerusalém.
Atos 2 a 6 é o limite da experiência temporal da restauração. Cristo não morreu para que o povo de Deus dos séculos provasse menos que isso na Terra. E não se assentou no céu para não comer conosco, um dia, o banquete perfeito e definitivo. Porém, a transição de um para o outro desses estágios de edificação não se dá facilmente, num único momento histórico, ainda que seja o de um avivamento. Aprouve a Deus encerrar num contexto muito mais amplo a experiência que o salmista expressou: "A minha alma suspira e desfalece pelos átrios do Senhor; o meu coração e a minha carne exultam pelo Deus vivo! O pardal encontrou casa, e a andorinha, ninho para si [...] eu, os teus altares, Senhor dos Exércitos" (Sl 84:2-3).
quarta-feira, 11 de julho de 2012
As Profecias e o Tempo (11): A Mulher e o Dragão
É comum se considerar que o dragão do Livro de Apocalipse representa Satanás. Em prol dessa interpretação, costuma-se invocar o capítulo 20 do livro, que se refere ao dragão, à serpente, ao Diabo e a Satanás como uma só pessoa (Ap 20:2), e ApocaIipse 12:9: "Foi expuIso o grande dragão, a antiga serpente, que se chama diabo e Satanás".
Porém, se considerarmos cuidadosamente a estrutura literária e os sentidos de Apocalipse, teremos de reconhecer que as visões do livro são formadas por símbolos que, como tais, não têm sentido literal. Não é diferente com o dragão, também denominado serpente, Diabo e Satanás, que aparece mencionado nos capítulos 12 e 20. Também ele é um símbolo e não o objeto representado pelo símbolo. Portanto, é de todo inegável que Satanás aparece em Apocalipse, mas como símbolo e não como o significado dele. E de uma coisa podemos estar certos: se todo símbolo é usado para representar algo diferente dele, a única certeza cabível a respeito do dragão é de que não representa o querubim a que o Novo Testamento se refere pelo nome de Satanás.
No capítulo 12 lemos: “Viu-se, também, outro sinal no céu, e eis um dragão, grande, vermelho, com sete cabeças, dez chifres e, nas cabeças, sete diademas" (Ap 12:3). Se o dragão não é Satanás, quem ele representa? A melhor resposta a essa pergunta é a que identifica o dragão com o Império Romano ou seus líderes. Não o Império histórico, pois esse é representado por outros símbolos, particularmente os do sexto selo de Apocalipse. Tampouco é a besta, já que o dragão tem várias diferenças em relação a ela. É, portanto, um ser intermediário, um ser existente entre o Império Romano histórico e a besta que emergirá do abismo.
Essa interpretação do dragão do capítulo 12 baseia-se em várias evidências. Primeiramente, o dragão contrapõe-se à mulher. Eles formam um par antagônico, pois têm atributos comuns, como a capacidade de se locomover do céu para a terra e vice-versa, mas o fazem com propósitos opostos. De modo que, se a mulher representa o povo de Deus dos séculos, é razoável entender que o dragão também seja uma entidade coletiva, porém maligna, a saber: os governantes que introduziram a adoração do Imperador, não no período da sua existência na Terra, mas da sua existência no hades.
O fato de a besta emergir do grande mar quando o dragão se posta na areia indica a relação entre os dois. A emersão da besta tem uma causa espiritual, invisível, que é a atuação intensificada do dragão na Terra. Isso parece indicar um retorno maciço das almas de governantes romanos do passado para o planeta, nos corpos de outras pessoas.
A assimilação do dragão a Roma parece bastante segura, mas é modificada pelo fato de ele e a mulher aparecerem ora no céu, ora na terra. Em Apocalipse, a capacidade de estar em lugares tão diferentes e passar de um para o outro é atribuída a seres não encarnados, assim como os anjos, que ora são mencionados no céu, ora na terra. Quando se refere a seres encarnados, assim como a besta, o falso profeta, as nações e vários outros, Apocalipse os faz atuar na terra e somente nela. Por isso, se a mulher e o dragão se movem do céu à terra, devemos concluir que o último é constituído por integrantes do Império Romano passados à condição angélica.
É de interesse que, em Apocalipse 12, por duas vezes, a mulher vai ao deserto, mas não o dragão. Após o nascimento do filho varão, ela “fugiu para o deserto, onde lhe havia Deus preparado lugar para que nele a sustentem durante mil duzentos e sessenta dias” (Ap 12:6). E novamente: “Foram dadas à mulher as duas asas da grande águia, para que voasse até ao deserto, ao seu lugar” (Ap 12:14). O fato de Deus ter preparado lugar para a mulher, no deserto, e ele ser denominado “seu” significa que o deserto foi especialmente modelado para recebê-la.
O deserto deve ser o hades, pois é lá que o povo de Deus permanece após a morte. Assim como as coisas da civilização não podem ser encontradas num deserto real, as coisas do presente mundo não estão no hades. O lugar preparado por Deus para a mulher deve ser entendido como uma seção especial do hades reservada aos que temem a Deus, mas destituída dos bens da presente vida. Na parábola do rico e de Lázaro, ele é denominado seio de Abraão (Lc 16:22). Na cruz, Jesus o chamou paraíso (Lc 23:43). Embora seja capaz de ir ao céu, o dragão não pode entrar nesse lugar, pois ele foi reservado à mulher (Ap 12:14-17).
A cauda do dragão arrasta a terça parte das estrelas (Ap 12:4). Esse dado é normalmente interpretado como alusão ao levante de Satanás. Porém, não creio que seja essa a lição do versículo, pois a visão que João teve refere-se a fatos futuros (Ap 12:4). Portanto, a rebelião de Lúcifer é o símbolo, não o significado dele.
A cauda é usada pelos animais para golpear uma presa ou um adversário sem que ele o perceba. Tanto os gafanhotos semelhantes a escorpiões como os cavalos do capítulo 9 de Apocalipse usam suas caudas para desferir golpes (Ap 9:3,5,19). Não é diferente com o dragão, que precipita os anjos por um movimento da sua cauda. Os anjos precipitados pelo dragão são seres corrompidos pelas hordas espirituais romanas, ao longo da História. A terra e o mar em que eles são precipitados (Ap 12:12) não são o planeta inteiro, mas as vizinhanças da Terra Santa e o Mar Mediterrâneo, como o profeta João os denominava.
