quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Livre Exame de Romanos (16): A Lei do Espírito da Vida

Na literatura e no culto cristão, o Espírito Santo é mencionado em fórmulas às vezes tão repetitivas que corremos o risco de o tomar como um tema trivial. Porém, quando prestamos atenção no modo como Cristo e os apóstolos se referiram ao Espírito de Deus, verificamos que ele nada tem de comum. Romanos 8:1-16 é exemplo claro disso. Nesses versículos, a palavra Espírito é usada 17 vezes, quase sempre para se referir à pessoa do Espírito Santo, em termos inusitados e surpreendentes.
A primeira menção do Espírito aparece no versículo 2: “Porque a lei do Espírito da vida em Cristo Jesus me livrou da lei do pecado e da morte”! Paulo não diz, aí, simplesmente, que o Espírito o livrou do pecado e da morte. Diz que a lei do Espírito o fez. Portanto, associa o trabalho do Espírito a uma lei.
Isso é próprio da mentalidade judaica, para a qual toda revelação de Deus tem relação com a lei. Trata-se, porém, de estabelecer exatamente a que lei Paulo se refere: se à lei a do Antigo Testamento ou a alguma outra.
Ao longo da História, muitos estudiosos das Escrituras tentaram responder essa pergunta. Não faltou, inclusive, quem oferecesse resposta exótica a ela. No entanto, as melhores respostas sempre foram as mais simples. E a mais simples resposta à pergunta é a que reconhece que a lei do Espírito é a que Paulo chama também “lei de Cristo”.
Vemos essa lei mencionada em Gálatas 6:2: “Levai as cargas uns dos outros, e assim cumprireis a lei de Cristo”. E, de novo, em 1ª aos Coríntios 9:21: “Para com os sem lei [procedi] como se eu mesmo o fosse, não estando sem lei para com Deus, mas debaixo da lei de Cristo”.
Em hebraico, torá (lei) significa ensino ou instrução. Lei de Cristo é, portanto, o ensino de Cristo a respeito do Antigo Testamento. Durante o seu ministério, na Terra, Jesus ensinou muitas vezes como a palavra de Moisés e dos profetas deve ser interpretada e aplicada. Ele disse, por exemplo, que não veio revogar a lei, mas cumpri-la (Mt 5:17). E que, até que o céu e a terra passem, nem um til ou iota da lei passará, sem que tudo se cumpra (Mt 5:18).
Essas declarações centrais permitem-nos estabelecer que a lei de Cristo não é outra coisa que a lei do Antigo Testamento como Cristo a ensinou e aplicou. E, como o Espírito foi enviado para nos levar a “toda a verdade” (Jo 16:13), lei de Cristo é também a que ele confirma e explica. É a que “o Consolador, o Espírito Santo”, que o Pai envia em nome do Filho, “vos ensinará”, pois ele “vos fará lembrar de tudo o que vos tenho dito” (Jo 14:26). A única diferença é que Cristo ensinou essa lei, visivelmente, aos seus discípulos, na Terra, ao passo que o Espírito a ministra, de modo invisível, ao coração dos que creem.
Se as palavras que Jesus disse, na Terra, não foram ditas por ele mesmo, mas pelo Pai (Jo 14:10), e se o Espírito não fala por si mesmo, mas diz o que ouve do Filho, enfim se ele “há de receber do que é [do Filho], e vo-lo há de anunciar” (Jo 16:13-14), não podemos senão considerar que a lei do Espírito da vida é o mesmo que a lei de Cristo.
No século II, o gnóstico Marcião difundiu o ensinamento de que o Deus do Antigo Testamento é distinto do Pai de Jesus. Chegou até mesmo a afirmar que o primeiro é mau e cruel, ao passo que o Deus de Jesus é bom. Esse ensinamento trazia a implicação de que o Antigo Testamento é a palavra do Deus de natureza má. Porém, isso é gnosticismo, não fé cristã. João diz-nos que o Pai e o Filho são um (Jo 10:30). Isso implica que o Filho diz o que Pai diz. E é claro que o Espírito diz o que Pai e o Filho dizem.
Assim como a lei do Antigo Testamento foi dada por intermédio de Moisés e, por esse motivo, foi denominada “lei de Moisés”, a do Novo Testamento é revelada pelo Espírito Santo e, por isso, se chama lei do Espírito. Acaso não é assim? João não nos diz que “a lei foi dada por intermédio de Moisés” (Jo 1:17)? E Hebreus não se refere a essa lei como a de Moisés, ao dizer que, “sem misericórdia, morre pelo depoimento de duas ou três testemunhas quem tiver rejeitado a lei de Moisés” (Hb 10:28)?
Porém, o versículo de João que afirma que a lei foi dada por Moisés acrescenta que a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo. Para uma mentalidade judaica, essa graça e essa verdade, permitam-me propô-lo à consideração de todos, incluem uma lei e até mesmo são a lei de Moisés considerada do ponto de vista da graça e da verdade.
O sentido dessa lei é exposto, com particular clareza, na passagem em que os escribas e os fariseus levaram a Jesus uma mulher flagrada em adultério e lhe indagaram o que devia ser feito a ela: “Na lei nos mandou Moisés que tais mulheres sejam apedrejadas; tu, pois, que nos dizes?” (Jo 8:5). Sabemos que a resposta de Jesus àqueles líderes limitou-se à frase, a um tempo, iluminadora, cortante e áspera: “Aquele que dentre vós estiver sem pecado seja o primeiro que lhe atire pedra”. Outra versão afirma: “Quem nunca pecou atire a primeira pedra” (Jo 8:7).
No tempo de Jesus, uma pessoa ser arrastada à presença de um juiz equivalia a ser processada. A condução do acusado pelo acusador era o que hoje denominamos citação ou ato pelo qual se inicia um processo. João 8:3-11 indica, portanto, que Jesus foi considerado uma autoridade por aqueles que levaram a mulher à sua presença. E as palavras que ele disse à mulher, no fim da passagem (“eu tão pouco te condeno”), sugerem que os próprios acusadores não a condenaram, antes aceitaram o veredito de absolvição de Jesus.
João 8:3-11 é, talvez, a única passagem em que Jesus interpreta a lei de Moisés na condição de juiz. A única em que ele fala, a partir da cátedra judicial. Nessa especial ocasião, vemos Jesus proferir uma palavra aos acusadores da pecadora (“Aquele que dentre vós estiver sem pecado seja o primeiro que lhe atire pedra”) e outra à mulher (“Eu tão pouco te condeno. Vai e não peques mais”).
A primeira declaração é crucial. Algumas traduções expressam-na como “quem estiver sem pecado”; outras, como “quem nunca pecou”. Trata-se de coisas bastante distintas, já que “estar sem pecado” refere-se a uma pureza momentânea, ao passo que “nunca pecou” implica um tipo de pureza permanente, ou seja, por toda a vida.
O termo original traduzido dessas duas maneiras é anamártitos. Sabemos que, em grego, hamartia significa pecado, e o prefixo a ou an tem o sentido de não. Portanto, anamártitos indica uma condição sem pecado. Como os judeus não admitiam que alguém pudesse nascer e se conservar sem pecado, ao longo de toda a vida, temos de entender que anamártitos sinaliza uma condição de pureza temporária. “Quem estiver sem pecado” traduz melhor essa condição do que “quem nunca pecou”.
O verso seguinte a essa declaração demonstra como os acusadores da mulher entenderam as palavras de Jesus: “Acusados pela própria consciência, foram-se retirando um por um, a começar pelos mais velhos até aos últimos” (Jo 8:9). A parte decisiva do verso é a que diz “acusados pela própria consciência”. Ela mostra que a não pecaminosidade a que Jesus se referiu não é meramente ritual. Não pode ser alcançada pela observância de um rito, pois é interior e está relacionada à consciência.
Jesus disse à mulher, após os acusadores dela se retirarem: “Eu tão pouco te condeno; vai, e não peques mais” (Jo 8:11). Se não podemos conceber uma “lei de Cristo” contrária ao que Cristo ensinou sobre a lei, temos de concluir que o núcleo vital da lei de Cristo é a não condenação. Moisés ordenou que os adúlteros fossem mortos, pelo mesmo motivo por que autorizou dar carta de divórcio: “por causa da dureza do vosso coração” (Mt 19:8). Porém, ao interpretar aquele mandamento, Jesus antepôs-lhe uma condição sem a qual ele não pode ser aplicado pelos homens.
Claro que Jesus preenche a condição anteposta ao mandamento. Paulo diz, claramente, que “ele não conheceu pecado” (2 Co 5:21). E o autor de Hebreus acrescenta que Jesus foi tentado “em todas as coisas, à nossa semelhança, mas sem pecado” (Hb 4:15). Porém, a pureza radical de Jesus, em vez de identificá-lo com o homem, distingue-o. A pureza que a lei exige de um ser humano para condenar o outro é aquela possível à criatura. Não é a pureza divina.
Jesus não disse “Aquele que dentre nós estiver sem pecado”. Ele disse “dentre vós”. Assim, a pureza exigida para aplicar a pena de morte deve ser encontrada entre os homens. Não é a pureza do Filho de Deus, que não está vinculado à condição prevista na lei. Por isso, as palavras de Jesus à mulher não foram de condenação, mas de absolvição.
Ouso pensar que essa é a lei de Cristo. E que a lei de Cristo é a lei do Espírito da vida, a que Paulo se refere em 8:2. O Espírito mencionado 17 vezes na primeira metade do capítulo 8 não tem, para Paulo, qualquer papel. Não inspira qualquer sentimento, não fala quaisquer palavras. O Espírito revela a lei de Cristo, que é tão diferente da lei que demanda e mata, demanda e mata, demanda e mata infinitamente!
A lei de Cristo e do Espírito não mata: dá vida! Porém, por ser tão elevada, ela não pode ser conhecida do modo como as coisas comuns o são. Não é uma lição que se ensine ou se aprenda em escolas. Não se ouve aos pés de Gamaliel, porque Deus reservou-a ao ensino direto e exclusivo do Espírito Santo.
O Espírito usa todas as circunstâncias para nos ensinar. Usa, porém, o sofrimento de um modo todo particular. Por isso, o próprio Senhor chamou-o Consolador. Ninguém pode consolar, se não há dor. Por isso, o Espírito atua na dor, na miséria e no sofrimento. Paulo diz que o Espírito geme, e ele não parece fazê-lo por outra razão a não ser porque nós gememos.
Não que Deus queira ou ame o sofrimento. O sofrimento está dado na ordem das coisas. Não procede de Deus. Mas, por ser Deus, ele se apraz em transformar a dor em alegria, a derrota em vitória. Como ele o faz? Paulo nos diz que o Espírito faz essas coisas gemendo em nós, não para aumentar a lamentação, mas para se unir entranhadamente a nós no pior de todos os abismos, no mais escuro de todos os vales, a fim de ali fazer brilhar a luz do mundo.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

O Romance da Filosofia - artigos reunidos (3)

O Deus de Einstein

A Carta de Deus escrita por Einstein um ano antes de morrer foi levada a leilão, em 2012, com lance mínimo estipulado em três milhões de dólares. Muito se tem debatido o que o cientista pode ter escrito, em tal carta, para justificar o interesse expresso em cifra tão astronômica. A resposta mais correta, embora pouco adequada a um leilão, parece ser nada que ele não tenha afirmado, ao longo de todo o restante da sua existência dedicada à ciência.
O documento tornou-se célebre por ter sido escrito por Einstein e por conter comentários (ao livro de Erik Gutkind intitulado Choose life: the biblical call to revolt) como os seguintes: “Para mim, a palavra de Deus não é mais que a expressão e o produto da fraqueza humana. A Bíblia é uma coleção de lendas primitivas que se mostram honoráveis e, não obstante, infantis. Quanto às sutis interpretações da Bíblia [propostas pelos teólogos], são multiformes em natureza e quase nenhuma relação mantêm com o texto original.” E também: “Para mim, a religião judaica, como todas as outras religiões, é uma encarnação das mais infantis superstições”.
Na sua carta, Einstein contrapõe a visão de mundo bíblica às ideias do “maravilhoso Spinoza”, como ele denomina o filósofo judeu Baruch Spinoza, que viveu no século XVII. Porém, a contraposição foi afirmada, por Einstein, ao longo de toda a sua vida. Por isso, não tem, na carta, a força de testamento, que Richard Dawkins (autor de Deus, um delírio) tenta emprestar-lhe na mídia.
No livro A equação de Deus – como Einstein transformou o conceito de religião (2ª ed., São Paulo: ARX, 2006), Corey S. Powell, editor da revista científica Discover e colaborador de Scientific American, propôs que a devoção do físico alemão à racionalidade do Universo constituiu uma autêntica reorientação da fé religiosa abraçada no colégio católico da infância. Anos mais tarde, Einstein encontrou, em Spinoza, a expressão filosófica mais límpida de suas ideias sobre o Universo. Expressão tão perfeita que o cientista, simplesmente, aderiu a ela. Tornou-se célebre o diálogo em que o rabino Herbert Goldstein, da Sinagoga Institucional de Nova York, perguntou a Einstein se acreditava em Deus, e ele respondeu: “Acredito no Deus de Spinoza, que se revela na harmonia de todos os seres, não no Deus que se interessa pela sorte e ação dos homens”. Para quem não se lembra, o Deus de Spinoza a que Einstein se referiu está na natureza e é idêntico a ela (panteísmo).
Por motivos como esse, Powell considera que a passagem de Einstein do catolicismo ao spinozismo constituiu uma autêntica conversão religiosa, que assumiu expressão científica cada vez mais indelével, conforme ele realizava as suas descobertas. Não foi à toa que, em frases como a citada acima, Einstein exprimiu suas ideias científicas em linguagem religiosa. Ele falava mais sério do que se supõe quando fez aquela declaração e também ao afirmar que “Deus não joga dados” ou que a sua empreitada científica consistia em “saber como Deus criou este mundo". "Não estou interessado neste ou naquele fenômeno", disse, "no espectro deste ou daquele elemento. Quero saber os Seus pensamentos.” Tampouco brincava ao declarar: “Quando julgo uma teoria, eu me pergunto: se eu fosse Deus, teria disposto o mundo dessa maneira?” (POWELL. Corey S. Ob. cit. p. 67).
Mas, se o pensamento de Einstein exprime sua transição de uma ideia teológica a outra e não o abandono de ideias teológicas, reduzir o seu panteísmo ao ateísmo, como Richard Dawkins faz, é filosoficamente tão equivocado quanto explicar a combustão com base no flogisto ou postular a transmutação dos metais inferiores em ouro. Equívocos como o de Dawkins não são incomuns, em tempos em que o conflito teísmo-ateísmo assumiu um grau perigoso de radicalização.
No pensamento dos grandes cientistas, há um espaço plástico e flexível, embora recôndito, reservado à mística. No passado, esse espaço foi ocupado pelo flogisto e pela alquimia newtoniana. Hoje, ele abriga toda sorte de devoção religiosa dos homens de ciência, que deixou de se orientar a entes divinos e se redirecionou a objetos outros, naturais ou ideais. Desse tenebroso espaço, não raro, procedem os grandes mal-entendidos da ciência.
No caso de Einstein, sua devoção à harmonia da natureza levou-o a superar diversos erros da Física Clássica. Levou-o, porém, a superar os erros da crença num Deus pessoal? Einstein deu-se tão bem no campo da Teologia quanto no da Física? Isso é, no mínimo, duvidoso. Se não precisamos deixar o domínio da ciência para encontrar pontos em que Einstein se equivocou, como a interpretação da Física Quântica, que dizer de questões situadas fora da sua especialidade? Como todo ser humano, Einstein acertou e errou. Acertou magnificamente, é claro, ao reconstruir, tijolo a tijolo, a Física. Mas errou ao interpretar a Física Quântica e ao abandonar totalmente a ideia de um Deus pessoal.
Entendo que é crime de lesa-majestade tipificado no Código Penal contestar Einstein. Ainda que a majestade lesada não seja a dele, mas a dos "proprietários" do seu legado, como os cientistas que insistem em atribuir ao grande físico uma visão não teológica do mundo. Resta-me confessar o crime, tanto quanto minha firme admiração pelo cientista, pensador e cidadão Albert Einstein.
Mas convém recordar, também, e sempre, que à ciência se devem os tributos da reflexão respeitosa e da mais perseverante suspeição. Não apenas o primeiro deles. Einstein é tomado como mito, toda vez em que se atribui às suas declarações o grau de infalibilidade que se tem reconhecido à “Carta de Deus”. A isso é preciso resistir.
No fundo, o panteísmo de Spinoza e de Einstein é tanto ateísmo quanto o flogisto é fogo. Infelizmente, as vulgarizações disponíveis do pensamento de Spinoza barateiam demais a equação Deus sive Natura (Deus, isto é, a natureza), que costuma ser citada como suma dele. Embora ele tenha afirmado que Deus é tudo, no seu pensamento, esse tudo é uma substância eterna dotada de infinitos atributos e amplamente incompreensível ao homem. Que pode um homem na Terra entender da ideia abstrata de substância? E ainda mais da substância eterna? E dos infinitos atributos dela? Bem pouco. Deus é, portanto, o muito que permanece fora desse pouco, já que não é o que compreendemos da substância, mas ela própria. De sorte que as fragilidades da substância impessoal de Spinoza se exprimem na pergunta: e se o muito que não compreendemos dela possuir apanágios pessoais?
Demos, porém, a volta ao panteísmo spinoziano. Após o termos examinado pelo lado de Deus e do que não sabemos da substância, vejamo-lo pelo ângulo oposto do que ela efetivamente é. Que é tudo (pan) para o homem, a não ser tudo o que ele é capaz de conhecer? Ora, o que o homem pode conhecer é tanto menor quanto diferente do que existe. Parte considerável do conhecimento humano é atávica e não corresponde ao mundo como é ou foi, mas às necessidades de sobrevivência e homeostase dos nossos ancestrais. Portanto, se Deus inclui o que conhecemos dele, que pobre conceito é!
Tiremos, então, as conclusões que essas considerações tornam necessárias. Se Einstein realizou um giro copernicano, ao abandonar o Deus pessoal e aderir ao spinoziano, não é menos verdadeiro que ele não devotou sua vida a examinar os apanágios pessoais de Deus e sim os impessoais. Digamos que, ao deixar o Deus pessoal, ele deixou de lhe devotar a indispensável atenção. Em que pese o odor iconoclasta que exala, essa interpretação está mais próxima da verdade sobre o pensamento teológico de Einstein do que o incensamento da Carta de Deus com o propósito de torná-la um argumento em favor do ateísmo. Se Einstein passou a vida estudando os fenômenos impessoais do Universo e selou, numa carta, o destino do Deus pessoal, por certo mirou num pássaro e acertou em outro.
O giro pelo qual Einstein substituiu o Deus judaico-cristão pela substância cósmica começou, quando se preparava para o Bar Mitzvah (comemoração judaica do ingresso de uma pessoa na puberdade), antes de completar 13 anos, e leu o pensamento de Xenófanes: “Se os bois pudessem pintar, eles representariam seus deuses em forma de boi” (COHEN, Madleine. Albert Einstein. São Paulo: Globo, 2006. p. 13). A impressão desse dito em Einstein foi tão forte que não houve Bar Mitzvah algum!
Mas, se o Deus pessoal é uma ideia infantil, como Einstein afirmou, o seu abandono pelo grande cientista não foi outra coisa. Ele não ocorreu entre os 12 e os 13 anos como sinal de maturidade. Foi, antes, um movimento infantil que se conservou por toda a vida. Por isso, não é demasiado supor que o abandono do Deus pessoal, por Einstein, não é uma lição científica, mas uma linha a mais no capítulo das devoções informes no interior da ciência, um outro objeto introduzido no quarto sombrio das fés relegadas.

