Na postagem anterior, afirmei que a restauração da igreja se dá pelo restabelecimento do ministério da palavra e o livre exame das Escrituras. Essas experiências foram alcançadas, em boa medida, no décimo-sexto século, nas igrejas originárias da Reforma. A primeira delas o foi, aliás, também no meio católico. Pode-se, pois, perguntar se a restauração se completou naquela época. Porém, embora o ministério da palavra e o livre exame tenham sido implantados, no século XVI, esse último voltou a declinar em seguida, e uma outra etapa da restauração teve de ocorrer, a fim de restaurá-lo, mais tarde. Sobre ela, discorrerei neste texto.
As duas obras de reconstrução da igreja foram, de algum modo, antecipadas no Antigo Testamento. O trabalho dos reformadores do décimo-sexto século é prefigurado pela reconstrução do Templo e o restabelecimento do culto. Já a segunda e última parte da restauração pode ser vista no símbolo da recuperação da liberdade política de Israel, durante o Período Macabeu. Embora muitos judeus tenham retornado de Babilônia, reedificado o Templo e restaurado o culto a Deus, no século VI a. C., o país continuou a ser governado por povos estrangeiros, por mais 350 anos. A independência política só foi alcançada, após a insurreição liderada pelos macabeus, no século II a. C. Somente a partir desse ponto, Israel deixou de sofrer pressões para adotar práticas cultuais estranhas.
Do ponto de vista da interpretação alegórica, o poder exercido por potências estrangeiras sobre Israel, entre as duas etapas da restauração, representa as forças que impedem o pleno funcionamento da aliança com Deus. No Antigo Testamento, a aliança centrava-se no Templo e no sistema de sacrifícios, sobre os quais a influência estrangeira foi exercida; na era atual, a aliança com Deus se baseia na palavra examinada livremente por cada consciência. Num primeiro momento histórico, as potências que tentaram sufocar a palavra desenvolveram-se no seio da Igreja Católica, porém mais tarde elas estenderam os seus tentáculos a outras organizações, que passaram a impedir ou dificultar o livre exame, por meio das interpretações obrigatórias da Bíblia que preconizam.
Tudo isso indica, a meu ver claramente, que há uma segunda etapa da restauração da igreja, após a Reforma do décimo-sexto século. Se é possível se situar a primeira fase da restauração na época de Lutero, a etapa mais adiantada pode ser vislumbrada quando um acontecimento de importância espiritual tão grande quanto a Reforma Protestante teve lugar. Esse acontecimento foi a rejeição dos poderes eclesiásticos e do próprio clericalismo, por cristãos ingleses e de outros países, no século XIX. Esses cristãos ficaram conhecidos, na História, pelo epíteto de Irmãos Unidos.
Um dos princípios com base nos quais os Irmãos estabeleceram as suas assembleias e que os diferenciou do restante do cristianismo foi a simplicidade da igreja local. Para eles, essa simplicidade se traduzia numa radical autonomia em relação a todo poder supralocal (chame-se ele comunhão, ministério, organização de igrejas ou receba qualquer outro nome).
A simplicidade da assembleia local, como os Irmãos a entenderam, não é um fim em si mesma, mas um instrumento para a preservação da palavra de Deus e do seu livre exame. Para que o trato com as Escrituras seja realmente livre, é preciso que a assembleia local da igreja também o seja. Daí a posição assumida pelos Irmãos. Desconheço qualquer movimento ou grupo de pessoas, que tenha exigido que a assembleia cristã local fosse livre de toda e qualquer potência eclesiástica, antes dos Irmãos Unidos.
Os Irmãos foram criticados pelo seu zelo doutrinário. Provavelmente, muitos deles exageraram nesse tocante. É um fato bem conhecido que os Irmãos acabaram por se dividir em dois ramos, por causa de divergências doutrinárias. Porém, não há notícia de que eles tenham, depois, se dividido em quatro, oito ou dezesseis pedaços, como muitos críticos deles fizeram. Além disso, o profundo senso de responsabilidade pessoal, que os Irmãos desenvolveram para com Deus, no que tange ao exame da Bíblia, justifica boa parte do zelo doutrinário deles.
Para que o elemento central da nova aliança (a palavra de Deus) possa ser livremente examinado por todos os cristãos, é indispensável que a igreja local seja, ela própria, livre de toda e qualquer instituição, seja eclesiástica, seja ministerial, seja secular. A liberdade prática da igreja deve ser radical, assim como o livre exame. O fato de terem praticado a vida da igreja dessa nova maneira foi, a meu ver, o “tiro certeiro” dos Irmãos. Tão certeiro que pode ser considerado um passo decisivo, na restauração da igreja, após o seu Cativeiro Babilônico e a retomada do ministério da palavra no século XVI.
Como Lutero, Calvino e a Reforma Católica foram fundamentais para que o ministério da palavra fosse instaurado no devido lugar e a Bíblia fosse levada a todas as pessoas, a atitude dos Irmãos Unidos de separar as suas congregações, de fato e não retoricamente, de todo poder instituído foi igualmente fundamental. Na época de Lutero, os cristãos deixaram Babilônia, mas continuaram a ser oprimidos pelo poder estrangeiro; com os Irmãos, eles começaram a se libertar do poder estrangeiro, ou seja, de todo poder contrário ao livre exame da Bíblia.
Só uma atitude forte como a dos Irmãos Unidos pode permitir aos cristãos não apenas reverter os efeitos da destruição que o poder estrangeiro realizou na igreja, mas confrontar e vencer esse poder, em sua essência, eliminando toda possibilidade de uma interpretação obrigatória da Bíblia se sobrepor ao livre exame. Por esse motivo, o exemplo dos Irmãos Unidos deve ser cuidadosamente levado em conta e seguido.
Não faz sentido um número de cristãos colocar-se no campo novo desbravado pelos Irmãos para seguir uma doutrina ou uma linha ministerial obrigatória, seja qual for. Seguir uma doutrina ou um ministério único significa adotar uma maneira específica de interpretar a Bíblia. Isso é contrário ao livre exame das Escrituras. É contrário ao princípio da nova restauração alcançada pelos Irmãos. Ou temos a doutrina obrigatória, ou o livre exame. Ou seguimos um líder, ou a consciência diante de Deus. Se o que queremos é uma pessoa ou um modo de pensamento exaltados, devemos optar pela doutrina ou o ministério obrigatório. Porém, se desejamos que a palavra de Deus atue maximamente, não precisamos disso e sim do livre exame.
O reconhecimento do papel dos Irmãos Unidos, na restauração, é importante por várias razões. Primeiramente, porque eles permanecem muito pouco conhecidos no meio cristão. A penetração das ideias dos Irmãos não se compara à dos reformadores do século XVI. Em segundo lugar, o conhecimento do que os Irmãos realizaram é importante, para que possamos manter o que eles alcançaram. Cada conquista, na história da restauração é decisiva para os cristãos. Por isso, é indispensável que eles a mantenham intrepidamente.
domingo, 26 de junho de 2011
Restauração: o que é, o que não é
O apóstolo Paulo sugeriu que a saída do povo de Israel do Egito e a sua peregrinação no deserto retratam, simbolicamente, a experiência muito posterior dos cristãos. De acordo com ele, “todos [os israelitas] foram batizados em Moisés, na nuvem e no mar, e todos comeram de uma mesma comida espiritual, e beberam todos de uma mesma bebida espiritual” (1 Co 10:2-4). Porém, “estas coisas foram-nos feitas em figura” (1 Co 10:6). No pensamento de Paulo, o Êxodo prefigurava algo mais, algo diferente dele próprio, a saber: o desenvolvimento da salvação trazida por Cristo.
Essa afirmativa de Paulo estabelece um importante princípio de interpretação. Para o apóstolo, a História de Israel prefigurava a da Igreja. Portanto, não apenas a saída do Egito, a passagem pelo mar, a permanência sob a nuvem, a alimentação do maná e o jorro de água da rocha tinham esse sentido, mas os acontecimentos posteriores também.
A ideia de que a igreja cristã experimentou uma degradação seguida de restauração decorre da possibilidade de se ver a História recente na antiga, da maneira claramente pretendida por Paulo. O Cativeiro de Israel em Babilônia representa um período, no qual o cerne da nova aliança, representado simbolicamente pelo Templo e pelo culto, foi destruído ou suspenso. Porém, à destruição seguiu-se a plena restauração daqueles elementos.
Não foi por outra razão que Lutero escreveu uma célebre obra sobre o Cativeiro Babilônico da igreja. Ele estendeu o princípio da prefiguração afirmado por Paulo ao período de derrota e desolação, durante o qual o culto divino permaneceu suspenso em Israel. Para ele, do século IX ao XVI, o Papado reproduziu as principais características daquela particular prefiguração, pois aprisionou os cristãos num regime supersticioso estranho ao Novo Testamento.
Ao projetar o Cativeiro Babilônico de Israel em sua própria época, Lutero foi consequente. Ele fez simplesmente o mesmo que o apóstolo Paulo na 1ª Epístola aos Coríntios. Esse trabalho de projeção descortina uma ampla visão da História, no centro da qual se percebe um processo de degradação seguido da restauração da igreja cristã. Sondar os princípios e os detalhes dessa visão é o objetivo do presente texto.
O contraste entre a adoração de Israel a Deus, em Canaã, por cerca de 900 anos, e a degradação desse culto, durante o Cativeiro, salta aos olhos. Ele indica que a História da Igreja Cristã até o Cativeiro pode ser claramente dividida em um período de normalidade geral e outro de anormalidade. Assim como, no Antigo Testamento, o período que antecedeu a degradação do culto foi de normalidade, apesar das constantes oscilações, a vida da igreja transcorreu sob uma normalidade abençoada e divina, durante séculos. Isso não significa que não existiram problemas. Pelo contrário, eles foram abundantes. Porém, aos olhos de Deus, o contorno geral do longo período inicial de existência da igreja, no mundo, foi a sua normalidade espiritual. Como Israel havia sido chamado para fora do Egito, a fim de adorar a Deus em Canaã e fez isso durante 900 anos, embora com altos e baixos, a igreja viveu uma situação regular, aos olhos de Deus, ao longo de séculos. Só o Cativeiro Babilônico, a que Lutero se referiu, pôs fim a tal situação.
Esse modo de ver a História da Igreja sugere que não devemos considerá-la uma sucessão de fracassos só contrastados pela fidelidade de uns poucos cristãos a Deus. A maioria dos pregadores e adeptos da ideia de restauração considera que cada período histórico é marcado pela infidelidade da maior parte e pela fidelidade de uns poucos cristãos à aliança com Deus. Em cada época, predomina a degradação, porém Deus escolhe um remanescente para sustentar o seu testemunho.
Essa concepção revela-se equivocada, quando é examinada pelo prisma dos acontecimentos do Antigo Testamento. Sob esse ponto de vista, o fracasso só se disseminou, só afundou raízes, na História da Igreja, com o nefasto acontecimento que Lutero denominou Cativeiro Babilônico da igreja. Tudo o que veio antes, por mais que estivesse misturado a erros, não deve ser visto como fracasso geral. Essa é a visão da História, sobre a qual a visão mais restrita da restauração deve ser estabelecida. A restauração não é a reação de uma minoria a erros acumulados, pelos filhos de Deus, durante eras sem fim. Tampouco é um processo contínuo, como uma corrida de revezamento, em que cada atleta passa o bastão a outro. A restauração é um acontecimento que se dá num período relativamente curto, em resposta a uma degradação também concentrada no tempo.
Para ser ainda mais claro: se antes do Cativeiro Babilônico do Antigo Testamento houve um longo período de normalidade no culto a Deus, quando nos transportamos à era atual, a adoração católica da Antiguidade e de parte da Idade Média não deve ser considerada anormal, por mais que estivesse misturada a orações aos santos, à veneração de objetos materiais e a certas superstições. Ao mesmo tempo em que se considera esses erros, há de se levar em conta, e ainda mais, que a situação da igreja, em qualquer época, não se determina pelos seus erros em sentido amplo, mas pelo trato que desenvolve com a palavra de Deus. Sob esse ponto de vista, a degradação da vida da igreja, isto é, a virtual suspensão do culto normal a Deus, só ocorreu bem mais tarde, quando o ministério da palavra cessou.