Como tem a capacidade de passar do céu à terra e desta de novo ao céu, o dragão coloca-se perante a mulher na iminência de dar à luz no céu (Ap 12:2-3), mas é expulso de lá, por Miguel e seus anjos (Ap 12:7,9). Estes não são o arcanjo de mesmo nome e outros ministros celestes de Deus. São os que creem em Cristo, cujas vestes foram lavadas no sangue do Cordeiro. Por isso se diz que Miguel e os seus anjos pelejam contra o dragão, e os que foram lavados no sangue do Cordeiro o vencem (Ap 12:7,11). Miguel e os que foram lavados no sangue de Cristo são uma só entidade. Após o triunfo deles, não se permite mais ao dragão entrar no céu (Ap 12:8).
A expulsão do dragão é o primeiro ato do julgamento divino contra ele. O segundo é o acorrentamento no abismo durante mil anos, em Apocalipse 20:1-2. Esse abismo é o mesmo do qual a besta procede (Ap 17:8). Assim como os justos têm um lugar reservado por Deus (o deserto) em que outros não têm autorização para entrar, o abismo é o lugar em que os espíritos maus permanecem presos.
As sete cabeças do dragão são os reis mencionados pelo anjo em Apocalipse 17:9-10. Eles são dispostos em duas sequências de cinco e dois. A primeira sequência é constituída pelos Imperadores Augusto, Tibério, Calígula, Cláudio e Nero. A outra, por Domiciano e Nerva. Claro que houve outros Imperadores maus, mas estes representam todos. Eles têm em comum o fato de terem sido deificados em vida.
Os chifres do dragão são reis com os quais os romanos se aliaram, à medida em que enfraqueceram. Nas suas notas sobre Apocalipse, Isaac Newton os identificou como os reis “dos vândalos e alanos, na Espanha e África; dos suevos, na Espanha; dos visigodos; dos alanos, na Gália; dos burgúndios; dos francos; dos bretões; dos hunos; dos lombardos” (As profecias do Apocalipse e o Livro de Daniel – as raízes do código da Bíblia. São Paulo: Pensamento, 2008. pp. 45 e seguintes). Assim como um animal usa os chifres para golpear outros, os romanos se serviram desses reis para enfrentar os seus inimigos. Até os próprios chifres se tornarem inimigos deles.
O milênio é o oitavo e último período de (aproximadamente) mil anos, após aqueles sete. Aprouve a Deus dividir dessa forma a História. Se uma série de acontecimentos devia ter lugar, na etapa final do tempo bíblico, assim como a restauração da dinastia de Davi (Am 9:11), a paz sem precedentes em IsraeI (Is 65:18,25), o prolongamento de vida às nações (Dn 7:12), o reinado de um descendente de Davi sobre elas (Am 9:12) e uma mudança profunda na natureza (Is 11:6-9; 65:25), não havia sentido em essa única etapa ficar sem duração definida, ao contrário de todas as outras. Por isso, João mencionou mil anos como a extensão aproximada dela.
Logo após os mil anos, ocorre a invasão de Israel pela coligação mencionada em Ezequiel 38: “Gogue, da terra de Magogue, príncipe de Rôs, de Meseque e Tubal [...] persas e etíopes e Pute com eles [...] Gômer e todas as suas tropas; a casa de Togarma, da banda do norte” (Ez 38:2,5-6). Eles vêm “depois de muitos dias [...] à terra que se recuperou da espada, ao povo que se congregou dentre muitos povos sobre os montes de Israel [...] contra os que estão em repouso, que vivem seguros, que habitam, todos, sem muros e não têm ferrolhos nas portas” (Ez 38:8,11). Tudo isso ocorre “nos últimos dias” (Ez 38:16).
A profecia de Ezequiel é a primeira de cunho apocalíptico nas Escrituras. João a retoma expressamente: “Quando, porém, se completarem os mil anos, Satanás será solto da sua prisão e sairá a seduzir as nações que há nos quatro cantos da terra, Gogue e Magogue, a fim de reuni-las para a peleja” (Ap 20:7-8). Que peleja é essa, a não ser a invasão descrita em Ezequiel?
Sempre que recepciona um oráculo escatológico, João lhe mantém o sentido. É o que ocorre com as profecias de Daniel, que se entrelaçam, mas não conflitam com Apocalipse, e com o oráculo contra Gogue em Ezequiel 38 e 39. Por isso, a peleja a que João se refere é a mesma de Ezequiel. A libertação de Satanás, após os mil anos, se dá para que esse oráculo não fique sem cumprimento. João não concebia a terrível invasão chefiada por Gogue, num contexto em que o dragão estivesse preso. Somente o dragão, Roma na sua nova condição angélica, é responsável por enganar e insuflar as nações contra o povo de Deus, assim como Roma histórica determinara que povos do mundo todo perseguissem os cristãos. Por isso, é preciso soltá-lo para que o pano dos tempos desça sobre a última insurreição.
Quando isso acontece, o dragão, a antiga serpente, que se chama Diabo e Satanás, é lançado no lago de fogo (Ap 20:10), onde a besta e o falso profeta já estavam (Ap 19:20). A diferença entre esse acontecimento e o juízo final (Ap 20:11-15) é que ele não é precedido de um julgamento. No grande trono branco, livros são abertos, obras, analisadas, mérito e demérito, sopesados. O mesmo não ocorre nos casos do dragão, da besta e do falso profeta. Ficamos com a impressão de que, simplesmente, não há o que se analisar. Trata-se de consumar a questão, de pôr um ponto final na ação pecaminosa dessa tríade do mal, o que se realiza por meio do lago que arde com fogo e enxofre.