A Ciência no Tribunal de Parmênides

Os capítulos anteriores permitem-nos suspeitar de que o “pecado original” do conhecimento filosófico do Ocidente, se a metáfora religiosa for aqui perdoável, é a Metafísica Clássica. Isso é tão verdadeiro que, se a Filosofia realizou progressos, como crítica do senso comum, ao longo dos séculos, ele consistiu, em boa medida, na contínua superação do vício da substantificação das ideias.
A superação não foi linear, na medida em que sempre se acreditou haver elementos (não facilmente discerníveis) a serem preservados naquela Metafísica. Acrescente-se o fato de muitas tentativas de superação terem-se revelado desorientadas. Para ilustrar a afirmativa com um fato, a maior revolução da Física, no século XX, ao lado da Mecânica Quântica – a Relatividade Geral de Einstein – introduziu problemas teóricos de tal envergadura que as suas resoluções, não raro, envolveram recursos ao erro platônico. O primeiro cientista acima de qualquer contestação a lançar mão desses recursos foi o próprio Einstein, ao repensar as leis físicas em termos teológicos, isto é, como idênticas ao Deus de Spinoza.
A Teoria da Relatividade Geral introduziu a possibilidade de o Universo estar em expansão, o que veio a ser confirmado, por observações empíricas. E coube à expansão reavivar, de certo modo, o antigo problema da origem do cosmos a partir do nada, já que, se sofre expansão, o Universo deve ter estado tão mais comprimido quanto mais recuarmos no tempo. O limite dessa compactação é a “bola de fogo” primordial, que reuniu toda a matéria e energia cósmicas em espaço tão exíguo que tudo o que então existia explodiu. Na concepção mais aceita, essa explosão (big bang) deu origem à expansão, ao tempo e ao próprio Universo que conhecemos.
Ao estabelecer desse modo uma origem para o mundo, a cosmologia do big bang reavivou o problema filosófico da passagem do nada ao cosmo. E o que se viu, na tentativa de solucionar o problema, foi a multiplicação de modelos físicos que tentam explicar tal passagem por métodos teóricos, já que não temos dados empíricos sobre o Universo nos seus primeiros milhares de anos.
O problema dos modelos teóricos que tentam explicar o big bang é não partirem de dados empíricos, o que os expõe, particularmente, ao erro clássico da substantificação. Com efeito, embora partam de um ou outro princípio do mundo empírico, como o movimento quântico ou a relatividade geral, os modelos os modificam com base em princípios do pensamento puro como a não-contradição. Assim, os princípios do pensamento são admitidos como diretrizes do Universo físico, ao lado das leis empíricas.
É possível agrupar os modelos teóricos sobre a grande explosão em duas categorias. De um lado, estão os que pressupõem a existência de Universos numerosos, talvez infinitos, numa vasta estrutura denominada Multiverso. De acordo com essa posição, o mundo em que habitamos teria derivado de um ou mais Universos. A segunda posição, por sua vez, consiste postula a origem do nosso Universo literalmente a partir do nada.
O primeiro tipo de modelo evita o problema do nada, varre-o do território da ciência. E, em seu lugar, introduz o conceito engenhoso do Multiverso. Porém, a despeito dos esforços dos defensores desses modelos, o Multiverso que eles propõem continua regido por leis causais, em que consequentes se seguem invariavelmente a antecedentes.
Apesar das críticas de David Hume e outros pensadores à causalidade, esse princípio permanece solidamente instalado no interior da ciência contemporânea, principalmente enquanto o tomamos como relação geral de antecedentes a consequentes. Tanto a gravitação como o eletromagnetismo e as interações nucleares comportam relações dessa espécie, que se fazem presentes e são representadas nos modelos físicos dos múltiplos Universos.
Porém, embora pemaneça lógica, a representação causal das leis físicas não está livre de vícios metafísicos. O próprio arcabouço da causalidade (a relação de antecedentes a consequentes) assemelha-se tanto à associação de premissas e consequências no plano lógico que nos perguntamos se não seria, ela também, um transplante da ordem mental à realidade. Hume afirmou que a associação de ideias, por meios lógicos, é tão arbitrária quanto a relação que chamamos causal. Pode ser que ela forneça o costume básico, do qual, por imitação, derivou o de associar causas e efeitos.
As tentativas de explicação da origem do cosmo a partir do nada não se saem melhor que as teorias de um Multiverso regido por leis causais.Lawrence Krauss é um expoente desse ponto de vista. Ele demonstra a possibilidade de derivarmos a singularidade quântica de algo muito semelhante ao nada, ou seja, de nenhum espaço, nenhum tempo, energia e matéria nulas. Porém, as ideias de Krauss têm sido questionadas, por partirem das leis do movimento quântico e não exatamente do nada.
Ao defender seu modelo contra essas objeções, Krauss insiste na coincidência entre as leis quânticas e o nada. Porém, do ponto de vista filosófico, a insistência é infundada. O nada não é só um vazio. É também o oposto de um conceito. Todo conceito é formado pela associação de outras idéias, que o compõem. Às vezes, uma das ideias exprime a finalidade da combinação que integra. Por exemplo, o conceito de mesa é constituído pelo de um tampo, um pé e a função de manter objetos ao alcance de um usuário.
O nada é o oposto exato disso. Para concebê-lo, é preciso não associar quaisquer conceitos, já que ele não tem conteúdo. Em outras palavras, o nada é um falso conceito. Mas as leis quânticas não se confundem com uma ausência qualquer de conceitos. Em outras palavras, o modelo de Krauss substantifica não apenas ideias, mas o anticonceito do nada. É o cúmulo do vício da substantificação.
Em dezembro de 2015, físicos e filósofos da ciência reuniram-se na Universidade Ludwig Maximilian, em Munique, a fim de discutir a acusação de que alguns ramos da Física teórica estão a se desgarrar da ciência experimental (CATELVECCHI, Davide. “Is string theory science?”. Nature, 23/12/2015). O encontro, em grande parte ins-pirado por críticas como as do artigo pulicado por George Ellis e Joseph Silk na revista Nature, em 2014 (ELLIS, George e SILK, J. Nature, 2014. nº 516, p. 321-323), o encontro não chegou a qualquer consenso, porém serviu para demonstrar que as acusações se centram mais incisivamente nas teorias do Multiverso e das supercordas. 
Não me refiro a outra coisa, quando afirmo que o erro da substantificação penetrou na ciência contemporânea. Trata-se substancialmente da mesma acusação. Claro que o erro é mais comum na Filosofia, mas pode penetrar, e tem feito isso de maneira substancial, em outros ramos do conhecimento, como as ciências sociais e na própria ciência da natureza.
Da divinização da natureza à substantificação do nada, implícita no modelo de Krauss, a ciência permanece permeada pelo vício metafísico de Parmênides e Platão. Como constituiu o pesadelo da Filosofia, ao longo dos séculos, aquele vício continua ser o problema mais básico da ciência hoje. E é, no mínimo, de questionar se um saber que incide em tais falhas, ao lidar com problemas menores da Metafísica, é capaz de resolver problemas maiores relacionados à existência de Deus.
Se a Filosofia puder ser representada como um tribunal presidido por Parmênides, ao qual pessoas de todos os séculos são intimadas a comparecerem, o conteúdo dos depoimentos colhidos permanece variado e contraditório. Porém, alguns pontos comuns podem ser detectados neles. Talvez o ponto de maior convergência seja a confissão de não poucos depoentes do seu envolvimento com o senso comum e os vícios de que está impregnado.
Entre os últimos a deporem, no tribunal de Parmênides, contam-se Einstein e os físicos que o sucederam. Saíram de lá há tão pouco que as suas declarações ainda não foram sequer analisadas. Ainda não se imprimiram no espírito dos juízes. Tudo que se conhece são rumores e comentários sobre o que nelas realmente se encontra.
Com a analogia do tribunal, desejo mostrar que a ciência contemporânea está tão envolvida com o problema da substantificação das ideias quanto a Filosofia. Por isso, ela tem de comparecer ao tribunal de Parmênides para explicar-se. Embora tenha surgido recentemente e pareça não incidir em antigos vícios do pensamento, a ciência não está livre de ranços substancialistas, tanto quanto a Filosofia. Em que pese o espanto que isso provoca, é de todo inútil perguntar: “Até tu, Brutus?”

A Porta da Verdade

Um exame realmente isento do impasse criado pelo erro platônico revela que a sucessão de gênios invulgares, surgidos ao longo da História, de modo nenhum bastou para livrar a Filosofia e a própria ciência do lodaçal dos vícios de pensamento em que permanecem atoladas. Apesar da estonteante variedade de doutrinas até hoje propostas, a impressão que se tem, ao considerar a validade sempre condicionada delas, é a de completa ausência de progressos na História da Filosofia.
A repetição disfarçada do mesmo faz lembrar o que o Pregador afirmou, no seu próprio tempo, e que o levou a proclamar o esgotamento da dispensação da lei, em termos tão poéticos quanto universais: “Levanta-se o sol, e põe-se o sol, e volta ao seu lugar onde nasce de novo. O vento vai para o sul, e faz o seu giro para o norte; volve-se e revolve-se, na sua carreira e retorna aos seus circuitos. Todos os rios correm para o mar, e o mar não se enche; ao lugar para onde correm os rios, para lá tornam eles a correr [...] Os olhos não se fartam de ver, nem se enchem os ouvidos de ouvir. Nada há de novo debaixo do sol” (Ec 1:5-9).
A linguagem poética é universal. Não há, pois, confusão alguma em transpô-la da Religião à Filosofia ou desta de volta àquela. Seu poder evocativo não se dissipa por isso. É o que melhor expressa o “lado de dentro” das coisas. E a Filosofia também tem o seu lado de dentro, no qual a ausência de progressos se manifesta como enfado. Por isso, as perguntas parecem mesmo justificadas: há verdades objetivas na Filosofia ou as suas doutrinas são meras interpretações possíveis do real? Há progresso no saber filosófico? Qual é a utilidade dos questionamentos que a Filosofia tece tão longamente quanto Penélope seus panos?É preciso enfrentar tais perguntas, sem fugas ou movimentos circulares. Tenho escrito esta obra na tentativa de enfrentá-las e para propor uma resposta, limitada e modesta, é verdade, mas claramente afirmativa para elas. Creio que, embora o avanço filosófico seja muito mais difícil que o da ciência, a dificuldade não se confunde com impossibilidade. Como a natureza, a Filosofia não dá saltos, antes realiza avanços ao passo da tartaruga do paradoxo.
Os progressos da Filosofia manifestam-se, pouco a pouco, nas suas várias etapas de desenvolvimento. Porém, em dois momentos, eles se intensificam. O primeiro foi o da descoberta da inteligibilidade e do inteligível por Platão. O desenvolvimento dessas noções constituiu uma descoberta, pois até então o espírito, não só entre os gregos, mas em todos os povos, tinha sido concebido como atrelado à matéria. A exceção tinha sido Israel, mas até mesmo ele pensara a transcendência habitada somente por Deus. Os anjos vieram mais tarde.
Coube a Platão propor a existência de uma dimensão metafísica povoada por infinitos seres. Notemos que, embora inverificável em sentido pleno, certas implicações da hipótese platônica podem ser testadas e refutadas ao menos em parte. Não foi por outro motivo que a substantificação das ideias, em que ela incorre, pôde ser apontada como um dos erros mais básicos do pensamento.
O segundo momento de progresso acentuado, na História da Filosofia, foi o início do século XX, quando um acúmulo de descobertas revolucionárias, na Matemática, na Geometria e na Física, levou vários filósofos a repensar não apenas as concepções metafísicas clássicas, mas também as de Kant, Hegel e outros.
Nenhuma escola particular foi responsável pelas descobertas desse período, embora se tenha tornado comum associá-las ao Neopositivismo. Discordo da associação, pois as descobertas da etapa a que me refiro foram realizadas por filósofos de várias escolas, como Ludwig Wittgenstein, Bertrand Russell, Alfred North Whitehead, Karl Popper e outros, o que impede a sua ligação a correntes de pensamento muito determinadas.
Russell utilizou seus conhecimentos matemáticos para refutar as concepções de espaço e de tempo vigentes na sua época, as quais tinham forte influência de Kant e Bergson. Suas ideias sobre esses temas se dão a conhecer na seguinte passagem: “A opinião de que toda separação [entre seres] implica espaço é tida, atualmente, como estabelecida e é empregada dedutivamente para provar que o espaço está implicado onde quer que haja claramente separação, por menor que seja a razão para se suspeitar tal coisa. Assim, as ideias abstratas, por exemplo, se excluem evidentemente: a brancura é diferente da negrura, a saúde é diferente da doença, a estupidez é diferente da sabedoria. Daí todas as ideias abstratas implicarem espaço” (RUSSELL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1969. Livro Quarto, Cap. XXVIII, p. 368).
Nada mais claro: onde há separação de coisas, há espaço. Não se pode negar assertiva tão elementar. Se o corpo A está separado de B, o que há entre eles é espaço. Até aqui, movemo-nos não apenas no âmbito da filosofia de Bergson, mas do senso comum. Porém, as ideias desse pensador correu o mundo, na primeira metade do século XX, e versões mais radicais do seu pensamento foram propostas. O que Russell combate é uma dessas versões: a que generaliza a espacialização do pensamento empírico, que impera na Física, para o pensamento ideal, portanto para conceitos como a brancura. Russell denuncia o vício consistente em considerar que a razão representa não só "as coisas umas ao lado das outras no espaço”, mas também os conceitos como se fossem justapostos.
Essa afirmativa pode ser encontrada, aqui ou ali, na obra de Bergson. Em O que Aristóteles pensou sobre o lugar, ele escreveu: “Se Aristóteles tivesse chegado ao âmago da doutrina um pouco obscura dos pitagóricos, não sei se não se afastaria um pouco de sua própria maneira de ver. Ele teria entendido que o espaço inane – ainda que não possa ser definido ao modo dos físicos – nos é necessário em nossas cogitações, para distinguirmos umas coisas de outras e também umas noções de outras noções” (BERGSON, Henri. O que Aristóteles pensou sobre o lugar. Campinas: Unicamp, 2013. p. 59).
Nesse texto, Bergson afirma que o espaço é necessário não só para distinguirmos um objeto físico de outro, mas também as noções. Porém, ele relaciona essa concepção à “doutrina um pouco obscura dos pitagóricos”. É, pois, uma expansão das ideias de Bergson, que ele tomou emprestado dos pitagóricos. Porém, não é, de maneira alguma, uma ideia central do pensamento do filósofo francês como a duração, a intuição, a evolução criadora ou o élan vital.
Não devemos, portanto, colocar no lugar central do pensamento de Bergson a versão radical da crítica da espacialização pela qual ele chegou a atribuir ao espaço um papel na distinção de conceitos puros. O núcleo da crítica da espacialização de Bergson, não é esse. Pode ser encontrado em obras às vezes mais difíceis e negligenciadas, como Duração e simultaneidade (São Paulo: Martins Fontes, 2006), na qual aquele filósofo comparou cuidadosamente o seu conceito filosófico de duração às descobertas da Teoria Especial da Relatividade, de Einstein, a fim de dar expressão exata ao seu pensamento. Se essa obra de Bergson fosse lida com a necessária frequência e atenção, seria possível extrair dela uma delimitação muito mais precisa da crítica à espacialização do que por vezes se encontra nas fileiras do bergsonismo.
Após uma análise que os filósofos contemporâneos denominariam arqueológica das experiências empíricas e das equações matemáticas das quais Einstein extraiu sua teoria, Bergson resumiu, com bastante clareza, os resultados a que chegou: "No que concerne mais especialmente ao tempo, foi do relógio sideral que [a Física Clássica] fez uso para o desenvolvimento da física e da astronomia; descobiru-se, sobretudo, a lei de atração newtoniana e o princípio da conservação da energia. Mas esses resultados são incompatíveis com a constância do dia sideral, pois, de acordo com eles, as marés devem agir como um freio sobre a rotação da Terra. De modo que a utilização do relógio sideral conduz a consequências que impõem a adoção de um novo relógio. é muito provável que o progresso da física [introduzido pela teoria da relatividade] tenda a nos apre-sentar o relógio óptico - ou seja, a propagação da luz - como o relógio-limite, aquele que está no final de todas essas aproximações sucessivas. A Teoria da Relatividade registra esse resultado. E, como é da essência da física identificar a coisa com sua medida, a linha de luz será concomitantemente a medida do tempo e o próprio tempo" (BERGSON, Ob. cit. p. 149).
Essa é a espacialização que Bergson provou. Devemos denominá-la espacialização do pensamento empírico, não do ideal ou puro. O que vai além dessa conclusão não provém de Bergson. Pelo contrário, é exagero do bergsonismo ou, quando muito, um desdobramento incidental destituído da importância que tem a denúncia da espacialização do pensamento empírico.
O que Russell refuta, portanto, é muito menos o pensamento de Bergson do que s aplicação exagerada dele por seus discípulos. Ele lança mão da Matemática Moderna para desenvolver a refutação desses últimos: “Se, com os matemáticos, evitarmos a suposição de que o movimento é também descontínuo, não cairemos nas dificuldades dos filósofos. Num cinematógrafo [projetor], em que há um número infinito de quadros [formando um filme], não há um único quadro seguinte, porque um número infinito vem entre dois quadros quaisquer” (idem. p. 370). Por que é assim? Porque onde cabem números, cabem infinitos deles. Russell quer sugerir que, se a Matemática é aplicável à Física, como a ciência parece indicar, o movimento é formado por infinitos atos.
É surpreendente, mas Russell encontra infinitos momentos entre dois momentos de um movimento, assim como encontra infinitos números entre dois números. Os princípios dessa concepção, que ele utiliza para refutar a continuidade do movimento, aplicam-se tão bem às noções kantianas de espaço e de tempo subjetivos: “Se adotamos a tese, que na física se tem por assentada, de que os nossos perceptos [objetos de percepção] têm causas externas que são (em certo sentido) materiais, somos levados à conclusão de que todas as qualidades reais dos perceptos são diferentes das de suas causas [por exemplo, os comprimentos de ondas que percebemos como cores não são verdadeiras cores], mas que há uma certa semelhança estrutural entre o sistema de perceptos e o sistema de suas causas. Há, por exemplo, uma correlação entre as cores (tais como são percebidas) e os comprimentos de onda (tais como são inferidos pelos físicos). Deve haver, do mesmo modo, uma correlação entre o espaço como ingrediente dos perceptos e o espaço como ingrediente do sistema das causas não percebidas dos perceptos. Tudo isto se baseia na máxima ‘mesma causa, mesmo efeito’, com o seu anverso ‘diferentes efeitos, diferentes causas’” (idem. Cap. XX, p. 267).
Não precisamos considerar que Russell esteja certo em todos os pontos dessa refutação para entendermos que ele se baseia em avanços muito bem demonstrados da Matemática, da Geometria e da Física. Podemos perguntar, com razão, para que insistir no subjetivismo espacial de Kant, se a ciência estabeleceu correlação clara e objetiva entre o espaço real e a nossa percepção dele.
Algo semelhante pode ser afirmado do tempo: “Uma coisa-em-si A produz a minha percepção do relâmpago, e outra coisa-em-si B produz a minha percepção do trovão, mas [para Kant] A não foi anterior a B, já que o tempo só existe nas relações de perceptos [na mente humana]. [...] Tomemos um caso como o seguinte: ouvimos um homem falar, respondemo-lhe e ele nos ouve. O seu ato de escutar [...] sucede a nossa resposta. Ademais o seu falar precede a nossa ação de escutar [...] Está claro que a relação [designada pelas palavras] precede e sucede deve ser a mesma em todas estas proposições [algumas das quais se referem a ocorrências mentais, e outras, a extramentais]” (idem. pp. 265, 268).
De novo, encontramos a correlação. Russell não hesita em concluir que “não há nenhum sentido em que o tempo perceptual seja subjetivo” (idem. p. 268). Suas críticas podem parecer diletantismo de filósofos, ocupados ou desocupados, mas não o são. Para entender por que, basta recordar que, neste ponto da nossa dissertação, das categorias aristotélicas, resta só pó. E as kantianas, que as substituíram, estão interditadas pela Defesa Civil, por risco de desabamento. E, ao sermos despojados das categorias aristotélicas e as kantianas, não ficamos só sem brinquedos filosóficos. Ficamos sem uma imagem do mundo, já que não é possível entender coisa alguma do que ocorre sem o tempo, o espaço e as 12 categorias que Kant deles deduz.
Ou não deduz? Alguém negará que as categorias kantianas (unidade, pluralidade, totalidade, realidade, negação, limitação, substância, causalidade, comunidade, possibilidade, existência e necessidade) derivam do espaço e do tempo e não subsistem sem eles? Que diz Kant a esse respeito? Ele escreve: “Chamo dedução transcendental o exame do modo como conceitos a priori podem ser aplicados a objetos e o distingo da dedução empírica” (KANT, Emmanuel. Critique of pure reason. In Great books of the western world. 2ª ed., Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1993. Vol. 39, p. 54).
Com essa diferenciação, Kant quer enfatizar que há conceitos a priori derivados de outros. Esses conceitos de que outros derivam a priori são, antes de tudo, as categorias. A razão desse fato é fácil de perceber: “Podemos colher dos fenômenos uma lei, segundo a qual isso ou aquilo usualmente acontece, mas o elemento de necessidade não será encontrado” (idem. p. 47). A experiência não nos autoriza a entender qualquer objeto sob as relações necessárias a que as categorias os sujeitam. Portanto, temos de concluir que a necessidade é ínsita às categorias enquanto noções a priori, não aos fenômenos.
Mas e as próprias categorias: são deduzidas de leis empíricas ou de puros conceitos? Kant rejeita o caminho da dedução empírica. E acrescenta: “Há apenas duas condições de possibilidade do conhecimento de objetos: primeiramente, a intuição [percepção] [...] em segundo lugar, o conceito [a categoria], por meio do qual o objeto que corresponde àquela intuição é pensado” (idem. p. 47).
A categoria é, para Kant, o que faz o objeto corresponder à intuição. É o que o conforma a ela. Por isso, o entendimento se subordina à intuição, não o contrário. De sorte que o fundamento do suntuoso edifício lógico do conhecimento são o tempo e o espaço a priori.
Mas as dificuldades criadas pela crítica de Russell não nos autorizam a substituir o espaço e o tempo de Kant pelo espaço-tempo de Einstein, a fim de salvar o edifício do conhecimento, já que, na teoria de Einstein, o espaço-tempo é deduzido empiricamente, ao passo que, em Kant, eles integram um procedimento transcendental. A dedução empírica não combina com a transcendental. Fica ainda pior como remendo de pano novo em vestido velho. Portanto, só há uma solução: substituir o edifício inteiro das categorias kantianas, que está em vias de desmoronar.
Melhor desistir? Não, pois sem as categorias não há como formar uma imagem do mundo. E sem imagem do mundo, não podemos sequer nos comunicar. Toda tentativa de comunicação é como nuvem de palha ao vento. É como pólvora não detonada.
Infelizmente, Russell não se preocupou em reapresentar as categorias, após ter destruído as de Kant, o que nos leva a indagar se, como filósofo da linguagem, ele não cavou a sepultura daquela escola, com a pá de sua crítica. Comunicar o quê, se não há tempo, espaço ou categorias? Se as 12 pedras foram sepultadas no rio Jordão?
A Filosofia é um método lógico, que só pode ser bem exercido com uma base de conhecimentos empíricos ampla e atualizada. Por isso, é de todo indispensável desenvolvermos o método filosófico pari passu com o científico e a Filosofia à luz da ciência. Mas essa não é uma tarefa em que alguém possa obter sucesso, pela simples utilização simultânea dos dois saberes. Abordagens interdisciplinares não bastam. Tampouco a conversa hoje disseminada de transdisciplinaridade. Numa direção reflexiva muito diferente dessas, é preciso encontrar, na História do Pensamento, os exatos pontos em que os dois conhecimentos se interceptam do modo mais luminoso e construir sobre eles.
Isso se realizou de forma exemplar, no início do século passado, quando avanços científicos extraordinários bateram à porta da Filosofia, e alguns comensais a abriram. Marx tinha realizado algo parecido, na interface da Economia e da Filosofia Social. O que obteve de mais perene constitui seu legado específico. Mas fatos tão incomuns quanto esses passaram quase despercebidos. E o pior é que, em ocasiões anteriores e posteriores, descobertas tão ou mais extraordinárias bateram à porta da Filosofia, e ninguém lhes abriu.
As descobertas matemáticas que Russell utiliza têm o potencial senão de salvar totalmente, ao menos de preservar um conteúdo para as categorias clássicas. Na concepção desse filósofo, elas não devem corresponder a nada. Antes de Russell, Hume tinha propugnado um ponto de vista semelhante. Depois dele, a Física Quântica o reforçou ainda mais. De modo que as categorias foram envolvidas em dúvidas, mas não exatamente desintegradas. Forçoso é desenvolver um tratamento para essas dúvidas, o que tentarei em outros textos.
Drummond escreveu: “A porta da verdade/ Estava aberta/ Mas só deixava passar/ Meia pessoa de cada vez”. Mostrou-nos, com isso, como é difícil entrar pela porta. Mas o pior sobrevém, quando a própria verdade é barrada ou quando tomamos a chave da porta, não entramos e não permitimos que entrem os que o desejam (Lc 11:52). Quantos achados científicos deixaram de ser trabalhados, no âmbito filosófico, com a minúcia e o domínio que Russell, Whitehead, Popper e outros alcançaram dos seus! Quantos permanecem sob o pó do esquecimento e o ávido olhar das traças!
O edifício da verdade está interditado. Sua porta, lacrada. Mas poucos parecem ligar. O antiprofeta já os consolou: “Temos arte o bastante para não morrer da verdade!” Como se houvera bradado: Viva o edifício da arte! Dane-se o da verdade!