Quando a palavra de Deus é ministrada, pregada, ensinada, há normalidade no culto a Deus; quando ela não o é, a anormalidade se instaura. Refiro-me principalmente à palavra sujeita ao livre exame, e só secundariamente às interpretações compulsórias dela. Os dados históricos são claros, ao apontar que o ministério da palavra baseado no livre exame cessou, quando o latim se tornou língua morta, e nada foi feito, a princípio, para que a palavra da Bíblia pudesse chegar ao povo e este pudesse lê-la livremente.
Quando os povos da Europa e do mundo deixaram de falar e de compreender o latim, e a missa continuou a ser proferida naquele idioma, o canal mais privilegiado de acesso à palavra de Deus foi obstruído. Como quase toda a população da época era analfabeta, e a literatura estava enclausurada nas ordens religiosas e nas igrejas, a Bíblia e os livros do que a própria Igreja reverencia como sua Tradição deixaram de ser lidos, pregados e ouvidos. O latim e os claustros tornaram-se o seu sepulcro.
Repercutindo essa maneira de ser da Igreja medieval, a maior parte dos cargos hierárquicos surgidos na Baixa Idade Média perdeu parte fundamental de sua relação com o ministério da palavra. Nas Institutas, Calvino registrou que a função de várias dignidades eclesiásticas da sua época era cantar, recitar orações ou realizar outras tarefas sem relação alguma com a Bíblia (CALVINO, Jean. The Institutes of Christian religion. In Great books of the western world. 2a. ed., Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1993. Book Fourth, Chapter V, 10. p. 366). E, embora a Tradição eclesiástica também conhenha a palavra de Deus, a Bíblia não pode ser substituída por ela, até porque os conflitos interpretativos das duas devem ser resolvidos à luz das Escrituras. Por isso se pode afirmar que o desaparecimento da Bíblia desnaturou o ministério da palavra, na igreja, a partir de determinado momento histórico.
A Reforma foi responsável pela devolução da Bíblia ao povo, mediante a tradução para a linguagem comum, que permitiu o triunfo do livre exame e a recolocação do ministério da palavra no centro do culto público. E isso não só no meio protestante, mas, cada vez em maior medida, nos séculos seguintes, também no católico.
No Novo Testamento, é extremamente claro que os primeiros cristãos entenderam a ordem espiritual instituída por Cristo como uma substituição do culto material baseado no Templo de Jerusalém pelo culto baseado na palavra de Deus. A destruição do Templo, no ano 70, foi apenas o sinal visível da substituição. O Templo se foi, porque a palavra já havia sido colocada no seu lugar. Porque tudo o que era material e visível, na antiga ordem, tornou-se verbal, portanto invisível, debaixo da nova. Por isso, a degradação da igreja se deu com a corrupção do ministério da palavra, e a sua restauração, com a retomada dele, na época da Reforma Protestante e Católica.
Essa afirmativa de Paulo estabelece um importante princípio de interpretação. Para o apóstolo, a História de Israel prefigurava a da Igreja. Portanto, não apenas a saída do Egito, a passagem pelo mar, a permanência sob a nuvem, a alimentação do maná e o jorro de água da rocha tinham esse sentido, mas os acontecimentos posteriores também.
A ideia de que a igreja cristã experimentou uma degradação seguida de restauração decorre da possibilidade de se ver a História recente na antiga, da maneira claramente pretendida por Paulo. O Cativeiro de Israel em Babilônia representa um período, no qual o cerne da nova aliança, representado simbolicamente pelo Templo e pelo culto, foi destruído ou suspenso. Porém, à destruição seguiu-se a plena restauração daqueles elementos.
Não foi por outra razão que Lutero escreveu uma célebre obra sobre o Cativeiro Babilônico da igreja. Ele estendeu o princípio da prefiguração afirmado por Paulo ao período de derrota e desolação, durante o qual o culto divino permaneceu suspenso em Israel. Para ele, do século IX ao XVI, o Papado reproduziu as principais características daquela particular prefiguração, pois aprisionou os cristãos num regime supersticioso estranho ao Novo Testamento.
Ao projetar o Cativeiro Babilônico de Israel em sua própria época, Lutero foi consequente. Ele fez simplesmente o mesmo que o apóstolo Paulo na 1ª Epístola aos Coríntios. Esse trabalho de projeção descortina uma ampla visão da História, no centro da qual se percebe um processo de degradação seguido da restauração da igreja cristã. Sondar os princípios e os detalhes dessa visão é o objetivo do presente texto.
O contraste entre a adoração de Israel a Deus, em Canaã, por cerca de 900 anos, e a degradação desse culto, durante o Cativeiro, salta aos olhos. Ele indica que a História da Igreja Cristã até o Cativeiro pode ser claramente dividida em um período de normalidade geral e outro de anormalidade. Assim como, no Antigo Testamento, o período que antecedeu a degradação do culto foi de normalidade, apesar das constantes oscilações, a vida da igreja transcorreu sob uma normalidade abençoada e divina, durante séculos. Isso não significa que não existiram problemas. Pelo contrário, eles foram abundantes. Porém, aos olhos de Deus, o contorno geral do longo período inicial de existência da igreja, no mundo, foi a sua normalidade espiritual. Como Israel havia sido chamado para fora do Egito, a fim de adorar a Deus em Canaã e fez isso durante 900 anos, embora com altos e baixos, a igreja viveu uma situação regular, aos olhos de Deus, ao longo de séculos. Só o Cativeiro Babilônico, a que Lutero se referiu, pôs fim a tal situação.
Esse modo de ver a História da Igreja sugere que não devemos considerá-la uma sucessão de fracassos só contrastados pela fidelidade de uns poucos cristãos a Deus. A maioria dos pregadores e adeptos da ideia de restauração considera que cada período histórico é marcado pela infidelidade da maior parte e pela fidelidade de uns poucos cristãos à aliança com Deus. Em cada época, predomina a degradação, porém Deus escolhe um remanescente para sustentar o seu testemunho.
Essa concepção revela-se equivocada, quando é examinada pelo prisma dos acontecimentos do Antigo Testamento. Sob esse ponto de vista, o fracasso só se disseminou, só afundou raízes, na História da Igreja, com o nefasto acontecimento que Lutero denominou Cativeiro Babilônico da igreja. Tudo o que veio antes, por mais que estivesse misturado a erros, não deve ser visto como fracasso geral. Essa é a visão da História, sobre a qual a visão mais restrita da restauração deve ser estabelecida. A restauração não é a reação de uma minoria a erros acumulados, pelos filhos de Deus, durante eras sem fim. Tampouco é um processo contínuo, como uma corrida de revezamento, em que cada atleta passa o bastão a outro. A restauração é um acontecimento que se dá num período relativamente curto, em resposta a uma degradação também concentrada no tempo.
Para ser ainda mais claro: se antes do Cativeiro Babilônico do Antigo Testamento houve um longo período de normalidade no culto a Deus, quando nos transportamos à era atual, a adoração católica da Antiguidade e de parte da Idade Média não deve ser considerada anormal, por mais que estivesse misturada a orações aos santos, à veneração de objetos materiais e a certas superstições. Ao mesmo tempo em que se considera esses erros, há de se levar em conta, e ainda mais, que a situação da igreja, em qualquer época, não se determina pelos seus erros em sentido amplo, mas pelo trato que desenvolve com a palavra de Deus. Sob esse ponto de vista, a degradação da vida da igreja, isto é, a virtual suspensão do culto normal a Deus, só ocorreu bem mais tarde, quando o ministério da palavra cessou.
Quando a palavra de Deus é ministrada, pregada, ensinada, há normalidade no culto a Deus; quando ela não o é, a anormalidade se instaura. Refiro-me principalmente à palavra sujeita ao livre exame, e só secundariamente às interpretações compulsórias dela. Os dados históricos são claros, ao apontar que o ministério da palavra baseado no livre exame cessou, quando o latim se tornou língua morta, e nada foi feito, a princípio, para que a palavra da Bíblia pudesse chegar ao povo e este pudesse lê-la livremente.
Quando os povos da Europa e do mundo deixaram de falar e de compreender o latim, e a missa continuou a ser proferida naquele idioma, o canal mais privilegiado de acesso à palavra de Deus foi obstruído. Como quase toda a população da época era analfabeta, e a literatura estava enclausurada nas ordens religiosas e nas igrejas, a Bíblia e os livros do que a própria Igreja reverencia como sua Tradição deixaram de ser lidos, pregados e ouvidos. O latim e os claustros tornaram-se o seu sepulcro.
Repercutindo essa maneira de ser da Igreja medieval, a maior parte dos cargos hierárquicos surgidos na Baixa Idade Média perdeu parte fundamental de sua relação com o ministério da palavra. Nas Institutas, Calvino registrou que a função de várias dignidades eclesiásticas da sua época era cantar, recitar orações ou realizar outras tarefas sem relação alguma com a Bíblia (CALVINO, Jean. The Institutes of Christian religion. In Great books of the western world. 2a. ed., Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1993. Book Fourth, Chapter V, 10. p. 366). E, embora a Tradição eclesiástica também conhenha a palavra de Deus, a Bíblia não pode ser substituída por ela, até porque os conflitos interpretativos das duas devem ser resolvidos à luz das Escrituras. Por isso se pode afirmar que o desaparecimento da Bíblia desnaturou o ministério da palavra, na igreja, a partir de determinado momento histórico.
A Reforma foi responsável pela devolução da Bíblia ao povo, mediante a tradução para a linguagem comum, que permitiu o triunfo do livre exame e a recolocação do ministério da palavra no centro do culto público. E isso não só no meio protestante, mas, cada vez em maior medida, nos séculos seguintes, também no católico.
No Novo Testamento, é extremamente claro que os primeiros cristãos entenderam a ordem espiritual instituída por Cristo como uma substituição do culto material baseado no Templo de Jerusalém pelo culto baseado na palavra de Deus. A destruição do Templo, no ano 70, foi apenas o sinal visível da substituição. O Templo se foi, porque a palavra já havia sido colocada no seu lugar. Porque tudo o que era material e visível, na antiga ordem, tornou-se verbal, portanto invisível, debaixo da nova. Por isso, a degradação da igreja se deu com a corrupção do ministério da palavra, e a sua restauração, com a retomada dele, na época da Reforma Protestante e Católica.
sábado, 18 de junho de 2011
Identidade Cristã Individual
Durante milênios, as pessoas se acostumaram a viver, com base nos conceitos e regras das coletividades a que pertenciam, sem os questionar ou modificar criativamente. Isso as levou a adiar o parto do que podemos denominar as individualidades humanas, que só se deram a conhecer, a partir do surgimento do cristianismo e, ainda assim, progressivamente e em meio a dificuldades.
Como se definia o certo e o errado naquele tempo? Definia-se com base naquilo que o meio social praticava e inculcava. Que um homem devia realizar durante a vida? E uma mulher? Em que espécie de saber eles deviam ser educados? A quem deviam obedecer? A quem imitar? Com quem deviam casar-se e por que não podiam se casar com outros? Em que situações lhes era facultado descasar? Com quem deviam contrair amizade, sociedade, alianças? Que cada um podia fazer às várias classes de cidadãos, escravos e estrangeiros e em que situações? As leis e os costumes não deixavam brecha para o indivíduo definir como essas numerosas relações podiam ser validamente desenvolvidas. Uma verdadeira mecânica do certo e do errado imposta por métodos sociais substituía a liberdade individual, determinando como o homem devia viver.
Esses são alguns exemplos de temas e mecanismos por meio dos quais a coletividade e a sociedade dominaram completamente o indivíduo. Por muitos milênios, a dimensão individual da personalidade humana permaneceu anã, atrofiada, subdesenvolvida, comparativamente à dimensão coletiva gigantesca, hipertrofiada e hiperdesenvolvida. Mal se pode afirmar que, durante esse tempo, a personalidade humana individual se tenha afirmado. Ela permaneceu tão raquítica, tão mirrada que o ser do homem praticamente igualou-se ao da sociedade. A vida humana permaneceu a vida da sociedade; a alma humana, a alma da sociedade. Só em casos excepcionais, pessoas foram capazes de sacudir o jugo de uma identidade coletiva para criar ou tentar criar outra individual. Na maior parte das vezes em que isso ocorreu, o movimento foi abafado.
