“É tempo de mortos faladores
e velhas paralíticas, nostálgicas de bailado, mas
ainda é tempo de viver e contar.”
(Carlos Drummond de Andrade)
OS MANUSCRITOS DO DESERTO
O Burro permaneceu com os quatro por vários dias. Acompanhou-os nas coletas de frutos e raízes, nas buscas de bocados de mel, na caça de bichos que lhes pudessem engrossar as pernas para a marcha. Mais do que tudo, porém, seguiu-os na apuração das espécies que habitavam no oásis, na perscrutação dos seixos que enchiam a caverna em forma de dedo e na investigação que empreenderam do céu.
Assim, em fadigas e deslumbramentos, passaram o tempo de uma estação. Certa noite, com base no movimento de certos astros, calcularam que, se não se apressassem a alcançar a falésia, que marcava a divisa do deserto com o oceano, só o fariam no inverno, o que implicaria penas maiores e talvez a morte. Então, a contragosto, os Símios decidiram arrostar a distância que os segregava da mata à beira-mar e da comunidade animal que a habitava. Conceberam para isso um plano tão simples quanto molesto de se executar: caminhariam de dia e buscariam refúgio em abrigos naturais durante as noites.
Caco, porém, vacilava como uma cana agitada. Incertezas o assaltavam. Terrores povoavam seus sonhos. Ainda assim, emergiu do conflito com a convicção de que deviam partir. Comunicou essa ideia aos amigos, que tremeram ao pensar que, vindo de Caco, o mais reticente do grupo, o convite devia indicar um considerável atraso. Anuíram, pois, preocupados em remir o tempo perdido.
Despediram-se então do Burro, ao qual se tinham afeiçoado, apartaram-se do oásis e retomaram a viagem. Enquanto marchavam, o vento soprava a música característica daquelas paragens. Seu diapasão era como a voz de um profeta, que ecoa quando todas as bocas foram amordaçadas, a força extinguiu-se no coração de todos, e a rendição ditou os seus termos. Enfim, quando a ordem cultural oscila. E a ordem cultural, símia e humana, vacilava de feito.
Por isso, o mavioso oráculo do vento encheu aquele deserto. Transformou-o numa autêntica sala de concerto. E todo ouvido que não era mouco ouviu a sua música. E a música se fez logos e habitou no coração dos quatro.
Após ter enchido as dimensões do espaço desértico, a melodia, Beleza no corpo de sons, não permaneceu vã, antes concebeu e deu à luz. Porém, como todo parto, esse também começou com dores. Mas, por um toque transformador semelhante ao do Burro em seu dono, as dores se converteram em alegria esfuziante, pelo que sucedeu em seguida.
Quando a exaustão atingira o paroxismo e o espírito se esvaía do corpo dos Símios, de quatro nadas se fez a vida. Caco notificou aos demais a presença de uma formação semelhante às grutas e antros em que se tinham albergado durante a saga. A princípio, julgaram tratar-se de uma caverna. Mas, ao se acercarem, viram estupefatos que eram as ruínas de uma construção.
-- Homens viveram aqui, concluiu Caco. Monges, ao que o estilo da construção sugere...
-- É um mosteiro! completou Louça.
De Vidro consentiu e, ato contínuo, informou aos demais: se o era, devia existir ali uma fonte. E se puseram a procurá-la, com o fio de afã que lhes restava. O problema é que o fio tinha a grossura de mícrons, e não havia fonte alguma visível. O que significava a necessidade de cavar.
Sem outro remédio que esse, puseram-se a desbastar e sacar a terra com pedras que acharam ao redor. E não sabiam se cavavam um poço ou a própria cova. As pedras, porém, que encontraram nas ruínas eram tão apropriadas para o mister a que se entregaram que, no espaço de uma hora, chegaram a uma camada de terra úmida.
A vista do estrato de argila, os toques que lhe deram animaram-nos de maneira tal que encontraram forças para escavar um pouco mais celeremente. Decorrida outra hora, deram enfim com água. Sim, água pura e límpida! Mortos que estavam, ajoelharam-se e beberam. E a água os fez reviver.
Deitaram-se, então, à sombra das árvores que teimavam em crescer próximo à fonte, onde dormiram um sono extemporâneo, mas restaurador. Quando despertaram, de Vidro indagou aos demais se não se encontravam num mosteiro hinduísta. Movido pela indagação, que afinal era a de todos, o grupo se pôs a inspecionar a construção. Descobriu que era bastante diminuta, para os padrões da época em que tinha sido edificada.
Num instante, ouviu-se uma voz abafada:
-- Ossos, ossos!
Era a voz de Macaco de Louça, que gritava apavorado. Todos correram para levantar de que se tratava. O Macaco esgueirara-se pela fenda apertada de uma parede ao interior de um túmulo subterrâneo, onde desfalecera de terror ao deparar um número de ossos no chão. O lugar não só era exíguo, hermético e malcheiroso. Era também soturno e escuro, embora não completamente, posto que a luz o invadia por frestas como aquela de que Louça se tinha servido para entrar.
De Telha logo esgueirou-se para dentro do túmulo, no que foi seguido pelos demais. Ao entrarem, viram Macaco de Louça com a cabeça coberta por panos que achara num canto, para se proteger não sabia bem de quem ou de quê. Estava prostrado com ar apoplético sobre um altar a que se ascendia por uma pequena escada.
Acudiram o irmão semimorto e, em seguida, o acalmaram de todas as maneiras que se utilizam para acalmar. Disseram-lhe que os humanos, não raro, oferecem perigo e muito, mas não os seus ossos. Louça acalmou-se com o que lhe falaram, mas principalmente com a última frase. Era como se ela houvesse ativado um hemisfério, um circuito ou sabiam lá o quê, no seu cérebro, que estivera paralisado.
Assim, de Louça pôde inspirar longas lufadas do ar viciado do sepulcro e se sentir um pouco melhor.Com olhos vidrados, de Vidro mirava cada canto, cada centímetro, cada objeto no interior do sarcófago. Mas a penumbra o impedia ver com nitidez. Fez menção de iniciar a constatação dos achados. No entanto, quando se deu conta, o cheiro de mofo tinha expulsado seus companheiros do sepulcro. Não lhe restou alternativa, a não ser os seguir.
Porém, ao transpor a brecha por que haviam ingressado, notou um objeto pegajoso a poucos passos. De um salto, virou-se e o arrebatou. Uma nuvem de pó ergueu-se do achado. Instintivamente, de Vidro protegeu dela os olhos. Depois, descobrindo-os, viu tratar-se de um manuscrito. Tapando o nariz com a mão, examinou-o vagarosamente e pensou: “Pode haver outros”.
E pôs-se a rebuscar o chão, ao redor do local onde havia encontrado o rolo. Fez o mesmo adiante e além. Não poupou esforços, cuidados, exames táteis de toda espécie. Nada encontrou até que, de súbito, tropeçou num segundo objeto deposto num canto. Seu coração palpitava apressadamente. De Vidro apalpou o novo achado, depois o ergueu a meio metro da cabeça, para espiá-lo à claridade da brecha mais próxima. Mas a sequência de movimentos bastou para soerguer uma segunda nuvem, que encheu o aposento.
De Vidro enfezou-se por não ter evitado a última nuvem, quando já havia inalado a primeira. Mas tornou a cobrir os olhos e a esperar o que lhe pareceu lapso suficiente para as partículas de pó baixarem. Ao final, reabriu lentamente os olhos e verificou que estava na posse de um rolo ainda maior que o primeiro.
Animado e inquebrantável na resolução de pesquisar, de Vidro reencetou a perscrutação. Mas concluiu o exame sem encontrar outro objeto valioso. Então, exultante, estreitou os achados nos braços, espremeu-se contra os lados da fresta por que entrara e ganhou novamente o lado de fora.
Ao verem o Macaco sujo da cabeça aos pés, como um Porco do Mato após revirar na imundice, seus amigos riram-se à farta. Porém, como arrastava dois objetos grandes, logo se puseram sérios e correram-lhe ao encontro, mais tomados de interesse do que obsequiosos. À luz do sol, perceberam que um rolo era o texto do Antigo Testamento em seis colunas, cada qual numa versão diferente, e o outro, uma cópia do Contra Celso, de Orígenes de Alexandria.
De Vidro sentiu que aquele momento predestinado reservava-lhes mais, muito mais do que a descoberta de velharias. Não se conteve e exclamou:
-- A música levou-nos nas suas asas, para que vivêssemos o momento presente! Ela nos conduziu pela mão a estes livros...
Os Macacos já tinham ouvido falar da Bíblia. Também possuíam conhecimento da Hexapla, o primeiro dos manuscritos achados, e do Contra Celso. Mas Vidro não se referira ao conhecimento que é apenas um ouvir falar, um rumor que os maus ventos levam para lá e para cá. Referira-se à experiência da música que ele e seus amigos haviam escutado. A sinfonia que tornara possível a travessia fora diferente de tudo o que Vidro jamais tinha ouvido falar sobre a Bíblia.
Macaco de Vidro prosseguiu:
-- Ouvi dizer que Orígenes, que mandou copiar o primeiro e escreveu o segundo rolo que descobrimos, o fez para provar que o judeu Jesus foi o Cristo. A fim de verificar se as diferentes versões do Antigo Testamento realmente afirmavam isso, Orígenes mandou redigi-las verso por verso, em colunas paralelas.
De Telha indagou:
-- Mas por que compará-las, se eram traduções de um só texto? Não diziam todas, basicamente, o mesmo?
-- Não. As diferenças entre as versões eram consideráveis, o que levou Orígenes a alinhá-las e a realizar um longo trabalho de detetive sobre as colunas.
-- Mas as diferenças eram grandes a ponto de justificarem o escrever à mão um texto tão longo quanto o Antigo Testamento? E isso seis vezes? E em vários idiomas? E ainda com o cuidado de alinhar verso a verso o texto? insistiu Telha, perplexo.
-- As versões diferiam muito. Como as colunas paralelas do texto, às vezes, elas só se encontravam no infinito...
As palavras de Macaco de Vidro calaram fundo nos outros e até mesmo nele. Sem esperar, prosseguiu:
-- Orígenes não se deu tamanho trabalho à toa. Ele tinha um problema a resolver. Alguém precisava pronunciar uma palavra mais fundamentada sobre a grande questão judaica da época: se Jesus de Nazaré era o Cristo. Não foi por outra razão que Orígenes mandou incluir na Hexapla somente os livros do Antigo Testamento.
-- E o outro livro que achamos?
-- O Anti-Celso é a resposta de Orígenes ao primeiro libelo de um filósofo contra o cristianismo. Celso viveu no segundo século, quando a fé em Jesus começou a penetrar vigorosamente nos estratos privilegiados do Império Romano. Orígenes transcreveu palavra por palavra o livro de Celso, com o propósito de refutá-lo completamente. Por isso, o manuscrito pesa tanto quando o arrastamos.
De Vidro ainda falava, quando as pedras que tinham usado para cavar o poço disseram:
-- Até quando os homens ouvirão os mortos sem escutar o vento? Até quando lerão Moisés e Orígenes sem darem ouvidos à música que o oriental sopra?
Os quatro gelaram ao ouvirem aquelas palavras. Porém, não tanto quanto na ocasião em que as pedras da floresta haviam clamado. Até de Louça manteve-se composto.
-- Pedras, disse de Telha, quem vos comunicou esse incrível dom de falar?
-- Quem? Ora, quem... Não sabeis que, de pedras, Deus pode suscitar filhos a Abraão?
-- Como assim? perguntou de Louça, num esforço supremo.
-- Quando os homens não ouvem os mortos, nem o canto do vento, quando a ciência se faz bazófia, das pedras, Deus costuma suscitar filhos a Abraão.
-- En... Então sois filhas de Abraão? gaguejou de Louça.
-- Naturalmente...
-- E ainda naturalmente? disse cada vez mais espantado.
-- Sim. Num tempo em que os homens deixaram de ouvir Moisés, Orígenes, a música dos ventos e tantos outros mensageiros, as pedras não se limitam a clamar: fazem-se filhas de Abraão.
-- E Jesus? perguntou o descobridor do túmulo. Não deve também ser ouvido?
-- Não apenas ouvido. Ele é o assunto de que todos falam. “Quem é Jesus?”: esta é a pergunta que as eras formulam. Os manuscritos que descobristes foram compostos em razão dela. A descristianização que vemos grassar, em parte do mundo atual, não a deixa de ecoar. Mas a responde de um modo inverso.
-- Estudem os manuscritos, disseram por fim as pedras.
Depois dessa frase, nenhum outro som partiu delas. Por mais que os Macacos as interrogassem, cutucassem e até mesmo lançassem para cá e para lá, as pedras que haviam usado para escavar não lhes dirigiram mais a palavra. Tornaram ao seu estado natural, ao seu profundo sono.
Porém, os quatro tinham entendido, com inexcedível clareza, que o inquérito que empreendiam era muito mais amplo do que suspeitavam. Era sobre o tempo. E o tempo estava a exigir que os mortos lhes recontassem a antiga história de um novo modo.
E olharam para os manuscritos depostos no solo.
terça-feira, 29 de maio de 2012
quarta-feira, 23 de maio de 2012
O Inquérito dos Macacos (6)
“Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.”
(Carlos Drummond de Andrade)
O CÉU ESTRELADO
A noite principiava, quando os Macacos resolveram sair um pouco para tomar ar fresco, após o sofisticado mas angustioso debate que haviam recém mantido. Ao deixarem o claustro rochoso em que se tinham confinado, deram com um céu magnífico, de um negro profundo só contrastado pelo rutilante caminho de estrelas que os antigos apelidaram Via Láctea. Como o dia animava aquele quadro com o movimento e a sinfonia dos pássaros, a noite o mergulhava numa calma e silêncio tais que a alma do observador gelava.
O céu estrelado, palavra final de beleza, sempre constituíra a expressão acabada do mistério da existência. Não foi por outro motivo que esteve em quase todas as manifestações religiosas primitivas. O homem pré-histórico já via o céu como morada dos deuses. Mas quantas vezes essa obra cinzelada de artistas ou esse lance de dados, a depender da filosofia esposada, é esquecido, banalizado ao ponto da insignificância? Logo ele, cujo aspecto inumerável e imensurável parece ditar, linha a linha, a constituição da miséria do espírito que o contempla...