Porém, se considerarmos cuidadosamente a estrutura literária e os sentidos de Apocalipse, teremos de reconhecer que as visões do livro são formadas por símbolos que, como tais, não têm sentido literal. Não é diferente com o dragão, também denominado serpente, Diabo e Satanás, que aparece mencionado nos capítulos 12 e 20. Também ele é um símbolo e não o objeto representado pelo símbolo. Portanto, é de todo inegável que Satanás aparece em Apocalipse, mas como símbolo e não como o significado dele. E de uma coisa podemos estar certos: se todo símbolo é usado para representar algo diferente dele, a única certeza cabível a respeito do dragão é de que não representa o querubim a que o Novo Testamento se refere pelo nome de Satanás.
No capítulo 12 lemos: “Viu-se, também, outro sinal no céu, e eis um dragão, grande, vermelho, com sete cabeças, dez chifres e, nas cabeças, sete diademas" (Ap 12:3). Se o dragão não é Satanás, quem ele representa? A melhor resposta a essa pergunta é a que identifica o dragão com o Império Romano ou seus líderes. Não o Império histórico, pois esse é representado por outros símbolos, particularmente os do sexto selo de Apocalipse. Tampouco é a besta, já que o dragão tem várias diferenças em relação a ela. É, portanto, um ser intermediário, um ser existente entre o Império Romano histórico e a besta que emergirá do abismo.
Essa interpretação do dragão do capítulo 12 baseia-se em várias evidências. Primeiramente, o dragão contrapõe-se à mulher. Eles formam um par antagônico, pois têm atributos comuns, como a capacidade de se locomover do céu para a terra e vice-versa, mas o fazem com propósitos opostos. De modo que, se a mulher representa o povo de Deus dos séculos, é razoável entender que o dragão também seja uma entidade coletiva, porém maligna, a saber: os governantes que introduziram a adoração do Imperador, não no período da sua existência na Terra, mas da sua existência no hades.
O fato de a besta emergir do grande mar quando o dragão se posta na areia indica a relação entre os dois. A emersão da besta tem uma causa espiritual, invisível, que é a atuação intensificada do dragão na Terra. Isso parece indicar um retorno maciço das almas de governantes romanos do passado para o planeta, nos corpos de outras pessoas.
A assimilação do dragão a Roma parece bastante segura, mas é modificada pelo fato de ele e a mulher aparecerem ora no céu, ora na terra. Em Apocalipse, a capacidade de estar em lugares tão diferentes e passar de um para o outro é atribuída a seres não encarnados, assim como os anjos, que ora são mencionados no céu, ora na terra. Quando se refere a seres encarnados, assim como a besta, o falso profeta, as nações e vários outros, Apocalipse os faz atuar na terra e somente nela. Por isso, se a mulher e o dragão se movem do céu à terra, devemos concluir que o último é constituído por integrantes do Império Romano passados à condição angélica.
É de interesse que, em Apocalipse 12, por duas vezes, a mulher vai ao deserto, mas não o dragão. Após o nascimento do filho varão, ela “fugiu para o deserto, onde lhe havia Deus preparado lugar para que nele a sustentem durante mil duzentos e sessenta dias” (Ap 12:6). E novamente: “Foram dadas à mulher as duas asas da grande águia, para que voasse até ao deserto, ao seu lugar” (Ap 12:14). O fato de Deus ter preparado lugar para a mulher, no deserto, e ele ser denominado “seu” significa que o deserto foi especialmente modelado para recebê-la.
O deserto deve ser o hades, pois é lá que o povo de Deus permanece após a morte. Assim como as coisas da civilização não podem ser encontradas num deserto real, as coisas do presente mundo não estão no hades. O lugar preparado por Deus para a mulher deve ser entendido como uma seção especial do hades reservada aos que temem a Deus, mas destituída dos bens da presente vida. Na parábola do rico e de Lázaro, ele é denominado seio de Abraão (Lc 16:22). Na cruz, Jesus o chamou paraíso (Lc 23:43). Embora seja capaz de ir ao céu, o dragão não pode entrar nesse lugar, pois ele foi reservado à mulher (Ap 12:14-17).
A cauda do dragão arrasta a terça parte das estrelas (Ap 12:4). Esse dado é normalmente interpretado como alusão ao levante de Satanás. Porém, não creio que seja essa a lição do versículo, pois a visão que João teve refere-se a fatos futuros (Ap 12:4). Portanto, a rebelião de Lúcifer é o símbolo, não o significado dele.
A cauda é usada pelos animais para golpear uma presa ou um adversário sem que ele o perceba. Tanto os gafanhotos semelhantes a escorpiões como os cavalos do capítulo 9 de Apocalipse usam suas caudas para desferir golpes (Ap 9:3,5,19). Não é diferente com o dragão, que precipita os anjos por um movimento da sua cauda. Os anjos precipitados pelo dragão são seres corrompidos pelas hordas espirituais romanas, ao longo da História. A terra e o mar em que eles são precipitados (Ap 12:12) não são o planeta inteiro, mas as vizinhanças da Terra Santa e o Mar Mediterrâneo, como o profeta João os denominava.
Como tem a capacidade de passar do céu à terra e desta de novo ao céu, o dragão coloca-se perante a mulher na iminência de dar à luz no céu (Ap 12:2-3), mas é expulso de lá, por Miguel e seus anjos (Ap 12:7,9). Estes não são o arcanjo de mesmo nome e outros ministros celestes de Deus. São os que creem em Cristo, cujas vestes foram lavadas no sangue do Cordeiro. Por isso se diz que Miguel e os seus anjos pelejam contra o dragão, e os que foram lavados no sangue do Cordeiro o vencem (Ap 12:7,11). Miguel e os que foram lavados no sangue de Cristo são uma só entidade. Após o triunfo deles, não se permite mais ao dragão entrar no céu (Ap 12:8).
A expulsão do dragão é o primeiro ato do julgamento divino contra ele. O segundo é o acorrentamento no abismo durante mil anos, em Apocalipse 20:1-2. Esse abismo é o mesmo do qual a besta procede (Ap 17:8). Assim como os justos têm um lugar reservado por Deus (o deserto) em que outros não têm autorização para entrar, o abismo é o lugar em que os espíritos maus permanecem presos.