Causalidade ou Probabilidade?

Tantas são as realizações da ciência, na explicação do real e na aplicação do conhecimento à técnica, que se torna enfadonho enumerá-las. Mas o inventário encolhe, repentinamente, quando ingressamos no terreno metafísico. Não que a ciência não tenha realizado contribuições, nesse campo, mas, a julgar pelos problemas descritos nos capítulos anteriores, elas se fizeram acompanhar por dificuldades lógicas tão formidáveis que tornam necessário um juízo ponderado, ao tentarmos medir os prós e os contras do emprego do método científico em questões metafísicas.
Os fatos recomendam desinflarmos o entusiasmo pela ciência, no campo da Filosofia. Nenhum imperativo racional se vislumbra, que nos obrigue a aderir ao neopositivismo ou a outra filosofia recente ou clássica. Porém, tudo parece aconselhar o direcionamento de atenção abundante às descobertas científicas, no fatigante trabalho de girar em torno das questões metafísicas.
Se a Teoria da Evolução é o ramo da ciência que mais afetou a Teologia, a Física Quântica é o que mais pesa sobre a Metafísica. Esse ramo do saber dedica-se à realidade do nível do átomo para baixo. Porém, por ser tão revolucionária e contrária ao senso comum, a Física Quântica tem sido interpretada de dezenas de modos diferentes. Felizmente para nós, com o tempo, a maioria dos físicos convergiu para a interpretação de Niels Bohr, chamada positivista, por definir a realidade do objeto quântico com base na observação empírica.
Tanto a Física Clássica como a Quântica descrevem sistemas físicos considerados como “fragmentos concretos da realidade que foram separados para estudo” (www.wikipedia.org/mecanicaquantica). Uma das características principais dos “sistemas físicos é não serem estáticos, mas evoluírem". Um sistema evoluir significa “dar origem a resultados experimentais diferentes” (idem).
Uma partícula quântica (um elétron, um próton, um nêutron, um bóson, um létpon etc.) é considerado sistema, por apresentar resultados experimentais diferentes, chamados estados, em momentos distintos. E por estado, entendemos a “quantidade matemática que determina completamente os valores das propriedades físicas do sistema [...] ou as probabilidades de cada um de seus valores possíveis serem medidos, quando se trata de uma teoria probabilística” (idem).
O que torna a Física Quântica peculiar são duas características das observações a que os seus sistemas se sujeitam. A primeira são as configurações de partícula e onda. A Física Clássica (newtoniana) trata os corpúsculos ou partículas como entidades distintas das ondas. O que apresenta características corpusculares não se pode comportar como onda e vice-versa. No nível quântico da realidade, porém, os átomos, as partículas e as ondas que eles emitem têm tanto propriedades corpusculares quanto ondulatórias. Desde Max Born, estas últimas têm sido interpretadas como o arco de probabilidades que a partícula tem de ocupar diferentes posições em momentos diversos.
A segunda peculiaridade dos objetos quânticos é o fato de as propriedades corpusculares e ondulatórias não serem observáveis ao mesmo tempo. Quando uma onda é percebida, sua partícula desaparece; quando a partícula é detectada, a onda se esvai.
Duas explicações principais foram propostas para esse fenômeno bizarro. A primeira afirma que as ondas associadas à partícula entram em colapso, quando ela é observada. Os adeptos da segunda interpretação, por sua vez, consideram arbitrária a ideia de colapso e explicam a impossibilidade de observação simultânea com base na limitação da mente humana.
A primeira explicação é muito mais subjetiva que a outra, pois coloca o real na dependência do observador. A segunda interpretação é objetiva, pois se sustenta na premissa de que o real é o que é, independentemente da observação humana.
A interpretação majoritária tende a admitir que só é possível afirmar a existência do que é efetivamente observado. Isso é positivismo extremado. Podemos podar os excessos da interpretação, sem a abandonarmos, livrando-nos do excesso positivista, isto é, cortando o prepúcio filosófico da teoria, pela admissão de que o arco de probabilidades quântico não descreve somente “futuros possíveis” da partícula, entendidos como o estar aqui ou ali, mas as suas interações presentes e efetivas com os pontos do espaço que designamos como aqui e ali. As ondas só indicam algo realmente futuro, por descreverem o presente, pois são as interações atuais que determinam as futuras.
Assim entendidas, as diferenças da Física Quântica em relação à Clássica inscrevem-se numa base comum a ambas. Tanto numa como na outra, as interações presentes de um sistema determinam as futuras. A diferença surge, quando percebemos que a determinação do futuro, pela medição, é certa na Física Clássica e incerta na Física Quântica.
O estabelecimento do que há de certo e determinado, bem como do incerto e probabilístico, em cada tipo de sistema (clássico e quântico) é fundamental para entendermos onde se encontra o novo, o inusitado, no último. Guilherme de Ockham enunciou o princípio lógico, segundo o qual, entre duas teorias igualmente possíveis e demonstradas, deve-se aderir à que envolve o menor número de premissas.
Esse princípio, conhecido como “navalha de Ockham”, foi adotado como um cânone das ciências naturais, principalmente da Física. Ele mostra que, se a realidade total pode ser explicada sob a premissa de que o presente determina o futuro, não se deve apelar para teorias que adotem essa premissa para o mundo clássico e outra muito diversa para o mundo quântico.
Entre o clássico e o quântico há similaridades, que não podem ser apagadas. Eles não são estanques, estranhos, impermeáveis um ao outro. As diferenças entre os dois níveis da realidade surgem, quando consideramos o modo como a determinação do futuro acontece. Num sistema de tipo clássico, a determinação do futuro a partir do presente é causal; num sistema quântico, ela é probabilística. Mas, em ambos os casos, a um prius (estado anterior) segue-se um post (estado posterior), com maior ou menor grau de necessidade.
De acordo com esse princípio, deve-se julgar que, quando a partícula quântica é detectada, o feixe de ondas desaparece, não por obra e graça do observador, mas porque a partícula e suas ondas formam um sistema. Para uma interação aumentar a ponto de ser percebida, é preciso que as outras decresçam proporcionalmente. Esse decréscimo está associado ao desaparecimento do feixe ou pacote de ondas. Pode-se supor que a interação predominante torna-se perceptível, ao atingir probabilidade próxima de um, mas para isso as probabilidades das outra interações do sistema têm de cair a níveis próximos de zero.
A energia total do sistema formado pela partícula e seu feixe de ondas concentra-se ou se dispersa, no tempo. Quando a concentração aproxima-se do ponto máximo, a partícula se torna detectável. Quando ela diminui, a energia do sistema se dispersa, a partícula desaparece, e os estados quânticos assumem diferentes probabilidades. Sob essa última configuração, o sistema não se torna irreal, mas indetectável, o que sugere que a existência não se define pelo ato de observação.
Werner Heisenberg mostrou que, quanto maior a amplitude de uma onda do feixe ou pacote associado à partícula, maior a probabilidade de esta vir a ocupar aquele lugar, e quanto menor uma onda, menor essa probabilidade. Mostrou ainda que, se confinarmos a partícula numa região menor, sua posição variará menos, mas seu momentum (amplitude das forças que nela se manifestam) ficará mais variável. A diminuição do número de posições fará aumentar os valores possíveis do momentum. No limite, a detecção da posição tornará impossível a do momento, e vice-versa.
Por que é assim? Porque a dualidade posição-momento segue o feitio probabilístico da dualidade partícula-onda. Assim como a cada partícula corresponde um feixe de ondas ou nuvem de probabilidades, a cada posição correspondem múltiplos momentos.
Quero sugerir que, sem abandonarmos a interpretação majoritária da Física Quântica, é possível abrandarmos o positivismo implícito em só reconhecer realidade ao que é medido. Esse positivismo parece um exagero da posição majoritária. Um exagero que encobre a relação entre as ondas de probabilidades e o real, ao tornar aquelas virtuais e relacioná-las ao futuro, quando as ondas são sempre reais e representam o presente da partícula.
Os estados que a partícula pode assumir também têm realidade própria, independentemente de serem ocupados ou não por ela. Eles são objetos reais, embora indetectáveis. De sorte que a concepção predominante, segundo a qual a observação define a existência quântica tem as características de uma antiguidade positivista no interior da Física. Um vício que ainda a inquina.
Essas observações não distorcem o que se conhece de Física Quântica. Valem-se do desnível entre a existência dos fenômenos quânticos, reconhecida por todos os cientistas, e as incertezas sobre as interpretações deles. Estas aumentam ao se concentrarem nas relações entre o real e as nossas representações dele. O feixe de ondas de uma partícula é a representação mais importante dela. Por isso, a sua relação com o real é o que há de mais controverso na Física. Questionar os significados do feixe não é negar a teoria quântica. É mover-se na gama de interpretações possíveis dela.
Mas as interpretações quânticas também têm pontos de convergência. O mais importante deles é o caráter probabilístico dos eventos. Sobre esse ponto, as possibilidades interpretativas são mais restritas. Pouca dúvida há de que a probabilidade quântica importa uma radical transformação do princípio clássico da causalidade e da fomulação filosófica dele por Kant.
Sabemos que toda relação envolve ações e reações, muito mais do que ações e paixões. Mas, normalmente, não é possível predizer qual dos entes relacionados praticará a ação, e qual, a reação. Só na relação causal, essa ordem é predeterminada, já que a causa deve vir antes do efeito. Ao menos foi o que se entendeu por causalidade até as críticas de David Hume à concepção convencional desse conceito. Porém, o que Hume desafiou não foi a existência da relação causal como conjunção entre a causa e o efeito. Foi, antes, a nossa interpretação mental desse fato, que inclui a precedência da causa. Hume considerava real a conjunção regular que chamamos causal, mas concluiu que a determinação do efeito pela causa era uma construção da mente.
Verdade é que essa é apenas uma interpretação da crítica da causalidade desenvolvida por Hume, contudo ela tem emergido da releitura atenta de sua obra por vários especialistas. Galen Strawson, por exemplo, mostrou que Hume nunca negou a existência da relação causal, mas apenas a nossa possibilidade de conhecer a sua natureza. O que sabemos daquela relação é a conjunção entre a causa e o efeito. O mais, assim como a determinação de um pelo outro, é pura construção mental (STRAWSON, Galen. The hidden connexion. Londres: Oxford Press, 2012).
Para os que, como eu, consideram exagerado o subjetivismo de Kant, a posição de Hume tem grande atrativo, pois fornece a inspiração necessária para o retorno a um realismo básico provido de categorias, sem abrir mão das conquistas críticas. De Descartes a Hume e Kant, a Filosofia desenvolveu-se com engenho e persistência, numa direção eminentemente crítica. Uma consequência inevitável, porém nefasta disso foi a desintegração das categorias, já que, sem elas, é difícil conceber qualquer pensamento humano. Hume e a Física Quântica ajudam-nos a superar tal dilema.
Com efeito, um exercício sedutor de Filosofia, que salva o que é possível da doutrina das categorias sem abrir mão da postura crítica, consiste em reconhecer que Kant excedeu-se ao tornar o tempo, o espaço e as 12 categorias irremediavelmente subjetivos e que Hume pode ser relido de modo a minimizar a herança subjetivista daquele filósofo e ampliar o espaço para um realismo tão básico quanto baseado na ciência.
Que consequência têm essas descobertas para a filosofia do ser? Para tentar responder essa angustiante pergunta, é útil lembrar que, embora tenha levado seu subjetivismo tão longe, Kant manteve um espaço para a Metafísica, no interior do seu sistema. Fundamentou-a, porém, de maneira nova: não mais na essência ou na existência do ser, como as escolas anteriores haviam feito, mas no conhecimento. Para Kant, os conceitos metafísicos permanecem invulneráveis como formas ou pressupostos do conhecimento humano, não como essências existentes ou não. Sem aqueles conceitos, o conhecimento simplesmente não se desenvolve. Permanece mirrado, raquítico. Isso vale não só para Deus, a alma e a liberdade, mas também para as categorias, o tempo e o espaço. Por isso, Kant nos oferece a primeira posição possível em matéria metafísica, na era contemporânea.
A outra posição é a da maioria dos pensadores que tentam superar Kant. Esses filósofos sustentam que, se os conceitos metafísicos não correspondem a objetos reais, não se pode discorrer sobre eles. E aquilo de que não se pode falar deve ser calado. Essa é a outra solução mais comum do mistério do ser.
Hume fornece a inspiração para uma terceira posição, ao obviar o salto no precipício da questão metafísica, na medida em que não chega ao subjetivismo de Kant, porém abandona as posturas dogmáticas a respeito do espaço, do tempo e da causalidade. Permite, assim, considerar relevantes esses conceitos por uma conexão com o real que pode ser denominada realismo básico.
Trata-se de uma posição filosófica bastante fecunda. De uma verdadeira janela que se abre, na casa fechada da Filosofia atual, para o realismo básico e para a Metafísica. As consequências dessa posição para a Teodiceia são espetaculares. Por ela, ao Deus morto de Nietzsche sucede algo inteiramente imprevisto.