Nesse contexto, a religião sempre foi o grito da alma oprimida. Marx o afirmou não como quem anuncia uma novidade, mas como quem reitera uma verdade bem conhecida e imemorial. A História da humanidade até três séculos atrás pode ser sumariada como uma luta do indivíduo oprimido, que faz da fé seu gemido e, por vezes, um grito de libertação. Quando menos, do ponto de vista da subjetividade humana, essa foi a tônica da História.
No entanto, o problema que pretendo abordar, nesta postagem, é muito mais específico do que expus até agora. Quando, após tanta luta pela afirmação do indivíduo, finalmente se pôde afirmar que ele nascera ou fora libertado do cativeiro em que havia sido mantido, um outro problema grave surgiu, na era cristã: a religião se tornou a força mais opressiva jamais exercida sobre a cerviz desse homem.
A religião redentora que, por séculos, constituíra o gemido e o brado da criatura cativa, assumiu o papel reacionário, que hoje a caracteriza, a partir de quando se tornou a força conformadora do pensamento individual ao coletivo, dos sentimentos livres e pessoais ao sentimento geral e padronizado e da personalidade concreta de cada ser humano à personalidade abstrata de um grupo local ou supralocal. Assim como a afirmação do indivíduo começou com o cristianismo, a reação anti-individual não teve outra gênese. Não foi sem razão que Lutero afirmou que o cristianismo deu ao mundo as melhores e as piores coisas que ele possui.
Fato é que, hoje, observamos pessoas ingressarem numa igreja ou outra instituição cristã e, pouco tempo depois, passarem a pensar e a sentir como as pessoas daquele meio. Pior do que isso é que a porta de saída de tais ambientes costuma ser guarnecida por querubins, cujas espadas flamejantes lhes foram entregues por líderes não destituídos de interesse pessoal em engrossar as fileiras, a fama e a arrecadação daquele “seu rebanho”. Ainda pior é o massacre de personalidades e mentes atestado pelo sofrimento, pelos transtornos psíquicos, pela instigação de pessoas contra pessoas e pela destruição de unidades familiares, que se verifica nos mesmos meios.
Gênesis 2 a 4 propõem-nos experiência muito diferente dessa, na medida em que colocam o indivíduo (representado por Adão e seus descendentes) diretamente diante de Deus. A experiência de estar perante Deus, no caso de Adão ou de Caim, consiste em ouvir o que Deus lhe fala e em reagir a essa palavra. As Institutas da religião cristã são uma obra maçante, mas indispensável para se tomar o pulso da História da Igreja e começar a entendê-la. Nela, Calvino afirma que ser obrigado pela consciência é ser obrigado perante Deus. Essa afirmação foi o pomo da grande discórdia católico-protestante do décimo-sexto século. Porem, ela não faz mais do que nos reportar ao problema de Gênesis 2 a 4.
Deus disse a Adão: “De toda árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás” (Gn 2:16-17). Essa simples palavra obrigou o homem criado por Deus. A questão é: obrigou-o perante quem? Perante outro homem? Perante a sociedade? Perante seus líderes? Certamente não. Ela obrigou-o para com Deus e perante Deus.
Ninguém se faz cristão sem internalizar profundamente o mandamento de Gênesis 2:17. Ninguém se faz sequer monoteísta sem passar pelo mar aberto desse versículo, pois tanto o Cristianismo como o Judaísmo e o Islamismo aceitam e partem do texto sobre o Jardim do Éden. Internalizar Gênesis 2:17 não é senão atribuir à questão “quem sou?” um significado divino.
A natureza humana é tal que a questão não pode ser respondida, a não ser por cada indivíduo. Cada ser humano tem de encontrar a sua resposta e afirmá-la, para se iniciar na experiência de Deus. E não pode prosseguir, nessa experiência, se perder o caminho indicado pelo questionamento. Tão-logo tirou Israel do Egito, Deus praticou dois atos fundamentais: entregou os mandamentos, no Monte Sinai, e ordenou que Israel levantasse o censo. Os dois atos estão relacionados. O número de indivíduos foi levantado, porque a atitude de cada um para com a lei do Sinai era o que mais importava a Deus.
Verdade é que as mulheres e as crianças não foram contadas, pois o censo tinha finalidade eminentemente militar. Israel não era um exército, quando saiu do Egito. Ele foi constituído um exército, por meio do censo. Uma identidade coletiva lhe foi assim atribuída. Porém, antes de tudo, essa identidade dependia de outra mais básica, a saber: o que cada um era, na sua relação com Deus, como cada um respondia à sua lei. Essa identidade era comum a homens e mulheres.
Na tradição judaica, cada mandamento da Lei de Moisés admite 600.000 interpretações diferentes, porque esse foi o número de homens em idade de guerra obtido no censo. A cada homem correspondia uma interpretação da lei. Essa é a verdade fundamental para Deus. Não é tanto uma verdade objetiva, quanto é subjetiva. Quero dizer que a lei deve ser tomada, individualmente, por cada homem, diante de Deus. Isso é ser responsável perante o Criador, como Adão o foi no Éden. Isso e somente isso é ter a consciência obrigada, como Calvino afirmou.
Não estou a sugerir que cada pessoa deve inventar uma interpretação objetiva, isto é, racional diferente da palavra de Deus, mas que cada um é responsável por metabolizar individualmente essa palavra. Não importa se as interpretações possíveis do que Deus fala são duas, cinco ou 20: cada pessoa tem de assimilá-las individualmente. Não há interpretação obrigatória para todos. Esse é o sentido básico de Gênesis 2:17 e de toda a Bíblia. É também o sentido do livre exame das Escrituras, pelo qual os reformadores se bateram com tanto zelo.
Perdi a conta de quantas vezes li Deuteronômio 6:6-7: “Estas palavras que hoje te ordeno estarão no teu coração; tu as inculcarás a teus filhos, e delas falarás assentado em tua casa e andando pelo caminho, e ao deitar-te e ao levantar-te”. Quantas vezes esse texto foi pregado também dos púlpitos! No entanto, não é costume se esclarecer quais são as palavras de Deus mencionadas nele. Se olharmos com atenção, veremos que são os Dez Mandamentos, que haviam sido enunciados no capítulo anterior de Deuteronômio. Deus deu os Dez Mandamentos e, em seguida, ordenou: “Estas palavras estarão no teu coração”.
Israel ter 600.000 interpretações dos Dez Mandamentos era guardá-los no coração. Isso é tomar a palavra de Deus subjetivamente. Quando Deus disse a Adão “De toda árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento não comerás”, o dever de guardar aquele único mandamento no coração estava implícito. Deus exigia esse guardar. Entender, cumprir e descumprir Gênesis 2:17 eram experiências essencialmente individuais, subjetivas. Assim continuou a ser, através dos séculos, pois não há como se alterar a essência da experiência de Deus.
Essa experiência é o que faz nascer o indivíduo. “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (Jo 8:32). O novo homem é o indivíduo liberto. Sua nova condição é preservada, enquanto ele se mantém perante Deus, enquanto se guia por essa posição e não retorna aos rudimentos do mundo, para nos utilizarmos da linguagem de Paulo. Que são tais rudimentos? Que o próprio Paulo o responda: eles são o aio, cuja função é definir o que a criança deve fazer. Quando seguimos homens, sejam quem forem, não nos relacionamos diretamente com Deus, porque não vivemos como seus filhos (Gl 4:1-3,9). Os aios de hoje, como os de ontem, são sempre representantes de uma mentalidade coletiva, não individual. Como em todos os problemas de identidade, o mal não está nesse fato, mas em não se compatibilizar a mentalidade coletiva com a liberdade individual de interpretação e reação à palavra de Deus.
O problema específico da religião cristã, no nosso tempo, é ter-se tornado contrária à experiência fundadora de toda a Bíblia (Gênesis 2 a 4) e enchido o mundo de aios. Essa religião e esses aios uniformizam constantemente os homens, levam-nos a pensar e sentir as mesmas coisas da mesma maneira e a propagar, com zelo, esse modo de ser cativo como se fosse uma libertação. Por isso, eles se tornaram a mais importante causa de extravio do homem em relação a si mesmo. Não é raro que, hoje, quanto mais frequenta uma igreja e quanto mais religioso se faz, menos dotado de identidade individual um homem se torne.
Claro que os aios a que me refiro não são apresentados, no meio cristão, como no presente texto. Eles são exaltados, adornados com enfeites e roupas de cores mil. Nessas promoções ciganas do coletivo, em prejuízo do individual, reside um grande perigo. Afastar-se da experiência fundadora expressa, em Gênesis 2 a 4, é sempre um risco para o indivíduo e sua fé, pois mortifica o homem e anula a experiência de Deus.
Como se definia o certo e o errado naquele tempo? Definia-se com base naquilo que o meio social praticava e inculcava. Que um homem devia realizar durante a vida? E uma mulher? Em que espécie de saber eles deviam ser educados? A quem deviam obedecer? A quem imitar? Com quem deviam casar-se e por que não podiam se casar com outros? Em que situações lhes era facultado descasar? Com quem deviam contrair amizade, sociedade, alianças? Que cada um podia fazer às várias classes de cidadãos, escravos e estrangeiros e em que situações? As leis e os costumes não deixavam brecha para o indivíduo definir como essas numerosas relações podiam ser validamente desenvolvidas. Uma verdadeira mecânica do certo e do errado imposta por métodos sociais substituía a liberdade individual, determinando como o homem devia viver.
Esses são alguns exemplos de temas e mecanismos por meio dos quais a coletividade e a sociedade dominaram completamente o indivíduo. Por muitos milênios, a dimensão individual da personalidade humana permaneceu anã, atrofiada, subdesenvolvida, comparativamente à dimensão coletiva gigantesca, hipertrofiada e hiperdesenvolvida. Mal se pode afirmar que, durante esse tempo, a personalidade humana individual se tenha afirmado. Ela permaneceu tão raquítica, tão mirrada que o ser do homem praticamente igualou-se ao da sociedade. A vida humana permaneceu a vida da sociedade; a alma humana, a alma da sociedade. Só em casos excepcionais, pessoas foram capazes de sacudir o jugo de uma identidade coletiva para criar ou tentar criar outra individual. Na maior parte das vezes em que isso ocorreu, o movimento foi abafado.
Nesse contexto, a religião sempre foi o grito da alma oprimida. Marx o afirmou não como quem anuncia uma novidade, mas como quem reitera uma verdade bem conhecida e imemorial. A História da humanidade até três séculos atrás pode ser sumariada como uma luta do indivíduo oprimido, que faz da fé seu gemido e, por vezes, um grito de libertação. Quando menos, do ponto de vista da subjetividade humana, essa foi a tônica da História.
No entanto, o problema que pretendo abordar, nesta postagem, é muito mais específico do que expus até agora. Quando, após tanta luta pela afirmação do indivíduo, finalmente se pôde afirmar que ele nascera ou fora libertado do cativeiro em que havia sido mantido, um outro problema grave surgiu, na era cristã: a religião se tornou a força mais opressiva jamais exercida sobre a cerviz desse homem.
A religião redentora que, por séculos, constituíra o gemido e o brado da criatura cativa, assumiu o papel reacionário, que hoje a caracteriza, a partir de quando se tornou a força conformadora do pensamento individual ao coletivo, dos sentimentos livres e pessoais ao sentimento geral e padronizado e da personalidade concreta de cada ser humano à personalidade abstrata de um grupo local ou supralocal. Assim como a afirmação do indivíduo começou com o cristianismo, a reação anti-individual não teve outra gênese. Não foi sem razão que Lutero afirmou que o cristianismo deu ao mundo as melhores e as piores coisas que ele possui.
Fato é que, hoje, observamos pessoas ingressarem numa igreja ou outra instituição cristã e, pouco tempo depois, passarem a pensar e a sentir como as pessoas daquele meio. Pior do que isso é que a porta de saída de tais ambientes costuma ser guarnecida por querubins, cujas espadas flamejantes lhes foram entregues por líderes não destituídos de interesse pessoal em engrossar as fileiras, a fama e a arrecadação daquele “seu rebanho”. Ainda pior é o massacre de personalidades e mentes atestado pelo sofrimento, pelos transtornos psíquicos, pela instigação de pessoas contra pessoas e pela destruição de unidades familiares, que se verifica nos mesmos meios.