As sete cabeças do dragão são os reis mencionados pelo anjo em Apocalipse 17:9-10. Eles são dispostos em duas sequências de cinco e dois. A primeira sequência é constituída pelos Imperadores Augusto, Tibério, Calígula, Cláudio e Nero. A outra, por Domiciano e Nerva. Claro que houve outros Imperadores maus, mas estes representam todos. Eles têm em comum o fato de terem sido deificados em vida.
Os chifres do dragão são reis com os quais os romanos se aliaram, à medida em que enfraqueceram. Nas suas notas sobre Apocalipse, Isaac Newton os identificou como os reis “dos vândalos e alanos, na Espanha e África; dos suevos, na Espanha; dos visigodos; dos alanos, na Gália; dos burgúndios; dos francos; dos bretões; dos hunos; dos lombardos” (As profecias do Apocalipse e o Livro de Daniel – as raízes do código da Bíblia. São Paulo: Pensamento, 2008. pp. 45 e seguintes). Assim como um animal usa os chifres para golpear outros, os romanos se serviram desses reis para enfrentar os seus inimigos. Até os próprios chifres se tornarem inimigos deles.
Muito se discute se os mil anos são literais e se a vinda de Cristo os precede ou sucede. Várias correntes escatológicas se originaram das soluções propostas para esses problemas. Porém, na época de João, nenhuma profecia mencionava extensões de tempo tão vastas. A Iigação com Salmo 90:4 (“Mil anos, aos teus olhos, são como o dia de ontem”) tampouco corresponde ao pensamento escatológico do primeiro século como refletido em Apocalipse. Não é comum esse livro se tecer com os fios poéticos dos Salmos, mas com os escatológicos de Daniel, Ezequiel, Joel e Zacarias.
Tudo isso mostra que o milênio não tem antecedente expresso na Bíblia. Portanto, eIe deve ligar-se aos períodos de mil anos da História Sagrada, com os quais o profeta João tinha intimidade. De fato, os tratos de Deus com o homem se dão no arcabouço formado por períodos de mil anos. De Adão até (o nascimento de) Noé decorreram mil anos; de Noé até (o nascimento de) Abraão, outros mil; de Abraão à primeira vitória de Israel sobre os cananeus, após o assentamento, ainda outros mil; dessa vitória ao fim da era dos profetas, no Antigo Testamento, mil; dali ao estabelecimento da maior Igreja da História, em Roma, mais mil; da formação da Igreja Romana aos reformadores, mil; e dos reformadores ao fim das 2.300 tardes e manhãs (Dn 8:13-14), que assinalam o fim dos tempos, os últimos mil. O tempo total abrangido nas Escrituras, de Adão ao último acontecimento datado do Antigo Testamento, perfaz sete períodos de mil anos. A extensão dos períodos não é imaginada ou presumida. É dada em paIavras cIaras. O milênio é o oitavo e último período de (aproximadamente) mil anos, após aqueles sete. Aprouve a Deus dividir dessa forma a História. Se uma série de acontecimentos devia ter lugar, na etapa final do tempo bíblico, assim como a restauração da dinastia de Davi (Am 9:11), a paz sem precedentes em IsraeI (Is 65:18,25), o prolongamento de vida às nações (Dn 7:12), o reinado de um descendente de Davi sobre elas (Am 9:12) e uma mudança profunda na natureza (Is 11:6-9; 65:25), não havia sentido em essa única etapa ficar sem duração definida, ao contrário de todas as outras. Por isso, João mencionou mil anos como a extensão aproximada dela.
Logo após os mil anos, ocorre a invasão de Israel pela coligação mencionada em Ezequiel 38: “Gogue, da terra de Magogue, príncipe de Rôs, de Meseque e Tubal [...] persas e etíopes e Pute com eles [...] Gômer e todas as suas tropas; a casa de Togarma, da banda do norte” (Ez 38:2,5-6). Eles vêm “depois de muitos dias [...] à terra que se recuperou da espada, ao povo que se congregou dentre muitos povos sobre os montes de Israel [...] contra os que estão em repouso, que vivem seguros, que habitam, todos, sem muros e não têm ferrolhos nas portas” (Ez 38:8,11). Tudo isso ocorre “nos últimos dias” (Ez 38:16).
A profecia de Ezequiel é a primeira de cunho apocalíptico nas Escrituras. João a retoma expressamente: “Quando, porém, se completarem os mil anos, Satanás será solto da sua prisão e sairá a seduzir as nações que há nos quatro cantos da terra, Gogue e Magogue, a fim de reuni-las para a peleja” (Ap 20:7-8). Que peleja é essa, a não ser a invasão descrita em Ezequiel?
Sempre que recepciona um oráculo escatológico, João lhe mantém o sentido. É o que ocorre com as profecias de Daniel, que se entrelaçam, mas não conflitam com Apocalipse, e com o oráculo contra Gogue em Ezequiel 38 e 39. Por isso, a peleja a que João se refere é a mesma de Ezequiel. A libertação de Satanás, após os mil anos, se dá para que esse oráculo não fique sem cumprimento. João não concebia a terrível invasão chefiada por Gogue, num contexto em que o dragão estivesse preso. Somente o dragão, Roma na sua nova condição angélica, é responsável por enganar e insuflar as nações contra o povo de Deus, assim como Roma histórica determinara que povos do mundo todo perseguissem os cristãos. Por isso, é preciso soltá-lo para que o pano dos tempos desça sobre a última insurreição.