A Existência de Deus

Tantos são os argumentos propostos, ao longo da História das Ideias, sobre a existência de Deus que não é possível abordá-los todos de modo analítico, num curto espaço. Porém, como introdução ao tema, é útil lembrar as considerações que alguém como Kant desenvolveu sobre ele.
Para Kant, três argumentos se destacam, na História do Pensamento, sobre a existência de Deus: o argumento ontológico, o cosmológico e o físico-teológico, que tratou como variação do segundo. Kant dirigiu boa parte dos seus esforços a refutar o primeiro argumento. E procurou mostrar, em seguida, que os outros dois são versões modificadas dele, de modo que a refutação da prova ontológica aplica-se também a eles.
Comecemos por examinar, com cuidado, o argumento ontológico. Sua inadequação como prova da existência de Deus foi admitida por vários pensadores, antes e depois de Kant. Não precisamos, pois, necessariamente, ir ao filósofo de Königsberg para encontrar a refutação mais robusta dele. Karl Barth, por exemplo, escreveu sobre o tema uma monografia indispensável, por demonstrar não apenas que o argumento não prova a existência de Deus como que nunca foi objetivo de Santo Anselmo prová-la. Para Barth, o que Anselmo pretendia  está claramente indicado nas fórmulas de sua autoria que podem ser utilizadas como critérios de elucidação do clássico argumento: Credo ut intelligam (creio para compreender) e Fides quaerens intellectum (fé que busca compreensão).
Essas fórmulas mostram que Anselmo usava a razão para desenvolver algo dado anteriormente na fé. Buscava provar que o dogma a que chegamos por fé é também racional, vale dizer, que é possível extrair do dogma de que Deus é o ser supremo uma consequência relevante por meios racionais, a saber: que, se Deus não existisse, algo maior do que ele existiria, o que implicaria contradição. Portanto, se não quisermos que a Teologia albergue contradições, teremos de admitir que Deus existe não só no intelecto, mas também objetivamente.
Nas palavras do próprio Barth: "O que Anselmo considera como tendo sido provado [...] é que a coisa descrita como aliqiud quo maius cogitari non valet [Deus] tem existência não somente no intelecto, mas também tem existência objetiva (e até esse ponto genuína). Agora, até onde isso foi provado? Até onde foi mostrado que Deus existe no intelecto do ouvinte quando o Nome de Deus [exatamente o aliqiud quo maius] é proclamado, entendido e ouvido. Mas, ele não pode meramente existir no intelecto do ouvinte, pois um Deus que existe meramente assim permanece em uma contradição impossível com o seu próprio Nome" (BARTH, Karl. Fé em busca de compreensão - fides quaerens intellectum. 2ª ed., São Paulo: Fonte, 2003. pp. 137-138).
Barth conclui: “Se essa é uma prova, então é a prova de um artigo de fé que ainda continua sendo verdadeiro mesmo à parte de toda prova. A afirmação positiva [a existência de Deus] não pode ter a sua origem examinada, pois ela se origina na revelação" (idem. pp. 138-139).
Isso significa que o argumento ontológico, como Anselmo o concebeu, prova que um item de fé, o Nome de Deus (aliqiud quo maius), implica a existência de Deus, nada além disso. Um item de fé não é um dado da realidade. Só podemos derivar a existência de algo de um dado da realidade. Não é diferente com Deus. Até esse ponto, portanto, a prova ontológica permanece um procedimento analítico que, como tal, não envolve substantificação de ideias.
Mas o argumento foi apropriado, tanto por teólogos como por filósofos, e utilizado de um modo que passou a envolver substantificação. No século XVII, por exemplo, Spinoza adaptou as ideias de Anselmo à sua visão de Universo dominada pela substância única, dotada da maior quantidade possível de atributos. Essa substância é, para Spinoza, o que entendemos por natureza, somente elevada à igualdade com o Ser Supremo. O filósofo percebe que, se retirarmos um atributo (a existência) do vasto conjunto formado pela substância única, ela deixará de possuir a maior quantidade possível de atributos. Por isso, Spinoza atribui-lhe a existência.
O insuperável problema desse modo de racionar é incorrer (outra vez) no vício metafísico da substantificação de conceitos. A ideia de Deus, sua substância e atributos são todos conceitos. Embora refiram-se a algo real, esses conceitos não se confundem com ele. Uma coisa são os conceitos pelos quais representamos a natureza; outra coisa é a própria natureza. Eles são tão diferentes entre si quanto o conceito de gato se distingue de um gato real.
É inevitável que, assim concebido, o argumento ontológico incorra no vício lógico da substantificação. Anselmo tinha-o evitado, ao usar o argumento para demonstrar as consequências de um dogma de fé. Spinoza nada fez de semelhante. Pelo contrário, retirou do argumento sua referência à fé revelada, que neutralizava o poder substantificador, e o estendeu ao absurdo. O mesmo fizeram vários pensadores, tanto antes como depois dele.
Esse é o argumento ontológico, na sua formulação clássica, que Kant e vários outros pensadores dissecaram. Uns o abraçaram, após o terem analisado; outros o rejeitaram. É o caso de Aquino, Kant e Barth, entre outros. Todavia, nem na versão de Anselmo, nem na de Aquino, muito menos na de Spinoza, o argumento ontológico prova a existência objetiva de Deus, pelo motivo básico, mas fatal de que a existência não pode ser derivada de um conceito, qualquer que ele seja.
Curiosamente, os críticos do argumento citado adotaram posições diversas, após o terem refutado. Aquino desenvolveu outras vias, igualmente ontológicas, de argumentação para provar a existência de Deus. Kant procurou aplicar os princípios da refutação do argumento ontológico às outras provas clássicas, a fim de refutá-las também. Seguirei a trilha de Tomás, antes de tentar entender aonde a de Kant nos leva.
O ponto de partida das cinco vias pelas quais Tomás mostrou a existência de Deus é a sua concepção de ser. Embora tenha partido, substancialmente, da metafísica de Aristóteles, Tomás também a superou ao propor divisões do ser cujo sentido ultrapassa muito as categorias daquele filósofo. Com efeito, Aristóteles tinha mostrado que não é necessário supor uma base unívoca do ser para assegurar a unidade interna do mundo. Em lugar de tal base, era possível colocar outra, que chamarei plurívoca por permitir entender que o ser tem diferentes significados sem perder a sua unidade básica e se converter num caos. Esses significados tornam o ser um conceito intrinsecamente análogo.
Mas o filósofo foi além desse ponto. Mostrou que a evidência dos sentidos decide a pendência que pode existir entre as concepções unívoca e análoga do ser em favor da última, já que o real se decompõe em tantos seres que não é possível reduzi-los a um conceito global, ainda que ele seja o do ser. O máximo a que chegamos, na observação do que existe, é às categorias do ser. Tudo o que é, é uma substância localizada no tempo e no espaço, tem relação com outras substâncias, existe em certa quantidade, apresenta qualidades, age e sofre a ação de outros, tem posição e situação. Porém, o tempo em que existe não é o espaço, a quantidade é diferente da qualidade, a ação, da paixão, a posição, da situação, e uma substância não é a outra.
A evidência empírica decide, pois, a pendência teoricamente indecidível entre as concepções unívoca e análoga do ser em favor da última. Sabemos que o ser é análogo, porque sempre se apresenta a nós como intrinsecamente diverso. A diversidade não é uma ilusão de ótica. É um fato do qual podemos partir como de uma base segura, a fim de extrair consequências.
A evidência empírica dessa diversidade é tão torrencial que podemos suspender, sem risco, o juízo crítico até que evidências contrárias venham a infirmá-la. Podemos tomá-la como pressuposto: é o que fazemos, aliás, o tempo todo, ao pensar. Não retornamos ao problema da univocidade ou plurivocidade do ser, ao pensar e agir cada dia. Nem os filósofos e cientistas, nem o homem comum o fazem, pois todos aceitam a plurivocidade básica do real, ao realizar seu trabalho intelectual.
Tomás mostra, na Suma, que a existência de Deus pode ser extraída das evidências sobre o caráter análogo do ser. Se as categorias não são as únicas diferenciações fundamentais do ser, se além delas há outras, mais mediatas, mas não menos certas, como o possível e o necessário, o temporal e o eterno, o finito e o infinito, o efeito causado e o não causado, o composto e o simples, pode-se propor que a divisão do ser nas categorias aristotélicas não exprime mais que os pressupostos de uma visão de mundo comum na Grécia, ao passo que a de Tomás exprime a visão de mundo medieval. A concepção grega, como Aristóteles a codifica, constitui a metafísica clássica; a de Aquino a cristianiza e alarga.
O encaixe das diferenciações metafísicas que chamarei segundas, apresentadas por São Tomás, na doutrina clássica do ser foi a grande realização dos filósofos medievais. Assim eles expandiram o caráter análogo do ser para além dos limites que Aristóteles lhe tinha fixado. E extraíram dessa expansão consequências bem claras para a doutrina da existência de Deus, que expressaram nos seguintes termos: para haver o possível, deve existir o necessário, para o transitório ser, o eterno tem de existir, para o finito ser real, é preciso que o infinito também o seja e para se produzir a cadeia de efeitos é necessário o não causado. Em outras palavras, o imperfeito requer um princípio ou fundamento, que os filósofos medievais identificaram com o perfeito.
Os sentidos nos mostram não só muitos seres possíveis, contingentes, mas que alguns deles são causa dos outros. Podemos admitir que um possível, durante a sua existência, origine outro, que por sua vez origine ainda outro e assim sucessivamente. A formação do Universo pode ser explicada por esse processo, mas a explicação é prosaica demais para ser posta como fundamento das complexidades e maravilhas do cosmo. E o pior é que a origem de um ser possível a partir de outro nos leva a possíveis eternos e não causados, o que desloca o fundamento do efêmero e do causado para dentro dele mesmo.
Claro que os céticos podem fazer o necessário, o não causado etc. retroceder para trás da sequência de possíveis transitórios, mas isso equivale a reconhecer a sua transcendência. No máximo, atrasa o recurso à dimensão absoluta, cuja existência se quer provar ou refutar. A diferença entre essa explicação e a de cunho teísta é que a primeira adia o recurso ao divino, ao passo que a outra o faz concentrar-se logo na figura fortíssima do Ser Supremo e Criador.
O problema das provas sutis da existência de Deus desenvolvidas por São Tomás foi apontado por Kant: consiste em não serem menos ontológicas que a prova de Anselmo. Embora partam da observação do que existe, os cinco caminhos dependem de uma concepção (análoga) do ser e funcionam de modo inteiramente a priori. São, como tais, verdadeiras lições ontológicas, rivais da prova de Anselmo, mas que padecem dos mesmos problemas dela.
Esse o caminho argumentativo seguido por São Tomás, após ter firmado a insuficiência da prova ontológica. A pretensão de Kant, ao chegar a esse mesmo ponto, foi diferente da de Aquino. Em vez de construir outro argumento ontológico para substituir o que invalidou, Kant aplicou a refutação alcançada às outras provas clássicas da existência de Deus. Vale a pena entender como o fez.
“Se algo existe”, escreve a respeito da prova cosmológica, "um ser absolutamente necessário deve também existir. Como eu, pelo menos, existo, segue-se que um ser absolutamente necessário também existe. E posto que o objeto de toda experiência possível é o mundo, este argumento é denominado cosmológico [...] Nota-se que ele começa da experiência e não é totalmente a priori, como o ontológico. Nota-se também que não faz referência a qualquer propriedade dos objetos sensíveis [...] E, sob esse aspecto, ele se diferencia da prova físico-teológica baseada na consideração da peculiar constituição do nosso mundo sensível”(KANT, Emmanuel. Critique of pure reason. In Great books of the western world. 2ª ed., Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1993. Vol. 39, pp. 182-183).
A versão do argumento cosmológico a que Kant se refere é a de Leibniz. De acordo com ele, se o mundo existe (Leibniz supôs evidente que também se move), Deus existe, pois só algo imutável pode tê-lo posto em movimento. Verdade é que, se algo imutável no próprio mundo tiver dado início ao movimento, Deus pode não ser causa dele. Mas, nesse caso, o mundo ou algo nele seria causa de si mesmo, o que é por concepção impossível.
Assim formulado, o argumento de Leibniz parece indestrutível, pois de uma só pitada de experiência (a premissa de que o mundo muda) extrai sua conclusão por necessidade e sem incorrer no erro substancialista. Porém, Kant encontra, nesse argumento, o ontológico, posto que, nele, “a experiência meramente auxilia a razão a extrair a conclusão de que um ser necessário existe” (idem. p. 183). Como “as propriedades desse ser não podem ser aprendidas da experiência, a razão a abandona por completo e passa a procurá-lo na esfera dos conceitos puros [...] em que ela indaga qual, dentre todas as coisas possíveis, contém o requisito da absoluta necessidade” (idem). Não é preciso dizer que, para Kant, a razão acha em Deus (no conceito deste) a resposta que procura.
Kant invalida o argumento de Leibniz, sob acusação de procurar a agulha no palheiro errado. De procurá-la entre os conceitos da razão pura, quando deveria buscá-la na experiência ou, ao menos, no campo da experiência possível. Para Kant, tudo o que existe está nesse palheiro. Não pode ser diferente com o fundamento necessário dos movimentos do mundo (Deus). Implícito fica, pois, que, se Leibniz tivesse encontrado a agulha no palheiro da experiência, teria evitado o retorno vicioso ao conceitual, que retira valor probatório ao seu argumento.
Assim, a discussão kantiana dos argumentos históricos a favor da existência de Deus termina com a conclusão de que não há prova especulativa possível de um Ser Supremo. Proporá, alhures, um argumento não ontológico, nem cosmológico e sim moral em prol da existência de Deus, mas a desconstrução dos argumentos clássicos é, a meu ver, a conclusão mais importante da sua obra, sobre o tema. Conclusão, aliás, convergente com a demonstração de que o argumento ontológico fracassa sempre que usado para provar a existência de Deus e que muitas versões dos outros argumentos estão impregnadas do procedimento ontológico.
A exceção me parece ser o argumento de Leibniz. Não era desconhecido desse filósofo e matemático que os movimentos do mundo podem ser explicados por uma ou mais causas imutáveis, nem todas identificáveis com Deus: a Primeira Causa cristã e as múltiplas causas imutáveis do Universo eterno dos gregos. Se optou por explicá-los por meio de um Criador, foi por considerar evidente que a outra alternativa (a das causas imutáveis imanentes) está sujeita a um sério problema.
Ao reconhecer o problema com as causas eternas e imanentes, Leibniz nada mais fez que manter-se em conformidade com a ciência de sua época que, em fatos empíricos reiterados e invariáveis, reconhecia a atuação de uma lei universal e, com base nela, previa o que haveria de suceder em condições idênticas. A gravidade fora submetida a esse tratamento, no tempo de Leibniz. Embora a maior parte do cosmo não tivesse sido jamais observada (longe disso), os cientistas tinham concluído que a interação gravitacional, como hoje a denominamos, se manifesta em toda parte, o que equivalia a afirmar que tudo sofre mudanças gravitacionais.
Leibniz não divergiu desse entendimento, antes o adotou. E, do modo como os cientistas tinham generalizado os dados da sua observação, de modo a estabelecer a lei da gravidade, ele próprio tratou de generalizar a mudança a toda a natureza física. Assim, afastou-se da opinião dos antigos gregos a respeito das causas imutáveis do mundo.
No contexto do século XVIII, em que viveu, é improvável que Leibniz tenha compartilhado a opinião dos antigos gregos sobre corpos imutáveis imanentes em detrimento da ciência moderna. Pelo contrário, ele abraçou a refutação daquela antiga opinião, que Galileu, Newton e outros tinham realizado. Adotou tal refutação como razão suficiente para eliminar a possibilidade de que as mudanças do mundo proviessem de seres celestes físicos, mas imutáveis, ou de qualquer outra parte no interior do Universo.
Como o firmamento já havia sido vasculhado com ajuda de telescópios, que evidenciaram a ubiquidade da mudança, Leibniz julgou justificado introduzir o pressuposto a priori de que a mudança é inerente a todas as partes do mundo físico. Não incidiu, com isso, em qualquer despropósito, antes realizou algo semelhante ao que tinham realizado os filósofos, que concluíram que o ser é análogo, após verificarem as divisões e subdivisões a que se sujeita, e os cientistas, ao postularem a lei da gravidade. Como explicar é designar uma causa ou princípio externo ao objeto explicado, só se pode fundamentar o movimento em algo imóvel. Por isso, Leibniz concluiu que a causa imóvel do movimento tem de ser Deus.
Kant rejeitou esse argumento, ao cobrar de seus adeptos provas de “que as coisas são incapazes de produzir por si mesmas a harmonia e a ordem” (idem. p. 189). Mas que vem a ser isso?  Ainda que o filósofo se recuse a fechar o argumento em si mesmo com a melhor de todas as chaves (a do conceito de causa ou princípio, que exige a fundamentação de um ser em outro e não em si mesmo), a prova que podemos buscar no cosmo há de ser necessariamente negativa. Há de ser prova de que algo não acontece, e isso em contexto tão vasto quanto o Universo. Para chegar a tal prova, porém, é preciso supor senão a investigação de cada milímetro e de cada partícula do cosmo, ao menos a de partes substanciais dele. O rastreamento cabal do espaço nem a Hércules pode ser cometido. Portanto, a prova possível há de consistir na observação de um grande número de mudanças, sem exceções ou lacunas que permitam afirmar a não mudança.
Para ser conclusiva, uma prova deve ser consistente e clara. Na época de Kant, a prova da ubiquidade da mudança estava sujeita a dúvidas. Mas talvez não seja esse o caso hoje. Após séculos da mais competente varredura do Universo em busca de algo físico que não esteja sujeito a algum tipo de mudança, é preciso admitir que a situação do argumento de Leibniz não é a mesma do século XVIII.
Nada achamos de imutável, no mundo material, após a imensa varredura levada a cabo pela ciência. O átomo, as partículas em que se decompõe, os vários tipos de ondas, todos desfazem-se, em condições determinadas. Sofrem, portanto, mudanças. Tudo é causado, precedido, por algo que constitui seu princípio. A alternativa é negar totalmente a existência de um princípio para o mundo. Mas a alternativa escamoteia a simples imolação do pensamento. Se chegamos até aqui pensando, negar um princípio ao mundo não é só colocar o arbítrio acima da razão, é aniquilar a um tempo os dois.
Temos, pois, suficiente respaldo para concluir que não há objetos materiais não mutáveis, no imenso concerto do Universo, pois a evidência maciça da mudança acumulada pela ciência operou uma modificação no panorama do argumento de Leibniz. Eliminou o remanescente daquela complexidade que turvava o argumento para Kant. Acrescentou-lhe clareza e o tornou não direi totalmente conclusivo, mas o mais claro argumento já construído sobre a existência de Deus.
O princípio da razão suficiente demanda que uma coisa seja explicada por outra, nunca por ela própria. O temporal não pode ser explicado pelo temporal, o finito pelo finito, o movimento pelo movimento, o causado pelo causado ou o contigente pelo contingente. Já o sabia Aristóteles. Num ponto, porém, as coisas mudaram daquela época ao tempo atual. A ciência mostrou, por meio de provas robustas, que o imóvel não está presente no mundo físico.
Não me adiantarei a afirmar que a existência de Deus está dada ou provada dessa maneira. A falibilidade de todo conhecimento impede a comprovação, em sentido último, de qualquer enunciado. Como a todas as outras construções da mente humana, a dúvida adere também a essa. Mas ela não tem, hoje, mais a compleição da época de Kant. É antes um fio de dúvida.
Não estamos mais em tempos, como os de Fílon, em que tudo o que se podia invocar como apresentação do argumento cosmológico eram “os montes e as planícies repletos de animais e de plantas, as torrentes dos rios e dos riachos, a extensão dos mares, o clima bem temperado, a regularidade do ciclo das estações, e depois, o sol e a lua dos quais dependem o dia e a noite, as revoluções e os movimentos dos outros planetas e das estrelas fixas” (ALEXANDRIA, Fílon de. As leis especiais. I, 32-35. Citado em REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. São Paulo: Paulus, 2001. Vol. IV, p. 239). Tivemos de esperar o desenvolvimento de uma ciência suficientemente exaustiva para tornar o argumento mais conclusivo. Penso ser essa a situação dele hoje, após as revoluções científicas que nos revelaram o infinitamente grande, de Galileu a Einstein, e o infinitamente pequeno, da Física Quântica à Biologia Molecular. É significativo demais que o rastreamento dessas duas dimensões do real não tenha revelado uma só substância imutável. Que ele tenha, pois, revelado de certo modo, a agulha de Deus no palheiro da experiência.
Das dúvidas que a humanidade cultivou e que a Filosofia ajudou a ressaltar e a apresentar, esta é, sem dúvida, a maior. Tão grande é o tema da existência de Deus que, se o argumento de Leibniz continuar a ser afiado na pedra fria dos fatos, talvez venha a ser possível afirmar, um dia, que a Metafísica existe para mostrar-nos Deus. Por ora, porém, a questão permanece envolta na névoa do grande Himalaia que o sherma filosófico ajuda a escalar.