No deserto, a expansão do céu costuma ser extraordinariamente límpida. Nenhuma nuvem lhe oculta as maravilhas, a não ser, muito em raro, uma ou outra de areia. Por isso, ao primeiro e fugaz vislumbre que tiveram do céu noturno, os amigos alcançaram a compreensão imediata de que aquela escuridão magnífica, fosse o que fosse, tinha uma confissão a dizer-lhes. E resolveram tardar um pouco, para que a pudessem tomar.
Contaram para isso com a prodigalidade do oásis, em frutos, raízes, sombras e água. A bem da verdade, a formação vegetal que tinham encontrado não era menos que um microcosmo, um sistema de preservação da vida provido de tudo o que seres vivos necessitam ou podem necessitar, embora rodeado de areias finas cujas temperaturas excediam os 30 gaus. Não é despropositado, pois, afirmar que um oásis tão bem constituído convidava-os a prolongar a temporada tanto quanto fosse preciso para esquadrinhar completamente o céu, como pretendiam.
Foi o que os quatro fizeram, por uma semana. De dia, auscultavam o lugar por inteiro; de noite, sondavam o firmamento. Ao todo, discerniram perto de três mil estrelas. Mas se detiveram nas que se agrupam em constelações, como Andrômeda e as duas Ursas, cujas formas debateram sem consenso possível. No crepúsculo do sétimo dia, quando se dirigiam ao bosque em meio a animada conversação, surpreenderam-se com um Burro a pastar. O animal tinha as orelhas bem retesadas, para capturar os sons mais sutis. Como óbvio, havia escutado a conversa dos quatro.
-- Também me interesso por estrelas, disse sem mais.
-- Que bom! admirou-se de Telha. Temos um novo companheiro!
E perguntou-lhe com tanto rodeio quanto o outro empregara ao abordá-los:
-- Mas como fazes para enxergá-las, se tens a cabeça voltada para o chão?
-- Não entendeste bem. Meu jeito cabisbaixo de andar tem lá seus motivos. Mas tenho o focinho e a boca para baixo, não os olhos. Nada me escapa à vista. Vejo com a mesma perfeição com que ouço.
-- Então deves ver muito bem, pois tens as orelhas bem longas... declarou Telha.
-- Não imaginas quanto! concordou o Burro. E meu focinho, notaste-o?
-- Sim, caro amigo. É ingente.
-- Exageras, mas é tão grande quanto poderoso. Cheiro com perfeição todos os cheiros!
Essas palavras foram a causa de um verdadeiro despertamento dos quatro. Subitamente, atinaram que o seu novo interlocutor tinha os sentidos especialmente acurados. Caco imaginou inclusive que, se entrassem em entendimento, um bicho com tal acuidade talvez pudesse render-lhes um ótimo meio de transporte. Viu-se instalado no dorso do cargueiro, o que lhe acordou os demônios da prostração. E apelou para a lisonja:
-- Tens os sentidos mais poderosos do reino animal!
-- Longe disso, replicou o Burro. Mas me bastam para o gasto e ainda deixam sobras. Também sei pensar escorreitamente. Deduzo, conto, calculo.
Algo naquelas palavras denunciava um sentimento muito particular, mas difícil de discernir. Descartaram a possibilidade de se tratar de soberba, pois desta as palavras do Asno tinham somente a forma. Faltavam o desvanecimento, a ufania, a inchação psíquica, enfim tudo o que constitui o núcleo vital da soberba. Antes, o tom em que o Burro se dirigia a eles era uma antítese daquele sentimento. Mesmo assim, certa dúvida permaneceu sobre o que animava o Asno.
-- Então, dize-nos: quantas estrelas se veem no céu? interveio de Telha.
-- Milhares, respondeu o Burro, mas existem ainda muitas outras.
-- Quantas? insistiu o Macaco.
-- Infinitas.
-- Estás a afirmar que o Universo é infinito!
-- Sim, embora isso tenha pouco relevo.
-- Como assim? O Universo ser ou não infinito tem pouco relevo?
-- Tem-no enquanto questão teórica, respondeu prontamente o Burro. A ciência e a filosofia dependem das regras do pensamento conceitual. Elas não as podem trair, sob pena de perderem o próprio sentido. Porém, essas regras se submetem a um imperativo prático de ordem superior: animais só pensam o que os ajuda a realizar tarefas. O Universo infinito não os subsidia nas suas lidas diárias. Assim, não tem relevância.
-- Então a Astronomia é uma disciplina inútil?
-- Não em absoluto. Tudo depende do modo como a desenvolvem. Os antigos fizeram da Astronomia uma Astrologia. Deram-lhe, pois, um sentido prático. Pensavam que os astros deviam ser estudados para se determinar a sua interferência na vida humana. Verdade é que entenderam os movimentos dos corpos celestes muito mais imperfeitamente que o Homem atual. Mas adotaram o princípio certo. Preocupa-me esse princípio, mais que o volume do conhecimento. O conhecimento deve permanecer em harmonia com o seu imperativo prático. Desconfio que os Homens perderam o contato com essa harmonia, ao expandirem descontroladamente o seu conhecimento.
-- Então, lês o Zodíaco todos os dias? questionou de Vidro inopinadamente.
-- Leio as estrelas, estudo-as em busca de suas possíveis mensagens. Não leio horóscopo.
-- E por que não o lês? insistiu de Vidro.
-- Por razões muito práticas. Tenho um amigo, Burro como eu, que não vai trabalhar sem ler seu horóscopo. Por ter nascido em janeiro, crê piamente que a constelação de Capricórnio rege-lhe a vida. Outro dia, leu por engano o horóscopo de Gêmeos e foi trabalhar. Como de costume, só fez o que estava recomendado pela constelação cuja mensagem lera. No fim do dia, seu dono deu-lhe um balde de aveia. O Burro achou que era um prêmio dos astros por sua fidelidade. Empapuçou-se do cereal até não poder. Terminou com uma indigestão. E quando volveu ao horóscopo para entender como o bem se lhe tornara mal, constatou o erro de leitura. Concluiu que a aveia não lhe fora algum prêmio, e a indigestão manifestara a ira dos astros por sua pouca fidelidade em ler a mensagem das constelações. Entendes por que não creio em horóscopo? Não quero acabar como esse amigo. E prezo meu estômago...
De Vidro respondeu:
-- O que expuseste aplica-se à inteira saga da razão, desde que fez sua aparição sobre a Terra. A disjunção que o Homem atual criou, entre razão e fé, nunca foi formulada antes e é profundamente enganosa. Ela encobre uma outra, entre a razão divorciada do seu imperativo prático e a razão em núpcias com ele. Essa é a disjunção que a História da Razão mais demonstra. Fé não é credulidade, superstição, ilusão. É simplesmente a razão em núpcias com o sentido prático da existência. Como tal, ela se justifica pelo seu efeito, pelo resultado prático que produz, não pela descrição do mundo de que se serve. Só um tolo pensaria que o ato de crer tem a finalidade de descrever o mundo. Verdade é que a fé pode enfermar, quando se desgarra da razão, quando se protege das críticas roedoras do intelecto e se aliena. Mas essa não é a situação normal. O problema do tempo atual é ter plasmado um conhecimento contrário ao sentido prático de outros conhecimentos. É ter reincidido na histórica disjunção da razão e seu imperativo prático.
O diálogo, assim encetado, prosseguiu animado por mais algum tempo. Os cinco Mamíferos falavam, enquanto a noite caía sobre o deserto. Ao final, de Vidro perguntou ao Burro:
-- Disseste que teu amigo possui um dono. E o teu, onde está?
-- Não o tenho mais. Como um novo Midas (*), tornei-o um ex-dono, ao aliar a fé à razão e aos sentidos. Desde então, ele saiu pelo mundo a dizer-se Apolo. Assumi a fé que considero adequada à minha natureza; ele assumiu a divindade que pensa convir à sua. E perdeu a razão.
-- Teu ex-dono não disse que creste por seres Burro?
O Asno olhou para de Vidro com o olhar cabisbaixo característico da sua espécie. Foi a única resposta que lhe ofertou. O olhar atravessou de Vidro e perdeu-se na imensidão do deserto.
Junto com os outros, de Vidro continuou a caminhar, para lá e para cá, agora porém em silêncio. As últimas palavras do Asno reverberavam-lhe na mente: "Perdeu a razão. Perdeu a razão". Sim, e nunca mais desasnou.
Sobre os cinco, a verdade esplendia os seus fogos.
(*) Na mitologia grega, Midas foi o rei ao qual, num acesso de fúria, Apolo deu orelhas de burro. Em outro mito, Midas recebeu de Baco o poder de transformar em ouro o que tocasse.
onde a verdade esplendia seus fogos.”
(Carlos Drummond de Andrade)
O CÉU ESTRELADO
A noite principiava, quando os Macacos resolveram sair um pouco para tomar ar fresco, após o sofisticado mas angustioso debate que haviam recém mantido. Ao deixarem o claustro rochoso em que se tinham confinado, deram com um céu magnífico, de um negro profundo só contrastado pelo rutilante caminho de estrelas que os antigos apelidaram Via Láctea. Como o dia animava aquele quadro com o movimento e a sinfonia dos pássaros, a noite o mergulhava numa calma e silêncio tais que a alma do observador gelava.
O céu estrelado, palavra final de beleza, sempre constituíra a expressão acabada do mistério da existência. Não foi por outro motivo que esteve em quase todas as manifestações religiosas primitivas. O homem pré-histórico já via o céu como morada dos deuses. Mas quantas vezes essa obra cinzelada de artistas ou esse lance de dados, a depender da filosofia esposada, é esquecido, banalizado ao ponto da insignificância? Logo ele, cujo aspecto inumerável e imensurável parece ditar, linha a linha, a constituição da miséria do espírito que o contempla...
No deserto, a expansão do céu costuma ser extraordinariamente límpida. Nenhuma nuvem lhe oculta as maravilhas, a não ser, muito em raro, uma ou outra de areia. Por isso, ao primeiro e fugaz vislumbre que tiveram do céu noturno, os amigos alcançaram a compreensão imediata de que aquela escuridão magnífica, fosse o que fosse, tinha uma confissão a dizer-lhes. E resolveram tardar um pouco, para que a pudessem tomar.
Contaram para isso com a prodigalidade do oásis, em frutos, raízes, sombras e água. A bem da verdade, a formação vegetal que tinham encontrado não era menos que um microcosmo, um sistema de preservação da vida provido de tudo o que seres vivos necessitam ou podem necessitar, embora rodeado de areias finas cujas temperaturas excediam os 30 gaus. Não é despropositado, pois, afirmar que um oásis tão bem constituído convidava-os a prolongar a temporada tanto quanto fosse preciso para esquadrinhar completamente o céu, como pretendiam.
Foi o que os quatro fizeram, por uma semana. De dia, auscultavam o lugar por inteiro; de noite, sondavam o firmamento. Ao todo, discerniram perto de três mil estrelas. Mas se detiveram nas que se agrupam em constelações, como Andrômeda e as duas Ursas, cujas formas debateram sem consenso possível. No crepúsculo do sétimo dia, quando se dirigiam ao bosque em meio a animada conversação, surpreenderam-se com um Burro a pastar. O animal tinha as orelhas bem retesadas, para capturar os sons mais sutis. Como óbvio, havia escutado a conversa dos quatro.
-- Também me interesso por estrelas, disse sem mais.
-- Que bom! admirou-se de Telha. Temos um novo companheiro!
E perguntou-lhe com tanto rodeio quanto o outro empregara ao abordá-los:
-- Mas como fazes para enxergá-las, se tens a cabeça voltada para o chão?
-- Não entendeste bem. Meu jeito cabisbaixo de andar tem lá seus motivos. Mas tenho o focinho e a boca para baixo, não os olhos. Nada me escapa à vista. Vejo com a mesma perfeição com que ouço.
-- Então deves ver muito bem, pois tens as orelhas bem longas... declarou Telha.
-- Não imaginas quanto! concordou o Burro. E meu focinho, notaste-o?
-- Sim, caro amigo. É ingente.
-- Exageras, mas é tão grande quanto poderoso. Cheiro com perfeição todos os cheiros!
Essas palavras foram a causa de um verdadeiro despertamento dos quatro. Subitamente, atinaram que o seu novo interlocutor tinha os sentidos especialmente acurados. Caco imaginou inclusive que, se entrassem em entendimento, um bicho com tal acuidade talvez pudesse render-lhes um ótimo meio de transporte. Viu-se instalado no dorso do cargueiro, o que lhe acordou os demônios da prostração. E apelou para a lisonja:
-- Tens os sentidos mais poderosos do reino animal!
-- Longe disso, replicou o Burro. Mas me bastam para o gasto e ainda deixam sobras. Também sei pensar escorreitamente. Deduzo, conto, calculo.
Algo naquelas palavras denunciava um sentimento muito particular, mas difícil de discernir. Descartaram a possibilidade de se tratar de soberba, pois desta as palavras do Asno tinham somente a forma. Faltavam o desvanecimento, a ufania, a inchação psíquica, enfim tudo o que constitui o núcleo vital da soberba. Antes, o tom em que o Burro se dirigia a eles era uma antítese daquele sentimento. Mesmo assim, certa dúvida permaneceu sobre o que animava o Asno.
-- Então, dize-nos: quantas estrelas se veem no céu? interveio de Telha.
-- Milhares, respondeu o Burro, mas existem ainda muitas outras.
-- Quantas? insistiu o Macaco.
-- Infinitas.
-- Estás a afirmar que o Universo é infinito!
-- Sim, embora isso tenha pouco relevo.
-- Como assim? O Universo ser ou não infinito tem pouco relevo?
-- Tem-no enquanto questão teórica, respondeu prontamente o Burro. A ciência e a filosofia dependem das regras do pensamento conceitual. Elas não as podem trair, sob pena de perderem o próprio sentido. Porém, essas regras se submetem a um imperativo prático de ordem superior: animais só pensam o que os ajuda a realizar tarefas. O Universo infinito não os subsidia nas suas lidas diárias. Assim, não tem relevância.
-- Então a Astronomia é uma disciplina inútil?
-- Não em absoluto. Tudo depende do modo como a desenvolvem. Os antigos fizeram da Astronomia uma Astrologia. Deram-lhe, pois, um sentido prático. Pensavam que os astros deviam ser estudados para se determinar a sua interferência na vida humana. Verdade é que entenderam os movimentos dos corpos celestes muito mais imperfeitamente que o Homem atual. Mas adotaram o princípio certo. Preocupa-me esse princípio, mais que o volume do conhecimento. O conhecimento deve permanecer em harmonia com o seu imperativo prático. Desconfio que os Homens perderam o contato com essa harmonia, ao expandirem descontroladamente o seu conhecimento.