Quando isso acontece, o dragão, a antiga serpente, que se chama Diabo e Satanás, é lançado no lago de fogo (Ap 20:10), onde a besta e o falso profeta já estavam (Ap 19:20). A diferença entre esse acontecimento e o juízo final (Ap 20:11-15) é que ele não é precedido de um julgamento. No grande trono branco, livros são abertos, obras, analisadas, mérito e demérito, sopesados. O mesmo não ocorre nos casos do dragão, da besta e do falso profeta. Ficamos com a impressão de que, simplesmente, não há o que se analisar. Trata-se de consumar a questão, de pôr um ponto final na ação pecaminosa dessa tríade do mal, o que se realiza por meio do lago que arde com fogo e enxofre.
sábado, 7 de julho de 2012
As Profecias e o Tempo (10): A Grande Babilônia
A interpretação de Apocalipse passou por várias etapas, durante as quais prevaleceram entendimentos diversos, quase sempre sugeridos por acontecimentos passados. Quando o livro foi escrito, o senso de que seus símbolos representavam Roma e seus Imperadores dominava as mentalidades. Mas quando Roma perdeu poder, a identificação das profecias com o seu Império se tornou mais genérica. A besta passou a ser vista como os povos latinos ou os seus descendentes, já que a palavra latheinos, em grego, tem valor numérico 666. E, quando o Papa se tornou independente do Imperador de Bizâncio e constituiu um Estado cada vez mais dominante, tornou-se comum identificá-lo com Anticristo ou com a grande meretriz do capítulo 17 do livro. Os reformadores do século XVI chegaram a denunciar o Papa como Anticristo. E, no século XIX, Alexander Hislop escreveu: “A mente protestante iluminada jamais teve dificuldade de identificar a mulher que se assenta sobre as sete colinas cujo nome escrito na fronte é ‘Mistério Babilônia, a Grande’ com a apostasia romana” (HISLOP, Alexander. The two Babylons. Introduction, p. 4. Disponível em www.biblebelievers.com).
Esses dados mostram que a tendência a interpretar as profecias com base na História recente é importante e benéfica, mas não deve ser exagerada. A História é um precioso auxiliar, mas não o fator preponderante da interpretação escatológica. Os símbolos de Apocalipse têm relação tão forte uns com os outros que o seu sentido não pode ser determinado somente por acontecimentos históricos. Por exemplo: a mulher é uma espécie simbólica cujo significado depende das suas aparições no livro de João, isto é, da mulher vestida do sol, no capítulo 12, e da prostituta do décimo-sétimo. Não faz sentido uma dessas mulheres significar uma coletividade humana (por exemplo, o povo de Deus), e a outra, algo totalmente diverso, ainda que a História o sugira.
No quadro simbólico de Apocalipse, a prostituta tem estreita relação com a besta. Se esta aparece no sétimo selo (ao qual o capítulo 13 pertence), não é possível desvinculá-la do Império Romano. Afinal, todos os sete selos referem-se a Roma. A despeito dos acontecimentos históricos, essa relação entre os símbolos deve ser preservada.
Outra relação importante é a que se estabelece entre a mulher vestida do sol, a meretriz e o deserto. A primeira representa o povo de Deus dos séculos. Após dar à luz o filho varão, ela se refugia no deserto (Ap 12:5-6), onde aguarda a manifestação final de Cristo. Esse lugar (o deserto) em que o povo de Deus aguarda o retorno de Cristo deve ser o hades. Portanto, o fato de a segunda mulher e a besta terem sido vistas por João no deserto pode indicar que a aliança entre elas se forma no período pós-morte.
Apocalipse 17:18 revela claramente a identidade da meretriz: “A mulher que viste é a grande cidade que reina sobre os reis da terra”. No contexto da época, essa grande cidade só podia ser Roma. Não obviamente suas ruas e praças, mas sua classe dominante, a aristocracia romana, que praticamente governava o mundo e dava ordens aos reis. Embora a cidade de Roma ainda exista, a aristocracia que criou e manteve o culto dos Imperadores (a prostituição espiritual) não está mais na Terra. No entanto, isso não revoga o fato de ter desempenhado o papel da grande meretriz, que será futuramente julgada por Deus, seja na Terra, seja no hades.
A prostituição espiritual de Roma foi extremamente grave, como demonstrado pelo episódio em que Caio Calígula tentou se fazer adorar como deus, no Templo de Jerusalém. Fílon de Alexandria deixou um relato dramático da trama que envolveu esse intento imperial: “Caio começou por querer passar por semideus, como Baco, Hércules, Castor e Pollux, Tristão, Anfiauro, Anfíloco e outros [...] Mas a loucura de Caio não se deteve. Foi pouco para ele igualar-se aos semideuses; ele quis mesmo igualar-se aos deuses. Começou por querer passar por Mercúrio [...] Outra vez, para se parecer com Apolo, coroou a cabeça com uma auréola [...] Os judeus foram os únicos capazes de se opor aos seus desígnios, pois desde a infância aprenderam de seus antepassados, por uma constante tradição e ainda mais por suas santas leis, que existe um só Deus [...] À luz dessas ideias, não poderia haver empreendimento mais ousado e mais ímpio do que pretender trocar um homem mortal num deus imortal [...] No entanto, o Imperador [Calígula] ordenou que se colocasse a sua estátua no santuário [de Jerusalém] e que se escrevesse na coluna o nome de Júpiter” (Relato de Fílon. In Josefo, Flávio. História dos Hebreus – obra completa. 5ª ed., Rio de Janeiro: CPAD, 1999. pp. 764-766,771) .
Tal foi a prostituição da grande Babilônia. Simplesmente, não é possível confundi-la com os atos do Papa ou da Igreja Católica. Nem aquele, nem esta é a grande Babilônia. O poder que produziu e comandou o culto ao Imperador, somente ele, o é. Por isso, ele é comparado à Babilônia do Antigo Testamento e, ao mesmo tempo, diferenciado dela por uma palavra: grande. Roma é, no Novo Testamento, o que Babilônia foi para a idolatria no Antigo, com a única diferença de que a sua obra maligna é muito mais profunda. Por isso, a nova Babilônia é chamada grande em comparação com a antiga. Por isso também, o seu nome não é só um símbolo, como os outros nomes, mas também um mistério (Ap 17:5).
Essa é a mulher que cavalga a besta. O fato de Anticristo ser um poder vindouro implica que a mulher também o é. Do contrário, não lhe seria possível cavalgar a besta. Muito menos ser destruída pelos dez governantes representados pelos chifres desta. Mas isso não significa que uma aristocracia como a da época em que Roma governou o orbe será restaurada ou assumirá função análoga à que teve no primeiro século. A mulher é a cidade de Roma (Ap 17:18), que existiu no passado, existe hoje e existirá no futuro. Os governantes de Roma vindoura, não os do passado ou os do presente, é que montarão a besta, provavelmente por meio de acordos internacionais.