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Livre Exame de Romanos (15): O Espírito Humano

A parábola dos dois casamentos é a chave para a compreensão dos capítulos 7 e 8. Ela mostra, alegoricamente, que o ser humano é semelhante à mulher e que a experiência de crer em Cristo é comparável a uma união matrimonial. Paulo já havia afirmado isso, em 1ª aos Coríntios 6:16-17: “Não sabeis que o que se une à prostituta forma um só corpo com ela? Porque, como se diz, serão os dois uma só carne. Mas aquele que se une ao Senhor é um espírito com ele”. Embora apareça em Coríntios e outras passagens, a união assim enunciada só é totalmente explicada em Romanos.
A parábola de 7:2-4 mostra-nos que a união do crente com Cristo não é um casamento comum, mas um segundo casamento. Em tese, por se tratar de um segundo matrimônio, Paulo poderia colocar um divórcio antes dele, mas opta por colocar a experiência da morte. Afirma que o segundo casamento da mulher é precedido da morte do primeiro marido, o que faz com que a união com Cristo seja impossível sem uma experiência de morte e ressurreição.
Isso não é novidade absoluta, pois, no capítulo 6, o apóstolo já havia afirmado que “os que fomos batizados em Cristo Jesus, fomos batizados na sua morte [...] sepultados com ele na morte pelo batismo; para que, como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai, assim também andemos nós em novidade de vida” (6:3-4). Resta, porém, estabelecer com clareza o que deve morrer para que o homem se una a Cristo. Essa não é uma questão simples, à luz da História da Igreja, uma vez que diferentes pregadores e mestres sugeriram coisas bem diversas sobre o tema.
Vários desses mestres notaram que a Bíblia está repleta de imagens e símbolos. O Cântico dos Cânticos, por exemplo, é um livro inteiramente constituído por esses elementos. Não é diferente em Romanos 7. Nesse capítulo, o primeiro marido é um símbolo de algo negativo para o qual temos de morrer, a fim de nos unirmos a Cristo, o segundo marido.
Vimos, na postagem anterior, que a mulher da parábola é a mente humana, pois, assim como a mulher é dominada pelo primeiro marido, enquanto ele vive, o apóstolo afirma que a mente é subjugada pelo pecado na carne: “Vejo nos meus membros outra lei que, guerreando contra a lei da minha mente, me faz prisioneiro da lei do pecado” (7:23). De maneira que eu, de mim mesmo, com a mente sou escravo da lei de Deus, mas, segundo a carne da lei do pecado” (7:25).
Isso nos mostra que o que deve morrer (o primeiro marido) não é o corpo, nem as suas sensações, nem a mente ou os pensamentos dela, mas as paixões carnais do ser humano. Esse é um primeiro ponto fundamental, que Romanos, mais que qualquer outro livro bíblico, nos ensina.
Há, porém, outro ponto, que também é esclarecido de modo incomparável em Romanos. Refiro-me ao modo como a morte das paixões se dá. Já se observou, com razão, que, em Romanos, o espírito humano tem lugar bastante proeminente. No capítulo 1, Paulo afirma servir a Deus no seu espírito (1:9). No capítulo 7, esse serviço a Deus “em novidade de espírito e não na caducidade da letra” (7:6) é reafirmado. E, no capítulo 8, versículo 10, o apóstolo completa: “Se Cristo está em vós, o corpo, na verdade, está morto, por causa do pecado, mas o espírito é vida por causa da justiça”.
A esses versículos poderíamos acrescentar ainda o que afirma que “o Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus” (8:16). Esses quatro versos dão-nos uma revelação, pois esclarecem, um tanto completamente, a função do espírito humano. Nenhum outro livro bíblico fornece esclarecimento maior ou mesmo comparável ao desses quatro versos, no tocante à função do espírito.
Não que os quatro versículos valham mais do que outros da Bíblia. Mas devemos lembrar que Romanos é o único tratado bíblico escrito com o objetivo de interpretar exaustivamente o evangelho de Cristo. Portanto, o que ele afirma, afirma com intenção de definir. Isso se aplica, de modo especial, ao ensino a respeito do espírito humano, que em Romanos 7 e 8 assume coloração particularmente nítida.
Em O homem espiritual, Watchman Nee explicou, detidamente, o que, em Teologia, se costuma denominar tricotomia, isto é, a existência do espírito, da alma e do corpo no homem. Ao fazê-lo, Nee desenvolveu uma doutrina das partes do homem. De fato, para ele, o espírito, a alma e o corpo são partes do ser humano, como se depreende das seguintes passagens da sua obra:
“O resultado de nossos achados, tanto no estudo da Palavra como na experiência, diz-nos que, com cada experiência espiritual (por exemplo, o novo nascimento), realiza-se uma mudança especial em nosso homem interior. Chegamos à conclusão de que a Bíblia divide o homem em três partes: o espírito, a alma e o corpo” (NEE, Watchman. O homem espiritual. São Paulo: Betânia. Primeiro Prólogo. p. 6).
“É por meio do corpo que o homem entra em contato com o mundo material. Daí podemos qualificar o corpo como a parte que nos faz conscientes do mundo. A alma é formada pelo intelecto, que nos ajuda no presente estado de existência, e as emoções, que procedem dos sentidos. Posto que a alma pertence ao próprio eu do homem e revela sua personalidade, é chamada a parte que tem autoconsciência de si mesma. O espírito é a parte mediante a qual nos comunicamos com Deus, e só por ela podemos perceber e adorar a Deus” (idem. p. 20).
Ao chamar o espírito, a alma e o corpo partes do homem, Nee apenas reflete o que estava posto no embate das correntes que defendem que o homem é composto de corpo e alma (dicotomia) e de corpo, alma e espírito (tricotomia). Os próprios termos dicotomia e tricotomia contêm o radical tomo, que significa parte. Portanto, a discussão que se propôs, há muito tempo, por meio deles, nunca foi se o homem tem partes, mas se tem duas ou três.
Infelizmente, quando posto dessa maneira, o problema da dicotomia e da tricotomia se torna não só insolúvel como induz a outros equívocos. Por exemplo, o de que a alma e o espírito também têm partes, o que Nee ensinou ao escrever:
“Segundo os ensinamentos da Bíblia e a experiência dos crentes, pode-se dizer que o espírito humano compreende três partes. Ou, expresso de outro modo, se pode dizer que tem três funções principais. Estas são a consciência, a intuição e a comunhão” (idem. p. 25).
“Neste breve estudo bíblico se torna evidente que a alma do homem possui a parte conhecida como vontade, a parte conhecida como mente ou intelecto e a parte conhecida como emoção” (idem. p. 35).
“As partes proeminentes da alma são a mente, a vontade e a emoção do homem. A vontade é o órgão da decisão e em consequência o dono do homem. A mente é o órgão do pensamento, enquanto que a emoção é o do afeto” (idem. p. 44).
Essas divisões do ser humano em partes tendem a inculcar a ideia de que cada parte exclui a outra. Como a mente, por exemplo, se localiza na alma, não pode estar no espírito. Disso se conclui que, se o espírito tem a importância que Paulo lhe atribui, em Romanos, o mesmo não se pode dizer da mente.
Mas não é isso que Paulo ensina. Para ele, o espírito é, sim, o ponto de partida da salvação de Deus, mas de modo nenhum exclui a mente. O espírito não é uma não-mente. Se a mulher da parábola de 7:2-4 representa a mente e serve a Deus “em novidade de espírito” (6:7), o espírito não pode excluir a mente.
Só aparentemente, o espírito tem natureza não mental. Em 1ª aos Coríntios 14:14-15, Paulo afirmou: “Se eu orar em outra língua, o meu espírito ora de fato, mas a minha mente fica infrutífera. Que farei, pois? Orarei com o espírito, mas também orarei com a mente; cantarei com o espírito, mas também cantarei com a mente” (1 Co 14:14-15).
Aparentemente, nesses versículos, a mente não é o espírito, e o espírito não é a mente. Mas, se olharmos com atenção, perceberemos que os dois não são tão estanques. A mente que fica infrutífera é a do homem que ora sem compreender o que diz, por falta de quem o interprete. Paulo atribui a oração assim realizada ao espírito e não à mente. Porém, o não envolvimento da mente não implica que, se a oração for feita na língua comum, o espírito não orará. A oração numa língua estranha não ser compreendida pela mente não implica que a oração na língua comum não será compreendida pelo espírito. Romanos sugere, ao contrário, que o espírito e a mente oram, quando o homem se dirige a Deus com palavras inteligíveis. Por isso diz: "Orarei com o espírito, mas também orarei com a mente; cantarei com o espírito, mas também cantarei com a mente" (1 Co 14:15).
O espírito não é feito de não-pensamento, pois nada há, no homem interior, que não seja algum tipo de pensamento. Por isso Paulo nos diz que o espírito do homem “conhece as coisas do homem” assim como o Espírito de Deus conhece as de Deus (1 Co 2:11). Não há conhecer sem pensar. Portanto, o saber do espírito humano é um pensar.
Só não é um pensar consciente, um pensar comandado pela faculdade da atenção. Assim como o coração bate, independentemente da nossa atenção, o espírito pensa e conhece, independentemente de nos darmos conta. Não é preciso mais para indicar que o que, nas epístolas paulinas, se denomina “espírito da mente” (Ef 4:23), em Psicanálise, é o inconsciente individual.
O espírito humano é o homem dobrado sobre si mesmo, voltado para dentro de si, para as suas profundezas. É o homem enquanto não tem e não usa qualquer conhecimento advindo do mundo externo, o homem mergulhado no universo da sua memória e que só se relaciona com o que encontra ali.
Paulo diz que esse espírito é o próprio homem, não parte dele. Pergunta: “Qual dos homens sabe as coisas do homem?” E responde: “senão o seu próprio espírito que nele está?” (1 Co 2:11). Portanto, o espírito não é parte do homem, mas o homem todo, pois a sua memória é tudo o que ele jamais viveu.
Paulo acrescenta: “Assim também as coisas de Deus ninguém as conhece, senão o Espírito de Deus” (1 Co 2:11). Nesse versículo, as palavras “assim também” estabelecem claro paralelo entre o espírito do homem e o de Deus. Do modo como o espírito humano conhece as coisas do homem, o Espírito de Deus conhece as de Deus. Como as conhece? Se estabelecemos que o espírito do homem conhece pela lembrança, devemos concluir que o Espírito de Deus conhece da mesma maneira.
Deus é infinitamente sábio. Essa sabedoria, enquanto relacionada à criação e ao mundo material, é o Logos (Cristo); enquanto relacionada à mente de Deus ou de Cristo (1 Co 2:16), é o Espírito. Tudo isso é conhecimento. Nada é isento de conhecimento.
Nada há de errado com o ensinamento de que o espírito humano é a cabeça de ponte da salvação de Deus. Ele o é, pois a salvação começa nele. Por isso, quando declara que “os que se inclinam para a carne cogitam das coisas da carne, e os que se inclinam para o espírito, das coisas do espírito” (8:6), Paulo toca o grande mistério. Dá-nos, ao mesmo tempo, a aplicação prática de tudo o que ministrou antes.
A aplicação da salvação de Deus envolve o espírito humano, porque Deus ali habita. Quem se une a uma prostituta se torna uma só carne com ela, mas “aquele que se une ao Senhor é um espírito com ele” (1 Co 6:17). “O Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus” (8:16). Esses versos confirmam que o espírito é o posto avançado, a cabeça de ponte da salvação, porque algo diferenciado acontece nele. Não algo diferenciado por não envolver a mente ou a razão, mas ao contrário por envolver um novo tipo de pensar, que Paulo denomina cogitar das coisas do Espírito: “Porque os que se inclinam para a carne cogitam das coisas da carne; mas os que se inclinam para o Espírito, das coisas do Espírito” (8:6).
O segredo do espírito não é o não pensar, o pensar menos ou o pouco pensar. É, antes, o novo pensar e o pensar o radicalmente novo.

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

O Romance da Filosofia - artigos reunidos (2)