-- Então, lês o Zodíaco todos os dias? questionou de Vidro inopinadamente.
-- Leio as estrelas, estudo-as em busca de suas possíveis mensagens. Não leio horóscopo.
-- E por que não o lês? insistiu de Vidro.
-- Por razões muito práticas. Tenho um amigo, Burro como eu, que não vai trabalhar sem ler seu horóscopo. Por ter nascido em janeiro, crê piamente que a constelação de Capricórnio rege-lhe a vida. Outro dia, leu por engano o horóscopo de Gêmeos e foi trabalhar. Como de costume, só fez o que estava recomendado pela constelação cuja mensagem lera. No fim do dia, seu dono deu-lhe um balde de aveia. O Burro achou que era um prêmio dos astros por sua fidelidade. Empapuçou-se do cereal até não poder. Terminou com uma indigestão. E quando volveu ao horóscopo para entender como o bem se lhe tornara mal, constatou o erro de leitura. Concluiu que a aveia não lhe fora algum prêmio, e a indigestão manifestara a ira dos astros por sua pouca fidelidade em ler a mensagem das constelações. Entendes por que não creio em horóscopo? Não quero acabar como esse amigo. E prezo meu estômago...
De Vidro respondeu:
-- O que expuseste aplica-se à inteira saga da razão, desde que fez sua aparição sobre a Terra. A disjunção que o Homem atual criou, entre razão e fé, nunca foi formulada antes e é profundamente enganosa. Ela encobre uma outra, entre a razão divorciada do seu imperativo prático e a razão em núpcias com ele. Essa é a disjunção que a História da Razão mais demonstra. Fé não é credulidade, superstição, ilusão. É simplesmente a razão em núpcias com o sentido prático da existência. Como tal, ela se justifica pelo seu efeito, pelo resultado prático que produz, não pela descrição do mundo de que se serve. Só um tolo pensaria que o ato de crer tem a finalidade de descrever o mundo. Verdade é que a fé pode enfermar, quando se desgarra da razão, quando se protege das críticas roedoras do intelecto e se aliena. Mas essa não é a situação normal. O problema do tempo atual é ter plasmado um conhecimento contrário ao sentido prático de outros conhecimentos. É ter reincidido na histórica disjunção da razão e seu imperativo prático.
O diálogo, assim encetado, prosseguiu animado por mais algum tempo. Os cinco Mamíferos falavam, enquanto a noite caía sobre o deserto. Ao final, de Vidro perguntou ao Burro:
-- Disseste que teu amigo possui um dono. E o teu, onde está?
-- Não o tenho mais. Como um novo Midas (*), tornei-o um ex-dono, ao aliar a fé à razão e aos sentidos. Desde então, ele saiu pelo mundo a dizer-se Apolo. Assumi a fé que considero adequada à minha natureza; ele assumiu a divindade que pensa convir à sua. E perdeu a razão.
-- Teu ex-dono não disse que creste por seres Burro?
O Asno olhou para de Vidro com o olhar cabisbaixo característico da sua espécie. Foi a única resposta que lhe ofertou. O olhar atravessou de Vidro e perdeu-se na imensidão do deserto.
Junto com os outros, de Vidro continuou a caminhar, para lá e para cá, agora porém em silêncio. As últimas palavras do Asno reverberavam-lhe na mente: "Perdeu a razão. Perdeu a razão". Sim, e nunca mais desasnou.
Sobre os cinco, a verdade esplendia os seus fogos.
(*) Na mitologia grega, Midas foi o rei ao qual, num acesso de fúria, Apolo deu orelhas de burro. Em outro mito, Midas recebeu de Baco o poder de transformar em ouro o que tocasse.
quinta-feira, 17 de maio de 2012
O Inquérito dos Macacos (5)
“Meu nome é tumulto, e escreve-se
Na pedra.”
(Carlos Drummond de Andrade)
PEGADAS NA ROCHA
O frio fazia estalar os ossos, quando os amigos despediram-se demoradamente do anfitrião que lhes proporcionara as mais agradáveis horas da expedição até aquele ponto e, em plena madrugada, retomaram a descida da face montanhosa oposta à que os havia conduzido ao pico.
Em poucas horas, os quatro alcançaram um desfiladeiro, cuja extensão venceram com cuidado para não subirem desapercebidos os taludes que se multiplicavam na impressionante formação. Ao final, deram com um terreno árido e levemente ondulado, que lhes pareceu desértico. Pelo que se julgaram na trilha correta.
A paisagem transfigurara-se. Em vez do gelo e das árvores das montanhas, estendia-se um solo arenoso tão vasto que parecia encravar-se no horizonte. E em lugar do frio cortante e do aroma silvestre que a umidade extraía do solo, nas terras altas, um vento morno crestava as faces dos expedicionários. Contudo, curiosamente, cenários assim tão diversos tinham algo em comum: ambos guardavam mistérios.
No deserto em pleno altiplano, esses mistérios estavam concentrados em rochas alcantiladas, a intervalos de poucos quilômetros umas das outras, que ofereciam refúgio a criaturas bizarras, cuja variedade abrangia de Artrópodes a Mamíferos e bandos de Homens. O chão ardia durante as manhãs e as tardes, mas esfriava conforme a temperatura do ar declinava aos níveis das regiões temperadas. Dessas características principais, que se abrangiam na palavra rusticidade, o lugar derivava seu encanto próprio. Ensinava outrossim a lição de que o espaço, mais do que um dado abstrato, é condição de possibilidade da própria existência e só costuma albergar os fortes ou os muito cooperativos. Especialmente os muito cooperativos.
Após caminharem duas horas sob sol causticante, os Macacos viram um pequeno oásis, onde se detiveram. Dessedentaram-se na fonte que brotava como milagre do chão arenoso, admiraram as árvores dispostas ao seu redor e comeram-lhes os frutos pendentes. Por fim, como o calor aumentasse, refugiaram-se num rochedo escarpado, que se erguia atrás da fonte como dedo a apontar para o céu.
No interior do penedo, não se via um ser vivo, um único vegetal, à exceção de musgos que teimavam em cobrir algumas pedras. Rochas, porém, as havia por toda parte: nas paredes, no teto e, principalmente, no chão. Aliás, de tão numerosas, estas últimas atapetavam a extensão do piso como um tesouro de conchas que ocultam pérolas. O leitor logo entenderá por quê.
Não resistindo à oferta incomum de seixos, Macaco de Telha pôs-se a bulir com eles. A uns agarrou, outros lançou, ainda outros friccionou. O que bastou para que percebesse que uma parte do calhau podia ser afiada e brandida como arma. Não vacilou, então, em emprestar às pedras formatos de armas, no que foi imitado pelos companheiros. E entraram a brincar e a correr e a guerrear com as formas inertes no interior da caverna. Porém, de um modo soturno, suas sombras projetadas na parede fronteira faziam-nos lutar com espectros e a quase crer que eram reais. Ao cabo, poder-se-ia concluir que o Acaso quisera encenar o mito platônico de um modo mais adequado à ciência, que tanto projeta vultos quanto examina fatos.
E como se respondesse ao Acaso, brincando, de Telha golpeou uma pedra com a ponta de um seixo afiado, com força e perícia tais que ele se abriu, como um livro, em partes iguais. Para alvoroço e confusão gerais, nas faces que haviam jazido no âmago do mineral durante eras, duas nítidas marcas se desvelaram. Tinham o formato de pés. No canto inferior de uma delas, um não sei quê estava incrustado; na posição correspondente da outra, uma pequena cova denunciava o local em que o objeto repousara, antes do golpe de Telha o desentranhar.
De Telha tomou nas mãos a meia pedra com o objeto encravado. Olhou-os por múltiplos ângulos. Como a penumbra não ajudava a enxergá-los, por instância dos companheiros, levou a pedra para fora, para que, ao sol, pudessem submetê-la à almejável disceptação. E qual não foi o assombro de todos, ao verem, consecutivamente, a nítida forma de um animalzinho em relevo!
-- É um Trilobita! gritou de Vidro num êxtase.
-- Sim, um Trilobita! anuiu o que rachara a pedra. E a marca em que está alojado é uma pegada humana! (*)
-- Hum, a caverna deve conter outras pedras desse feitio... completou de Caco. Temos descoberto um depósito fóssil!
A conclusão parecia sensata. No entanto, incrédulos, os quatro ainda olharam a pegada com o animal durante algum tempo. Miraram-na e tornaram a mirá-la, preguiçosamente. Depois a apalparam e discutiram, antes de se decidirem a buscar outros fósseis. Mas quando a isso se resolveram, levaram o resto da tarde a golpear e abrir pedras com outras pedras, com ferramentas desajeitadas, até mesmo com as mãos. Brincavam ainda, porquanto brincar era a sua função no mundo, mas já o faziam de maneira séria.
Com alegria semelhante à que os tomara momentos antes, os amigos realizaram outras e outras descobertas de Trilobitas e de pisadas humanas em algumas das rochas que abriram. No entanto, pedra como a primeira, com um Trilobita sobreposto à pisada, não descobriram. Ainda assim, deram-se por mais do que satisfeitos.
Ao final do dia, colheram côcos, bananas, pitangas, carambolas, granadilas e tamarilos, que carregaram à entrada da caverna. Subproduto dessa operação foi um rastro de frutos que ia das árvores à caverna. Se não aproveitou aos Macacos, o rastro por certo serviu às Aves. De todo modo, findo o mister, os amigos sentaram-se para comer. E o fize-ram bem rápido, pois a fome os assediava, mas não rápido o bastante para não trocarem impressões sobre as emoções do dia.
-- Os fósseis que descobrimos são todos de Homens e Trilobitas, lembrou de Vidro enquanto comiam. O estarem as rochas esparramadas e não dispostas em estratos deve significar que Homens e Trilobitas viveram na mesma época.
Caco somente aguardava que a óbvia, conquanto insólita conclusão fosse proclamada. Confiante, emendou:
-- Mas os Trilobitas extinguiram-se há 250 milhões de anos! Como podem ter convivido com os Homens, que estão na Terra há somente dois?
E sem esperar resposta, trouxe ao centro da discussão outro dado, que não passara despercebido aos demais, mas carecia fosse debatido:
-- Basta notar o formato retilíneo das bordas da pegada, para se concluir que foi produzida por um calçado, não por um pé desnudo. O andarilho esmagou o pequeno animal com uma sandália.
-- O que nos remete a um período ainda mais recente, em que os Homens já usavam calçados e vestimentas, interveio de Louça.
-- Mas a extinção dos Trilobitas, tornou a lembrar de Vidro, está muito bem documentada em Paleontologia. Eles abundam em fósseis de até 250 milhões de anos e então desaparecem. E o testemunho fóssil ainda é corroborado pela ausência total de Trilobitas hoje. Nenhum desses seres, outrora abundantes, foi encontrado vivo ou recentemente morto.
-- Tens razão, respondeu de Louça. A coexistência de Homens e Trilobitas, que as pedras demonstram, pode ser explicada de várias maneiras. Podemos recuar os Homens à época desses animaizinhos ou trazê-los à época humana. Só não podemos negar a coexistência atestada por tão grande número de pedras.
-- Tampouco devemos perder de vista, atalhou de Vidro, que os Trilobitas podem ter sido extintos, entre a época em que prosperaram e o aparecimento dos humanos na Terra. Por mais que a ciência das origens reflita a imagem da árvore, com muitas categorias surgindo de poucas e estas de uma, nada impede que os grupos tenham surgido e ressurgido uma ou mais vezes em lugares e épocas variados. Trilobitas como os que vemos podem ter emergido, sido extintos e reaparecido. Essa hipótese não explica melhor a coexistência deles com os Homens, que as pedras apontam?
-- Dias atrás, recordou de Louça, as pedras lá da floresta gritaram ao nosso redor. Estas não estão menos a ponto de clamar...
Os Macacos falavam enquanto pensavam, pensavam enquanto falavam. A discussão que travavam refletia as circunstâncias quase sempre aflitivas em que o inquérito se desenrolava. O tumulto da aventura induzia a estados de espírito turbulentos, e estes, a discussões às vezes desordenadas e passionais. Mas nem as dificuldades da aventura, nem o acalorado das discussões bastaram para frear a empreitada.
De Vidro apontou a relação da descoberta com a moderna teoria do parentesco dos seres vivos:
-- Uma população ter quase o mesmo patrimônio genético do primeiro ser de sua categoria não significa que descende dele. Os animaizinhos que hoje encontramos compartilham a base genética dos seus semelhantes antigos, mas não descendem deles, já que os primeiros Trilobitas vieram a extinguir-se. O dogma da origem única de cada grupo vacila. E se o faz, não estamos obrigados a conceber a descendência como sinônimo de origem de um único e mesmo tronco ancestral.
Após tanto considerar, de Vidro ainda formulou duas perguntas como quem despede flechas certeiras:
-- Não é de rigor estendermos nossas reflexões sobre os Trilobitas a outros grupos? Se um ser sobre a Terra, hoje, pode não descender do primeiro exemplar do seu tipo, mas de outro posterior, não é legítimo pensarmos que um grupo pode ter-se originado diversas vezes e não uma só? A lei científica, a regularidade natural, a generalização concebida ou inventada pelo Homem deve balizar, mas não coarctar o pensamento. Ela não pode coagir a inteligência a desconsiderar qualquer das possíveis explicações dos fatos. Especialmente as explicações que repousam em provas tão claras que parecem clamar como as pedras.
E arrematou:
-- Darwin criou uma ideia bem definida de descendência com modificação. Esculpiu-a e a lapidou como artista, porém, assim como os fatos de tempos remotos modificaram as espécies do modo como ele propôs, descobertas recentes estão a exigir modificações no conceito de descendência. Mudar ao longo de gerações não necessariamente significa prender-se a um só ancestral. A descendência dos seres de todas as épocas talvez se assemelhe mais a uma teia, com fios entrelaçados, do que a uma árvore.
Não há como negar que tantas conjecturas, perguntas, dúvidas e evidências contraditórias espelhavam mentes em conflito atroz. Mas o tumulto maior que assaltava os amigos e os fazia fremir de emoção estava posto nos fatos. Destes é que ele se desprendia e imprimia na alma dos quatro, como um timbre de muitas verdades ou um feixe de luz que atravessa um prisma.