A meretriz, porém, não é qualquer governante. Ela é um símbolo dos governantes prostituídos pela adoração ao Imperador. Como essa adoração ocorreu no passado e não há garantia bíblica de que será explicitamente retomada no futuro, é preciso supor que um dos líderes da adoração a César, nos primeiros séculos, retornará ao mundo como governante da grande cidade. É o que significa a besta, o oitavo rei, emergir do abismo, o lugar dos mortos.
No texto sobre Anticristo, vimos que a besta deve ser Nero, e o fato de ele retornar à Terra e assumir o governo de Roma e seus domínios basta para atribuir a esse poder restaurado o significado de uma prostituição espiritual. Como chefe do movimento que implantou a prostituição, Nero não pode senão representá-la. Não pode também deixar de trazê-la de volta. Só não sabemos em que medida o fará e se a restauração do movimento idólatra será visível, ostensiva e formal, como foi nos primeiros séculos. Como já disse, o fato de Nero reviver e assumir o governo de Roma basta para tornar seu governo uma forma de prostituição.
Apocalipse foi escrito para mostrar que os pecados não ficarão impunes. E que aos maiores pecados corresponderão os maiores juízos. “Quem é injusto, faça injustiça ainda: e quem está sujo, suje-se ainda; e quem é justo, faça justiça ainda; e quem é santo, santifique-se ainda. Eis que cedo venho e está comigo a minha recompensa, para retribuir a cada um segundo a sua obra” (Ap 22:11-12). A prostituição da grande Babilônia é a maior de todas as injustiças, e a resistência a ela, um dos mais heróicos capítulos da História.
Esses dados mostram que a tendência a interpretar as profecias com base na História recente é importante e benéfica, mas não deve ser exagerada. A História é um precioso auxiliar, mas não o fator preponderante da interpretação escatológica. Os símbolos de Apocalipse têm relação tão forte uns com os outros que o seu sentido não pode ser determinado somente por acontecimentos históricos. Por exemplo: a mulher é uma espécie simbólica cujo significado depende das suas aparições no livro de João, isto é, da mulher vestida do sol, no capítulo 12, e da prostituta do décimo-sétimo. Não faz sentido uma dessas mulheres significar uma coletividade humana (por exemplo, o povo de Deus), e a outra, algo totalmente diverso, ainda que a História o sugira.
No quadro simbólico de Apocalipse, a prostituta tem estreita relação com a besta. Se esta aparece no sétimo selo (ao qual o capítulo 13 pertence), não é possível desvinculá-la do Império Romano. Afinal, todos os sete selos referem-se a Roma. A despeito dos acontecimentos históricos, essa relação entre os símbolos deve ser preservada.
Outra relação importante é a que se estabelece entre a mulher vestida do sol, a meretriz e o deserto. A primeira representa o povo de Deus dos séculos. Após dar à luz o filho varão, ela se refugia no deserto (Ap 12:5-6), onde aguarda a manifestação final de Cristo. Esse lugar (o deserto) em que o povo de Deus aguarda o retorno de Cristo deve ser o hades. Portanto, o fato de a segunda mulher e a besta terem sido vistas por João no deserto pode indicar que a aliança entre elas se forma no período pós-morte.
Apocalipse 17:18 revela claramente a identidade da meretriz: “A mulher que viste é a grande cidade que reina sobre os reis da terra”. No contexto da época, essa grande cidade só podia ser Roma. Não obviamente suas ruas e praças, mas sua classe dominante, a aristocracia romana, que praticamente governava o mundo e dava ordens aos reis. Embora a cidade de Roma ainda exista, a aristocracia que criou e manteve o culto dos Imperadores (a prostituição espiritual) não está mais na Terra. No entanto, isso não revoga o fato de ter desempenhado o papel da grande meretriz, que será futuramente julgada por Deus, seja na Terra, seja no hades.
A prostituição espiritual de Roma foi extremamente grave, como demonstrado pelo episódio em que Caio Calígula tentou se fazer adorar como deus, no Templo de Jerusalém. Fílon de Alexandria deixou um relato dramático da trama que envolveu esse intento imperial: “Caio começou por querer passar por semideus, como Baco, Hércules, Castor e Pollux, Tristão, Anfiauro, Anfíloco e outros [...] Mas a loucura de Caio não se deteve. Foi pouco para ele igualar-se aos semideuses; ele quis mesmo igualar-se aos deuses. Começou por querer passar por Mercúrio [...] Outra vez, para se parecer com Apolo, coroou a cabeça com uma auréola [...] Os judeus foram os únicos capazes de se opor aos seus desígnios, pois desde a infância aprenderam de seus antepassados, por uma constante tradição e ainda mais por suas santas leis, que existe um só Deus [...] À luz dessas ideias, não poderia haver empreendimento mais ousado e mais ímpio do que pretender trocar um homem mortal num deus imortal [...] No entanto, o Imperador [Calígula] ordenou que se colocasse a sua estátua no santuário [de Jerusalém] e que se escrevesse na coluna o nome de Júpiter” (Relato de Fílon. In Josefo, Flávio. História dos Hebreus – obra completa. 5ª ed., Rio de Janeiro: CPAD, 1999. pp. 764-766,771) .
Tal foi a prostituição da grande Babilônia. Simplesmente, não é possível confundi-la com os atos do Papa ou da Igreja Católica. Nem aquele, nem esta é a grande Babilônia. O poder que produziu e comandou o culto ao Imperador, somente ele, o é. Por isso, ele é comparado à Babilônia do Antigo Testamento e, ao mesmo tempo, diferenciado dela por uma palavra: grande. Roma é, no Novo Testamento, o que Babilônia foi para a idolatria no Antigo, com a única diferença de que a sua obra maligna é muito mais profunda. Por isso, a nova Babilônia é chamada grande em comparação com a antiga. Por isso também, o seu nome não é só um símbolo, como os outros nomes, mas também um mistério (Ap 17:5).