Gênesis 2 a 4 propõem-nos experiência muito diferente dessa, na medida em que colocam o indivíduo (representado por Adão e seus descendentes) diretamente diante de Deus. A experiência de estar perante Deus, no caso de Adão ou de Caim, consiste em ouvir o que Deus lhe fala e em reagir a essa palavra. As Institutas da religião cristã são uma obra maçante, mas indispensável para se tomar o pulso da História da Igreja e começar a entendê-la. Nela, Calvino afirma que ser obrigado pela consciência é ser obrigado perante Deus. Essa afirmação foi o pomo da grande discórdia católico-protestante do décimo-sexto século. Porem, ela não faz mais do que nos reportar ao problema de Gênesis 2 a 4.
Deus disse a Adão: “De toda árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás” (Gn 2:16-17). Essa simples palavra obrigou o homem criado por Deus. A questão é: obrigou-o perante quem? Perante outro homem? Perante a sociedade? Perante seus líderes? Certamente não. Ela obrigou-o para com Deus e perante Deus.
Ninguém se faz cristão sem internalizar profundamente o mandamento de Gênesis 2:17. Ninguém se faz sequer monoteísta sem passar pelo mar aberto desse versículo, pois tanto o Cristianismo como o Judaísmo e o Islamismo aceitam e partem do texto sobre o Jardim do Éden. Internalizar Gênesis 2:17 não é senão atribuir à questão “quem sou?” um significado divino.
A natureza humana é tal que a questão não pode ser respondida, a não ser por cada indivíduo. Cada ser humano tem de encontrar a sua resposta e afirmá-la, para se iniciar na experiência de Deus. E não pode prosseguir, nessa experiência, se perder o caminho indicado pelo questionamento. Tão-logo tirou Israel do Egito, Deus praticou dois atos fundamentais: entregou os mandamentos, no Monte Sinai, e ordenou que Israel levantasse o censo. Os dois atos estão relacionados. O número de indivíduos foi levantado, porque a atitude de cada um para com a lei do Sinai era o que mais importava a Deus.
Verdade é que as mulheres e as crianças não foram contadas, pois o censo tinha finalidade eminentemente militar. Israel não era um exército, quando saiu do Egito. Ele foi constituído um exército, por meio do censo. Uma identidade coletiva lhe foi assim atribuída. Porém, antes de tudo, essa identidade dependia de outra mais básica, a saber: o que cada um era, na sua relação com Deus, como cada um respondia à sua lei. Essa identidade era comum a homens e mulheres.
Na tradição judaica, cada mandamento da Lei de Moisés admite 600.000 interpretações diferentes, porque esse foi o número de homens em idade de guerra obtido no censo. A cada homem correspondia uma interpretação da lei. Essa é a verdade fundamental para Deus. Não é tanto uma verdade objetiva, quanto é subjetiva. Quero dizer que a lei deve ser tomada, individualmente, por cada homem, diante de Deus. Isso é ser responsável perante o Criador, como Adão o foi no Éden. Isso e somente isso é ter a consciência obrigada, como Calvino afirmou.
Não estou a sugerir que cada pessoa deve inventar uma interpretação objetiva, isto é, racional diferente da palavra de Deus, mas que cada um é responsável por metabolizar individualmente essa palavra. Não importa se as interpretações possíveis do que Deus fala são duas, cinco ou 20: cada pessoa tem de assimilá-las individualmente. Não há interpretação obrigatória para todos. Esse é o sentido básico de Gênesis 2:17 e de toda a Bíblia. É também o sentido do livre exame das Escrituras, pelo qual os reformadores se bateram com tanto zelo.
Perdi a conta de quantas vezes li Deuteronômio 6:6-7: “Estas palavras que hoje te ordeno estarão no teu coração; tu as inculcarás a teus filhos, e delas falarás assentado em tua casa e andando pelo caminho, e ao deitar-te e ao levantar-te”. Quantas vezes esse texto foi pregado também dos púlpitos! No entanto, não é costume se esclarecer quais são as palavras de Deus mencionadas nele. Se olharmos com atenção, veremos que são os Dez Mandamentos, que haviam sido enunciados no capítulo anterior de Deuteronômio. Deus deu os Dez Mandamentos e, em seguida, ordenou: “Estas palavras estarão no teu coração”.
Israel ter 600.000 interpretações dos Dez Mandamentos era guardá-los no coração. Isso é tomar a palavra de Deus subjetivamente. Quando Deus disse a Adão “De toda árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento não comerás”, o dever de guardar aquele único mandamento no coração estava implícito. Deus exigia esse guardar. Entender, cumprir e descumprir Gênesis 2:17 eram experiências essencialmente individuais, subjetivas. Assim continuou a ser, através dos séculos, pois não há como se alterar a essência da experiência de Deus.
Essa experiência é o que faz nascer o indivíduo. “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (Jo 8:32). O novo homem é o indivíduo liberto. Sua nova condição é preservada, enquanto ele se mantém perante Deus, enquanto se guia por essa posição e não retorna aos rudimentos do mundo, para nos utilizarmos da linguagem de Paulo. Que são tais rudimentos? Que o próprio Paulo o responda: eles são o aio, cuja função é definir o que a criança deve fazer. Quando seguimos homens, sejam quem forem, não nos relacionamos diretamente com Deus, porque não vivemos como seus filhos (Gl 4:1-3,9). Os aios de hoje, como os de ontem, são sempre representantes de uma mentalidade coletiva, não individual. Como em todos os problemas de identidade, o mal não está nesse fato, mas em não se compatibilizar a mentalidade coletiva com a liberdade individual de interpretação e reação à palavra de Deus.
O problema específico da religião cristã, no nosso tempo, é ter-se tornado contrária à experiência fundadora de toda a Bíblia (Gênesis 2 a 4) e enchido o mundo de aios. Essa religião e esses aios uniformizam constantemente os homens, levam-nos a pensar e sentir as mesmas coisas da mesma maneira e a propagar, com zelo, esse modo de ser cativo como se fosse uma libertação. Por isso, eles se tornaram a mais importante causa de extravio do homem em relação a si mesmo. Não é raro que, hoje, quanto mais frequenta uma igreja e quanto mais religioso se faz, menos dotado de identidade individual um homem se torne.
Claro que os aios a que me refiro não são apresentados, no meio cristão, como no presente texto. Eles são exaltados, adornados com enfeites e roupas de cores mil. Nessas promoções ciganas do coletivo, em prejuízo do individual, reside um grande perigo. Afastar-se da experiência fundadora expressa, em Gênesis 2 a 4, é sempre um risco para o indivíduo e sua fé, pois mortifica o homem e anula a experiência de Deus.
sábado, 11 de junho de 2011
Identidade Cristã Local
Há tantos grupos, comunidades, igrejas e ministérios cristãos quantas identidades coletivas foram construídas ao longo da História. Essas identidades fizeram nascer círculos de comunhão, que têm pleno direito de existir, porém não de se excluir mutuamente. Exclusões geralmente ocorrem quando as pessoas reivindicam atributos próprios de um círculo para outro ou quando consideram impuros os círculos umas das outras. Isso se dá, por exemplo, quando elas atribuem autoridade universal a um líder local ou quando consideram que uma Igreja Nacional ou um Conselho Latino-Americano de Igrejas são contrassensos.
O único contrassenso consiste em negar que a Bíblia estabeleça parâmetros, para a existência de círculos de comunhão em todas as esferas da vida humana ou em afirmar, ao contrário, o direito exclusivo de um círculo. A diferenciação que se pode traçar é a dos direitos específicos de cada esfera de comunhão (universal, civilizacional, nacional, local). O círculo pertencente a uma das esferas não pode reivindicar atributo de outra. Nas postagens anteriores, escrevi sobre as esferas universal, nacional e civilizacional da vida cristã. Nesta, tratarei da esfera local.
No Novo Testamento, quase todo o trabalho realizado pelos apóstolos foi de natureza local. Por vários anos após a crucificação, os Doze permaneceram em Jerusalém. Portanto, tiveram atuação eminentemente local. Mais tarde, eles migraram para outras regiões, mas não há evidência de que se tenham tornado itinerantes. Pelo menos na maioria dos casos, não deve ter sido assim.
O próprio Paulo, embora mais vocacionado do que os outros apóstolos para viajar, estabeleceu-se em Antioquia por vários anos. A primeira viagem dele foi encarada como uma missão da igreja em Antioquia. Isso significa que a relação desenvolvida por Paulo com as igrejas da Ásia Menor não foi simplesmente sua, mas da igreja a que pertencia. O mesmo ocorreu na segunda e terceira viagens do apóstolo.
Portanto, nem Paulo se comportou como apóstolo itinerante ou peripatético. Só em dois tipos de situação, Paulo passava rapidamente de um lugar para outro: quando o local se situava no caminho das cidades a que pretendia chegar e quando era perseguido. Todo o restante do tempo, o ministério de Paulo foi baseado na permanência por longos períodos nas mesmas localidades.
Embora fundadas por enviados de Antioquia, as próprias igrejas que Paulo levantou permaneceram independentes. Elas não se tornaram parte da igreja em Antioquia. Até porque as limitações de comunicação e transporte do primeiro século impediam qualquer interferência contínua. Não era possível a comunidades tão novas quanto as cristãs desenvolverem estruturas supralocais.
A tendência a se estabelecer num lugar e ali trabalhar por bastante tempo foi ainda mais assinalada nos outros apóstolos. Depois de deixar Jerusalém, Pedro residiu, sucessivamente, em Jope e Antioquia. É o que o Novo Testamento e a tradição histórica indicam. A última ainda acrescenta que Pedro e Paulo moraram juntos em Roma, nos anos 60 do primeiro século. O que sabemos sobre os outros apóstolos não sugere a existência de práticas distintas dessas.
Os pregadores de obediência literal à Bíblia deveriam sentir vergonha das obras supralocais que desenvolvem sem parada ou descanso. O mundo cristão está cheio de obras assim. Não estou a afirmar que elas não tenham razão de ser. É claro que têm. Há esferas universal, civilizacional, nacional e local na igreja, sem mencionar as que ficam dentro dessas e também são legítimas. O que não é coerente é os cristãos desenvolverem obras supralocais em obediência literal à Bíblia, se elas não estão na Bíblia.
É sempre útil indagar como a esfera local se define, no Novo Testamento. Salta aos olhos, em Atos e nas Epístolas, que a noção de localidade está associada à cidade. Atos refere-se a igrejas únicas em cada cidade. Paulo edificou uma igreja por cidade. E Apocalipse também nos fala de uma igreja em cada cidade da Ásia. Essas evidências são inegáveis, mas ao mesmo tempo são um tanto óbvias. A informação quase salta das páginas do Novo Testamento, quando as abrimos.
Raramente, o óbvio é a única face da realidade. A advertência para não negarmos o direito à existência de outras comunidades nunca é demasiada. O fato de o Novo Testamento se referir, recorrentemente, a igrejas únicas em cada cidade não deve ser tomado como proibição de outras formas de comunidade. Assim como a inexistência de obras supralocais não implica a proibição delas, a (suposta) inexistência de diversas igrejas locais, na mesma cidade, não deve ser encarada como uma proibição da sua edificação.
O caráter local da igreja, da obra e da comunidade cristã não está restrito à cidade. Afirmar essa restrição é incorrer na ignorância (um tanto suprema) de que o mundo romano estava dividido em cidade e campo. Acaso, os moradores do campo não podiam ter comunidades locais diferentes das congregações urbanas? Essas comunidades não podiam se chamar igrejas?
A palavra ekklesia (igreja em grego) não era como o nome de Iahweh, que os judeus tinham receio de usar. Não era proibido aos cristãos usá-la, em certas situações ou para determinadas realidades, sob pena de morte. Pelo contrário, o termo era de uso corrente, em situações variadas. O Novo Testamento chama ekklesia a congregação de Israel no deserto (Atos 7:38) e o ajuntamento de pagãos no anfiteatro de Éfeso (19:32,41). Como conceder aos judeus e aos pagãos o direito de ser igreja, porém não aos cristãos?