(*) Um fóssil de trilobita no interior da pegada de um homem calçando sandálias foi descoberto, em 1968, a 70 quilômetros da cidade de Delta, nos Estados Unidos, por William J. Meister. O texto baseia-se nessa descoberta real.
Na pedra.”
(Carlos Drummond de Andrade)
PEGADAS NA ROCHA
O frio fazia estalar os ossos, quando os amigos despediram-se demoradamente do anfitrião que lhes proporcionara as mais agradáveis horas da expedição até aquele ponto e, em plena madrugada, retomaram a descida da face montanhosa oposta à que os havia conduzido ao pico.
Em poucas horas, os quatro alcançaram um desfiladeiro, cuja extensão venceram com cuidado para não subirem desapercebidos os taludes que se multiplicavam na impressionante formação. Ao final, deram com um terreno árido e levemente ondulado, que lhes pareceu desértico. Pelo que se julgaram na trilha correta.
A paisagem transfigurara-se. Em vez do gelo e das árvores das montanhas, estendia-se um solo arenoso tão vasto que parecia encravar-se no horizonte. E em lugar do frio cortante e do aroma silvestre que a umidade extraía do solo, nas terras altas, um vento morno crestava as faces dos expedicionários. Contudo, curiosamente, cenários assim tão diversos tinham algo em comum: ambos guardavam mistérios.
No deserto em pleno altiplano, esses mistérios estavam concentrados em rochas alcantiladas, a intervalos de poucos quilômetros umas das outras, que ofereciam refúgio a criaturas bizarras, cuja variedade abrangia de Artrópodes a Mamíferos e bandos de Homens. O chão ardia durante as manhãs e as tardes, mas esfriava conforme a temperatura do ar declinava aos níveis das regiões temperadas. Dessas características principais, que se abrangiam na palavra rusticidade, o lugar derivava seu encanto próprio. Ensinava outrossim a lição de que o espaço, mais do que um dado abstrato, é condição de possibilidade da própria existência e só costuma albergar os fortes ou os muito cooperativos. Especialmente os muito cooperativos.
Após caminharem duas horas sob sol causticante, os Macacos viram um pequeno oásis, onde se detiveram. Dessedentaram-se na fonte que brotava como milagre do chão arenoso, admiraram as árvores dispostas ao seu redor e comeram-lhes os frutos pendentes. Por fim, como o calor aumentasse, refugiaram-se num rochedo escarpado, que se erguia atrás da fonte como dedo a apontar para o céu.
No interior do penedo, não se via um ser vivo, um único vegetal, à exceção de musgos que teimavam em cobrir algumas pedras. Rochas, porém, as havia por toda parte: nas paredes, no teto e, principalmente, no chão. Aliás, de tão numerosas, estas últimas atapetavam a extensão do piso como um tesouro de conchas que ocultam pérolas. O leitor logo entenderá por quê.
Não resistindo à oferta incomum de seixos, Macaco de Telha pôs-se a bulir com eles. A uns agarrou, outros lançou, ainda outros friccionou. O que bastou para que percebesse que uma parte do calhau podia ser afiada e brandida como arma. Não vacilou, então, em emprestar às pedras formatos de armas, no que foi imitado pelos companheiros. E entraram a brincar e a correr e a guerrear com as formas inertes no interior da caverna. Porém, de um modo soturno, suas sombras projetadas na parede fronteira faziam-nos lutar com espectros e a quase crer que eram reais. Ao cabo, poder-se-ia concluir que o Acaso quisera encenar o mito platônico de um modo mais adequado à ciência, que tanto projeta vultos quanto examina fatos.
E como se respondesse ao Acaso, brincando, de Telha golpeou uma pedra com a ponta de um seixo afiado, com força e perícia tais que ele se abriu, como um livro, em partes iguais. Para alvoroço e confusão gerais, nas faces que haviam jazido no âmago do mineral durante eras, duas nítidas marcas se desvelaram. Tinham o formato de pés. No canto inferior de uma delas, um não sei quê estava incrustado; na posição correspondente da outra, uma pequena cova denunciava o local em que o objeto repousara, antes do golpe de Telha o desentranhar.
De Telha tomou nas mãos a meia pedra com o objeto encravado. Olhou-os por múltiplos ângulos. Como a penumbra não ajudava a enxergá-los, por instância dos companheiros, levou a pedra para fora, para que, ao sol, pudessem submetê-la à almejável disceptação. E qual não foi o assombro de todos, ao verem, consecutivamente, a nítida forma de um animalzinho em relevo!
-- É um Trilobita! gritou de Vidro num êxtase.
-- Sim, um Trilobita! anuiu o que rachara a pedra. E a marca em que está alojado é uma pegada humana! (*)
-- Hum, a caverna deve conter outras pedras desse feitio... completou de Caco. Temos descoberto um depósito fóssil!
A conclusão parecia sensata. No entanto, incrédulos, os quatro ainda olharam a pegada com o animal durante algum tempo. Miraram-na e tornaram a mirá-la, preguiçosamente. Depois a apalparam e discutiram, antes de se decidirem a buscar outros fósseis. Mas quando a isso se resolveram, levaram o resto da tarde a golpear e abrir pedras com outras pedras, com ferramentas desajeitadas, até mesmo com as mãos. Brincavam ainda, porquanto brincar era a sua função no mundo, mas já o faziam de maneira séria.
Com alegria semelhante à que os tomara momentos antes, os amigos realizaram outras e outras descobertas de Trilobitas e de pisadas humanas em algumas das rochas que abriram. No entanto, pedra como a primeira, com um Trilobita sobreposto à pisada, não descobriram. Ainda assim, deram-se por mais do que satisfeitos.
Ao final do dia, colheram côcos, bananas, pitangas, carambolas, granadilas e tamarilos, que carregaram à entrada da caverna. Subproduto dessa operação foi um rastro de frutos que ia das árvores à caverna. Se não aproveitou aos Macacos, o rastro por certo serviu às Aves. De todo modo, findo o mister, os amigos sentaram-se para comer. E o fize-ram bem rápido, pois a fome os assediava, mas não rápido o bastante para não trocarem impressões sobre as emoções do dia.
-- Os fósseis que descobrimos são todos de Homens e Trilobitas, lembrou de Vidro enquanto comiam. O estarem as rochas esparramadas e não dispostas em estratos deve significar que Homens e Trilobitas viveram na mesma época.
Caco somente aguardava que a óbvia, conquanto insólita conclusão fosse proclamada. Confiante, emendou:
-- Mas os Trilobitas extinguiram-se há 250 milhões de anos! Como podem ter convivido com os Homens, que estão na Terra há somente dois?
E sem esperar resposta, trouxe ao centro da discussão outro dado, que não passara despercebido aos demais, mas carecia fosse debatido:
-- Basta notar o formato retilíneo das bordas da pegada, para se concluir que foi produzida por um calçado, não por um pé desnudo. O andarilho esmagou o pequeno animal com uma sandália.
-- O que nos remete a um período ainda mais recente, em que os Homens já usavam calçados e vestimentas, interveio de Louça.
-- Mas a extinção dos Trilobitas, tornou a lembrar de Vidro, está muito bem documentada em Paleontologia. Eles abundam em fósseis de até 250 milhões de anos e então desaparecem. E o testemunho fóssil ainda é corroborado pela ausência total de Trilobitas hoje. Nenhum desses seres, outrora abundantes, foi encontrado vivo ou recentemente morto.
-- Tens razão, respondeu de Louça. A coexistência de Homens e Trilobitas, que as pedras demonstram, pode ser explicada de várias maneiras. Podemos recuar os Homens à época desses animaizinhos ou trazê-los à época humana. Só não podemos negar a coexistência atestada por tão grande número de pedras.
-- Tampouco devemos perder de vista, atalhou de Vidro, que os Trilobitas podem ter sido extintos, entre a época em que prosperaram e o aparecimento dos humanos na Terra. Por mais que a ciência das origens reflita a imagem da árvore, com muitas categorias surgindo de poucas e estas de uma, nada impede que os grupos tenham surgido e ressurgido uma ou mais vezes em lugares e épocas variados. Trilobitas como os que vemos podem ter emergido, sido extintos e reaparecido. Essa hipótese não explica melhor a coexistência deles com os Homens, que as pedras apontam?
-- Dias atrás, recordou de Louça, as pedras lá da floresta gritaram ao nosso redor. Estas não estão menos a ponto de clamar...
Os Macacos falavam enquanto pensavam, pensavam enquanto falavam. A discussão que travavam refletia as circunstâncias quase sempre aflitivas em que o inquérito se desenrolava. O tumulto da aventura induzia a estados de espírito turbulentos, e estes, a discussões às vezes desordenadas e passionais. Mas nem as dificuldades da aventura, nem o acalorado das discussões bastaram para frear a empreitada.
De Vidro apontou a relação da descoberta com a moderna teoria do parentesco dos seres vivos:
-- Uma população ter quase o mesmo patrimônio genético do primeiro ser de sua categoria não significa que descende dele. Os animaizinhos que hoje encontramos compartilham a base genética dos seus semelhantes antigos, mas não descendem deles, já que os primeiros Trilobitas vieram a extinguir-se. O dogma da origem única de cada grupo vacila. E se o faz, não estamos obrigados a conceber a descendência como sinônimo de origem de um único e mesmo tronco ancestral.
Após tanto considerar, de Vidro ainda formulou duas perguntas como quem despede flechas certeiras:
-- Não é de rigor estendermos nossas reflexões sobre os Trilobitas a outros grupos? Se um ser sobre a Terra, hoje, pode não descender do primeiro exemplar do seu tipo, mas de outro posterior, não é legítimo pensarmos que um grupo pode ter-se originado diversas vezes e não uma só? A lei científica, a regularidade natural, a generalização concebida ou inventada pelo Homem deve balizar, mas não coarctar o pensamento. Ela não pode coagir a inteligência a desconsiderar qualquer das possíveis explicações dos fatos. Especialmente as explicações que repousam em provas tão claras que parecem clamar como as pedras.
E arrematou:
-- Darwin criou uma ideia bem definida de descendência com modificação. Esculpiu-a e a lapidou como artista, porém, assim como os fatos de tempos remotos modificaram as espécies do modo como ele propôs, descobertas recentes estão a exigir modificações no conceito de descendência. Mudar ao longo de gerações não necessariamente significa prender-se a um só ancestral. A descendência dos seres de todas as épocas talvez se assemelhe mais a uma teia, com fios entrelaçados, do que a uma árvore.
Não há como negar que tantas conjecturas, perguntas, dúvidas e evidências contraditórias espelhavam mentes em conflito atroz. Mas o tumulto maior que assaltava os amigos e os fazia fremir de emoção estava posto nos fatos. Destes é que ele se desprendia e imprimia na alma dos quatro, como um timbre de muitas verdades ou um feixe de luz que atravessa um prisma.
(*) Um fóssil de trilobita no interior da pegada de um homem calçando sandálias foi descoberto, em 1968, a 70 quilômetros da cidade de Delta, nos Estados Unidos, por William J. Meister. O texto baseia-se nessa descoberta real.
sábado, 12 de maio de 2012
O Inquérito dos Macacos (4)
"Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade."
(Carlos Drummond de Andrade)
NA TOCA DO URSO
O frio montês guardava surpresas terríveis na algibeira. E com o declínio do dia, quase sempre as sacava com as mais pérfidas intenções. Pelas cinco da tarde, um vento paralisante começou a soprar com tal força que Macaco de Caco temeu pelo grupo. Quem podia afiançar-lhes – pensou – que os descobridores do Mamute e do Homem, por ironia ou acaso, amanhã não se tornariam a descoberta de outros: um cubo d'água com quatro objetos, que o feitiço do tempo faria mais valiosos que a rocha que tinham encontrado?
De Caco já havia pensado naquilo antes mas, quando o vento norte uivou na geleira, não pôde deixar de mirar ideias de desistência, sob uma luz que as fez mais claras, brilhantes, irresistíveis como a sereia e seu canto aos ouvidos do náufrago. Julgou ser melhor tornarem à floresta, imediatamente, do que perecerem de frio ali. De Vidro, porém, descobriu-lhe os pensamentos:
-- Ânimo, ânimo! disse com o resto de força que reuniu e mais para si do que para o companheiro. O amor à verdade moveu-nos a este inquérito. Não podemos dar cabo dele por meio de uma desistência.
-- Amor, amor! exclamou de Caco. O mais inspirador, o mais elevado dos sentimentos, mas que tênues reflexos produz na vontade, símia ou humana! Quantas vezes o dia seguinte do amor é a desistência, o desencanto, a traição. Só um oráculo irônico, um decreto contraditório dos céus pode ter determinado que o mais nobre dos sentimentos desse à luz o mais pobre dos consentimentos...
-- Caco, não! disse horrorizado Macaco de Vidro. O compromisso que contraímos e tornamos firme por meio de um juramento não pode ser traído agora! Juntemos o brio ao amor, e a coragem ao brio, irmão. Prossigamos!
As palavras de Vidro exprimiam maior fidelidade do que sensatez, mais constância do que razão. Estavam impregnadas do inefável, que tem o estranho condão de espevitar os morrões fumegantes e reacender, uma a uma, as tochas da fé. Dir-se-ia que uma constelação invisível, assim incandescida, brilhou com ardor renovado no céu da alma de todos e foi responsável pela restauração daquela supremacia do espírito sobre as circunstâncias que leva às vitórias impossíveis.
Esse ardor permitiu que a caminhada se retomasse, embora para baixo, o que é dizer para fora do gelo. Enquanto desciam, um alívio crescente os felicitava. Porém, tão lentamente que parecia pingar-lhes na alma. A meia descida, quando a lua cheia projetava uma réstia de luz no caminho, ouviram um som forte e rouco vindo da vegetação rarefeita, e a silhueta de um Urso de pelos trigueiros emergiu dos arbustos.
Dar com um Urso àquela hora e naquele lugar era o cúmulo da má sorte, pensou de Caco, madrastaria do Destino, conspiração de Musas mal amadas, sabia-se lá o quê, menos acaso. De Louça gelou de medo, quando o Urso terminou de sair da mata e fitou-os com cara de fome. Desesperado, saltou como os Símios fazem num sem-número de situações. Mas vendo que os excessos cênicos não abalavam o Urso, nem inspiravam o grupo a arrostá-lo, de Louça sentou-se e tapou os olhos com os dedos, para não ver o ingente animal aviar seu banquete.