O Platonismo na Idade Média

É comum se afirmar que, na primeira parte da Idade Média, a Filosofia foi dominada pelo pensamento de Platão. O que nem sempre se explicita são as vertentes em que o platonismo medieval se dividiu, o conteúdo específico delas e em que medida elas refletiram as concepções originais de Platão.
As principais vertentes filosóficas da Alta Idade Média foram o platonismo patrístico, inspirado em Orígenes e Santo Agostinho, e o neoplatonismo cristão, baseado no Pseudo-Dionísio Areopagita. Embora tenham vigorado até a Idade Média, essas correntes desenvolveram-se ainda na Antiguidade. A primeira, entre os séculos II e V; a outra, no quarto e no quinto séculos. O principal representante medieval da primeira corrente foi Anselmo de Aosta, que viveu no século XI. Os nomes mais destacados da última foram Escoto Erígena (século IX) e Mestre Eckhart (século XIV).
Embora fossem platônicas, essas escolas diferenciavam-se pelo modo de conceber as ideias e pela espécie de realidade que lhes reconheciam. O platonismo patrístico atribuía às ideias o caráter de pensamentos de Deus. Calcava-se, pois, na opinião de Orígenes, Santo Agostinho e outros filósofos dos primeiros séculos. A segunda corrente, por sua vez, sem se apartar daquela afirmação, acrescentava-lhe colorações provenientes da filosofia de Plotino e seus seguidores, que afirmaram as múltiplas emanações do Uno (Deus). Para esses últimos pensadores, as ideias como pensamentos divinos eram uma e somente uma das numerosas dimensões suprassensíveis em que o Universo se divide.
De fato, desde o início, o neoplatonismo primou pela descrição do processo, pelo qual Deus se difunde no Universo, dando origem à multidão de seres que o compõem. Essa processão a partir do Uno equivale a um relançamento do mundo das ideias de Platão em esferas que se abrem e desenvolvem até o nível do Uni-verso físico.
Por metáforas como a da luz, que se apaga quanto mais se difunde, o Uno é apresentado por Plotino como uma hipóstase (substância), que gera um primeiro círculo (sua segunda hipóstase), o Nous ou Espírito. Ao se difundir um pouco mais, o primeiro círculo gera um segundo, constituído pela terceira hipóstase, a Psique ou Alma. Mas, assim como a luz se apaga ao atingir determinada distância da fonte emis-sora, após o segundo círculo, a processão começa a decair qualitativamente. Surge o terceiro círculo, constituído pela matéria. E, se de um círculo mais elevado é possível chegar a outro mais baixo, também é possível trilhar o caminho contrário. É possível retornar da condição inferior da matéria às esferas inteligíveis da Alma, do Espírito e, por fim, ao Uno.
No século V, sob o pseudônimo de Dionísio, o Areopagita, um autor neoplatônico cristianizou essa concepção de Plotino. E o fez de modo tão fascinante que a influência do livro que nos legou, no mundo de língua grega e, mais tarde, no ocidental, tornou-se de-terminante, por toda a Idade Média.
Para o Areopagita (assim como para Plotino), Deus é totalmente transcendente. Transcende tanto o mundo sensível quanto o inteligível. Por isso, “não temos de Deus um conhecimento fundado sobre sua natureza própria (porque esta é incognoscível e ultrapassa toda razão e toda inteligência)” (AREOPAGITA, Pseudo-Dionísio. Obra completa. São Paulo: Paulus, 2004. p. 94). O conhecimento possível de Deus se dá “a partir desta ordem [do mundo material e dos inteligíveis] que descobrimos em todos os seres, uma vez que esta ordem foi instituída por Deus e contém imagens e similitudes dos modelos divinos” (idem).
Pelo conhecimento das essências criadas, podemos remontar ao Criador, que as originou “por um transbordar de sua própria essência” (idem. p. 85), segundo modelos ou “razões produtoras de essências, que preexistem sinteticamente em Deus e que a teologia chama de predefinições ou, ainda, de decretos” (idem).
Deus é, assim, a Causa universal de todas as coisas, “o princípio dos seres; é dele que procedem o próprio ser e tudo o que existe sob qualquer modo que seja [...] Dessa Causa universal procedem também as essências inteligíveis e inteligentes dos anjos que vivem em conformidade com Deus, as das alma, todas as naturezas do universo inteiro, sem dela excluir tudo o que se chama de acidentes ou seres de razão” (idem. p. 82).
As razões produtoras não se confundem com as essências produzidas. A Pequenez é uma razão produtora. Dionísio diz dela: “Jamais encontrarás nada que não participe da ideia do pequeno. É por isso que convém atribuir a Deus a Pequenez porque ele está pre-sente de maneira imediata em toda parte [...] Esta mesma Pequenez é supraessencialmente eterna, impassível: ela permanece em si e se comporta sempre de maneira idêntica” (idem. pp. 105-106). Permanecer em si significa possuir existência própria.
Além da Pequenez, são razões produtoras “a Essencialidade em si, a Vitalidade em si, a Deificação em si”. E “é participando destas potências que cada ser, segundo sua natureza própria, recebe [...] existência, vida, deificação etc.” (idem. p. 120). Note-se que, em Dionísio, a Vitalidade em si corresponde ao dom da vida, a Deificação em si, ao dom da deificação, e a Essencialidade em si, à existência. Isso mostra que, pa-ra ele, a essência é o princípio da existência. Ser uma essência é já existir. Por isso, ao longo de todo o seu livro, Dionísio denomina essências os seres sensíveis e inteligíveis que existem. Para ele, a essência ou conteúdo da ideia é objetivamente existente.
Vê-se quão longe estamos da simples concepção das ideias como pensamentos de Deus, que caracteriza a outra escola. Sem deixarem de ser pensamentos do Uno, para o Areopagita, as ideias são também realidades autônomas. Sob essa condição, é que elas produzem as essências criadas. Só algo real pode produzir outra coisa real. E na medida em que são reais, as ideias não são simples planos ou modelos das coisas na mente de Deus. Este “possui por antecipação a noção, o conhecimento e a essência de todas as coisas” (idem. p. 93). Porém, quando diz “noção” e “conhecimento”, nosso autor se refere a pensamentos, ao passo que, ao acrescentar “a essência de todas as coisas”, ele indica algo real e autônomo em Deus, a saber: as ideias produtoras de essências.
Se já são reais e autônomas em Deus, ao se projetarem fora dele e formarem o primeiro círculo da processão [o Espírito ou Nous], as ideias passam a existir de maneira ainda mais autônoma. Por isso, o Espírito é a “totalidade das coisas”: o mesmo que Platão denomina mundo das ideias.
Escoto Erígena foi o principal expositor da dou-trina do Pseudo-Dionísio, na Idade Média. De tal forma aderiu a ela que pouco a modificou. Acrescentou, porém, novos aspectos à processão a partir do Uno. Por exemplo, afirmou que os modelos existentes em Deus são transformados em causas eficientes (agentes) da criação das coisas, pela ação do Espírito Santo. Desse modo, Erígena cristianizou ainda mais Plotino.
Numa época em que o grego era praticamente desconhecido no Ocidente, Erígena traduziu a obra de Dionísio para o latim e expôs amplamente o seu conteúdo, assim como o de outras obras patrísticas. Com isso, o peso e a amplitude do seu pensamento somaram-se aos de Dionísio para consolidar o neoplatonismo cristão como uma das principais correntes filosóficas da Idade Média. Corrente tão bem-sucedida que teve representantes notáveis por longo tempo, assim como Mestre Eckhart no século XIV.
O caráter bifronte da Filosofia, nesse período, ajuda a explicar a gênese e a importância assumida pelo debate dos universais, que se iniciou no século IX e se intensificou a partir do XI. Sabemos que o debate teve por foco a natureza mental ou extramental das ideias denominadas universais. Duas correntes de opinião se formaram a respeito do tema: a primeira foi o realismo inicialmente defendido por Guilherme de Champeaux; a outra foi o nominalismo, que teve em Roscelin de Compiègne seu primeiro representante célebre. Para a escola realista, os universais têm existência objetiva. Portanto, são res ou coisa. Para a outra escola, são simples nomes ou vocis (voz).
O debate dos universais foi preparado pela formação das escolas neoplatônica e patrística. A primeira foi precursora da concepção segundo a qual os universais possuem existência real. Dionísio, por exemplo, afirmou claramente a existência de “seres de razão”, ou seja, de ideias que não correspondem a qualquer objeto material conhecido. Não é possível afirmação mais clara da posição realista sobre os universais.
Por sua vez, ao confinarem as ideias na mente de Deus, os platônicos patrísticos tornaram-nas subjetivas. Essa posição preparou o caminho para o nominalismo, que levou a afirmação daqueles autores às últimas consequências. Nem a inerência das razões seminais nas coisas, afirmada pela escola patrística, modificou a situação, pois, embora correspondessem às formas dos objetos, aquelas sementes estavam localiza-das no interior da matéria, portanto desligadas do inteligível. A gênese estoica das razões seminais mostra que, desde o início, o significado delas foi o de virtualidades da matéria, não o de algo inteligível no interior do real. Portanto, o platonismo patrístico pavimentou o caminho para o nominalismo posterior.
Essa preparação fica ainda mais cristalina em Orígenes, que se referiu ao que haveria de tornar-se o objeto nuclear da querela dos universais como “questão profunda e misteriosa da natureza dos nomes” (ALEXANDRIA, Orígenes de. Contra Celso. São Paulo: Paulus, 2004, p. 62). E, ao expor em seguida as posições das escolas sobre o tema, continuou a tratar os universais como nomes, embora os integrantes das escolas, em geral, os entendessem diferentemente.
Ouçamos o nosso filósofo: “Serão [os nomes] acaso convencionais, como acredita Aristóteles? Ou, conforme a opinião dos estoicos, são tirados da natureza, em que os primeiros vocábulos imitam os objetos que estão na origem dos nomes [...] Ou então, conforme a doutrina de Epicuro, divergindo da opinião do Pórtico, os nomes existem naturalmente, e os primeiros homens emitem vocábulos adequados às coisas?” (idem. pp. 62-63).
Que Orígenes afirma serem convencionais, na opinião de Aristóteles? Os nomes. Que declara serem tirados da natureza, para os estoicos? Também os nomes. E que existe na natureza, segundo Epicuro? Nova-mente os nomes. Portanto, a despeito da opinião de outros a respeito deles, Orígenes denomina os universais sempre nomes.
A posição patrística, que distingue o universal até dos aspectos que lhes são mais semelhantes no mundo físico, é afirmada também por Gregório de Nissa, segundo o qual “nada daquilo que se vê nos corpos é de per si um corpo: não é a forma, nem a cor, nem o peso, nem a extensão, nem a quantidade, nem tampouco aquilo que se pode pensar pertencente às várias qualidades; ao contrário, cada uma dessas coisas é um conceito (logos)” (NISSA, Gregório de. A alma e a ressurreição. São Paulo: Paulus, 2011. p. 254). Fica claro, por essa afirmação, que para Gregório os conceitos eram inerentes aos corpos, o que se aproxima bastante da posição mais tarde identificada como realismo moderado.
Esse ponto de vista não se confunde com o de Aristóteles, para quem, embora fossem também nomes, os universais tinham existência própria como formas que, como tais, passavam das coisas à mente. Boécio parece prestigiar a posição de Aristóteles na seguinte passagem: “É pela aquisição da justiça [preexistente] que as pessoas ficam justas, e pela aquisição da sabedoria [também preexistente], sábias” (BOÉCIO. A consolação da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2012. p. 79).
A posição de Boécio e a sua diferença em re-lação à patrística torna-se ainda mais explícita, na seguinte passagem: “Tudo o que é tido por imperfeito o é por uma degradação da perfeição. Segue-se que se, em qualquer campo que seja, algo parece imperfeito, é porque existe também nesse campo algo que seja per-feito [a agilidade e a beleza supremas]” (idem.p. 76). Por ter assumido essa posição, Boécio se tornou o elo entre Aristóteles e os representantes medievais do realismo moderado, como Abelardo e Tomás de Aquino. Porém, a sua posição nunca coincidiu da dos autores patrísticos.
À luz das intensas discussões que se travaram sobre os universais, não é possível deixar de atribuir o devido destaque às posições de Orígenes, Gregório e Agostinho, na questão dos universais. Quanto já se exaltou a importância do nominalismo e de Ockham para a emancipação do pensamento humano de vícios inveterados! No entanto, os filósofos patrísticos não só prepararam o terreno para o nominalismo como desenvolveram uma posição superior à dele, na questão dos universais.
É verdade que Agostinho referiu-se a Deus como sumo bem, perfeito amor etc. Com isso, indicou que a semelhança das ideias a Deus é ainda maior que às coisas. É verdade que o Areopagita não se cansou de ensinar que Deus é infinitamente mais do que as ideias. Porém, Agostinho não chegou a esse ponto. Ele se limitou a descrever Deus como a realização mais per-feita das ideias. Vale dizer: como cada uma das ideias elevada ao mais alto grau.
Ao afirmarmos que Deus é amor, não declaramos algo semelhante à frase “Pedro é homem”. A primeira proposição diz algo sobre o modo como Deus se relaciona com outros seres, isto é, que Deus se relaciona com eles com amor. A segunda frase nos diz o que Pedro é, não o que faz, pois conhecemos a sua essência, não a de Deus. Por isso, quando afirmarmos o que Pedro é, referimo-nos à sua essência ou qualidades. Mas, quando dizemos o que Deus é, queremos mais comumente indicar o que faz, não o que é.
Há nisso uma substantificação do amor? Tanto quanto há, ao afirmarmos que Pedro está na sua casa. Ele pode estar ou não estar em casa. A afirmativa abre-se à verificação. Nem por isso, há nela substantificação. O vício da substantificação corresponde à atribuição de substancialidade (a algo ou alguém), cujo equívoco é evidente a priori, isto é, antes de toda verificação. O que só pode ser considerado verdadeiro ou falso, após a verificação, não é vício lógico. É hipótese.
Pode-se indagar se o platonismo medieval não foi todo de uma só espécie. A pergunta não é difícil de responder. A afirmação da existência de seres de razão, para nos atermos a esse exemplo, é impensável em Agostinho, pois leva a uma transmutação no conceito de Deus. Se há seres de razão, a cada ideia corresponde algo real e abstrato. A soma desses objetos (o mundo das ideias, que Plotino chamou Espírito ou Nous) é maior do que o Deus cristão, que é uma pessoa, por-tanto um ser entre outros. É difícil acreditar que, concebendo Deus como pessoal, Orígenes e Agostinho pu-dessem concordar com essa consequência.
Com que perseverança os filósofos de múltiplos séculos desenvolveram a Metafísica como alternativa ao materialismo arraigado na paideia grega! Apesar de todos os retornos do modo de pensar materialista, a Metafísica ganhou sempre novas expressões, na Idade Média. Mas ela também enfrentou dificuldades demasiadas para realizar o que se pode denominar verdadeiras descobertas nessa direção. E teve facilidade demasiada para se desequilibrar em direção ao fantástico.
Mesmo assim, ao olharmos os desenvolvimentos da Filosofia mencionados neste livro, não parece sensato considerar que uma insistência tão grande quanto a dos filósofos em pensar metafisicamente seja infundada. Por que dois platonismos na Idade Média? Por que não um materialismo entre eles? Se o mate-rialismo antigo, segundo o qual tudo é matéria ou está ligado a ela, foi tão natural, por que o esforço filosófico de superá-lo? Não é tal esforço estarrecedor? Por que ele foi levado tão longe? A resposta a essas perguntas revela algo sobre o conteúdo heurístico da Metafísica. Ao desenvolverem esse ramo da Filosofia, os pensadores da Idade Média tinham o íntimo convencimento de realizar uma descoberta ou, pelo menos, de desbravar uma região desconhecida do real. Somente por isso levaram tão longe o seu empreendimento.
Porém, apesar de toda a sua busca metafísica, muitos pensadores medievais contribuíram para a disseminação desordenada do erro da substantificação. As doutrinas neoplatônicas, em particular, seduziram as mentes, com sua promessa de revelar mais de Deus do que de fato é possível conhecer por essa via. Nisso, elas se assemelham à tentação da serpente, que ao primeiro casal sugeriu conhecerem o bem e o mal por meio do fruto proibido. Que é conhecer o bem, senão conhecer Deus?
Que é conhecer a processão de todas as coisas a partir do Bem, senão conhecer o próprio Bem? Que é descobrir que Deus gera o Espírito, e este, a Alma, a não ser entender, pelo poder inerente à razão, um pro-cesso semelhante àquele pelo qual o Pai gerou o Filho na eternidade? Que é descobrir que a Alma engendrou a matéria, a não ser penetrar num inacessível mistério? E a doutrina de que tudo retornará ao Uno: não supõe que a mente é capaz de descobrir, por antecipação, o que ocorrerá após todos os séculos?
O neoplatonismo é a perda de toda medida sobre o que é dado à razão descobrir por si mesma. É a conversão da razão humana em razão divina, a fabricação da pior espécie de ídolo: o ídolo humano. E o neoplatonismo cristão não é mais que a afirmação de que Jesus veio à Terra ordenar que nos prostrássemos ante esse ídolo.

A Reviravolta Árabe

Se, no mundo cristão, o desaparecimento dos textos de Aristóteles levou ao ocaso do pensamento mais técnico e demonstrativo que jamais existira, nos povos muçulmanos, onde eles foram preservados, não ocorreu o mesmo. Étienne Gilson atesta que, enquanto o Ocidente se consumia na reflexão sobre “documentos incompletos”, os árabes se debruçavam sobre “toda a filosofia já dada” (GILSON, Étienne. A Filosofia na Idade Média. 2ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 462-463).
Claro que uma condição tão crucial para o progresso filosófico produziu resultados decisivos para a História do Pensamento, no mundo muçulmano. O principal desses resultados foi o desenvolvimento maior da Filosofia nos povos árabes do que na Europa cristã, entre os séculos X e XII. Ainda que nos limitemos aos maiores expoentes da Filosofia Árabe desse período, o conjunto das obras deixadas por eles parecerá superior à produção filosófica da Europa.
Esse fato foi reconhecido pelos filósofos cristãos do fim do século XII e do século XIII, na medida em que não vacilaram em seguir o caminho trilhado pelos seus pares muçulmanos, isto é, em traduzir para o latim as obras de Aristóteles que estavam perdidas e em se debruçar não só sobre elas, mas também sobre os textos dos pensadores árabes. Essa nova prática preparou a revolução do pensamento filosófico europeu observada, a partir do século XIII, com todos os desdobramentos que teve, como o Renascimento e a Reforma.
Os principais centros dessa renovação dos estu-dos filosóficos foram Paris e Oxford. Ali se formaram as tendências responsáveis pela regeneração do pensa-mento europeu, nos séculos seguintes. Ali se recolheu e concentrou a influência árabe e se definiu o método escolar, pelo qual a renovação se processou. Mas não são esses os pontos que mais interessam, na narrativa sobre o hábito de substantificação de ideias, que empreendemos. Mais do que definir os centros do pensamento filosófico nos séculos X a XIII, interessa-nos considerar as razões da renovação espiritual verificada nessa época e que não foram, primeiramente, de ordem geo-gráfica, mas relacionadas ao conteúdo do pensamento então produzido.
Tão vasta foi a reflexão dos filósofos árabes sobre os livros de Aristóteles que haviam permanecido desconhecidas do Ocidente que é difícil determinar os pontos em que o seu pensamento mais se intensificou e adensou. Mas é importante destacar, ao menos, os tópicos que foram decisivos para aprofundar ou livrar a Filosofia do vício da substantificação das ideias. Sob esse prisma específico, merecem destaque as reflexões de Alfarabi, Avicena e Averrois sobre o Intelecto agente, o Intelecto possível e os universais, assim como as ideias deles e do judeu Maimônides a respeito do ser enquanto ser.
Comum a quase todos os filósofos árabes desse período foi a pretensão fundamental de produzir uma síntese dos sistemas de Platão e Aristóteles. Como já se passara, no Ocidente, alguns séculos antes, por muito tempo, predominaram, nas sínteses árabes, as cores da filosofia de Platão. Porém, à diferença do que se passou na Europa até o encontro de águas com o pensamento proveniente do Oriente Médio, a partir de Averrois, o ideal de síntese foi abandonado em favo do pensamento de Aristóteles.
Essa a grande mudança ocorrida, na Filosofia, no período situado entre o fim do século XII e o fim do XIV. Ela se fez sentir como um adensamento, a princípio titubeante, das preocupações com o ser. Porém, conforme os sistemas mais consistentes se impunham, os progressos reflexivos se generalizaram, e o pensa-mento se alçou a um patamar nunca antes alcançado, na História da Filosofia.
No quadro das posições filosóficas que procuramos seguir no capítulo anterior, os filósofos de orientação patrística tendiam a conceber o ser como realidade análoga, ao passo que os pensadores marcados pelo neoplatonismo, como Dionísio, Erígena e Mestre Eckhart, o consideravam unívoco ou, pelo menos, redutível a um nível fundamental. Com o tempo, apesar da divergência em relação a Santo Agostinho, essa posição se tornou muito influente, no mundo cristão.
De Parmênides a Hegel, passando por Erígena, os adeptos da univocidade do ser sempre o consideraram necessário. Ora, cada parte de um ser necessário e unívoco deve ser, ela própria, também necessária. Porém, não devemos aos gregos ou à Europa cristão e sim a Avicena (nascido em 980) a mais consistente formulação desse ponto de vista, na História do Pensamento.
Avicena partiu da constatação de que o ser acompanha todas as nossas representações, mas nem por isso é uma realidade simples. Há ser necessário e possível. O possível se manifesta como possível puro, enquanto sua causa não está posta, ou possível por essência, que é no fundo necessário, pois sua causa existe e o produz infalivelmente (idem. p. 435).
O fato de o necessário e o possível existirem não cria uma clivagem no ser, já que o último tem todos os elementos para se tornar, ele próprio, necessário, se tão-somente lhe for dada uma causa que o exija. Para Avicena, esse procedimento ocorreu muitas vezes, na História do Universo. O próprio Universo veio a existir por ele. Deus é o Primeiro de todos os seres. Como Primeiro, ele é simples, necessário e uno, do que se segue a univocidade fundamental do ser. Porém, o ser uno e Primeiro, ao conhecer-se a si mesmo, produz o que Avicena chama o Primeiro Causado. Essa geração não se dá por causalidade física, mas inteligível, uma vez que, no nível mais elevado do real, a matéria ainda não existe. Por isso, tanto o Primeiro como o Primeiro Causado são Inteligências.
O processo de produção (poderíamos também chamá-lo geração ou emanação) do Primeiro Causado repete-se vezes sem fim no Universo. O que mostra que o Primeiro Causado é o primeiro de uma série entre outras. Cada um desses Primeiros Causados produz ou-tros seres Causados que, por sua vez, geram outros. Até que se chega ao que Avicena chama última Inteligência separada, que encerra as emanações, por não possuir mais a força necessária para gerar outras Inteligências (idem. p. 437).
Desse ponto em diante, surgem, no mundo, as almas, que são mistos de Inteligência e matéria. Surgem também os corpos. O Universo povoa-se de seres de várias ordens, cada qual contingente em si mesmo, mas necessário na conexão que mantém com sua causa.
Essa vertiginosa cosmogonia é, ao mesmo tempo, cosmologia, já que faculta uma visão completa do mundo físico. Por ela se chega a uma fundamentação do Universo e, o que é ainda mais impressionante, a uma fundamentação que mantém intocado o princípio de que o real é uno e necessário, pois posto por um ser que se pensa necessariamente e, ao pensar-se, produz outros seres que dão continuidade à criação e ao povoamento do cosmos, com base na mesma necessidade inteligível.
Contra essa fundamentação do ser ou certos aspectos dela, ergueu-se Averrois (nascido em 1126). Sua posição se tornou notória, pois, pela vez primeira, na História, um pensador de grandeza inconteste deixou o arraial platônico, sem que isso significasse deixar também Aristóteles. Aliás, foi para abraçar exclusivamente o aristotelismo que Averrois renunciou a Platão.
A solução de Averrois ao problema do ser constitui um dos mais importantes cortes já verificados, na História da Filosofia, pois depois dele não só o ser passará a ser entendido de modo distinto como uma nova série de provas da existência de Deus virá à luz, a partir da novel concepção metafísica. Não que a com-preensão do ser de Averrois fosse nova, pois era a filosofia aristotélica reafirmada. Mas consequências novas foram extraídas dela, senão pelo próprio Averrois, por Maimônides e Tomás de Aquino.
Pela divisão do ser em necessário e possível, Avicena já mostrara que, se houvesse apenas possíveis, nada existiria. De sorte que, se existem possíveis (do que não podemos duvidar), tem de existir um ser necessário como sua causa. Esse ser é Deus (idem. p. 435). Averrois concorda com essa conclusão de Avicena, mas se decide a fundá-la não num sistema monista ou univoco e sim numa concepção análoga do ser.
Para Averrois, “o ser se diz em dois sentidos: o verdadeiro e o oposto ao nada. Este último se divide em dez categorias das quais é o gênero, e é anterior aos seres entendidos no outro sentido. O ser entendido como verdadeiro é uma intenção mental que expressa que a ideia existente na mente é tal como existe fora dela. Quanto à essência [das coisas], não é uma essência real em sentido próprio, mas a expressão do sentido do no-me” (AVERROIS. In HERNANDEZ, M. Cruz. Averrois: vida, obra, pensamento, influencia. Córdoba: Monte de Piedad y Caha de Ahorros de Córdoba, 1986. p. 103).
Quantas lições estão implícitas nessa declaração! Ser é o que está fora do nada: isso seria óbvio, se não implicasse que o oposto do nada não é verdadeiro, pois “o ser se diz em dois sentidos: o verdadeiro e o oposto ao nada”. A classificação do ser de Averrois desafia a Metafísica clássica, ao postular o verdadeiro como algo determinado, não como o oposto do nada, não como tudo.
O verdadeiro é a essência invariável nos indivíduos de um grupo. Como ser, esse quid é também real. Não real em sentido próprio, já que a essência é apenas um nome ou o sentido de um nome que atribuímos ao invariável. O nome não é o mesmo que a coisa que ele designa. Portanto, não é o invariável, mas a intenção com que nos referimos a ele.
Por outro lado, o ser como oposto do nada divide-se nas categorias aristotélicas. Não se pode predicar esse ser, univocamente ou da mesma maneira, de tudo o que é, pois ele se desdobra nas 10 categorias (GILSON, Étienne. Ob. cit. p. 445). Se é 10, não é um. Logo, o ser não é unívoco. Tampouco é equívoco, pois cada categoria é uma divisão do ser. Portanto, o ser é análogo.
Quão longe essa doutrina está da concepção de Parmênides! Quão longe da de Platão! Caberá a Tomás de Aquino retirar dela a lapidar consequência da existência de Deus, como o escultor tira a obra de arte do bloco de pedra. Se o ser é análogo, o necessário e o contingente devem existir, mas o que é por necessidade deve constituir o fundamento do possível. Deve haver igualmente o simples e o composto, porém o último se funda no primeiro, não o contrário.
Enfim, os caminhos ou provas da existência de Deus (Tomás aponta cinco, mas devem existir outros) nada mais são que reafirmações variadas de um mesmo dado. “Por mais diversos que sejam na aparência, esses caminhos em direção a Deus comunicam-se entre si por um elo secreto. Cada um deles parte, com efeito, da constatação de que, pelo menos sob um de seus aspectos, um determinado ser dado na realidade não contém a razão suficiente de sua própria existência” (idem. p. 660).
Essa falha, essa brecha na existência das coisas constitui o mais sólido fundamento para se postular a existência de Deus. Ela é um dado do real. Ao olharmos para ela, não vemos um fantasma. Vemos o que realmente é. A fratura metafísica, o defeito na superfície do ser que identificamos como o possível é real e fundamental, não uma ilusão causada pelo vício da substantificação.
Ainda que retiremos a concepção plurívoca do ser, que realça a existência da falha, ainda que em seu lugar instalemos de volta a concepção unívoca, a filosofia árabe mostra que o possível continua a existir e a demandar explicação. Nem um mundo unívoco pode reivindicar a homogeneidade. Também nele se verificam um enrugamento aqui, um ponto rarefeito ali, o que exige a postulação do possível.
A bifurcação entre o necessário e o possível é por demais fundamental para não a observarmos com o cuidado com que o geólogo investiga a falha tectônica. É o que basta para a falha na existência, a fratura metafísica, evidenciar-se. A falha pede uma explicação, que Avicena, Averrois e São Tomás identificaram com Deus. Porém, só à obra de Tomás a conclusão se engasta como o sol no firmamento do quarto dia.