Nada impede que os cristãos desenvolvam igrejas, comunidades, ministérios e obras, em sentidos locais diversos. Para nos atermos às igrejas, o localismo que Paulo lhes reconhece não é só o da cidade. Ele dirigiu a Epístola aos Romanos a todos os amados de Deus que estavam em Roma (Rm 1:7). Alguém duvida de que essas pessoas fossem todos os que criam em Deus e em Cristo naquela cidade? Ou será que Deus só amava alguns? No fim da epístola, Paulo exortou os seus destinatários (os amados de Deus em Roma) a saudar a igreja na casa de Áquila e Priscila (Rm 16:3,5). Se só admitisse a igreja na cidade e houvesse escrito somente a ela, Paulo não poderia ter mandado essa igreja saudar a igreja na casa de Áquila e Priscila, sem cometer grave lapso. Tão grave quanto mandar João ou José saudar-se a si mesmo.
Negar o direito de igreja a comunidades diversas, na mesma cidade, é reivindicar direito exclusivo para uma forma de igreja. É afirmar um único molde de comunidade cristã. É entregar a esse molde o poder de conformar a igreja. União e divisão não se aferem dessa maneira. Menos ainda é possível formar identidades coletivas saudáveis, sob tão grandes limitações.
Nada disso implica negar o princípio neotestamentário de uma cidade - uma igreja. Implica negar somente que a unidade da igreja local seja uma unicidade. Os cristãos na mesma cidade não devem viver divididos, mas podem ter várias comunidades. Aliás, se estamos prontos a sustentar a unidade da igreja em cada cidade, devemos estar também para sustentar que as obras cristãs ainda podem ser realizadas, sem impérios transnacionais ou mesmo supralocais. Assim como a única igreja em cada cidade é um princípio do Novo Testamento, o ministério local também o é. Apóstolo significa enviado, porque o ponto de partida da obra que ele realizava era o envio por uma comunidade local.
Coletivamente, o que importa é o grupo ou comunidade cristã ter uma identidade legítima e forte. O que não se admite é que as identidades sejam negadas, sem bons motivos. Do ponto de vista individual, o cristão deve crer em Deus e em Cristo. Do ponto de vista coletivo, sua tarefa é desenvolver identidades comuns uns com os outros e não as excluir.
O único contrassenso consiste em negar que a Bíblia estabeleça parâmetros, para a existência de círculos de comunhão em todas as esferas da vida humana ou em afirmar, ao contrário, o direito exclusivo de um círculo. A diferenciação que se pode traçar é a dos direitos específicos de cada esfera de comunhão (universal, civilizacional, nacional, local). O círculo pertencente a uma das esferas não pode reivindicar atributo de outra. Nas postagens anteriores, escrevi sobre as esferas universal, nacional e civilizacional da vida cristã. Nesta, tratarei da esfera local.
No Novo Testamento, quase todo o trabalho realizado pelos apóstolos foi de natureza local. Por vários anos após a crucificação, os Doze permaneceram em Jerusalém. Portanto, tiveram atuação eminentemente local. Mais tarde, eles migraram para outras regiões, mas não há evidência de que se tenham tornado itinerantes. Pelo menos na maioria dos casos, não deve ter sido assim.
O próprio Paulo, embora mais vocacionado do que os outros apóstolos para viajar, estabeleceu-se em Antioquia por vários anos. A primeira viagem dele foi encarada como uma missão da igreja em Antioquia. Isso significa que a relação desenvolvida por Paulo com as igrejas da Ásia Menor não foi simplesmente sua, mas da igreja a que pertencia. O mesmo ocorreu na segunda e terceira viagens do apóstolo.
Portanto, nem Paulo se comportou como apóstolo itinerante ou peripatético. Só em dois tipos de situação, Paulo passava rapidamente de um lugar para outro: quando o local se situava no caminho das cidades a que pretendia chegar e quando era perseguido. Todo o restante do tempo, o ministério de Paulo foi baseado na permanência por longos períodos nas mesmas localidades.
Embora fundadas por enviados de Antioquia, as próprias igrejas que Paulo levantou permaneceram independentes. Elas não se tornaram parte da igreja em Antioquia. Até porque as limitações de comunicação e transporte do primeiro século impediam qualquer interferência contínua. Não era possível a comunidades tão novas quanto as cristãs desenvolverem estruturas supralocais.
A tendência a se estabelecer num lugar e ali trabalhar por bastante tempo foi ainda mais assinalada nos outros apóstolos. Depois de deixar Jerusalém, Pedro residiu, sucessivamente, em Jope e Antioquia. É o que o Novo Testamento e a tradição histórica indicam. A última ainda acrescenta que Pedro e Paulo moraram juntos em Roma, nos anos 60 do primeiro século. O que sabemos sobre os outros apóstolos não sugere a existência de práticas distintas dessas.
Os pregadores de obediência literal à Bíblia deveriam sentir vergonha das obras supralocais que desenvolvem sem parada ou descanso. O mundo cristão está cheio de obras assim. Não estou a afirmar que elas não tenham razão de ser. É claro que têm. Há esferas universal, civilizacional, nacional e local na igreja, sem mencionar as que ficam dentro dessas e também são legítimas. O que não é coerente é os cristãos desenvolverem obras supralocais em obediência literal à Bíblia, se elas não estão na Bíblia.
É sempre útil indagar como a esfera local se define, no Novo Testamento. Salta aos olhos, em Atos e nas Epístolas, que a noção de localidade está associada à cidade. Atos refere-se a igrejas únicas em cada cidade. Paulo edificou uma igreja por cidade. E Apocalipse também nos fala de uma igreja em cada cidade da Ásia. Essas evidências são inegáveis, mas ao mesmo tempo são um tanto óbvias. A informação quase salta das páginas do Novo Testamento, quando as abrimos.
Raramente, o óbvio é a única face da realidade. A advertência para não negarmos o direito à existência de outras comunidades nunca é demasiada. O fato de o Novo Testamento se referir, recorrentemente, a igrejas únicas em cada cidade não deve ser tomado como proibição de outras formas de comunidade. Assim como a inexistência de obras supralocais não implica a proibição delas, a (suposta) inexistência de diversas igrejas locais, na mesma cidade, não deve ser encarada como uma proibição da sua edificação.
O caráter local da igreja, da obra e da comunidade cristã não está restrito à cidade. Afirmar essa restrição é incorrer na ignorância (um tanto suprema) de que o mundo romano estava dividido em cidade e campo. Acaso, os moradores do campo não podiam ter comunidades locais diferentes das congregações urbanas? Essas comunidades não podiam se chamar igrejas?
A palavra ekklesia (igreja em grego) não era como o nome de Iahweh, que os judeus tinham receio de usar. Não era proibido aos cristãos usá-la, em certas situações ou para determinadas realidades, sob pena de morte. Pelo contrário, o termo era de uso corrente, em situações variadas. O Novo Testamento chama ekklesia a congregação de Israel no deserto (Atos 7:38) e o ajuntamento de pagãos no anfiteatro de Éfeso (19:32,41). Como conceder aos judeus e aos pagãos o direito de ser igreja, porém não aos cristãos?
Nada impede que os cristãos desenvolvam igrejas, comunidades, ministérios e obras, em sentidos locais diversos. Para nos atermos às igrejas, o localismo que Paulo lhes reconhece não é só o da cidade. Ele dirigiu a Epístola aos Romanos a todos os amados de Deus que estavam em Roma (Rm 1:7). Alguém duvida de que essas pessoas fossem todos os que criam em Deus e em Cristo naquela cidade? Ou será que Deus só amava alguns? No fim da epístola, Paulo exortou os seus destinatários (os amados de Deus em Roma) a saudar a igreja na casa de Áquila e Priscila (Rm 16:3,5). Se só admitisse a igreja na cidade e houvesse escrito somente a ela, Paulo não poderia ter mandado essa igreja saudar a igreja na casa de Áquila e Priscila, sem cometer grave lapso. Tão grave quanto mandar João ou José saudar-se a si mesmo.
Negar o direito de igreja a comunidades diversas, na mesma cidade, é reivindicar direito exclusivo para uma forma de igreja. É afirmar um único molde de comunidade cristã. É entregar a esse molde o poder de conformar a igreja. União e divisão não se aferem dessa maneira. Menos ainda é possível formar identidades coletivas saudáveis, sob tão grandes limitações.
Nada disso implica negar o princípio neotestamentário de uma cidade - uma igreja. Implica negar somente que a unidade da igreja local seja uma unicidade. Os cristãos na mesma cidade não devem viver divididos, mas podem ter várias comunidades. Aliás, se estamos prontos a sustentar a unidade da igreja em cada cidade, devemos estar também para sustentar que as obras cristãs ainda podem ser realizadas, sem impérios transnacionais ou mesmo supralocais. Assim como a única igreja em cada cidade é um princípio do Novo Testamento, o ministério local também o é. Apóstolo significa enviado, porque o ponto de partida da obra que ele realizava era o envio por uma comunidade local.
Coletivamente, o que importa é o grupo ou comunidade cristã ter uma identidade legítima e forte. O que não se admite é que as identidades sejam negadas, sem bons motivos. Do ponto de vista individual, o cristão deve crer em Deus e em Cristo. Do ponto de vista coletivo, sua tarefa é desenvolver identidades comuns uns com os outros e não as excluir.
sexta-feira, 10 de junho de 2011
Identidade Cristã Universal
A pergunta “quem somos nós?” é uma das mais importantes que os membros de uma comunidade podem formular. Assim como o indivíduo possui uma personalidade, que tende a se desintegrar se ele não for capaz de responder a pergunta “quem sou?”, as comunidades têm o seu estatuto de identidade. Se não souberem responder a questão “quem somos?”, elas tendem a se desarticular e a deixar de existir.
Os cristãos não constituem exceção. Também eles se veem frente a frente com a angustiante interrogação sobre a sua identidade. Nada mais legítimo do que diferentes comunidades responderem a pergunta de maneiras distintas. Como tudo, na natureza e na sociedade, tende a ser diversificado e a apresentar uma pluralidade intrínseca, não é diferente com o meio cristão. Comunidades distintas, voltadas a fins diversos, surgem e se desenvolvem no seu interior. É normal essas comunidades responderem questões de identidade de diferentes modos.
O que não é normal, nem positivo é uma comunidade negar à outra o direito de definir a sua identidade. Essa denegação é fonte de graves atritos entre as comunidades. Outro problema consiste em uma comunidade considerar negativa ou nociva a identidade da outra. Esse problema se tornou tão comum que nos leva a indagar se o mandamento de Cristo para que não julguemos (nolite judicare) se estende apenas a indivíduos ou também a comunidades. Penso que, se as comunidades têm direito de existir tanto quanto os indivíduos, a proteção contra o juízo condenatório dos homens lhes deve ser estendida. Elas não devem ser julgadas por existirem e afirmarem identidades peculiares.
Esse princípio se aplica às igrejas, ministérios e comunidades cristãs com que nos deparamos. Verdade é que o número estonteante dessas agremiações é fonte de contínua perplexidade para cristãos e não cristãos. Não é raro encontrarmos pessoas que pensam, não sem razões, que a extrema segmentação do cristianismo trai a oração de Cristo para que os seus seguidores fossem um (Jo 17:21). Porém, não devemos levar a insatisfação ao ponto de negar a legitimidade dos grupos com fisionomia própria e identidades bem caracterizadas. Fazê-lo seria um erro tão grande quanto negar a possibilidade de múltiplas comunidades existirem.
Ainda assim, temos de ser capazes de lidar com o sentimento de desconcerto que nos invade e nos toma, ao olharmos para tantas identidades cristãs diferentes. Alguns cuidados podem ajudar-nos a lidar melhor com este assunto. Falarei deles a seguir e nos próximos dois textos. O primeiro cuidado importante consiste em entender que o cristão possui uma identidade maior, uma identidade que é mais importante que a dos grupos e comunidades particulares. Essa identidade interliga pessoas de todas as épocas por meio da fé que lhes é comum, tornando-as uma corrente caudalosa e inquebrantável.