Com maior presença de espírito, de Telha arriscou a estratégia da camaradagem. Destemido, dirigiu-se ao recém-chegado:
-- Boa noite, senhor Urso!
-- Boa noite, Símio, respondeu-lhe o brutamonte.
-- Aonde vais a esta hora?
-- Vou para a toca. E vós?
-- Procuramos o abrigo em que dormimos na noite passada, mas ainda não o encontramos.
-- Hum... fez o Urso. Quereis juntar-vos a mim? Moro numa gruta espaçosa. Há palha bastante para cinco camas. E também alimento. Fui bem-sucedido na caça estes dias.
Ao ouvir a última frase, de Louça gelou novamente. Caco estava mais conformado com a situação, Vidro mantinha reservas, mas Telha pensou: “Não escaparemos, se nos quiser por manjar; melhor é aceitar-lhe o convite”. E o fez imediatamente, em nome de todo o grupo. Então, dirigiram-se à toca do Urso.
Conforme conversavam, no abrigo, os quatro sentiram aumentar a confiança no seu anfitrião. Tranquilizou-os descobrir que o Urso realmente estava na posse de um vasto estoque de carne, que as baixas temperaturas o ajudavam a conservar. E terminaram de recobrar confiança, quando o dono do frigorífico (pois o depósito de animais estraçalhados no interior da toca não era menos que isso) se pôs a ofertar-lhes carnes de toda espécie, acompanhadas de ervas de várias qualidades e cores. Só de Louça manteve desconfianças. Pensou: "E se for um serial killer?". Mas, como o metabolismo é capaz de prodígios, ao longo da comilança, também se relaxou.
Após terem-se regalado com as iguarias ou interrompido o jantar, conforme o caso (ou o tamanho do estômago de cada um), os convivas puseram-se a conversar animadamente. Discorreram sobre asssuntos amenos e, ao final, o Urso perguntou aos seus hóspedes:
-- Que fazeis em lugar tão frio? Não preferis o calor do sopé da montanha?
-- Em matéria de preferência, inclinamo-nos para a floresta, respondeu de Telha. Mas nos demos uma missão. Por isso estamos aqui.
-- Missão? perguntou o Urso. De que espécie?
-- De uma espécie especial: investigação da origem das espécies.
-- Hum... fez o Urso intrigado. Entendo. Que achais das ideias de Darwin sobre esse assunto?
-- Geniais, respondeu de Telha. Mas nos reservamos pensar sobre o tema de modo menos pretensioso, menos grandioso, por assim dizer. Não temos, como Darwin, a intenção de encontrar uma explicação evolutiva válida para tudo, dos abióticos aos Ursos, Símios e Homens.
Havia lisonja naquela resposta incompleta. De Telha continuou:
-- Vejam o caso da origem da vida. O neodarwinismo propõe que o primeiro ser vivo formou-se por ligação espontânea de moléculas, no interior de um caldo primitivo. A explicação vale para todo o espectro da vida. De acordo com os cientistas, todos os seres vivos provêm dessa origem espontânea. Desconfio que explicação de tão amplo alcance esteja fora dos domínios da ciência e dentro dos da metafísica. A maior descoberta empírica de todos os tempos não a poderia infirmar...
O Urso era dono de uma sabedoria enigmática. Pouco falava, muito escutava e ainda mais refletia. De quando em quando, provocava os interlocutores com questionamentos sagazes. Após ouvir atentamente de Telha dissertar desse modo sobre a origem da vida, falou-lhe:
-- Há uns quatro séculos, os Homens propalam que o céu visível é um quadro muito mais miniaturizado do que pensavam. O tamanho real dos objetos do quadro é muito maior, pois estão a distâncias incalculáveis: as várias origens que propões para a vida na Terra não podem ter ocorrido também nessa escala cósmica?
De Louça, cada vez mais à vontade, interveio:
-- Sem dúvida. Se a vida engendrou-se muitas vezes e de muitas maneiras, numa escala tão vasta, por que a origem espontânea dela, como a ciência a descreve, e a criação divina, que as religiões propõem, não podem ser ambas verdadeiras? Pergunto-me se, ao admitirem a imensidão e a eternidade do cosmo, os cientistas não estão a introduzir as premissas de que decorre a conclusão da origem divina da vida.
-- Os físicos teóricos cada vez mais aventam a possibilidade de o Universo ser um Multiverso, isto é, um concerto de mundos, dos quais o nosso é somente um, atalhou o Urso. A maioria pensa que esses múltiplos Universos são regidos por diferentes conjuntos de leis naturais, cada qual mais ou menos propício à formação da vida como a conhecemos.
-- Alarguemos as vistas do nosso intelecto, respondeu de Louça, alarguemo-las extremamente, e veremos por uma intuição claríssima que, num Multiverso eterno, tudo quanto é possível acontece. Portanto, se a vida pode surgir de várias maneiras, todas essas diferentes origens devem ter-se verificado. A origem divina é uma das possibilidades: como não a levar a sério? Como considerá-la mera superstição?
-- Humm, tornou a fazer o Urso, prolongando ainda mais o som no final. O tema do Universo eterno lembra os antigos filósofos gregos, não lembra?
-- Hum, murmurou Macaco de Louça, imitando o seu interlocutor sem o perceber. O mal é que se tornou comum mutilarem a tradição dos filósofos, quando a retomam. Os antigos gregos consideravam o Universo eterno, mas invariavelmente encontravam lugar para o divino no seu interior. Não é o que ocorre nos nossos dias. A obsessão do Homem atual por excluir o divino do mundo arranca o alicerce lógico da sua ciência. Afinal, se o Multiverso é eterno, um nível de seres divinos deve ter-se formado no seu interior.
E engastou no discurso o fecho da angústia:
-- To be or not to be: that´s the question! Ser ou não ser como os humanos é a questão! Se seguirmos os nossos colaterais, o inquérito em que nos empenhamos terá um rumo e uma conclusão. Seremos vistos pela comunidade símia como pouco mais que Macacos humanizados. Se divergirmos deles, a direção e o final da nossa investigação serão outros. E ainda terminaremos como autênticos Símios. Temos os pés plantados nessa encruzilhada.
Ao Urso, a discussão pareceu ajudar a digestão do antepasto. Mas achara a conversa muita para comida pouca; já aos Macacos, ela parecera pouca para comida muita. Por isso, continuaram a conversar, e o Urso foi completar a refeição. Satisfeitos todos, foram dormir nas camas fofas de palha que o Urso providenciara.
O frio na gruta castigava mais os Macacos que o Urso.
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade."
(Carlos Drummond de Andrade)
NA TOCA DO URSO
O frio montês guardava surpresas terríveis na algibeira. E com o declínio do dia, quase sempre as sacava com as mais pérfidas intenções. Pelas cinco da tarde, um vento paralisante começou a soprar com tal força que Macaco de Caco temeu pelo grupo. Quem podia afiançar-lhes – pensou – que os descobridores do Mamute e do Homem, por ironia ou acaso, amanhã não se tornariam a descoberta de outros: um cubo d'água com quatro objetos, que o feitiço do tempo faria mais valiosos que a rocha que tinham encontrado?
De Caco já havia pensado naquilo antes mas, quando o vento norte uivou na geleira, não pôde deixar de mirar ideias de desistência, sob uma luz que as fez mais claras, brilhantes, irresistíveis como a sereia e seu canto aos ouvidos do náufrago. Julgou ser melhor tornarem à floresta, imediatamente, do que perecerem de frio ali. De Vidro, porém, descobriu-lhe os pensamentos:
-- Ânimo, ânimo! disse com o resto de força que reuniu e mais para si do que para o companheiro. O amor à verdade moveu-nos a este inquérito. Não podemos dar cabo dele por meio de uma desistência.
-- Amor, amor! exclamou de Caco. O mais inspirador, o mais elevado dos sentimentos, mas que tênues reflexos produz na vontade, símia ou humana! Quantas vezes o dia seguinte do amor é a desistência, o desencanto, a traição. Só um oráculo irônico, um decreto contraditório dos céus pode ter determinado que o mais nobre dos sentimentos desse à luz o mais pobre dos consentimentos...
-- Caco, não! disse horrorizado Macaco de Vidro. O compromisso que contraímos e tornamos firme por meio de um juramento não pode ser traído agora! Juntemos o brio ao amor, e a coragem ao brio, irmão. Prossigamos!
As palavras de Vidro exprimiam maior fidelidade do que sensatez, mais constância do que razão. Estavam impregnadas do inefável, que tem o estranho condão de espevitar os morrões fumegantes e reacender, uma a uma, as tochas da fé. Dir-se-ia que uma constelação invisível, assim incandescida, brilhou com ardor renovado no céu da alma de todos e foi responsável pela restauração daquela supremacia do espírito sobre as circunstâncias que leva às vitórias impossíveis.
Esse ardor permitiu que a caminhada se retomasse, embora para baixo, o que é dizer para fora do gelo. Enquanto desciam, um alívio crescente os felicitava. Porém, tão lentamente que parecia pingar-lhes na alma. A meia descida, quando a lua cheia projetava uma réstia de luz no caminho, ouviram um som forte e rouco vindo da vegetação rarefeita, e a silhueta de um Urso de pelos trigueiros emergiu dos arbustos.
Dar com um Urso àquela hora e naquele lugar era o cúmulo da má sorte, pensou de Caco, madrastaria do Destino, conspiração de Musas mal amadas, sabia-se lá o quê, menos acaso. De Louça gelou de medo, quando o Urso terminou de sair da mata e fitou-os com cara de fome. Desesperado, saltou como os Símios fazem num sem-número de situações. Mas vendo que os excessos cênicos não abalavam o Urso, nem inspiravam o grupo a arrostá-lo, de Louça sentou-se e tapou os olhos com os dedos, para não ver o ingente animal aviar seu banquete.
Com maior presença de espírito, de Telha arriscou a estratégia da camaradagem. Destemido, dirigiu-se ao recém-chegado:
-- Boa noite, senhor Urso!
-- Boa noite, Símio, respondeu-lhe o brutamonte.
-- Aonde vais a esta hora?
-- Vou para a toca. E vós?
-- Procuramos o abrigo em que dormimos na noite passada, mas ainda não o encontramos.
-- Hum... fez o Urso. Quereis juntar-vos a mim? Moro numa gruta espaçosa. Há palha bastante para cinco camas. E também alimento. Fui bem-sucedido na caça estes dias.
Ao ouvir a última frase, de Louça gelou novamente. Caco estava mais conformado com a situação, Vidro mantinha reservas, mas Telha pensou: “Não escaparemos, se nos quiser por manjar; melhor é aceitar-lhe o convite”. E o fez imediatamente, em nome de todo o grupo. Então, dirigiram-se à toca do Urso.
Conforme conversavam, no abrigo, os quatro sentiram aumentar a confiança no seu anfitrião. Tranquilizou-os descobrir que o Urso realmente estava na posse de um vasto estoque de carne, que as baixas temperaturas o ajudavam a conservar. E terminaram de recobrar confiança, quando o dono do frigorífico (pois o depósito de animais estraçalhados no interior da toca não era menos que isso) se pôs a ofertar-lhes carnes de toda espécie, acompanhadas de ervas de várias qualidades e cores. Só de Louça manteve desconfianças. Pensou: "E se for um serial killer?". Mas, como o metabolismo é capaz de prodígios, ao longo da comilança, também se relaxou.
Após terem-se regalado com as iguarias ou interrompido o jantar, conforme o caso (ou o tamanho do estômago de cada um), os convivas puseram-se a conversar animadamente. Discorreram sobre asssuntos amenos e, ao final, o Urso perguntou aos seus hóspedes:
-- Que fazeis em lugar tão frio? Não preferis o calor do sopé da montanha?
-- Em matéria de preferência, inclinamo-nos para a floresta, respondeu de Telha. Mas nos demos uma missão. Por isso estamos aqui.
-- Missão? perguntou o Urso. De que espécie?
-- De uma espécie especial: investigação da origem das espécies.
-- Hum... fez o Urso intrigado. Entendo. Que achais das ideias de Darwin sobre esse assunto?
-- Geniais, respondeu de Telha. Mas nos reservamos pensar sobre o tema de modo menos pretensioso, menos grandioso, por assim dizer. Não temos, como Darwin, a intenção de encontrar uma explicação evolutiva válida para tudo, dos abióticos aos Ursos, Símios e Homens.
Havia lisonja naquela resposta incompleta. De Telha continuou:
-- Vejam o caso da origem da vida. O neodarwinismo propõe que o primeiro ser vivo formou-se por ligação espontânea de moléculas, no interior de um caldo primitivo. A explicação vale para todo o espectro da vida. De acordo com os cientistas, todos os seres vivos provêm dessa origem espontânea. Desconfio que explicação de tão amplo alcance esteja fora dos domínios da ciência e dentro dos da metafísica. A maior descoberta empírica de todos os tempos não a poderia infirmar...
O Urso era dono de uma sabedoria enigmática. Pouco falava, muito escutava e ainda mais refletia. De quando em quando, provocava os interlocutores com questionamentos sagazes. Após ouvir atentamente de Telha dissertar desse modo sobre a origem da vida, falou-lhe:
-- Há uns quatro séculos, os Homens propalam que o céu visível é um quadro muito mais miniaturizado do que pensavam. O tamanho real dos objetos do quadro é muito maior, pois estão a distâncias incalculáveis: as várias origens que propões para a vida na Terra não podem ter ocorrido também nessa escala cósmica?
De Louça, cada vez mais à vontade, interveio:
-- Sem dúvida. Se a vida engendrou-se muitas vezes e de muitas maneiras, numa escala tão vasta, por que a origem espontânea dela, como a ciência a descreve, e a criação divina, que as religiões propõem, não podem ser ambas verdadeiras? Pergunto-me se, ao admitirem a imensidão e a eternidade do cosmo, os cientistas não estão a introduzir as premissas de que decorre a conclusão da origem divina da vida.
-- Os físicos teóricos cada vez mais aventam a possibilidade de o Universo ser um Multiverso, isto é, um concerto de mundos, dos quais o nosso é somente um, atalhou o Urso. A maioria pensa que esses múltiplos Universos são regidos por diferentes conjuntos de leis naturais, cada qual mais ou menos propício à formação da vida como a conhecemos.