Aquino Versus Ockham

A filosofia platônica foi a primeira aplicação sistemática do princípio de Parmênides que relaciona o pensamento ao ser. Talvez por isso, ao descobrirmos os defeitos que ela contém, somos tentados a atribuir a Platão e à Filosofia, em geral, a tendência a transformar pensamentos em coisas ou a substantificá-los.
O pensamento humano se permeou dessa espécie de substantificação. Que fazemos ao sonhar, a não ser acreditar que o que se apresenta no sonho é real? Dir-se-á que, ao acordarmos, deixamos de crer na realidade das coisas sonhadas. Porém,no passado, as pessoas criam nos sonhos, enquanto dormiam e acordadas. Elas acreditavam que a alma realmente via as imagens noturnas ou era avisada pelos deuses sobre elas. Por essa razão, os sonhos foram tantas vezes denominados visões ou designados por palavras com sentido semelhante.
A própria crença em “leis naturais”, numerosas ou raras, severas ou brandas, justas ou menos justas, também é imemorial. Quase sempre, elas foram conce-bidas como inscritas na ordem das coisas. Portanto, como anteriores ao homem, assim como a natureza lhe é anterior. Tal crença não é um exemplo menor da objetivação de ideias (de normas, no caso), que só existem na mente do homem.
Poderia multiplicar os exemplos desse hábito mental, nas mais diferentes áreas do pensamento, mas fatigaria o leitor. Só lembrarei que o efeito de certas drogas no cérebro, as alienações mentais, muitos trans-tornos psíquicos,as experiências fora do corpo (EFC’s), assim como a arte e a religião são profundamente mar-cados pelo hábito da substantificação, quando não se reduzem a ele. Aliás, a relação é tão estreita que somos impelidos a indagar se o hábito em questão não compõe a própria estrutura da alma humana.
No entanto, se a substantificação de ideias é tão difundida e universal, não pode ter sido inventada por Parmênides ou por Platão. Pelo contrário, ela deve ter suas raízes profundamente lançadas nos sonhos e no inconsciente de maneira geral. Desse nível do pensa-mento humano, a substantificação passou à cultura, não sem uma ajuda considerável da religião. Platão apenas produziu a primeira reflexão completa a respeito do há-bito em apreço. E ao fazê-lo, ele também o justificou e inseriu no interior de uma filosofia sofisticada.
Na Idade Média, um intenso debate acendeu-se sobre a natureza das ideias abstratas ou universais. Vimos que o debate levou à formação de correntes opostas, que se tornaram conhecidas como realismo e nominalismo. O lado nominalista da discussão teve em Guilherme de Ockham um de seus maiores representantes. Ockham refutou extensamente e com bons argumentos a posição realista. Porém, a exposição do ponto de vista de Aristóteles a respeito do tema foi realizada do modo mais perfeito por um representante da corrente oposta: São Tomás de Aquino.
O filósofo escolástico mostrou que, embora Aristóteles tenha-se referido aos universais como nomes, estes representam coisas. E o fazem consistente-mente, pois sua gênese está associada a sensações das próprias coisas. De fato, o intelecto não tem papel passivo, durante e após as sensações, mas age de modo a constituir imagens dos objetos com elas.
Do mesmo modo, após constituir as imagens, o intelecto continua ativo, pois passa a elaborar a espécie inteligível, por um processo que Aristóteles chama abstração. Esse processo consiste no despojamento das imagens do que têm de particular, de modo a restar apenas o que lhes é comum. Assim, das imagens de um campo com flores de cheiros, formas e cores vários, o intelecto abstrai a ideia de flor, sem cheiro, sem forma e sem cores determinados.
A espécie inteligível não é ainda a ideia. Ela é obra do intelecto agente, que a forma a partir das sensações e imagens. Para que a ideia surja, é necessário que o intelecto possível intervenha. Desse modo, segundo Tomás, é que passamos do conhecimento individual ao universal.
A radicalidade do pensamento de Guilherme de Ockham se mostra na negação da necessidade da espécie inteligível para explicar o conhecimento. De um lado, temos os objetos individuais do conhecimento; de outro, as idéias abstratas deles. Não precisamos supor intermediários, como as espécies inteligíveis, para explicar a passagem de uns a outros.
Mas a radicalidade de Ockham alcança o ponto máximo,conforme ele desenvolve a sua noção de universal. Toda uma série de pensadores tinha negado que os universais possuíssem existência objetiva. O que os diferencia de Ockham é o fato de este negar não apenas a existência dos universais, mas também a semelhança dos individuais, assim como a que costumamos identificar entre dois cavalos. Por muito tempo, essa semelhança tinha constituído o fundamento da crença de que os universais possuem algum tipo de objetividade.Com a negação da semelhança dos individuais, a objetividade dos universais pôde ser dispensada e desapareceu.
Assim, o problema dos universais foi resolvido por Ockham. A solução tem consequências revolucionárias. Uma delas é o encerramento das discussões metafísicas, que a Idade Média tinha cultivado em tão alto grau. Não há por que debater com o interesse de antes o que não tem existência individual ou objetividade. A discussão sobre os universais se justificara, enquanto sua objetividade fora admitida. Quando ela foi reduzida a uma concepção do intelecto, a discussão perdeu, se-não o interesse, ao menos a importância anterior.
O mistério do ser manteve a Teologia sob seu controle enquanto se pensou que um número incalculável de proposições sobre Deus podem ser canceladas por considerações a respeito do ser. Quando Ockham mostrou que os entes metafísicos não têm objetividade, viu-se que não podem afetar Deus ou suas obras. Desde então, a Teologia alcançou independência total da Metafísica.
O mesmo sucedeu a vários outros campos do conhecimento, que tinham sido atrelados à Metafísica por razões semelhantes às que levara à dependência da Teologia em relação a ela. Hoje, é comum se pensar que a Física, a Química, a Biologia e todas as outras ciências positivas não podem ser afetadas pela Metafísica. Devemos a essência dessa convicção a Ockham.
Porém, por motivos misteriosos, a conclusão radical de Ockham não foi imediatamente aplicada a um grupo particular de universais: as categorias, que, por muito tempo, continuaram a ser tratadas como dados objetivos. Essa resistência ao nominalismo foi e continua a ser decisiva, pois a História da Filosofia e do conhecimento depende, em grande medida, das decisões relativas a ela. Se a Teologia e as ciências surgiram e foram libertadas da Metafísica, com base na intuição de Ockham sobre os universais, se a intuição estiver errada, o destino dessas disciplinas sofrerá sérias consequências.
O problema é que, apesar de sedutora, a intuição de Ockham não pode ser provada. Ele parece sustentá-la por provas, ao derivá-la do princípio de que tudo o que existe é individual. De fato, se assim é, o universal não existe, e essa há de ser uma verdade absoluta. Mas as coisas não são tão simples. A afirmação de que tudo o que existe é individual é, no mínimo, equívoca, já que a palavra individual indica um modo de ser entre outros. Individual é o que é concentrado, o que está num lugar e não em vários. Mas é possível imaginar entes reais difusos, espalhados ou dispersos por vários lugares. Não é essa a natureza do espaço? Não é, de certo modo, também a do que denominamos tempo?
Podemos até pensar que só o espaço e o tempo individuais existem, mas isso não pode ser provado. O contrário também pode ser verdade. Talvez o espaço seja a soma de espaços menores dotados da mesma natureza dele. E o tempo pode ser a soma de instantes com uma só natureza básica. Não estamos em condições de determinar qual dessas concepções do tempo e do espaço é a verdadeira.
Kant criou um rol de categorias diferente do de Aristóteles e as transferiu do mundo real para o intelecto. Porém, essa é só uma solução possível do problema das categorias. É a solução nominalista, que Kant rea-firmou. No entanto, a solução conhecida como realismo básico mantém tanto atrativo quanto ela.
Olhemos de perto a explanação de Aristóteles sobre as categorias. Ele abriu o livro que as toma por tema com a classificação dos nomes ou expressões. E em seguida, timbrou: “As expressões não compostas significam substância, quantidade, qualidade, relação, lugar, tempo, posição, situação, ação e paixão. Para transmitir sucintamente o que pretendo com essas palavras, exemplos de substância são homem e cavalo, de quantidade são dois cúbitos ou três cúbitos, de qualidade são branco e gramatical. Dobro, metade e maior pertencem à categoria da relação; ‘no mercado’, ‘no Liceu’ à de lugar; ontem e ‘no ano passado’ indicam tempo. Deitado e sentado sugerem posição; derramado e armado, situação; lançar e cauterizar, ação; e ‘ser lançado’ e ‘ser cauterizado’, paixões” (On categories. In Great boboks of the western world. Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1993. Vol. Cap. 4. pp. 5-6).
Do modo como não se estendeu sobre as categorias de tempo, lugar e situação, porque seus alunos as compreendiam, Aristóteles se limitou a afirmar que as categorias são espécies de nomes, sem esclarecer a relação entre estes e as coisas. A razão desse seu procedimento foi a existência de uma compreensão cultural prévia daquela relação, que Aristóteles simplesmente adotou.
Na abertura do livro das categorias, ele assentou ainda que “as formas de expressão podem ser simples ou compostas [...] Já as próprias coisas” etc. (idem. Cap. 2, p. 5). Nesse modo de dizer, as expressões (palavras) e as coisas estão claramente contrapostas. Que se pode extrair disso? A contraposição não sugere uma relação entre os termos contrapostos, isto é, que as pa-lavras remetem às coisas? Do contrário, por que aproximar os dois conceitos, por que os contrapor? E se as categorias são nomes, elas não nos remetem também a coisas?
Aristóteles respondeu essas perguntas afirmativamente. Por isso, não pôde deixar de incorrer no vício da substantificação. Ele entendeu a relação entre as categorias e o mundo no sentido comum e não as protegeu contra os vícios desse tipo de pensamento, antes as substantificou.
Em Aristóteles, as categorias são, sim palavras, mas palavras que exprimem o modo de ser das coisas. Palavras que projetam ideias nas coisas. Tintas empregadas para colorir o mundo um tanto à maneira humana. As seguintes passagens tornam isso extremamente claro: “O termo homem é predicado do homem individual, mas não está presente em sujeito algum” (idem. p. 7). Como “estar presente num sujeito não significa encontrar-se nele como as partes se encontram no todo, mas ser incapaz de existir à parte dele” (idem. Cap. 2. p. 5), segue-se que o termo homem é capaz de existir à parte de todo e qualquer sujeito. Ou não se segue? Ou não é essa uma escancarada forma de substantificação?
Aristóteles introduziu correções substanciais no platonismo. O mesmo se pode afirmar de Tomás de Aquino, em relação às filosofias medievais. No quadro dessas duas séries de filosofias inspiradas em Platão, o conhecimento do universal foi desconectado das sensações e considerado uma participação direta nas ideias. Aristóteles e Aquino o religaram à experiência sensível e descreveram não mais como participação, mas como abstração de dados daquela experiência. O problema que restou foi o peso considerável da substantificação implícita nas categorias do ser.
Não há dúvida de que o nominalismo livrou-nos desse peso. Mas não é demasiado afirmar que a filoso-fia de Ockham não é a única solução para o problema da substantificação pelas categorias. Ao suavizar o caráter objetivo das categorias, o realismo básico as pensa como difusas, porém dotadas de objetividade. É o que basta para evitar o erro da substantificação.
Da decisão do nominalismo ou do realismo bá-sico dependem concepções teológicas e científicas mui-to diversas. Dependendo da decisão que tomarmos, nesse terreno, as concepções resultantes da Teologia, das ciências e do mundo serão muito diversas. A diferença entre as visões concorrentes, porém, poderá ser definida com precisão como o teor metafísico de cada uma.