Quando o povo de Israel estava prestes a ingressar em Canaã, Deus recapitulou toda a história da peregrinação de 40 anos no deserto. O Livro de Deuteronômio retrata essa recapitulação. No pensamento do autor sagrado, sem passar pela recapitulação, o povo de Deus simplesmente não estava pronto para entrar na boa terra.
A geração que viveu a recordação não foi a mesma que saiu do Egito. Aquela já havia perecido, com exceção de Josué, Calebe, Moisés e alguns outros. Foi necessário que a geração nascida no deserto recordasse a que perecera, antes de entrar em Canaã. Para quê? Para que ela se sentisse ligada à geração anterior. Recordar é sentir. Ao lembrarem a anterior geração, os israelitas sentiram-na viver com eles.
Durante a recapitulação, Moisés afirmou que a geração que saíra do Egito não entraria em Canaã, por causa da sua desobediência. Lembrou ainda que ele próprio não entraria, por ter desobedecido a Deus no episódio isolado da rocha: “O Senhor se indignou contra mim por causa de vós, dizendo: Também tu lá não entrarás. Josué, filho de Num, que está diante de ti, ele ali entrará; fortalece-o, porque ele fará herdar a Israel” (Dt 1:37-38).
Moisés citou as próprias palavras com que Deus lhe comunicou que não entraria em Canaã. A notícia deve ter causado em sua alma o efeito de um ácido sobre a pele. Moisés foi corroído pelo juízo de Deus. Porém, no estado de prostração, desconsolo e fundo arrependimento a que foi reduzido, ele ouviu Deus dizer-lhe que Josué entraria em Canaã. No contexto da grande recapitulação de Deuteronômio, essas palavras têm forte sentido de consolação: Moisés não entraria em Canaã, mas Josué o faria.
Se o povo de Deus não tivesse uma identidade, seria impossível a Moisés alegrar-se ou se consolar com a notícia de que ele não entraria, mas Josué, filho de Num, ingressaria em Canaã. O relato continua com a entrega de um mandamento impressionante de Deus a Moisés. No profundo abatimento em que mergulhou, no estado de melancolia ou de depressão a que foi reduzido, Moisés ouviu Deus dizer-lhe a respeito de Josué: “Fortalece-o”!
Talvez Moisés tenha perguntado a Deus o que nós, com a mentalidade individualista que nos caracteriza, certamente perguntaríamos: “Como assim? Eu preciso ser fortalecido e tu me dizes para fortalecer a outro?” “Eu me sinto destruído e devo dar força a meu irmão?" É exatamente isso. Num povo com forte identidade coletiva, Moisés importava muito, mas Israel importava mais. Para Moisés, deveria ser motivo de grande alegria saber que, embora não fosse ingressar em Canaã, alguém entraria lá. Esse alguém era Josué, o fiel Josué, uma pessoa tão próxima de Moisés que o acompanhara e servira durante anos. Josué ingressar em Canaã seria o mesmo que Moisés entrar por seus pés. Moisés viveria em Josué, e Josué nele.
Poderia citar vários outros exemplos, já que a Bíblia é pródiga neles. Paulo preferia ser anátema, separado de Cristo, para que seus compatriotas judeus fossem salvos (Rm 9:3). Levi pagou dízimo no pagamento de dízimos de Abraão (Hb 7:9), pois os dois tinham uma só identidade coletiva. O próprio Abraão não se infelicitou por não ter possuído o espaço de um fio de cabelo da terra prometida. Hebreus 11:9 afirma que ele “habitou na terra da promessa como em terra alheia, morando em cabanas com Isaque e Jacó”. As palavras “como em terra alheia” indicam que o pai dos que creem não recebeu o espaço de um pé da boa terra. Mesmo assim, ele se alegrou, pois Deus lhe prometeu entregá-la à sua descendência.
O sentimento de pertença ao povo de Deus é extremamente importante. Ele é o que constitui esse povo. A questão que as múltiplas comunidades, igrejas, ministérios e grupos cristãos suscitam é: esse sentimento deve levar-nos a negar as manifestações coletivas diversas e as várias identidades que as definem? A resposta é um rotundo não. Por fundamental que seja, o sentimento de pertença ao povo de Deus não nos deve levar a excluir identidades coletivas mais limitadas, como mostrarei nos próximos textos.
Os cristãos não constituem exceção. Também eles se veem frente a frente com a angustiante interrogação sobre a sua identidade. Nada mais legítimo do que diferentes comunidades responderem a pergunta de maneiras distintas. Como tudo, na natureza e na sociedade, tende a ser diversificado e a apresentar uma pluralidade intrínseca, não é diferente com o meio cristão. Comunidades distintas, voltadas a fins diversos, surgem e se desenvolvem no seu interior. É normal essas comunidades responderem questões de identidade de diferentes modos.
O que não é normal, nem positivo é uma comunidade negar à outra o direito de definir a sua identidade. Essa denegação é fonte de graves atritos entre as comunidades. Outro problema consiste em uma comunidade considerar negativa ou nociva a identidade da outra. Esse problema se tornou tão comum que nos leva a indagar se o mandamento de Cristo para que não julguemos (nolite judicare) se estende apenas a indivíduos ou também a comunidades. Penso que, se as comunidades têm direito de existir tanto quanto os indivíduos, a proteção contra o juízo condenatório dos homens lhes deve ser estendida. Elas não devem ser julgadas por existirem e afirmarem identidades peculiares.
Esse princípio se aplica às igrejas, ministérios e comunidades cristãs com que nos deparamos. Verdade é que o número estonteante dessas agremiações é fonte de contínua perplexidade para cristãos e não cristãos. Não é raro encontrarmos pessoas que pensam, não sem razões, que a extrema segmentação do cristianismo trai a oração de Cristo para que os seus seguidores fossem um (Jo 17:21). Porém, não devemos levar a insatisfação ao ponto de negar a legitimidade dos grupos com fisionomia própria e identidades bem caracterizadas. Fazê-lo seria um erro tão grande quanto negar a possibilidade de múltiplas comunidades existirem.
Ainda assim, temos de ser capazes de lidar com o sentimento de desconcerto que nos invade e nos toma, ao olharmos para tantas identidades cristãs diferentes. Alguns cuidados podem ajudar-nos a lidar melhor com este assunto. Falarei deles a seguir e nos próximos dois textos. O primeiro cuidado importante consiste em entender que o cristão possui uma identidade maior, uma identidade que é mais importante que a dos grupos e comunidades particulares. Essa identidade interliga pessoas de todas as épocas por meio da fé que lhes é comum, tornando-as uma corrente caudalosa e inquebrantável.
Quando o povo de Israel estava prestes a ingressar em Canaã, Deus recapitulou toda a história da peregrinação de 40 anos no deserto. O Livro de Deuteronômio retrata essa recapitulação. No pensamento do autor sagrado, sem passar pela recapitulação, o povo de Deus simplesmente não estava pronto para entrar na boa terra.
A geração que viveu a recordação não foi a mesma que saiu do Egito. Aquela já havia perecido, com exceção de Josué, Calebe, Moisés e alguns outros. Foi necessário que a geração nascida no deserto recordasse a que perecera, antes de entrar em Canaã. Para quê? Para que ela se sentisse ligada à geração anterior. Recordar é sentir. Ao lembrarem a anterior geração, os israelitas sentiram-na viver com eles.
Durante a recapitulação, Moisés afirmou que a geração que saíra do Egito não entraria em Canaã, por causa da sua desobediência. Lembrou ainda que ele próprio não entraria, por ter desobedecido a Deus no episódio isolado da rocha: “O Senhor se indignou contra mim por causa de vós, dizendo: Também tu lá não entrarás. Josué, filho de Num, que está diante de ti, ele ali entrará; fortalece-o, porque ele fará herdar a Israel” (Dt 1:37-38).
Moisés citou as próprias palavras com que Deus lhe comunicou que não entraria em Canaã. A notícia deve ter causado em sua alma o efeito de um ácido sobre a pele. Moisés foi corroído pelo juízo de Deus. Porém, no estado de prostração, desconsolo e fundo arrependimento a que foi reduzido, ele ouviu Deus dizer-lhe que Josué entraria em Canaã. No contexto da grande recapitulação de Deuteronômio, essas palavras têm forte sentido de consolação: Moisés não entraria em Canaã, mas Josué o faria.
Se o povo de Deus não tivesse uma identidade, seria impossível a Moisés alegrar-se ou se consolar com a notícia de que ele não entraria, mas Josué, filho de Num, ingressaria em Canaã. O relato continua com a entrega de um mandamento impressionante de Deus a Moisés. No profundo abatimento em que mergulhou, no estado de melancolia ou de depressão a que foi reduzido, Moisés ouviu Deus dizer-lhe a respeito de Josué: “Fortalece-o”!
Talvez Moisés tenha perguntado a Deus o que nós, com a mentalidade individualista que nos caracteriza, certamente perguntaríamos: “Como assim? Eu preciso ser fortalecido e tu me dizes para fortalecer a outro?” “Eu me sinto destruído e devo dar força a meu irmão?" É exatamente isso. Num povo com forte identidade coletiva, Moisés importava muito, mas Israel importava mais. Para Moisés, deveria ser motivo de grande alegria saber que, embora não fosse ingressar em Canaã, alguém entraria lá. Esse alguém era Josué, o fiel Josué, uma pessoa tão próxima de Moisés que o acompanhara e servira durante anos. Josué ingressar em Canaã seria o mesmo que Moisés entrar por seus pés. Moisés viveria em Josué, e Josué nele.
Poderia citar vários outros exemplos, já que a Bíblia é pródiga neles. Paulo preferia ser anátema, separado de Cristo, para que seus compatriotas judeus fossem salvos (Rm 9:3). Levi pagou dízimo no pagamento de dízimos de Abraão (Hb 7:9), pois os dois tinham uma só identidade coletiva. O próprio Abraão não se infelicitou por não ter possuído o espaço de um fio de cabelo da terra prometida. Hebreus 11:9 afirma que ele “habitou na terra da promessa como em terra alheia, morando em cabanas com Isaque e Jacó”. As palavras “como em terra alheia” indicam que o pai dos que creem não recebeu o espaço de um pé da boa terra. Mesmo assim, ele se alegrou, pois Deus lhe prometeu entregá-la à sua descendência.
O sentimento de pertença ao povo de Deus é extremamente importante. Ele é o que constitui esse povo. A questão que as múltiplas comunidades, igrejas, ministérios e grupos cristãos suscitam é: esse sentimento deve levar-nos a negar as manifestações coletivas diversas e as várias identidades que as definem? A resposta é um rotundo não. Por fundamental que seja, o sentimento de pertença ao povo de Deus não nos deve levar a excluir identidades coletivas mais limitadas, como mostrarei nos próximos textos.
Identidade Cristã Cultural
O segundo cuidado que devemos adotar, ao tratar da multiplicidade de grupos e ministérios cristãos, é o de manter consciência de que cada qual tem uma esfera própria de atuação. Não podemos confundir as esferas. A do povo de Deus de todos os tempos pertence-lhe exclusivamente. Nenhum grupo sobre a Terra, hoje, pode alegar representá-lo de maneira especial. Nenhuma coletividade, no tempo e no espaço, pode reivindicar para si atributos do conjunto de todas as gerações que creem.
No entanto, além da esfera universal, há a civilizacional, a nacional e a local. Nenhuma delas deve ser desprezada. Desconsiderá-las equivale a negar dimensões inteiras da vida humana. Se não há rei sobre a terra que não tenha sido estabelecido por Deus (Rm 13:1), muito menos há civilização ou nação que se tenha formado à revelia da vontade dele. Assim como é uma nação santa, o povo de Deus também é uma civilização. Isso não significa uma nação pairando no ar ou uma civilização das nuvens. Significa uma nação que começa na Terra e uma civilização no interior da História. A própria Bíblia não adota conceitos de nação e civilização diversos dos que a História provê. Para ela, nação é nação histórica, e civilização é civilização real, é cultura.
Entre as esferas universal e local do povo de Deus, situam-se as esferas nacional e civilizacional, que os cristãos tão frequentemente esquecem e desprezam. Reitero que essas esferas não são menos bíblicas que a universal e a local. Ou será que Israel era outra coisa que uma nação? Ou será que ele não constituía uma civilização capaz de sobreviver, inclusive, ao colapso do seu Estado?