-- Alarguemos as vistas do nosso intelecto, respondeu de Louça, alarguemo-las extremamente, e veremos por uma intuição claríssima que, num Multiverso eterno, tudo quanto é possível acontece. Portanto, se a vida pode surgir de várias maneiras, todas essas diferentes origens devem ter-se verificado. A origem divina é uma das possibilidades: como não a levar a sério? Como considerá-la mera superstição?
-- Humm, tornou a fazer o Urso, prolongando ainda mais o som no final. O tema do Universo eterno lembra os antigos filósofos gregos, não lembra?
-- Hum, murmurou Macaco de Louça, imitando o seu interlocutor sem o perceber. O mal é que se tornou comum mutilarem a tradição dos filósofos, quando a retomam. Os antigos gregos consideravam o Universo eterno, mas invariavelmente encontravam lugar para o divino no seu interior. Não é o que ocorre nos nossos dias. A obsessão do Homem atual por excluir o divino do mundo arranca o alicerce lógico da sua ciência. Afinal, se o Multiverso é eterno, um nível de seres divinos deve ter-se formado no seu interior.
E engastou no discurso o fecho da angústia:
-- To be or not to be: that´s the question! Ser ou não ser como os humanos é a questão! Se seguirmos os nossos colaterais, o inquérito em que nos empenhamos terá um rumo e uma conclusão. Seremos vistos pela comunidade símia como pouco mais que Macacos humanizados. Se divergirmos deles, a direção e o final da nossa investigação serão outros. E ainda terminaremos como autênticos Símios. Temos os pés plantados nessa encruzilhada.
Ao Urso, a discussão pareceu ajudar a digestão do antepasto. Mas achara a conversa muita para comida pouca; já aos Macacos, ela parecera pouca para comida muita. Por isso, continuaram a conversar, e o Urso foi completar a refeição. Satisfeitos todos, foram dormir nas camas fofas de palha que o Urso providenciara.
O frio na gruta castigava mais os Macacos que o Urso.
quarta-feira, 9 de maio de 2012
O Inquérito dos Macacos (3)
“Visito os fatos,
Não te encontro.
Onde te ocultas, precária síntese,
penhor de meu sono, luz?”
(Carlos Drummond de Andrade)
O HOMEM E O MAMUTE
À frente da floresta onde Macaco de Vidro e seus pares tinham vivido, fitando-a como a um céu de esmeraldas arreado por anjos, erguia-se uma imponente cadeia de montanhas com picos vestidos de branco. O grupo escalava arfante as veredas íngremes que davam no cimo. Envolvia-o uma bruma, que se adensava conforme ascendiam e o ar se rarefazia.
A cada rajada de frio que os ventos uivantes sopravam, a mente de Caco se enchia de pensamentos sombrios, como se o ar lhe invadisse o crânio e implantasse sugestões de desistência, estados de depressão e desacorçoamento. Não era diferente com os outros três. O afã que levara o grupo a abraçar a grande empreitada parecia evolar-se para os cumes da cordilheira. Súbito, pararam como se fossem membros interligados de um mesmo corpo consumido pelo interminável caminhar. Entreolharam-se a se perguntar com a vista e a expressão devastada o que lhes subia ao coração.
-- Não aguentamos mais caminhar. Melhor é buscarmos abrigo, exprimiu de Vidro.
Tão unânime foi o assentimento a essas palavras que os outros sequer contestaram. Julgaram desnecessário acrescer algo à conclusão de de Vidro, pois espelhava os pensamentos de todos. Imediatamente, puseram-se a procurar uma caverna, uma toca, um coberto, ainda que exíguo, onde se pudessem refugiar. Após estafante varredura do local, finalmente avistaram um antro que parecia escavado na parede de uma elevação. Submetidos que estavam, vergados de exaustão, meteram-se ali, novamente sem pronunciar palavra.
Então dormiram a solto sono. Ao acordarem, como tinha sido regra desde o princípio da marcha, banquetearam-se com escassos frutos subtraídos do arvoredo local. Beberam bocados de água. Ao final, sentindo-se renovados como se houvessem tragado coragem e deglutido ânimo, retomaram o ataque ao cimo.
Ao sol da manhã, lograram maior avanço que o do dia pregresso. A ponto de, pelas doze horas, já terem alcançado a maior geleira da região e começado a explorá-la. Entrementes, Macaco de Louça avistou algo semelhante a uma rocha de gelo, à distância de quase um quilômetro. Alterando sua rota numa direção oblíqua à de seus companheiros, avançou decidido para a intrigante formação, mas a meio caminho, inopinadamente, gritou:
-- Corram! Venham ver se deliro ou é um mamute no gelo!
À uma, os quatro saíram em pinote. Encontraram-se ao pé de uma rocha de gelo azul, com gradações de matiz e de brilho que a faziam esplender como um cristal banhado por luz. Tinha mais de mil vezes o tamanho de qualquer dos Macacos. E para estupor de todos, no âmago daquele colosso, jaziam um Mamute e um Homem totalmente preservados.
-- Céus! exclamou Macaco de Vidro. Um Mamute real! E um Homem com ele!
O Homem no interior da peça tinha o braço estendido em direção a um dos chifres do mastodonte, como se o houvera agarrado, no instante em que pereceram.
Macaco de Telha arriscou:
-- Devem ter sido arrastados por águas que ao depois congelaram. O Homem agarrou-se à presa do Mamute como a uma tábua de salvação.
De Louça pareceu discordar. Ou lucubrar:
-- Podem ter morrido em momentos distintos: primeiro o Mamute, depois o Homem.
Num instante, de Vidro lembrou-se e exclamou:
-- Mas os Mamutes foram extintos há milhares de anos! O Homem congelado que vemos usa calça e agasalho de estilo moderno. Seu aspecto é inteiramente atual. Não, não é possível que os Mamutes tenham vivido com o Homem contemporâneo!
-- Como não é possível, irmão meu, se os vemos lado a lado? indagou de Caco. Só podem ter sido congelados juntos, se viveram e morreram na mesma época...
Os outros Macacos calaram-se, ante a lógica irretocável de Caco. Como negá-la? Coube a de Vidro extrair a conclusão incoercível:
-- Se estás certo, de Caco, essa é a evidência mais importante já encontrada da evolução cultural. Se significar o que conjecturamos, essa pedra de gelo mostra que o Homem contemporâneo foi também pré-histórico.
-- Mais do que isso, ela mostra que uma cultura como a dos Homens de hoje existiu há milhares de anos, completou de Caco.
-- Mas cultura tão avançada não pode ter existido milhares de anos atrás, respondeu de Vidro. E acrescentou após refletir pouco mais:
-- Se criações como as dos humanos de hoje existiram há milênios, onde estão os vestígios dos automóveis, ônibus espaciais, edifícios, pontes e outras construções da época? Por que um povo tão adiantado não deixou registros escritos? Por que não escreveu sobre suas fantásticas realizações e sobre os próprios Mamutes, que conheceram?
Se de Caco exprimira-se com propriedade sobre o significado da descoberta, de Vidro não lhe ficara a dever com esse sutil reparo. O acervo literário dos povos atesta a inexistência de engenhos ultra-avançados, na Pré-História. Tampouco foram encontrados restos desses engenhos. No entanto, a prova da coexistência do Homem atual e do Mamute estava no interior daquele bloco de gelo azul, exposta ao olhar dos amigos. E parecia irrefutável.
De Vidro disse aterrado:
-- Nenhum animal do passado foi preservado tão perfeitamente quanto o Homem e o Mamute diante de nós. Se revirarmos os depósitos fósseis de todos os continentes, não encontraremos um único ser tão conservado quanto esses. Ainda assim, não queremos crer no que os nossos olhos veem...
E continuou:
-- A ideia de que a cultura humana desenvolveu-se de estágios antigos e simples a estágios recentes e complexos tornou-se um paradigma. A questão é saber o que se faz necessário para romper-se um paradigma. Que evidências devem ser consideradas suficientes para embasar a abolição de um modelo científico com o rol de crenças e pressupostos que originou?
De Louça interveio:
-- Esse grande bloco de gelo está a nos dizer algo sobre tuas perguntas. Está a nos dizer que o Homem atual e o Mamute coexistiram. Isso está lá provado. Porém a prova se insere num cabedal de evidências muito maior, acumuladas durante séculos ou mesmo milênios, que afirma exatamente o contrário.
-- Sim, concordou de Vidro, o cabedal a que te referes assegura que o Homem atual e os Mamutes não viveram na mesma época. Qual corpo de evidências terá, então, de ceder ao outro?
-- Não creio que a escolha deva basear-se no número de provas de um e de outro lado, redarguiu de Caco. Se for assim, há milhares de evidências de que o Homem moderno não coexistiu com os Mamutes e uma só em sentido contrário: o bloco de gelo diante de nós. Contudo, a verdade empírica não se constitui pelo número de provas. Forma-se antes pela força probatória seja de uma, seja de muitas provas, indiferentemente. Uma evidência, só e isolada, se for robusta o bastante, pode afastar um milhar em contrário.
A discussão assim encetada prolongou-se por muito tempo. Se afirmarmos que os autores da descoberta chegaram a uma conclusão, após discutirem, faltaremos com a verdade. Mas algo relacionado ao objeto do inquérito ficou assentado no espírito deles: a inexpugnabilidade de uma teoria à prova aumenta na proporção do alcance dela. Quanto mais ampla a teoria, quanto maior o número de fatos que explica, mais resistente se torna à prova individual. Mais obsessiva se faz, também, a crença na teoria.
Conforme mergulhavam nesses pensamentos, os amigos sentiam crescer a desconfiança de que a evolução das culturas mais simples às mais complexas não seria absolutamente abalada pela descoberta tremenda que tinham feito. Mesmo que cientistas investigassem o bloco de gelo até a medula, o paradigma da evolução cultural não seria ameaçado.
De Vidro e seus pares entenderam que a evolução de Homens e Macacos a partir de ancestrais comuns é uma dessas ideias humanas de alcance extremamente amplo. Significa que todos os Homens e todos os Macacos, de todos os tempos, evoluíram daqueles ancestrais. E tremeram ao pensar que, em certas condições, uma ideia assim elastecida pode tornar-se indesafiável por fatos, quaisquer que eles sejam, e se convolar em verdade a priori. Enfim, num credo.
Esses pensamentos infundiram secreto horror aos amigos. Macacos estão acostumados a procurar o alimento do almoço, ou seja, a pensar em função de dificuldades práticas, até mesmo prementes, como merecer o amendoim ou a pipoca, que o Homem lhes atira no Zoológico. Das três perguntas com que um humano se tortura (De onde venho? Quem sou? Para onde vou?), só a última interessou realmente aos Macacos, nos últimos milhões de anos. Ainda assim, num sentido exageradamente imediato.
Mesmo quando se excedem, quando ultrapassam limites, Macacos chegam no máximo a precárias sínteses. E logo depois as esquecem, perdem-nas de vista assim como à presa que lhes escapa das garras, no instante em que a abraçam.
Por tudo isso, num rasgo de intuição, os amigos não julgaram sensato, antes desconfiaram da tentação de aderir a um saber como a ciência humana das origens, com pretensões universais de validade. Mais provável lhes pareceu que a precária síntese que perseguiam se ocultasse fora dos lugares universais daquela ciência. Não se tratava de concluir: todos os Macacos vieram, ou não vieram, dessa ou daquela espécie ancestral. Os Símios podiam ter diferentes nexos de ancestralidade. Podiam derivar de mais de uma espécie. Assim como os fatos podiam abranger exceções às mais confirmadas leis científicas.
Não te encontro.
Onde te ocultas, precária síntese,
penhor de meu sono, luz?”
(Carlos Drummond de Andrade)
O HOMEM E O MAMUTE
À frente da floresta onde Macaco de Vidro e seus pares tinham vivido, fitando-a como a um céu de esmeraldas arreado por anjos, erguia-se uma imponente cadeia de montanhas com picos vestidos de branco. O grupo escalava arfante as veredas íngremes que davam no cimo. Envolvia-o uma bruma, que se adensava conforme ascendiam e o ar se rarefazia.
A cada rajada de frio que os ventos uivantes sopravam, a mente de Caco se enchia de pensamentos sombrios, como se o ar lhe invadisse o crânio e implantasse sugestões de desistência, estados de depressão e desacorçoamento. Não era diferente com os outros três. O afã que levara o grupo a abraçar a grande empreitada parecia evolar-se para os cumes da cordilheira. Súbito, pararam como se fossem membros interligados de um mesmo corpo consumido pelo interminável caminhar. Entreolharam-se a se perguntar com a vista e a expressão devastada o que lhes subia ao coração.
-- Não aguentamos mais caminhar. Melhor é buscarmos abrigo, exprimiu de Vidro.
Tão unânime foi o assentimento a essas palavras que os outros sequer contestaram. Julgaram desnecessário acrescer algo à conclusão de de Vidro, pois espelhava os pensamentos de todos. Imediatamente, puseram-se a procurar uma caverna, uma toca, um coberto, ainda que exíguo, onde se pudessem refugiar. Após estafante varredura do local, finalmente avistaram um antro que parecia escavado na parede de uma elevação. Submetidos que estavam, vergados de exaustão, meteram-se ali, novamente sem pronunciar palavra.
Então dormiram a solto sono. Ao acordarem, como tinha sido regra desde o princípio da marcha, banquetearam-se com escassos frutos subtraídos do arvoredo local. Beberam bocados de água. Ao final, sentindo-se renovados como se houvessem tragado coragem e deglutido ânimo, retomaram o ataque ao cimo.
Ao sol da manhã, lograram maior avanço que o do dia pregresso. A ponto de, pelas doze horas, já terem alcançado a maior geleira da região e começado a explorá-la. Entrementes, Macaco de Louça avistou algo semelhante a uma rocha de gelo, à distância de quase um quilômetro. Alterando sua rota numa direção oblíqua à de seus companheiros, avançou decidido para a intrigante formação, mas a meio caminho, inopinadamente, gritou:
-- Corram! Venham ver se deliro ou é um mamute no gelo!
À uma, os quatro saíram em pinote. Encontraram-se ao pé de uma rocha de gelo azul, com gradações de matiz e de brilho que a faziam esplender como um cristal banhado por luz. Tinha mais de mil vezes o tamanho de qualquer dos Macacos. E para estupor de todos, no âmago daquele colosso, jaziam um Mamute e um Homem totalmente preservados.