Essa é a mulher que cavalga a besta. O fato de Anticristo ser um poder vindouro implica que a mulher também o é. Do contrário, não lhe seria possível cavalgar a besta. Muito menos ser destruída pelos dez governantes representados pelos chifres desta. Mas isso não significa que uma aristocracia como a da época em que Roma governou o orbe será restaurada ou assumirá função análoga à que teve no primeiro século. A mulher é a cidade de Roma (Ap 17:18), que existiu no passado, existe hoje e existirá no futuro. Os governantes de Roma vindoura, não os do passado ou os do presente, é que montarão a besta, provavelmente por meio de acordos internacionais.
A meretriz, porém, não é qualquer governante. Ela é um símbolo dos governantes prostituídos pela adoração ao Imperador. Como essa adoração ocorreu no passado e não há garantia bíblica de que será explicitamente retomada no futuro, é preciso supor que um dos líderes da adoração a César, nos primeiros séculos, retornará ao mundo como governante da grande cidade. É o que significa a besta, o oitavo rei, emergir do abismo, o lugar dos mortos.
No texto sobre Anticristo, vimos que a besta deve ser Nero, e o fato de ele retornar à Terra e assumir o governo de Roma e seus domínios basta para atribuir a esse poder restaurado o significado de uma prostituição espiritual. Como chefe do movimento que implantou a prostituição, Nero não pode senão representá-la. Não pode também deixar de trazê-la de volta. Só não sabemos em que medida o fará e se a restauração do movimento idólatra será visível, ostensiva e formal, como foi nos primeiros séculos. Como já disse, o fato de Nero reviver e assumir o governo de Roma basta para tornar seu governo uma forma de prostituição.
Apocalipse foi escrito para mostrar que os pecados não ficarão impunes. E que aos maiores pecados corresponderão os maiores juízos. “Quem é injusto, faça injustiça ainda: e quem está sujo, suje-se ainda; e quem é justo, faça justiça ainda; e quem é santo, santifique-se ainda. Eis que cedo venho e está comigo a minha recompensa, para retribuir a cada um segundo a sua obra” (Ap 22:11-12). A prostituição da grande Babilônia é a maior de todas as injustiças, e a resistência a ela, um dos mais heróicos capítulos da História.
sexta-feira, 6 de julho de 2012
A Grande Ceia
Na parábola da grande ceia, um homem chama muitos conhecidos para comerem na sua casa, mas todos declinam do convite. Sem alternativa, posto que a ceia está pronta, ele manda um servo buscar miseráveis, nas ruas e becos da cidade, e os que estão nos caminhos e valados do campo, para participarem da festa. Assim, o grande banquete se realiza com convidados de última hora.
Já se propôs que os convidados iniciais do banquete representam os líderes religiosos judeus, que não aceitaram o evangelho, os miseráveis simbolizam os judeus aflitos das classes mais baixas, e as pessoas trazidas do campo, os gentios. A interpretação parece acertada. Porém, a parábola não sugere que a salvação dependa da classe social ou da nacionalidade dos ouvintes do evangelho. Sugere ao contrário que ela depende apenas da atitude espiritual das pessoas.
Os líderes religiosos da época de Jesus, assim como o fariseu que o convidou à sua casa, são geralmente descritos como pessoas com o coração fechado ao evangelho. No entanto, a parábola os retrata como amigos do dono da casa. Talvez até como íntimos dele. Nessa condição, eles não entram em litígio com a personagem central, não maltratam os servos que ela lhes envia, nem se opõem à realização da festa, somente apresentam desculpas para não comparecerem. Do ponto de vista histórico, essa é a atitude dos líderes judeus para com o evangelho.
“No texto de Lucas, a salvação não se opõe a uma perdição. Os convidados que não comparecem à ceia prejudicam-se com esse ato, mas não são punidos por ele. O dono da casa se limita a dizer que ‘nenhum daqueles homens que foram convidados provará a minha ceia’.”
A parábola não sugere que os líderes judeus se tornaram inimigos do dono da casa ou foram punidos, por não terem aceito o convite dele. Pelo contrário, o caráter judicial típico da pregação do evangelho, nos nossos dias, é totalmente estranho ao texto de Lucas. Nele, a salvação não se opõe a uma perdição. Os convidados que não comparecem à ceia prejudicam-se com esse ato, mas não são punidos por ele. O dono da casa se limita a dizer que “nenhum daqueles homens que foram convidados provará a minha ceia” (Lc 14:24).
Por não se revestir de sentido judicial, a oferta de salvação aos líderes judeus é assemelhada a um convite, não a um mandamento. Um convite pode ser legitimamente aceito ou recusado. Em nenhum desses casos, o convidado transgride uma norma ou pratica um ato passível de punição. Menos ainda o fazem os pobres, paralíticos, cegos e coxos da parábola, que aceitam o convite.
Pode-se, então, perguntar por que Jesus afirmou que “quem crer e for batizado será salvo; mas quem não crer será condenado” (Mc 16:15-16). Penso que essa apresentação acentuadamente judicial do evangelho só se aplica aos integrantes do terceiro grupo, sobre os quais o anfitrião afirma: “Sai pelos caminhos e valados, e obriga-os a entrar” (Lc 14:23). Só o verbo obrigar, empregado nesse versículo, traz implícita a possibilidade do uso de força ou mesmo de punições.
Se considerarmos que as parábolas de Jesus sempre partem de costumes e crenças correntes no primeiro século, teremos de perguntar que prática era a de obrigar pessoas desconhecidas a realizarem determinadas tarefas. Talvez fosse a prática a que os romanos recorreram, ao obrigarem Simão Cireneu a carregar a cruz de Cristo. A imposição de pequenos atos compulsórios, a escravos ou servos de outras pessoas, era admitida em certas situações. É possível que Simão fosse um servo e, por isso, retornasse do campo, quando foi obrigado a realizar um trabalho gratuito para os romanos (Mc 15:21; Lc 23:26). De modo não muito distinto, o homem da parábola obrigou pessoas estranhas a comparecerem ao banquete em sua casa.
Mas por que os convivas foram tratados de modos tão diferentes? O contexto da história o explica: os que não foram à ceia conheciam o anfitrião; o mesmo se pode concluir a respeito dos miseráveis buscados nas ruas. Porém, o terceiro grupo foi buscado fora da cidade. Portanto, era composto por desconhecidos, que não queriam ir à festa.