Os mais espirituais costumam afirmar que a igreja não é Israel. Eles se esquecem de que ela é o Israel de Deus. O conceito de igreja separada de Israel é um absurdo anticristão. Romanos 11 ensina que os cristãos gentios foram enxertados em Israel, a oliveira cultivada. Portanto, Israel não foi excluído. Muito pelo contrário. A ideia de uma igreja constituída no vácuo da rejeição de Israel é absurda. Chega a ser ofensiva à identidade universal do povo de Deus. Não é preciso dizer que essa ideia era estranha aos apóstolos.
Assim como Israel era uma nação na Terra, a igreja deve ser uma ou mais nações sobre a Terra. Ela deve ter uma nítida dimensão nacional. Isso significa que as nações devem ser cristãs, tanto quanto os indivíduos. Está bem: vivemos no tempo do Estado laico. Vá lá; mas não vivemos no tempo da nação laica. A nação existe para abraçar a fé. Essa é a razão mais exaltada da sua existência política.
Não é diferente com a civilização. Todas as civilizações vieram à existência com ajuda de Deus. Portanto, todas são dádivas divinas para a humanidade. O homem cristão não pode viver à revelia da sua civilização. Fazê-lo seria como cortar uma mão, uma perna ou arrancar um olho da face. O ser humano tornou-se civilizado: isso é uma bênção. Uma grande e exaltada bênção. A própria Bíblia começa, quando a civilização principia. Adão não era um homem das cavernas. As Escrituras não narram histórias passadas em grutas pré-históricas, porque Deus começou a agir fortemente, na humanidade, quando o espírito dela se expandiu das escuras cavernas paleolíticas para a luz da civilização.
O Éden abrangia a Mesopotâmia, berço de toda a civilização. Nele começa a história da Bíblia, vale dizer, no interior da primeira civilização. Que temos nós, os cristãos, com isso? Simplesmente tudo, pois somos seguidores dos princípios bíblicos. No entanto, é comum formarmos igrejinhas locais, que se tornam universos e ignoram completamente as dimensões nacionais e civilizacionais da existência humana. É comum revestirmos essas igrejinhas e panelinhas com atributos fantásticos que nem a nação, nem a civilização possuem, mas apenas o povo de Deus dos séculos. Disso só podem resultar desastres e mal-estar. É o que vemos e o que sentimos, quando olhamos para grupos cristãos que, embora legítimos, dão forte impressão de desorientação.
Sejamos práticos. Que significa uma consciência cristã nacional ou civilizacional? Como já expressei, embora tenham finalidades divinas (entenda-se religiosas), a nação e a civilização são realidades terrenas e temporais. Não é preciso dourar essa pílula mais do que já já vem dourada. Ter consciência cristã nacional e civilizacional é viver a fé em Deus nessas dimensões. É preocupar-se em bordar os valores da fé cristã na nação e na civilização.
Somos brasileiros. Também somos latino-americanos. No entanto, a primeira dessas identidades bem pouco significa para a maioria de nós. A última significa nada. Quando significa, geralmente é algo depreciativo ou negativo. Nossas músicas dizem que o cidadão latino-americano é alguém sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo do interior. Até pouco tempo, ser brasileiro não era muito diferente. Era ter a consciência de um vira-lata entre os cães.
No entanto, as vocações do brasileiro e do latino-americano são muito diferentes disso. São vocações grandiosas. Tão grandiosas quanto a do antigo Israel. O Brasil é a maior nação do Hemisfério Sul. Um país que já realizou um dos mais impressionantes processos de desenvolvimento da História. Nenhuma das 10, 20 ou 30 maiores economias do mundo partiu de um estágio tão atrasado e chegou onde o Brasil chegou. No entanto, o brasileiro ainda não tem consciência disso. Ele não sabe quem é ou para que é. Por isso, procura encontrar a sua identidade no Ocidente, vale dizer, na Europa ou nos Estados Unidos. Não sabe que nunca a encontrará ali, pois não é (culturalmente) ocidental. Nunca o será, por mais que tente ser.
Costuma-se afirmar que o Brasil teve uma época de forte influência francesa e outra de influência ainda mais forte dos Estados Unidos. Isso é lá verdadeiro e nada tem de errado. Provavelmente, foi a melhor estratégia possível para nos desenvolvermos, naquela época. No entanto, o brasileiro, o latino-americano não nasceram para seguir a França e os Estados Unidos, pois não são culturalmente ocidentais. Se o fossem, teriam alcançado o desenvolvimento junto com a Europa e os Estados Unidos. A Suécia, a Noruega, a Finlândia, a Dinamarca, a Inglaterra, Gales, Irlanda, Escócia, Bélgica, Holanda, Luxemburgo, Alemanha, Áustria, Espanha, Itália não foram todos penetrados pela mesma onda de desenvolvimento? Os ianques e os canadenses nossos vizinhos também não se desenvolveram, ao passo e ao ritmo da Europa? Por que essa onda parou no México? Porque as nações do México para baixo não são ocidentais como eles. Por isso, o desenvolvimento que aportou em tantos lugares do Hemisfério Norte não penetrou os nossos sertões, nem o poderia ter feito, pois eles eram impenetráveis e assim continuaram por muito tempo.
Ainda hoje, quantos governos de esquerda há na América Latina? Cuba, Venezuela, Equador, Bolívia, agora Peru, Uruguai, Paraguai, Brasil. É uma metade da América do Sul ou não é? É uma barreira bem formidável à ocidentalização e à americanização ou não é? Nós cristãos fomos doutrinados para pensar que nada disso tem a menor importância. Em outras palavras, fomos ensinados a nos alienar. “O meu reino não é deste mundo”, disse Jesus e repetimos nós. Sim, ele o disse, mas para indicar que o seu reino “está neste mundo”. Por mais que o reino de Deus não seja daqui, ele aqui está. Por esse motivo, as nações e as civilizações devem importar. Se a América Latina tem vocação de imitar o Ocidente e se assimilar a ele ou desenvolver-se como civilização autônoma é algo relevante para os cristãos.
Por que há tantos governos de esquerda no nosso subcontinente? Não será porque temos uma forte vocação de resistência? Ou será porque somos assimiláveis, aculturáveis e dóceis à dominação estrangeira? A História pregou-nos a peça da cortina de ferro, bambu ou alguma outra coisa, no noroeste do nosso subcontinente, exatamente quando a da Europa era substituída por uma mancheia de países rasgados por disputas civilizacionais. Essa marcha ao revés da Europa é espantosa, porém não anacrônica. É a marcha de uma outra civilização.
Alguém insistirá em indagar: que tem isso a ver com os cristãos cujo reino não é deste mundo e sim do outro? Preservado o bom senso e a medida, significa que as nossas igrejas não devem ser meras sucursais de modelos estrangeiros. Nosso reino não é daquele hemisfério, tanto quanto não é deste mundo. Isso não é xenofobia. É identidade. Cabe uma advertência: questões de identidade são sempre as mais relevantes, que a vida coloca. Resolvê-las mal é atrair para si problemas e muita infelicidade.
No entanto, além da esfera universal, há a civilizacional, a nacional e a local. Nenhuma delas deve ser desprezada. Desconsiderá-las equivale a negar dimensões inteiras da vida humana. Se não há rei sobre a terra que não tenha sido estabelecido por Deus (Rm 13:1), muito menos há civilização ou nação que se tenha formado à revelia da vontade dele. Assim como é uma nação santa, o povo de Deus também é uma civilização. Isso não significa uma nação pairando no ar ou uma civilização das nuvens. Significa uma nação que começa na Terra e uma civilização no interior da História. A própria Bíblia não adota conceitos de nação e civilização diversos dos que a História provê. Para ela, nação é nação histórica, e civilização é civilização real, é cultura.
Entre as esferas universal e local do povo de Deus, situam-se as esferas nacional e civilizacional, que os cristãos tão frequentemente esquecem e desprezam. Reitero que essas esferas não são menos bíblicas que a universal e a local. Ou será que Israel era outra coisa que uma nação? Ou será que ele não constituía uma civilização capaz de sobreviver, inclusive, ao colapso do seu Estado?
Os mais espirituais costumam afirmar que a igreja não é Israel. Eles se esquecem de que ela é o Israel de Deus. O conceito de igreja separada de Israel é um absurdo anticristão. Romanos 11 ensina que os cristãos gentios foram enxertados em Israel, a oliveira cultivada. Portanto, Israel não foi excluído. Muito pelo contrário. A ideia de uma igreja constituída no vácuo da rejeição de Israel é absurda. Chega a ser ofensiva à identidade universal do povo de Deus. Não é preciso dizer que essa ideia era estranha aos apóstolos.
Assim como Israel era uma nação na Terra, a igreja deve ser uma ou mais nações sobre a Terra. Ela deve ter uma nítida dimensão nacional. Isso significa que as nações devem ser cristãs, tanto quanto os indivíduos. Está bem: vivemos no tempo do Estado laico. Vá lá; mas não vivemos no tempo da nação laica. A nação existe para abraçar a fé. Essa é a razão mais exaltada da sua existência política.
Não é diferente com a civilização. Todas as civilizações vieram à existência com ajuda de Deus. Portanto, todas são dádivas divinas para a humanidade. O homem cristão não pode viver à revelia da sua civilização. Fazê-lo seria como cortar uma mão, uma perna ou arrancar um olho da face. O ser humano tornou-se civilizado: isso é uma bênção. Uma grande e exaltada bênção. A própria Bíblia começa, quando a civilização principia. Adão não era um homem das cavernas. As Escrituras não narram histórias passadas em grutas pré-históricas, porque Deus começou a agir fortemente, na humanidade, quando o espírito dela se expandiu das escuras cavernas paleolíticas para a luz da civilização.
O Éden abrangia a Mesopotâmia, berço de toda a civilização. Nele começa a história da Bíblia, vale dizer, no interior da primeira civilização. Que temos nós, os cristãos, com isso? Simplesmente tudo, pois somos seguidores dos princípios bíblicos. No entanto, é comum formarmos igrejinhas locais, que se tornam universos e ignoram completamente as dimensões nacionais e civilizacionais da existência humana. É comum revestirmos essas igrejinhas e panelinhas com atributos fantásticos que nem a nação, nem a civilização possuem, mas apenas o povo de Deus dos séculos. Disso só podem resultar desastres e mal-estar. É o que vemos e o que sentimos, quando olhamos para grupos cristãos que, embora legítimos, dão forte impressão de desorientação.
Sejamos práticos. Que significa uma consciência cristã nacional ou civilizacional? Como já expressei, embora tenham finalidades divinas (entenda-se religiosas), a nação e a civilização são realidades terrenas e temporais. Não é preciso dourar essa pílula mais do que já já vem dourada. Ter consciência cristã nacional e civilizacional é viver a fé em Deus nessas dimensões. É preocupar-se em bordar os valores da fé cristã na nação e na civilização.
Somos brasileiros. Também somos latino-americanos. No entanto, a primeira dessas identidades bem pouco significa para a maioria de nós. A última significa nada. Quando significa, geralmente é algo depreciativo ou negativo. Nossas músicas dizem que o cidadão latino-americano é alguém sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo do interior. Até pouco tempo, ser brasileiro não era muito diferente. Era ter a consciência de um vira-lata entre os cães.
No entanto, as vocações do brasileiro e do latino-americano são muito diferentes disso. São vocações grandiosas. Tão grandiosas quanto a do antigo Israel. O Brasil é a maior nação do Hemisfério Sul. Um país que já realizou um dos mais impressionantes processos de desenvolvimento da História. Nenhuma das 10, 20 ou 30 maiores economias do mundo partiu de um estágio tão atrasado e chegou onde o Brasil chegou. No entanto, o brasileiro ainda não tem consciência disso. Ele não sabe quem é ou para que é. Por isso, procura encontrar a sua identidade no Ocidente, vale dizer, na Europa ou nos Estados Unidos. Não sabe que nunca a encontrará ali, pois não é (culturalmente) ocidental. Nunca o será, por mais que tente ser.