-- Céus! exclamou Macaco de Vidro. Um Mamute real! E um Homem com ele!
O Homem no interior da peça tinha o braço estendido em direção a um dos chifres do mastodonte, como se o houvera agarrado, no instante em que pereceram.
Macaco de Telha arriscou:
-- Devem ter sido arrastados por águas que ao depois congelaram. O Homem agarrou-se à presa do Mamute como a uma tábua de salvação.
De Louça pareceu discordar. Ou lucubrar:
-- Podem ter morrido em momentos distintos: primeiro o Mamute, depois o Homem.
Num instante, de Vidro lembrou-se e exclamou:
-- Mas os Mamutes foram extintos há milhares de anos! O Homem congelado que vemos usa calça e agasalho de estilo moderno. Seu aspecto é inteiramente atual. Não, não é possível que os Mamutes tenham vivido com o Homem contemporâneo!
-- Como não é possível, irmão meu, se os vemos lado a lado? indagou de Caco. Só podem ter sido congelados juntos, se viveram e morreram na mesma época...
Os outros Macacos calaram-se, ante a lógica irretocável de Caco. Como negá-la? Coube a de Vidro extrair a conclusão incoercível:
-- Se estás certo, de Caco, essa é a evidência mais importante já encontrada da evolução cultural. Se significar o que conjecturamos, essa pedra de gelo mostra que o Homem contemporâneo foi também pré-histórico.
-- Mais do que isso, ela mostra que uma cultura como a dos Homens de hoje existiu há milhares de anos, completou de Caco.
-- Mas cultura tão avançada não pode ter existido milhares de anos atrás, respondeu de Vidro. E acrescentou após refletir pouco mais:
-- Se criações como as dos humanos de hoje existiram há milênios, onde estão os vestígios dos automóveis, ônibus espaciais, edifícios, pontes e outras construções da época? Por que um povo tão adiantado não deixou registros escritos? Por que não escreveu sobre suas fantásticas realizações e sobre os próprios Mamutes, que conheceram?
Se de Caco exprimira-se com propriedade sobre o significado da descoberta, de Vidro não lhe ficara a dever com esse sutil reparo. O acervo literário dos povos atesta a inexistência de engenhos ultra-avançados, na Pré-História. Tampouco foram encontrados restos desses engenhos. No entanto, a prova da coexistência do Homem atual e do Mamute estava no interior daquele bloco de gelo azul, exposta ao olhar dos amigos. E parecia irrefutável.
De Vidro disse aterrado:
-- Nenhum animal do passado foi preservado tão perfeitamente quanto o Homem e o Mamute diante de nós. Se revirarmos os depósitos fósseis de todos os continentes, não encontraremos um único ser tão conservado quanto esses. Ainda assim, não queremos crer no que os nossos olhos veem...
E continuou:
-- A ideia de que a cultura humana desenvolveu-se de estágios antigos e simples a estágios recentes e complexos tornou-se um paradigma. A questão é saber o que se faz necessário para romper-se um paradigma. Que evidências devem ser consideradas suficientes para embasar a abolição de um modelo científico com o rol de crenças e pressupostos que originou?
De Louça interveio:
-- Esse grande bloco de gelo está a nos dizer algo sobre tuas perguntas. Está a nos dizer que o Homem atual e o Mamute coexistiram. Isso está lá provado. Porém a prova se insere num cabedal de evidências muito maior, acumuladas durante séculos ou mesmo milênios, que afirma exatamente o contrário.
-- Sim, concordou de Vidro, o cabedal a que te referes assegura que o Homem atual e os Mamutes não viveram na mesma época. Qual corpo de evidências terá, então, de ceder ao outro?
-- Não creio que a escolha deva basear-se no número de provas de um e de outro lado, redarguiu de Caco. Se for assim, há milhares de evidências de que o Homem moderno não coexistiu com os Mamutes e uma só em sentido contrário: o bloco de gelo diante de nós. Contudo, a verdade empírica não se constitui pelo número de provas. Forma-se antes pela força probatória seja de uma, seja de muitas provas, indiferentemente. Uma evidência, só e isolada, se for robusta o bastante, pode afastar um milhar em contrário.
A discussão assim encetada prolongou-se por muito tempo. Se afirmarmos que os autores da descoberta chegaram a uma conclusão, após discutirem, faltaremos com a verdade. Mas algo relacionado ao objeto do inquérito ficou assentado no espírito deles: a inexpugnabilidade de uma teoria à prova aumenta na proporção do alcance dela. Quanto mais ampla a teoria, quanto maior o número de fatos que explica, mais resistente se torna à prova individual. Mais obsessiva se faz, também, a crença na teoria.
Conforme mergulhavam nesses pensamentos, os amigos sentiam crescer a desconfiança de que a evolução das culturas mais simples às mais complexas não seria absolutamente abalada pela descoberta tremenda que tinham feito. Mesmo que cientistas investigassem o bloco de gelo até a medula, o paradigma da evolução cultural não seria ameaçado.
De Vidro e seus pares entenderam que a evolução de Homens e Macacos a partir de ancestrais comuns é uma dessas ideias humanas de alcance extremamente amplo. Significa que todos os Homens e todos os Macacos, de todos os tempos, evoluíram daqueles ancestrais. E tremeram ao pensar que, em certas condições, uma ideia assim elastecida pode tornar-se indesafiável por fatos, quaisquer que eles sejam, e se convolar em verdade a priori. Enfim, num credo.
Esses pensamentos infundiram secreto horror aos amigos. Macacos estão acostumados a procurar o alimento do almoço, ou seja, a pensar em função de dificuldades práticas, até mesmo prementes, como merecer o amendoim ou a pipoca, que o Homem lhes atira no Zoológico. Das três perguntas com que um humano se tortura (De onde venho? Quem sou? Para onde vou?), só a última interessou realmente aos Macacos, nos últimos milhões de anos. Ainda assim, num sentido exageradamente imediato.
Mesmo quando se excedem, quando ultrapassam limites, Macacos chegam no máximo a precárias sínteses. E logo depois as esquecem, perdem-nas de vista assim como à presa que lhes escapa das garras, no instante em que a abraçam.
Por tudo isso, num rasgo de intuição, os amigos não julgaram sensato, antes desconfiaram da tentação de aderir a um saber como a ciência humana das origens, com pretensões universais de validade. Mais provável lhes pareceu que a precária síntese que perseguiam se ocultasse fora dos lugares universais daquela ciência. Não se tratava de concluir: todos os Macacos vieram, ou não vieram, dessa ou daquela espécie ancestral. Os Símios podiam ter diferentes nexos de ancestralidade. Podiam derivar de mais de uma espécie. Assim como os fatos podiam abranger exceções às mais confirmadas leis científicas.
sábado, 5 de maio de 2012
O Inquérito dos Macacos (2)
“Esse é tempo de partido,
Tempo de homens partidos.”
(Carlos Drummond de Andrade)
A CAUDA DO PAVÃO
A marcha empreendida por Macaco de Vidro e seu grupo, após o brado das pedras, veio a ser épica. Excedeu a própria Grande Marcha, liderada por Mao-Tsé-Tung, tanto em extensão como em grandiosidade. Não deixou de ultrapassar também a penosidade daquela travessia. No entanto, a beleza dos caminhos que os amigos palmilharam, as sensações exóticas que experimentaram e o vulto das descobertas que lograram remiram todas as penas. O leitor não custará a entender por quê.
Ao se aproximarem de um ponto em que as árvores começavam a rarear e um calvo planalto substituía a selva, os quatro amigos depararam um Pavão a exibir com garbo a cauda multicolorida.
-- Salve, eminência! saudou-o Macaco de Vidro. Que fazes nestas paragens? Por que não te internas na floresta, onde há mais árvores para te ocultares?
-- Não me interessa ocultar-me. Nunca me interessou. Nós, os Pavões, impomo-nos pela exuberância de nosso porte. O avantajado de nossa plumagem, o colorido que dela emana são dignos de ostentação. Dois metros, repito, dois metros é a altura que alcançamos com esse adorno!
-- Mas que vantagem pode conferir tão pesada cauda? Não vives arcado debaixo dela? perguntou Macaco de Caco, como se ele próprio partisse sob aquele peso.
-- Ouviste falar de seleção sexual? Um Homem chamado Darwin mostrou que, em certas situações, os animais têm de lutar pela posse do sexo oposto. Principalmente os machos, pelas fêmeas. O resultado do embate é a seleção sexual. Só os mais aptos a conquistar o outro sexo sobrevivem, disse o Pavão empertigado.
-- Darwin, sim Darwin, o grande cientista! lembrou-se de Caco.
-- Grande, é verdade, retorquiu o Pavão, a uns infundindo impressão de respeito, a outros, de despeito. E prosseguiu impávido:
-- Grande, sim. Mas sobretudo esforçado. Os Homens deduzem de um modo estranho. Abstraem demais, sonham ao pensar. Darwin era assim. Nós, bichos, não. Pensamos sempre concretamente. Por isso, o que concluímos é invariavelmente mais útil que as vãs cogitações humanas.
-- Não fazes justiça aos Homens ao afirmá-lo, opôs-se Macaco de Telha. Homem e animal têm modos de raciocinar diferentes. Nenhum é superior ao outro. A perfeição do pensar humano é o abstrato, o genérico; a do animal, o concreto, o individual.
E completou, no mesmo fôlego, para não permitir que o colóquio derivasse do tema eleito:
-- Darwin mostrou muito bem o papel da seleção natural na evolução. Mas por que vossa cauda seria um exemplo desse processo?
-- Nossa cauda não se preservou por seleção natural, mas sexual, corrigiu o Pavão. São coisas distintas. Algumas espécies adquirem vantagem na luta pela sobrevivência, enquanto outras se extinguem. Isso é seleção natural. Outros bichos, como os Pavões, acumulam vantagens reprodutivas. Nossa cauda é infalível em atrair as fêmeas. É a razão do sucesso que granjeamos. Isso é seleção sexual.
-- Algo me intriga na vossa arenga, interveio de Louça, que até então se limitara a pesar as afirmações dos outros. As espécies não se extinguiram por grandes catástrofes, como quedas de meteoros, vulcanismo, liberação de gases de sedimentos marinhos? Qual pode ter sido o papel da seleção natural ou sexual para a definição das espécies que sobreviveram, nessas circunstâncias?
-- Nos cataclismos, o desaparecimento de espécies não se dá do mesmo modo que o de indivíduos. Homens e bichos são vitimados instantaneamente. As espécies extinguem-se muito mais lentamente, não pelas próprias catástrofes, mas por não se adaptarem à transformação ambiental que se segue. De sorte que a seleção, natural e sexual, não as catástrofes, é que determina as espécies que sobrevivem e as que saem de cena.
-- Entendo, afirmou de Louça, apenas para atirar habilmente a discussão numa direção inesperada:
-- Se a transformação ambiental é o que extingue, o mecanismo da seleção natural não pode ser a luta pela sobrevivência. Essa luta significa que as espécies se privam reciprocamente dos meios de sobrevivência, como Darwin afirmou: “Mais indivíduos nascem do que podem sobreviver”. Já a transformação ambiental, introduz condições mesológicas desfavoráveis a todos ou quase todos. Essas novas condições é que fazem escassear os meios de sobrevivência e perecer as espécies, independentemente da luta que travam.
Nesse momento, o Pavão enunciou, com ares de quem despede uma multidão, no encerramento de uma solenidade:
-- A evolução se conduz num quadro geral de harmonia, não de luta entre as espécies. Estas competem entre si, mas também se auxiliam reciprocamente. A floresta em cujo limiar estamos é a prova cabal do que afirmo: os seres que nela vivem agrupados não andam dispersos pelo mundo, porque ajuntar-se e cooperar com os outros os leva a prosperar.
-- A harmonia a que te referes, ponderou Macaco de Vidro, sem se importar com o solene das palavras do Pavão, está associada à ideia antiga de um Criador. A natureza é harmônica, porque foi planejada, criada e é conservada por Deus. Mas se assim é, por que os Homens desenvolveram sua ideia de evolução, prescindindo de Deus ou com intenção de negar a sua existência?
Ante essa indagação, todos quedaram calados. Não só o Pavão e os Macacos, mas a natureza inteira ao redor observou profundo silêncio. Parecia que congelara ou fora paralisada. Macaco de Caco arrepiou-se, na ausência total de som. Após um instante, dirigiu-se ao Pavão:
-- Obrigado por nos lembrares essas coisas. E pela aula que nos ministraste...
-- Não há de quê, trucou o Pavão, esperando ser recompensado com alguns insetos para devorar como paga de sua exposição.
-- A explanação foi mesmo notável, continuou a Ave. Sinceramente, não achais que sou merecedor de uma dessas comendas honoris causa que as Universidades humanas se aprazem em outorgar? Tenho realizado mais pela cultura universal do que muitos doutores agraciados com aqueles títulos...
-- Senhor Pavão, considere melhor o que diz. Tens méritos, mas não os encareças a esse ponto, corrigiu Macaco de Telha.
-- Sou egrégio, apenas isso! retrucou o outro.
Definitivamente, excesso de humildade não era um defeito do Pavão. Por estranha extrapolação, assim como cotejava a própria plumagem com a de outros seres e a encontrava superior, o Pavão se habituara a comparar o seu intelecto com o dos outros e a dessumir exatamente o mesmo. Tal vício perdera sua inteligência. Dificultara-lhe o raciocinar, ao menos em certas direções. Aos amigos, pareceu inútil prosseguir o diálogo naquelas condições. Preferiram despedir-se e continuar sua marcha.
Ao partirem, de Vidro segredou aos outros:
-- A missão em que estamos não é para pessoas inteiras. Os que o são ficam plantados no limiar da floresta.
E ao dizê-lo, marchou com os outros para fora.
Espreitavam-nos os perigos da gélida região montanhosa.
Tempo de homens partidos.”
(Carlos Drummond de Andrade)
A CAUDA DO PAVÃO
A marcha empreendida por Macaco de Vidro e seu grupo, após o brado das pedras, veio a ser épica. Excedeu a própria Grande Marcha, liderada por Mao-Tsé-Tung, tanto em extensão como em grandiosidade. Não deixou de ultrapassar também a penosidade daquela travessia. No entanto, a beleza dos caminhos que os amigos palmilharam, as sensações exóticas que experimentaram e o vulto das descobertas que lograram remiram todas as penas. O leitor não custará a entender por quê.