As diferentes maneiras de chamar os três grupos nos lembram que a pregação do evangelho não tem o mesmo sentido para todas as pessoas. Em Marcos 16:15-16, Jesus enviou seus discípulos a nações que não o conheciam, nem conheciam o Deus de Israel. Isso explica os termos severos empregados para caracterizar a pregação a elas. Porém, em outras passagens, ele recomendou que a pregação se fizesse em termos muito diferentes, o que raramente é lembrado.
Contra essa clara modulação da pregação nos Evangelhos, quanta homogeneidade, quanta indiferenciação se percebem na pregação de hoje! Tornou-se costume anunciar a mensagem de Cristo da mesma maneira a todas as pessoas. E o pior é que a maneira é quase sempre a judicial. Quantas pessoas não são convidadas, mas constrangidas e ameaçadas, sem necessidade, para comparecerem ao banquete de Deus.
“Quem não crer será condenado”: este parece ser o anúncio que restou para os cristãos divulgarem ao mundo. O anúncio tem seu lugar e sua hora, mas não pode ser interpretado como uma condenação ao suplício eterno pronunciada em razão de uma abstenção, um não-fazer ou não-crer.
Já se propôs que os convidados iniciais do banquete representam os líderes religiosos judeus, que não aceitaram o evangelho, os miseráveis simbolizam os judeus aflitos das classes mais baixas, e as pessoas trazidas do campo, os gentios. A interpretação parece acertada. Porém, a parábola não sugere que a salvação dependa da classe social ou da nacionalidade dos ouvintes do evangelho. Sugere ao contrário que ela depende apenas da atitude espiritual das pessoas.
Os líderes religiosos da época de Jesus, assim como o fariseu que o convidou à sua casa, são geralmente descritos como pessoas com o coração fechado ao evangelho. No entanto, a parábola os retrata como amigos do dono da casa. Talvez até como íntimos dele. Nessa condição, eles não entram em litígio com a personagem central, não maltratam os servos que ela lhes envia, nem se opõem à realização da festa, somente apresentam desculpas para não comparecerem. Do ponto de vista histórico, essa é a atitude dos líderes judeus para com o evangelho.
“No texto de Lucas, a salvação não se opõe a uma perdição. Os convidados que não comparecem à ceia prejudicam-se com esse ato, mas não são punidos por ele. O dono da casa se limita a dizer que ‘nenhum daqueles homens que foram convidados provará a minha ceia’.”
A parábola não sugere que os líderes judeus se tornaram inimigos do dono da casa ou foram punidos, por não terem aceito o convite dele. Pelo contrário, o caráter judicial típico da pregação do evangelho, nos nossos dias, é totalmente estranho ao texto de Lucas. Nele, a salvação não se opõe a uma perdição. Os convidados que não comparecem à ceia prejudicam-se com esse ato, mas não são punidos por ele. O dono da casa se limita a dizer que “nenhum daqueles homens que foram convidados provará a minha ceia” (Lc 14:24).
Por não se revestir de sentido judicial, a oferta de salvação aos líderes judeus é assemelhada a um convite, não a um mandamento. Um convite pode ser legitimamente aceito ou recusado. Em nenhum desses casos, o convidado transgride uma norma ou pratica um ato passível de punição. Menos ainda o fazem os pobres, paralíticos, cegos e coxos da parábola, que aceitam o convite.
Pode-se, então, perguntar por que Jesus afirmou que “quem crer e for batizado será salvo; mas quem não crer será condenado” (Mc 16:15-16). Penso que essa apresentação acentuadamente judicial do evangelho só se aplica aos integrantes do terceiro grupo, sobre os quais o anfitrião afirma: “Sai pelos caminhos e valados, e obriga-os a entrar” (Lc 14:23). Só o verbo obrigar, empregado nesse versículo, traz implícita a possibilidade do uso de força ou mesmo de punições.
Se considerarmos que as parábolas de Jesus sempre partem de costumes e crenças correntes no primeiro século, teremos de perguntar que prática era a de obrigar pessoas desconhecidas a realizarem determinadas tarefas. Talvez fosse a prática a que os romanos recorreram, ao obrigarem Simão Cireneu a carregar a cruz de Cristo. A imposição de pequenos atos compulsórios, a escravos ou servos de outras pessoas, era admitida em certas situações. É possível que Simão fosse um servo e, por isso, retornasse do campo, quando foi obrigado a realizar um trabalho gratuito para os romanos (Mc 15:21; Lc 23:26). De modo não muito distinto, o homem da parábola obrigou pessoas estranhas a comparecerem ao banquete em sua casa.
Mas por que os convivas foram tratados de modos tão diferentes? O contexto da história o explica: os que não foram à ceia conheciam o anfitrião; o mesmo se pode concluir a respeito dos miseráveis buscados nas ruas. Porém, o terceiro grupo foi buscado fora da cidade. Portanto, era composto por desconhecidos, que não queriam ir à festa.
As diferentes maneiras de chamar os três grupos nos lembram que a pregação do evangelho não tem o mesmo sentido para todas as pessoas. Em Marcos 16:15-16, Jesus enviou seus discípulos a nações que não o conheciam, nem conheciam o Deus de Israel. Isso explica os termos severos empregados para caracterizar a pregação a elas. Porém, em outras passagens, ele recomendou que a pregação se fizesse em termos muito diferentes, o que raramente é lembrado.
Contra essa clara modulação da pregação nos Evangelhos, quanta homogeneidade, quanta indiferenciação se percebem na pregação de hoje! Tornou-se costume anunciar a mensagem de Cristo da mesma maneira a todas as pessoas. E o pior é que a maneira é quase sempre a judicial. Quantas pessoas não são convidadas, mas constrangidas e ameaçadas, sem necessidade, para comparecerem ao banquete de Deus.
“Quem não crer será condenado”: este parece ser o anúncio que restou para os cristãos divulgarem ao mundo. O anúncio tem seu lugar e sua hora, mas não pode ser interpretado como uma condenação ao suplício eterno pronunciada em razão de uma abstenção, um não-fazer ou não-crer.
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