Costuma-se afirmar que o Brasil teve uma época de forte influência francesa e outra de influência ainda mais forte dos Estados Unidos. Isso é lá verdadeiro e nada tem de errado. Provavelmente, foi a melhor estratégia possível para nos desenvolvermos, naquela época. No entanto, o brasileiro, o latino-americano não nasceram para seguir a França e os Estados Unidos, pois não são culturalmente ocidentais. Se o fossem, teriam alcançado o desenvolvimento junto com a Europa e os Estados Unidos. A Suécia, a Noruega, a Finlândia, a Dinamarca, a Inglaterra, Gales, Irlanda, Escócia, Bélgica, Holanda, Luxemburgo, Alemanha, Áustria, Espanha, Itália não foram todos penetrados pela mesma onda de desenvolvimento? Os ianques e os canadenses nossos vizinhos também não se desenvolveram, ao passo e ao ritmo da Europa? Por que essa onda parou no México? Porque as nações do México para baixo não são ocidentais como eles. Por isso, o desenvolvimento que aportou em tantos lugares do Hemisfério Norte não penetrou os nossos sertões, nem o poderia ter feito, pois eles eram impenetráveis e assim continuaram por muito tempo.
Ainda hoje, quantos governos de esquerda há na América Latina? Cuba, Venezuela, Equador, Bolívia, agora Peru, Uruguai, Paraguai, Brasil. É uma metade da América do Sul ou não é? É uma barreira bem formidável à ocidentalização e à americanização ou não é? Nós cristãos fomos doutrinados para pensar que nada disso tem a menor importância. Em outras palavras, fomos ensinados a nos alienar. “O meu reino não é deste mundo”, disse Jesus e repetimos nós. Sim, ele o disse, mas para indicar que o seu reino “está neste mundo”. Por mais que o reino de Deus não seja daqui, ele aqui está. Por esse motivo, as nações e as civilizações devem importar. Se a América Latina tem vocação de imitar o Ocidente e se assimilar a ele ou desenvolver-se como civilização autônoma é algo relevante para os cristãos.
Por que há tantos governos de esquerda no nosso subcontinente? Não será porque temos uma forte vocação de resistência? Ou será porque somos assimiláveis, aculturáveis e dóceis à dominação estrangeira? A História pregou-nos a peça da cortina de ferro, bambu ou alguma outra coisa, no noroeste do nosso subcontinente, exatamente quando a da Europa era substituída por uma mancheia de países rasgados por disputas civilizacionais. Essa marcha ao revés da Europa é espantosa, porém não anacrônica. É a marcha de uma outra civilização.
Alguém insistirá em indagar: que tem isso a ver com os cristãos cujo reino não é deste mundo e sim do outro? Preservado o bom senso e a medida, significa que as nossas igrejas não devem ser meras sucursais de modelos estrangeiros. Nosso reino não é daquele hemisfério, tanto quanto não é deste mundo. Isso não é xenofobia. É identidade. Cabe uma advertência: questões de identidade são sempre as mais relevantes, que a vida coloca. Resolvê-las mal é atrair para si problemas e muita infelicidade.
sábado, 4 de junho de 2011
Fé e Atrofia Cerebral: um Alerta Científico?
Em artigo publicado na revista Scientif American, em 31 de maio de 2011, Andrew Newberg comentou um estudo da Duke University sobre os efeitos cerebrais de experiências religiosas em 268 homens e mulheres. Na pesquisa de Duke, o hipocampo de todos os indivíduos apresentou um grau de atrofia bastante superior à média da população, após vários anos de experiências místicas.
Embora a relação de longo prazo entre religião e atrofia cerebral não esteja totalmente estabelecida, pela primeira vez, um estudo científico sugeriu-a de maneira robusta. Porém, ainda mais surpreendente do que a atrofia apontada no estudo parecem ser os grupos de risco envolvidos. A pesquisa mostrou que esses grupos não coincidem com o universo religioso inteiro, mas com parte reduzida dele. Além disso, os grupos se estendem para fora do meio religioso, uma vez que a atrofia se manifesta também em pessoas não religiosas e em religiosos não praticantes. A diferença é que a incidência é muito maior em indivíduos que passam por experiências religiosas intensas.
Ao publicarem suas pesquisas, os cientistas de Duke Amy Owen e equipe ofereceram ainda uma hipótese explicativa dos resultados. Eles sugeriram que a atrofia pode decorrer do maior stress, a que os indivíduos pesquisados se submetem, em razão das experiências. Essa conclusão desloca a causa da atrofia da experiência religiosa propriamente dita para as relações sociais resultantes dela. O deslocamento condiz com a não observação da atrofia em membros ativos de igrejas, que não passaram por experiências da mesma intensidade.
Não há o que contestar, nos dados apresentados pelos cientistas de Duke. Porém, há um ponto obscuro neles: a hipótese explicativa que os autores da descoberta propõem talvez não seja a única possível. Não podemos nos esquecer de que o stress causa outros males físicos, que o estudo de Duke não apontou. Não há notícia de aumento de crises de hipertensão, doenças cardíacas, males degenerativos, imunológicos ou outras patologias, nos indivíduos estudados. Essas doenças deveriam estar presentes, se a causa da atrofia fosse o stress, já que todos os indivíduos estudados tinham mais de 58 anos.
Dificuldades como essas talvez nos autorizem a cogitar uma segunda hipótese explicativa da atrofia do hipocampo. Atrofia é um mal decorrente do déficit de exercício de um nervo, músculo, grupo de nervos ou músculos de um organismo vivo. Minha experiência pessoal sugere que as relações sociais que se seguem às experiências místicas tendem a induzir modos de pensamento extremamente reiterados e circulares, para não dizer viciosos. Não é por outra razão que indivíduos muito religiosos passam anos a julgar de maneira rígida fatos cada vez mais diversificados, que a vida lhes apresenta e que dificilmente se amoldam às suas explicações. Casos de gravidez antes do casamento e práticas sexuais não conservadoras são alguns exemplos. No terreno intelectual, a origem de espécies novas, sem intervenção de Deus, e a não ocorrência do Dilúvio de Noé nos dão outros tantos. Julgamentos reiterados de fatos e ideias como esses tendem a excluir explicações não concordantes com a religião e a paralisar, sistematicamente, as funções racionais associadas.
Assim, na mesma medida em que estimulam certos circuitos cerebrais, os modos reiterados de pensamento tendem a paralisar ou minimizar o funcionamento de outros circuitos. Funções inteiras do cérebro, não apenas cognitivas, mas sentimentais, são paralisadas em consequência de engajamentos comunitários, que se seguem a experiências religiosas intensas. Aí pode estar uma segunda causa da atrofia apontada no artigo de Scientific American. Como a primeira (o stress), essa causa tampouco se centra na experiência religiosa em si mesma, mas nos desdobramentos comunitários dela. Porém, diferentemente do que ocorre com a primeira causa, a contenção da paralisação racional depende mais do indivíduo do que do meio. É possível à pessoa de fé manter-se racionalmente ativa em múltiplas direções, e não numa só, a despeito do meio em que está inserida. Infelizmente, as pessoas que passam por experiências místicas muito fortes não costumam desenvolver essa prática.
Se a hipótese da paralisação de processos racionais for verdadeira, os indivíduos religiosos fazem bem em não diminuir o exercício intelectual e em não descurar explicação alguma de um fato, a não ser por razões mais robustas. O exercício racional amplo é indispensável para a higidez da mente religiosa. Se as informações disponíveis não associam a atrofia cerebral às experiências religiosas propriamente ditas, é certo que elas desnudam uma relação perigosa entre a paralisação da atividade racional e a atrofia do cérebro.
Não seria honesto encerrar este breve comentário sem mencionar que muitas outras pesquisas atestaram os benefícios da fé para o cérebro. Porém, em geral, elas se debruçaram sobre os desdobramentos de curto e de médio prazos das experiências religiosas. O estudo de Duke foi o primeiro a abrir a janela para uma nova paisagem. E, aberta a janela, faremos bem em não cerrar nossos olhos.
Embora a relação de longo prazo entre religião e atrofia cerebral não esteja totalmente estabelecida, pela primeira vez, um estudo científico sugeriu-a de maneira robusta. Porém, ainda mais surpreendente do que a atrofia apontada no estudo parecem ser os grupos de risco envolvidos. A pesquisa mostrou que esses grupos não coincidem com o universo religioso inteiro, mas com parte reduzida dele. Além disso, os grupos se estendem para fora do meio religioso, uma vez que a atrofia se manifesta também em pessoas não religiosas e em religiosos não praticantes. A diferença é que a incidência é muito maior em indivíduos que passam por experiências religiosas intensas.
Ao publicarem suas pesquisas, os cientistas de Duke Amy Owen e equipe ofereceram ainda uma hipótese explicativa dos resultados. Eles sugeriram que a atrofia pode decorrer do maior stress, a que os indivíduos pesquisados se submetem, em razão das experiências. Essa conclusão desloca a causa da atrofia da experiência religiosa propriamente dita para as relações sociais resultantes dela. O deslocamento condiz com a não observação da atrofia em membros ativos de igrejas, que não passaram por experiências da mesma intensidade.
Não há o que contestar, nos dados apresentados pelos cientistas de Duke. Porém, há um ponto obscuro neles: a hipótese explicativa que os autores da descoberta propõem talvez não seja a única possível. Não podemos nos esquecer de que o stress causa outros males físicos, que o estudo de Duke não apontou. Não há notícia de aumento de crises de hipertensão, doenças cardíacas, males degenerativos, imunológicos ou outras patologias, nos indivíduos estudados. Essas doenças deveriam estar presentes, se a causa da atrofia fosse o stress, já que todos os indivíduos estudados tinham mais de 58 anos.
Dificuldades como essas talvez nos autorizem a cogitar uma segunda hipótese explicativa da atrofia do hipocampo. Atrofia é um mal decorrente do déficit de exercício de um nervo, músculo, grupo de nervos ou músculos de um organismo vivo. Minha experiência pessoal sugere que as relações sociais que se seguem às experiências místicas tendem a induzir modos de pensamento extremamente reiterados e circulares, para não dizer viciosos. Não é por outra razão que indivíduos muito religiosos passam anos a julgar de maneira rígida fatos cada vez mais diversificados, que a vida lhes apresenta e que dificilmente se amoldam às suas explicações. Casos de gravidez antes do casamento e práticas sexuais não conservadoras são alguns exemplos. No terreno intelectual, a origem de espécies novas, sem intervenção de Deus, e a não ocorrência do Dilúvio de Noé nos dão outros tantos. Julgamentos reiterados de fatos e ideias como esses tendem a excluir explicações não concordantes com a religião e a paralisar, sistematicamente, as funções racionais associadas.
Assim, na mesma medida em que estimulam certos circuitos cerebrais, os modos reiterados de pensamento tendem a paralisar ou minimizar o funcionamento de outros circuitos. Funções inteiras do cérebro, não apenas cognitivas, mas sentimentais, são paralisadas em consequência de engajamentos comunitários, que se seguem a experiências religiosas intensas. Aí pode estar uma segunda causa da atrofia apontada no artigo de Scientific American. Como a primeira (o stress), essa causa tampouco se centra na experiência religiosa em si mesma, mas nos desdobramentos comunitários dela. Porém, diferentemente do que ocorre com a primeira causa, a contenção da paralisação racional depende mais do indivíduo do que do meio. É possível à pessoa de fé manter-se racionalmente ativa em múltiplas direções, e não numa só, a despeito do meio em que está inserida. Infelizmente, as pessoas que passam por experiências místicas muito fortes não costumam desenvolver essa prática.
Se a hipótese da paralisação de processos racionais for verdadeira, os indivíduos religiosos fazem bem em não diminuir o exercício intelectual e em não descurar explicação alguma de um fato, a não ser por razões mais robustas. O exercício racional amplo é indispensável para a higidez da mente religiosa. Se as informações disponíveis não associam a atrofia cerebral às experiências religiosas propriamente ditas, é certo que elas desnudam uma relação perigosa entre a paralisação da atividade racional e a atrofia do cérebro.
Não seria honesto encerrar este breve comentário sem mencionar que muitas outras pesquisas atestaram os benefícios da fé para o cérebro. Porém, em geral, elas se debruçaram sobre os desdobramentos de curto e de médio prazos das experiências religiosas. O estudo de Duke foi o primeiro a abrir a janela para uma nova paisagem. E, aberta a janela, faremos bem em não cerrar nossos olhos.
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