Ao se aproximarem de um ponto em que as árvores começavam a rarear e um calvo planalto substituía a selva, os quatro amigos depararam um Pavão a exibir com garbo a cauda multicolorida.
-- Salve, eminência! saudou-o Macaco de Vidro. Que fazes nestas paragens? Por que não te internas na floresta, onde há mais árvores para te ocultares?
-- Não me interessa ocultar-me. Nunca me interessou. Nós, os Pavões, impomo-nos pela exuberância de nosso porte. O avantajado de nossa plumagem, o colorido que dela emana são dignos de ostentação. Dois metros, repito, dois metros é a altura que alcançamos com esse adorno!
-- Mas que vantagem pode conferir tão pesada cauda? Não vives arcado debaixo dela? perguntou Macaco de Caco, como se ele próprio partisse sob aquele peso.
-- Ouviste falar de seleção sexual? Um Homem chamado Darwin mostrou que, em certas situações, os animais têm de lutar pela posse do sexo oposto. Principalmente os machos, pelas fêmeas. O resultado do embate é a seleção sexual. Só os mais aptos a conquistar o outro sexo sobrevivem, disse o Pavão empertigado.
-- Darwin, sim Darwin, o grande cientista! lembrou-se de Caco.
-- Grande, é verdade, retorquiu o Pavão, a uns infundindo impressão de respeito, a outros, de despeito. E prosseguiu impávido:
-- Grande, sim. Mas sobretudo esforçado. Os Homens deduzem de um modo estranho. Abstraem demais, sonham ao pensar. Darwin era assim. Nós, bichos, não. Pensamos sempre concretamente. Por isso, o que concluímos é invariavelmente mais útil que as vãs cogitações humanas.
-- Não fazes justiça aos Homens ao afirmá-lo, opôs-se Macaco de Telha. Homem e animal têm modos de raciocinar diferentes. Nenhum é superior ao outro. A perfeição do pensar humano é o abstrato, o genérico; a do animal, o concreto, o individual.
E completou, no mesmo fôlego, para não permitir que o colóquio derivasse do tema eleito:
-- Darwin mostrou muito bem o papel da seleção natural na evolução. Mas por que vossa cauda seria um exemplo desse processo?
-- Nossa cauda não se preservou por seleção natural, mas sexual, corrigiu o Pavão. São coisas distintas. Algumas espécies adquirem vantagem na luta pela sobrevivência, enquanto outras se extinguem. Isso é seleção natural. Outros bichos, como os Pavões, acumulam vantagens reprodutivas. Nossa cauda é infalível em atrair as fêmeas. É a razão do sucesso que granjeamos. Isso é seleção sexual.
-- Algo me intriga na vossa arenga, interveio de Louça, que até então se limitara a pesar as afirmações dos outros. As espécies não se extinguiram por grandes catástrofes, como quedas de meteoros, vulcanismo, liberação de gases de sedimentos marinhos? Qual pode ter sido o papel da seleção natural ou sexual para a definição das espécies que sobreviveram, nessas circunstâncias?
-- Nos cataclismos, o desaparecimento de espécies não se dá do mesmo modo que o de indivíduos. Homens e bichos são vitimados instantaneamente. As espécies extinguem-se muito mais lentamente, não pelas próprias catástrofes, mas por não se adaptarem à transformação ambiental que se segue. De sorte que a seleção, natural e sexual, não as catástrofes, é que determina as espécies que sobrevivem e as que saem de cena.
-- Entendo, afirmou de Louça, apenas para atirar habilmente a discussão numa direção inesperada:
-- Se a transformação ambiental é o que extingue, o mecanismo da seleção natural não pode ser a luta pela sobrevivência. Essa luta significa que as espécies se privam reciprocamente dos meios de sobrevivência, como Darwin afirmou: “Mais indivíduos nascem do que podem sobreviver”. Já a transformação ambiental, introduz condições mesológicas desfavoráveis a todos ou quase todos. Essas novas condições é que fazem escassear os meios de sobrevivência e perecer as espécies, independentemente da luta que travam.
Nesse momento, o Pavão enunciou, com ares de quem despede uma multidão, no encerramento de uma solenidade:
-- A evolução se conduz num quadro geral de harmonia, não de luta entre as espécies. Estas competem entre si, mas também se auxiliam reciprocamente. A floresta em cujo limiar estamos é a prova cabal do que afirmo: os seres que nela vivem agrupados não andam dispersos pelo mundo, porque ajuntar-se e cooperar com os outros os leva a prosperar.
-- A harmonia a que te referes, ponderou Macaco de Vidro, sem se importar com o solene das palavras do Pavão, está associada à ideia antiga de um Criador. A natureza é harmônica, porque foi planejada, criada e é conservada por Deus. Mas se assim é, por que os Homens desenvolveram sua ideia de evolução, prescindindo de Deus ou com intenção de negar a sua existência?
Ante essa indagação, todos quedaram calados. Não só o Pavão e os Macacos, mas a natureza inteira ao redor observou profundo silêncio. Parecia que congelara ou fora paralisada. Macaco de Caco arrepiou-se, na ausência total de som. Após um instante, dirigiu-se ao Pavão:
-- Obrigado por nos lembrares essas coisas. E pela aula que nos ministraste...
-- Não há de quê, trucou o Pavão, esperando ser recompensado com alguns insetos para devorar como paga de sua exposição.
-- A explanação foi mesmo notável, continuou a Ave. Sinceramente, não achais que sou merecedor de uma dessas comendas honoris causa que as Universidades humanas se aprazem em outorgar? Tenho realizado mais pela cultura universal do que muitos doutores agraciados com aqueles títulos...
-- Senhor Pavão, considere melhor o que diz. Tens méritos, mas não os encareças a esse ponto, corrigiu Macaco de Telha.
-- Sou egrégio, apenas isso! retrucou o outro.
Definitivamente, excesso de humildade não era um defeito do Pavão. Por estranha extrapolação, assim como cotejava a própria plumagem com a de outros seres e a encontrava superior, o Pavão se habituara a comparar o seu intelecto com o dos outros e a dessumir exatamente o mesmo. Tal vício perdera sua inteligência. Dificultara-lhe o raciocinar, ao menos em certas direções. Aos amigos, pareceu inútil prosseguir o diálogo naquelas condições. Preferiram despedir-se e continuar sua marcha.
Ao partirem, de Vidro segredou aos outros:
-- A missão em que estamos não é para pessoas inteiras. Os que o são ficam plantados no limiar da floresta.
E ao dizê-lo, marchou com os outros para fora.
Espreitavam-nos os perigos da gélida região montanhosa.
terça-feira, 1 de maio de 2012
O Inquérito dos Macacos (1)
“A porta da verdade estava aberta
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.”
(Carlos Drummond de Andrade)
UM RAIO DE LUZ
A manhã resplandecia como diamante saído das mãos do ourives. A atmosfera estava dotada da mais perfeita transparência. Cruzando num átimo suas quilométricas partes como se fossem inextensas, raios de sol chegavam à floresta, onde espécies sem número compartilhavam os dons da existência. Cheiros exóticos, fragrâncias mil espalhavam-se, no interior do lugar idílico, enquanto os seus habitantes se extasiavam com o inarrável esplendor daquela manhã. Uma animação vigorosa, um elã incomum preenchiam até os seres mais lânguidos, estimulando-os e quase ordenando que brincadeiras se organizassem, exercícios fossem realizados, e diálogos, entabulados para coroar com palavras a cena suprema.
Dos entes que haviam erigido seu lar na mata, um gozava da proeminência, da realeza tácita entre os demais. E não era o Leão, por intuitivo que fosse supô-lo, mas o Macaco. A fina inteligência, a habilidade de pensar a vida, sem se perder em abstrações, aliadas à destreza para executar o que se propunha, eram o cetro invisível que emprestava ao Macaco a mais incontestável realeza.
Contudo, naquela manhã, Sua Majestade contrastava com os outros moradores do impressionante colosso verde a inspirar e expirar a espaços ritmados. É verdade que, como todos os outros entes que ali residiam, o pensador da floresta se sentia inspirado, poder-se-ia afirmar até inebriado, pelo feitiço a emanar de cada recôndito do gigantesco verde. Mas à diferença dos outros, o Macaco tinha um ar intrigado. Mirava um raio de luz, que se materializava num feixe semelhante a névoa, a se insinuar entre as copas das árvores e se refletir na face tranquila de uma poça d’água.
Disse o Macaco ao Rouxinol, que pousara numa clareira próxima:
-- Amigo, tu que és exímio na arte do canto, mas cantas sempre escondido, dize-me: por que a luz que se exibe onde passa vem-se ocultar no escuro desta floresta? Que faz o ser que tudo revela desejar se esconder na mata?
-- Quem me chama? Quem se dirige a mim? perguntou o Rouxinol desconfiado. Tu, Macaco, tu me chamas? E como te chamas?
-- Macaco de Vidro é meu nome.
-- Como? Macaco de quê?
-- De Vidro, nobre cantor. Ma-ca-co de Vi-dro.
-- Ah, de Vidro. E quem te atribuiu tão estranho nome?
-- Meus pais. Nem poderia ser de outra forma. É costume ancestral dos Símios os pais nomearem os filhos. Desde que os Antropoides se diferenciaram dos outros Primatas, tem sido assim.
-- Quem foram esses outros Primatas? indagou o passarinho surpreso.
-- O nome já diz: foram primos. Primos dos Antropoides. Mas, perguntava-te, por que a luz que se exibe onde passa vem-se ocultar na floresta? Vou simplificar a questão: por que a luz bate na poça d’água?
-- Ah, agora entendi... Vejo que te referes àquela poça, não é? A luz bate nela, porque está no seu caminho, afirmou o Rouxinol com ar meditativo.
-- Disso estou compenetrado, respondeu-lhe o interlocutor. O que me incita o intelecto não são tais coisas. É antes a flutuação da ordem. Por que a luz, que se apraz em espargir-se livremente no firmamento, no éter, no nada, deixa-se aprisionar no labirinto da mata?
-- Ah, isso não posso responder, admitiu o Rouxinol. Meus voos são lentos e baixos. Não tenho como acompanhar a luz em suas viagens, para desvendar-lhe os mistérios e entender os porquês de suas trajetórias.
Ao avistar Macaco de Vidro a debater essas coisas com o Rouxinol, um grupo de Símios se aproximou. Assustado, o Rouxinol bateu asas. Foi esconder-se numa árvore. O grupo acercou-se. Era formado por três Antropoides: Macaco de Telha, Macaco de Louça e Macaco de Caco. O primeiro indagou ao que estivera entretido com o Rouxinol:
-- Irmão, que conversavas com aquele Pássaro?
-- Que bom é me perguntarem! Preciso mesmo falar-vos. Estou num dilema. Outro dia encontrei um Macaco fugitivo do Centro de Pesquisas. Estava fora de si. Por muito tempo, ele e outros Macacos tinham sido estudados, judiados, até torturados por pesquisadores de drogas para combater moléstias humanas.
-- Não diga! exclamou Macaco de Caco. E por que testavam drogas para Homens em Símios?
-- Por causa da semelhança genética entre as espécies primatas, respondeu de Vidro. Para não se matarem e se torturarem com drogas perigosas, matavam e torturavam Macacos!
-- Homens me mordam! Como podem chegar a esses extremos! Como se atrevem a cometer tais atrocidades! bradou Macaco de Telha, num acesso de fúria. Pouco a pouco, porém, abrandou-se e arrematou:
-- É a velha história da semelhança genética entre Homens e Símios! Cobrem-nos com essa fama, esse estigma, há 200 anos! Não bastasse e ainda se põem a nos torturar e nos matar para entender como funcionam. É o cúmulo. A ciência humana é chegada ao cúmulo de suas contradições...
-- Precisamente! Concordo com o que dizes. Ocupei-me desses pensamentos a manhã inteira, atalhou Macaco de Vidro. Basta! Basta de devaneios sobre a semelhança de Homens e Símios! É hora de passarmos a questão a limpo. É hora de descobrirmos, sozinhos, se Homens e Símios têm a mesma ancestralidade. Mesmo!
-- Bravo! gritou Macaco de Caco. Desconhecem a condição símia, as agruras de ser Macaco. Alegam ser nossos parentes. E ainda passam a nos torturar e matar, quando à sua moda se certificam de que o são. Vamos passar essa história a limpo, do princípio ao fim. Companheiros, devemos unir-nos para investigar as nossas origens!
Macaco de Louça ponderou:
-- Os Homens sequer resolveram de todo a questão da sua ancestralidade. Há séculos discutem-na, sem chegar a consenso sobre importantes pontos. Não é possível esperarmos que o façam. Façamo-lo nós. “Quem sabe faz a hora / Não espera acontecer”.
-- Bravo, bravo! bradaram em uníssono os outros.
Nesse momento, as pedras que estavam ao redor do grupo clamaram:
-- Era tempo! Era tempo! Faltava esperarem todos os bichos do mundo sofrerem os mesmos abusos, para fazerem alguma coisa! Faltava esperarem a selva acabar, para se porem a investigar!
O inesperado clamor das pedras chocou os moradores da floresta. Mais do que os outros, porém, os quatro símios ficaram aturdidos. Alguns minutos depois, restabelecidos, refletiram a respeito do grito que lhes ferira os ouvidos. Concluíram que as pedras apoiavam ativamente a sua iniciativa, ainda que lhes censurassem a demora em tomá-la.
Então, os quatro animais celebraram um compromisso. Juraram despender todo o esforço que lhes fosse possível para investigar e elucidar, cabalmente, o palpitante enigma da sua origem. De onde surgiram os Símios? Como se originaram?: doravante, deviam tentar responder juntos essas perguntas, a qualquer custo.
Conceberam para isso um plano. Excursionariam aos mais diversos ambientes da Terra para buscar as respostas às perguntas que se tinham proposto. Viajariam a uma grande geleira, a um deserto, a uma mata costeira e ao mar, para pesquisarem e quiçá entenderem o que impede a vida de surgir em certos lugares, enquanto se desenvolve e se molda em outros.
Assim, a porta da verdade se abriu a quatro novas metades. Quem sabe entrariam por ela os primeiros Símios... De qualquer modo, ao vasto empreendimento investigativo que conceberam, nossos quatro amigos denominaram “o grande inquérito”. Um intelectual humano típico chama-lo-ia um processo kafkiano.
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