A Revolução Abortada

O quadro Era da Reforma, de Wilhelm von Kaulbach, a que me referi anteriormente, apresenta Martinho Lutero no centro, a erguer uma Bíblia aberta. Dezenas de pessoas estão ao seu redor, mas apenas du-as parecem dirigir-lhe o olhar e notar o seu gesto simbólico, o que, de algum modo, sugere que a Bíblia que o reformador tem nas mãos foi aberta, mas ninguém a examinou.
A figura de Lutero a empunhar a Bíblia descer-rada e de tantas pessoas alheias a ele não é mais apropriada à própria era da Reforma do que ao tempo atual. Lutero bradou: “Sola scriptura!” Mas o livre exame das Escrituras se adiantou tão pouco! No século imediato ao dele, a Filosofia foi liberta do jugo à Teologia, no entanto a última nunca foi solta da prisão das interpretações impostas pela autoridade.
Como um luterano entende a Bíblia hoje? Basicamente do modo como Lutero a interpretou. Como o faz um presbiteriano? Entende-a como Calvino. E um metodista? E um adventista? Eles interpretam a Bíblia como Wesley, William Miller e Ellen White ensinaram. Não pretendo, com isso, afirmar a existência de uma uniformidade total na interpretação da Bíblia, em cada ramo do Protestantismo, mas assinalar o quanto a Teologia Protestante é determinada por mecanismos de po-der constituídos com a matéria-prima das interpretações dos estudiosos citados.
Se estar no luteranismo significa entender a Bíblia como Lutero, se estar numa Igreja Presbiteriana implica entendê-la como Calvino e assim por diante, segue-se que a interpretação não é realmente livre. Não há livre exame das Escrituras, nas Igrejas originárias da Reforma, ou há muito pouco, assim como o quadro de Kaulbach sugere na sua mudez eloquente.
O fato de o Protestantismo abrir-se num leque de confissões e Igrejas, cada qual com uma doutrina única, pode ser explicado de várias maneiras. Mas a traição do livre exame há de ser reconhecida para que qualquer explicação funcione. Não existindo, no Protestantismo, o compromisso com o magistério da Igreja de Roma, é natural que surjam interpretações divergentes entre si, no seu bojo. Porém, na medida em que ele não é só uma Reforma impávida e bem-sucedida, mas também uma reprodução das relações medievais de poder, não é menos natural que, em cada Igreja protestante, subsista uma única interpretação das Escrituras.
Isso significa que a Reforma aboliu ao mesmo tempo em que reproduziu o modelo católico romano. Sua obra duradoura está possuída dessa contradição. O filósofo Ernst Troeltsch escreveu, com algum exagero, mas atento ao exato desenvolvimento das Igrejas da Re-forma: “Não se pode supor que o protestantismo tenha aberto o caminho para o mundo moderno. Ao contrário, ele parece ser, por princípio, e a despeito de todas as suas novas grandes ideias, um reavivamento e um re-forço do ideal de uma civilização eclesiástica imposta pela autoridade” (TROELTSCH, Ernst. Protestantism and progress. Boston: Beacon Press, 1958. p. 85). É crucial recordar que essa autoridade começa pela interpretação única da Bíblia, no seio de cada Igreja.
Em suma, o Protestantismo foi e continua a ser, na sua vertente ortodoxa tanto quanto nas seitas que se desgarraram das doutrinas aceites, uma espécie de modernidade abortada. É o que Troeltsch nos ensinou, com razão e a despeito de todas as grandes ideias que o movimento protestante trouxe ao mundo. Como lembrou Rubem Alves, no nascedouro da Reforma, esteve um grito de liberdade reprimido por séculos e que foi solto pelos reformadores. Porém, com o tempo, o grito se transformou na indiferença que o quadro de Kaulbach retrata.
Ao menos é assim que o Protestantismo se mostra, sob o ângulo teológico. Mas e do ponto de vista da Filosofia? Como o Protestantismo se revela, sob esse ponto de vista? Parece-me que, do prisma filosófico, ele representa ainda mais a modernização abortada que se tornou no terreno teológico. Para entender por que nada é mais útil do que considerar a figura do seu fundador.
Lutero teve dupla formação. Graduou-se em Filosofia e em Teologia. Numa carta escrita pouco depois de 1500, queixou-se de ser compelido a estudar a primeira “com todas as suas forças”. A confissão não é despropositada, já que o Protestantismo surgiu num tempo e lugar em que o movimento humanista crepitava. Esse movimento consistiu na restauração do interesse pelos clássicos da Antiguidade, tanto na Literatura como na História, na Filosofia e na Teologia (Bíblica e Patrística). Porém, o interesse pelos filósofos antigos, quando as limitações do platonismo e do aristotelismo se tornavam cada vez mais manifestas, não foi um presságio muito alvissareiro nesse campo particular.
Devido ao ambiente da época, a filosofia em que Lutero se formou e que ele aprendeu de modo mais sistemático foi a ockhamista, que havia desenvolvido as mais importantes críticas a Platão até então. Por isso, sob o prisma filosófico, a Reforma nasceu como uma significativa promessa de avanços.
Porém, Lutero levou seu repúdio a Platão tão longe quanto o repúdio a Aristóteles e à Escolástica, o que o transformou num quase inimigo da Filosofia. Ele próprio pergunta: “Que são as universidades? Pelo menos até agora, foram instituídas para ser apenas, como diz o livro dos Macabeus, ginásios de febos e da glória grega, nos quais se leva uma vida libertina, pouco se estuda a Sagrada Escritura e a fé cristã e reina apenas o cego e idólatra mestre Aristóteles, até mesmo acima de Cristo. O meu conselho seria o de que os livros de Aristóteles Physica, Metaphysica, De anima e Ethica, que até agora são reputados como os melhores, fossem abolidos juntamente com todos os outros que falam de coisas naturais [...] Sei muito bem o que estou dizendo! Conheço Aristóteles tão bem quanto tu e teus semelhantes, pois o li e ouvi com maior atenção do que a santo Tomás ou Escoto, do que posso muito bem me vangloriar, sem presunção, e até, se necessário demons-trá-lo. Não me importa que, durante tantas centenas de anos, tantos intelectos sublimes se tenham debruçado sobre ele. Tais argumentos não me preocupam, porque está claro que, embora eles tenham feito alguma coisa, no entanto, tantos erros permaneceram por tantos anos no mundo e nas universidades” (LUTERO, Martinho. Citado em REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario. História da Filosofia. São Paulo: Paulus, 1990. Vol. 2, p. 105).
Lutero levou a sua polêmica contra a Filosofia ainda mais longe do que a passagem citada deixa entrever, pois generalizou seu juízo negativo sobre aquela disciplina. É o que verificamos na seguinte passagem das suas notas sobre a Epístola aos Romanos: "Devo ao Senhor esta obediência de ladrar contra a filosofia e de aconselhar os homens a olhar para a Sagrada Escritura [...] para que acabem rapidamente com esses estudos e para que tenham como única preocupação a de não estabelecê-los e defendê-los, mas, sim, a de tratá-los como nós, quando aprendemos habilidades inúteis com o fim de destruí-las e aprendemos erros com o fim de refutá-los cabalmente [...] Por conseguinte, o apóstolo está certo quando, em Cl 3 [2:8], fala contra a filosofia, dizendo: 'Cuidado, para que ninguém vos engane por meio da filosofia e de falácias vazias, conforme a tradição dos homens'. É óbvio que, se o apóstolo quisesse dar a entender que alguma filosofia é útil e boa, ele não a teria condenado de modo tão cabal" (LUTERO, Martinho. A Epístola aos Romanos. In Martinho Lutero - Obras selecionadas. São Leopoldo: Sinodal/Concórdia, 2003. Vol. 8, pp. 303-304).
No entanto, em muitas outras passagens das suas obras Lutero lançou mão de partes da Filosofia, a fim de realizar suas demonstrações teológicas. Na realidade, ele nunca quis condenar toda a Filosofia. Lutero foi um homem da sua época. Como tal, condenou a Antiguidade Pagã, o que Dante já tinha feito na sua Comédia. As passagens transcritas acima são a Divina comédia de Lutero ou da Reforma. Com ela, Lutero quis alertar contra os perigos de um retorno excessivo aos antigos. Mas é preciso lembrar que ele foi monge agostiniano e não renegou Santo Agostinho, antes ou depois de a Reforma explodir e se estabelecer. Sabemos o que Agostinho representa na História da Filosofia e o que representou para Lutero.
Em seus livros, Lutero poupa Agostinho das críticas que dirige à Filosofia. Não só Agostinho, aliás. Outros filósofos que ele poupa, nas suas condenações, são Ockham e Gabriel Biel, por meio de quem Lutero teve contato com o nominalismo. Sem mencionar seu contemporâneo Melanchton, o orgulho de Lutero, que ele chama "adversário de Satanás e dos escolásticos". A profunda admiração de Lutero pelo humanista Melanchton é impensável sem concessão igualmente profunda à Antiguidade Clássica. Portanto, as invectivas do reformador foram muito mais direcionadas à Filosofia e à razão sem a graça salvadora de Cristo do que a toda e qualquer forma delas. Para Lutero, a Filosofia e a razão eram vãs, sem a fé em Cristo. Contudo, por meio da fé, elas podiam ser redimidas, como todo o restante da atividade humana.
Considerando a formação de Lutero, seu exacerbado antiaristotelismo e as invectivas que lançou em face da “porca razão” não têm o sentido de um repúdio ilimitado. Tivesse Lutero repudiado de modo total a razão e teríamos de esquecê-lo, já que a negação, culta ou bronca, da razão (pois há as duas espécies) é a putrefação filosófica por definição, o achaque mais essencial à natureza humana. Contudo, por trás do repúdio à razão, o que se nota não é a desrazão, mas a silhueta do ockhamismo em que Lutero procurou e encontrou substrato para, ao mesmo tempo, aferrar-se à vontade de Deus e considerar falso o racionalismo estribado no homem – entenda-se na soberba humana.
Pode-se questionar se, no seu repúdio à Filoso-fia e à razão, Lutero não correu o risco de “lançar fora a criança com a água do banho”. De banir a razão junta-mente com os erros dela. Parece-me que correu, mas, a julgar pela declaração mais importante que fez, em toda a sua existência, quando a Dieta de Worms o instou a retratar-se dos erros que o Papa tinha apontado em seus livros, Lutero não chegou a tal ponto. Naquela ocasião solene, ele declarou: “Sereníssimo imperador! Ilustres príncipes, graciosos senhores! [...] Se não for convencido com testemunhos da Escritura, ou por evidentes razões, se não me persuadirem pelas próprias passagens que citei, e se não tornarem assim a minha consciência cativa da palavra de Deus, não posso e não quero retra-tar coisa alguma” (D’AUBIGNÉ, J. H. MERLE. História da Reforma do décimo-sexto século. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana. Vol. II, p. 243).
Em muitas passagens de suas obras, Lutero reafirmou essa posição de alcance vastíssimo, por ter sido firmada no momento decisivo da sua existência. Uma das mais claras encontramo-la no segundo livro do reformador sobre a Santa Ceira, em que ele se bateu Com Zuínglio e Ecolampádio pelo respeito às regras fundamentais da Lógica: "Eu não sabia que Ecolampádio é um lógico ou dialético tão miseravelmente pobre, a ponto de trocar a substância pela qualidade e de fazer conclusões do acidente para a substância. No caso de Zuínglio, isso não admira, pois ele é um doutor autodidata; esses costumam dar nisso. Em verdade, quem quer debater e não conhece os elementos rudimentares da lógica, que pode conseguir ele de bom? Ecolampádio me irrita tanto com isso que doravante não espero nenhuma prova de inteligência dele. Pois, ainda que não seja necessário que conheça as sutilezas e sofismas inúteis dos sofistas [os escolásticos tardios, na linguagem peculiar de Lutero], deveria conhecer pelo menos os rudimentos, isso é, a dialética simples, como as regas da dedução, as formas dos silogismos, as espécies de argumentação, etc." (LUTERO, Martinho. Da ceia de Cristo - ConfissãoIn Obras selecionadas São Leopoldo: Sinodal/Concórdia, 1993. Vol. 4, p. 303).
Essas considerações convergem com a opinião de Troeltsch mencionada no início. Se tivermos de situar a Reforma em alguma das divisões (sempre relativas) da História, será melhor inseri-la na Idade Média do que na Modernidade. Mas é preciso apresentar uma ressalva ao fazê-lo. Por tudo o que a antecedeu, pelo que foi e também pelo que a sucedeu, a Reforma do século XVI foi genuinamente revolucionária. Seu problema é que a revolução que ela procurou implantar nunca se completou. Porém, isso não invalida o que o movimento tinha de vanguardista.
Quando olhamos para o quadro filosófico que a preparou e a opção de Lutero e outros reformadores por ideias ockhamistas, o caráter da Reforma faz-se ainda mais nítido. Lutero não só se declarou ockhamista como esclareceu ter absorvido totalmente os ensinamentos dessa corrente, como lemos na sua Resposta aos mestres de Lovaina e Colônia: “Por que iria eu resistir também a minha seita, a saber à occamista ou à dos modernos, que tenho assimilado totalmente” (LUTERO, Martinho. Resposta de Lutero à condenação doutrinal feita pelos mestres de Lovaina e ColôniaIn Obras Selecionadas. 2ª ed., São Leopoldo: Sinodal/Concórdia, 2000. p. 95).
É instrutivo, portanto, lembrar o que Gilson ministrou sobre essa seita: "O ockhamismo [aqui incluído o de Gabriel Biel, com o qual Lutero teve contato], não era uma simples reforma, mas uma revolução. As doutrinas precedentes se contradisseram mutuamente sobre a interpretação de certos princípios que lhes eram comuns; em vez de se somar a elas como um novo en-saio da mesma ordem, o ockhamismo nega todas elas, arruinando o realismo em que repousavam" (GILSON, Étienne. A Filosofia na Idade Média. 2ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 885).
A um leitor apressado pode ocorrer que Ockham foi, sim, revolucionário, mas ele não foi Lutero, nem os outros reformadores. Portanto, Lutero e a Reforma não foram realmente revolucionários. Esse juízo é equivocado. Os mais importantes precursores da Reforma, como Wyclif, Huss e Jerônimo de Praga, não só são citados entre os realistas como entre os mais extremistas deles. Eram todos teólogos platônicos. Lutero e seus seguidores não. A questão importante aqui não é o grau de ockhamismo deles, mas o fato de estarem, filosoficamente, mais próximos de Ockham do que de Platão. Mais próximos da revolução ockhamista que de seus próprios precursores teológicos. Isso contribui para ressaltar o conteúdo revolucionário da Reforma.
Ao colocar as evidentes razões ao lado das Escrituras, às quais dedicou a sua existência e em que depositou toda a sua fé, Lutero mostrou claramente o juízo que tinha a respeito do entendimento iluminado pela fé. Mostrou que sua obra foi, ao mesmo tempo, uma demanda pelas Escrituras e por uma razão evidente, não obscura como a que as filosofias do seu tempo ofereciam em tão grande medida.
Não há como não dar ouvidos a essa justa demanda. Os amantes da verdade, em seus sempre múltiplos sentidos, não andam em busca de repúdios totais. Não recusam, pois, a luz da Filosofia, mas demandam luz clara, não impenetrável. Querem a verdade, mas verdade inteligível. Infelizmente, a Antiguidade e a Idade Média tinham visto nascer filosofias impenetráveis. A Metafísica do tempo de Lutero tornara-se, em grande parte, isso.
Nesse contexto, a dupla revolta do reformador contra o cativeiro papal e o aristotélico chega a constituir a sua contribuição central ao campo sobre o qual me debruço. Aliás, ao focarmos o pensamento de Lutero com a precisão necessária, percebemos que a sua investida contra o senso comum da época deu-se mais no terreno da Filosofia Social que no da Metafísica.
Pela importância que tem como contestador de um arranjo social construído sobre a autoridade, é que Lutero deve ser lembrado na História da Filosofia. A crítica veemente, mas ilustrada que ele desenvolveu da razão é mais um apelo que a Idade Média dirigiu à docta ignorantia. No entanto e ao mesmo tempo, é uma recordação dos limites a que o intelecto humano está sujeito. Limite que não se aplica somente ao que podemos conhecer de Deus, mas também da natureza.
Há nessa posição uma sabedoria herdada dos antigos mosteiros que, ao recolherem o escólio da Gré-cia, o tornaram secundário à Bíblia. Assim procederam Orígenes e Santo Agostinho, mas também os primeiros monges do deserto. Assim também procedeu Lutero, embora com gume crítico peculiar.
A quase rusticidade das descrições bíblicas da natureza (com exceção do que encontramos em textos, como Gênesis 1 e 2), sobre a qual Lutero se colocou, pode parecer uma base suspeita, mas não deixa de cons-tituir um refúgio contra certos erros filosóficos. Refúgio que, aliado à demanda de Worms por razões evidentes e às contribuições para o pensamento social, garantem ao solitário Lutero um papel no romance da filosofia.

A Teofania de Spinoza

Séculos após a adoção do princípio de Parmênides pela filosofia platônica e da proliferação de ilusões substancialistas que se seguiu, muitas críticas a esse procedimento tinham aparecido. Porém, todas tinham revelado um caráter parcial e a conseqüente insuficiência de que padeciam para pôr freio à influência platô-nica. Não é possível apresentar conclusão distinta se-quer em relação às críticas que Aristóteles, Aquino e Ockham desenvolveram a Platão.
Como tenho procurado mostrar, o maior reduto de resistência à substantificação iniciada por Platão, na História da Filosofia, foi a filosofia patrística do período de Orígenes a Santo Agostinho. Claro que os segui-dores desses filósofos merecem igual menção, mas os originadores da corrente de resistência foram os filósofos dos séculos III a V.
As promessas revolucionárias da Reforma, cujos reflexos na Filosofia iam ao ponto da abolição de Platão e Aristóteles, não se colocaram à altura daquela resistência, pois não tardaram em se resolver em desilusão. O historiador maior da Reforma, no século XIX, J. H. Merle D'Aubigné, admitiu-o ao declarar que “a história da reforma não é a do protestantismo. Na primeira, tudo traz a marca de uma regeneração da humanidade, de uma transformação religiosa e social que emana de Deus. Na segunda vê-se muitas vezes uma degeneração notável de princípios primitivos” (D'AUBIGNÉ, J. H. Merle. História da Reforma do décimo-sexto século. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana. Vol. I, p. 5).
O fato de a Reforma ter influído tão pouco no debate filosófico pode ser considerado um dos sinais da degeneração a que D'Aubigné se referiu. Apenas um século depois dela, Descartes propôs a emancipação da Filosofia em relação à Teologia e ao poder eclesiástico. Seu passo libertário foi a contribuição maior do cartesianismo ao pensamento filosófico. Outras o seguiram. Porém, o objetivo deste capítulo é tratar do filósofo que, na trilha aberta por Descartes, influiu de maneira decisiva no desenvolvimento posterior da Metafísica.
Refiro-me a Baruch Spinoza, cuja obra principal, a Ética, se abre com uma série de definições de termos. Os termos que ali se encontram e as definições que Spinoza lhes empresta nada tinham de estranho aos leitores da época, já que tinham sido herdados da Filosofia Clássica. Sua gênese remonta a Platão e à Metafísica de Aristóteles. No entanto, é significativo que, da definição deles, Spinoza derive consequência de todo nova, com o potencial de lançar o pensamento substancialista em direção diversa daquela em que Parmênides o tinha impulsionado originalmente e na qual o platonismo o confirmara.
A reviravolta substancialista de Spinoza consistiu em unificar o pluralismo aristotélico, que supunha várias substâncias irredutíveis umas às outras. Para fazê-lo, Spinoza desenvolveu um monismo, no qual o conjunto de todas as substâncias perfaz uma única, uni-versal e indivisível, que ele denominou Deus. Não é preciso acrescentar que essa consequência revolucioná-ria do substancialismo aristotélico, essa visão de Deus que teve de Spinoza e que chamarei Nova Metafísica, foi recebida com grande escândalo pela Europa cristã e judaica.
Infelizmente, a dependência das definições de que Spinoza parte, na Ética, em relação a Aristóteles as expõe a críticas como a que Bertrand Russell desenvolveu ao comparar esse filósofo com Aristóteles. Diz Russell que “é difícil decidir por onde começar a descrição da metafísica de Aristóteles, mas talvez o melhor lugar seja a sua crítica da teoria das ideias e sua própria doutrina alternativa dos universais [...] Aristóteles torna evidente que, quando um número de indivíduos [ou coisas] participa de uma qualidade [por exemplo, a cor branca ou azul], isso não pode ser devido à relação com algo da mesma espécie que eles, mas com algo mais ideal [o universal]” (RUSSELL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1969. Livro Primeiro, pp. 187-188).
Indivíduos e coisas são chamados substâncias ou formas por Aristóteles; as qualidades que eles possuem chamam-se universais. O problema apontado por Russell, nessa concepção, é que as formas aristotélicas são “substâncias que existem independentemente da matéria [...] Portanto, elas têm para Aristóteles, como as ideias têm para Platão, uma existência metafísica própria, condicionando todas as coisas individuais” (idem. pp. 192-193). Russell quer dizer que a forma aristotélica, ao mesmo tempo, radica nas coisas e é capaz de existir fora delas.
Essa concepção altamente imaginativa da forma dotada de substancialidade é fatal para o filósofo grego, e veremos que também para Spinoza. Russell conclui: “Não vejo de que maneira Aristóteles poderia ter encontrado uma resposta a esta crítica” (idem. p. 193). Em outras palavras, a crítica parece fatal. Porém, embora isso esteja claro para a maioria dos filósofos, hoje, não se pode afirmar o mesmo da época de Spinoza (século XVII). E continua a não ser assim para a maior parte das pessoas, que adotam as ideias spinozianas com entusiasmo, mas sem compreender totalmente a procedência das críticas que receberam ao longo da História.
A substância spinoziana é a mesma da Metafísica Clássica. Assim como, para Aristóteles, a realidade é composta por indivíduos ou substâncias, para Spinoza, “na natureza, nada há além de substâncias” (SPINOZA, Baruch. Ethics. In Great books of the western world. Vol. 28, First Part, Proposition 6, p. 590). E como naquele filósofo a forma pode existir fora do intelecto, em Spinoza, “nada há fora do intelecto, por meio de que as coisas podem ser distinguidas umas das outras, a não ser as substâncias ou seus atributos” (idem. First Part, Proposition 4, p. 590).
É verdade que a substância spinoziana, diferentemente da de Aristóteles, só existe fora do intelecto. No entanto, Spinoza atribui a capacidade de existir dentro e fora da mente à essência, que é por ele definida como o que o intelecto percebe da substância. Assim, o erro substancialista de Aristóteles é transferido da for-ma à essência.
Desse modo, a dupla existência da forma (para Aristóteles) reproduz-se na essência spinoziana. Ambos os conceitos pairam invisivelmente sobre as coisas e, desse éter, passam a elas. Ambos são, pois, fantasmagóricos.
É verdade que a essência spinoziana radica na substância, que tem consistência real. Porém, a essência também existe fora das coisas, isto é, no intelecto. E nenhuma explicação satisfatória é dada do processo pelo qual ela se desarraiga das coisas e se implanta no intelecto. Tampouco é explicado como a essência duplica-se, sem se alterar, em esferas tão diferentes do real. O que é capaz de flutuar sobre a face das coisas não está imbuído de dons fantasmagóricos?
A substância spinoziana só pode ser compreendida, sob a forma fantasmagórica da essência. Portanto, para afirmar que a natureza é a substância única, é preciso pensá-la também como essência. Esse é o grave problema da filosofia de Spinoza, que se tornou o de um número de cientistas contemporâneos, que adotaram o seu pensamento, a exemplo de Albert Einstein, Stephen Hawking e Antonio Damásio. E é no mínimo espantoso que o filósofo de tão requintada ciência seja um dos que mais claramente incidiram no erro platônico.
Aliás, sofisticações filosóficas à parte, a concepção da natureza como Deus impessoal já revela arraigada tendência de atribuir concretude a uma ideia. Ela está presente na Nova Metafísica de Spinoza e no pensamento dos cientistas que a adotam. Essa concepção vem antes de toda demonstração. É a encarnação de uma ideia autoevidente. Mas isso é lá aceitável a uma ciência que pretende dar a prova de suas afirmações? A uma ciência que se quer tendente à exatidão?
Fato é que, nas mentes de não poucos, nem pouco ilustres cientistas, o Deus de Spinoza se transfigurou na natureza que eles perscrutam, ou esta naquele. Que vem a ser essa incrível mistificação, essa autêntica teofania, a não ser o erro de Platão ressurgido? Se Spinoza se fez tão fundamental à ciência, por influência de Einstein talvez, igualmente fundamentais não se tornaram os problemas do seu pensamento? Fraturas não se abriram no pilar da ciência? Fico a pensar se a frase de Russell sobre a Metafísica não se tornou aplicável a essa ciência: não vejo de que maneira ela pode se salvar dessa crítica parcial. Pode?

O Giro Copernicano

Aristóteles denominou opinião (doxa) o conhecimento de tudo o que não constitui a essência universal de uma coisa, em oposição ao conhecimento científico (epistéme), que desvenda exatamente essa essência. A cor, o tamanho e o modo de ser de uma coisa são objetos de opinião, que é inerentemente incerta, seja porque o sujeito se pode enganar, seja porque os objetos se podem alterar (mudar de cor, de tamanho, de posição etc.). Já a ciência, não se sujeita a erro.
O alcance da concepção de conhecimento formada a partir dessa distinção é revelado de maneira precisa, por Karl Popper, na seguinte passagem: “[Aristóteles] via como alvo derradeiro de qualquer indagação a compilação de uma enciclopédia que contivesse as definições de todas as essências, isto é, seus nomes juntamente com suas fórmulas definidoras” (POPPER, Karl. A sociedade aberta e seus inimigos. São Paulo: USP/Itatiaia, 1987. Tomo 2, p. 18), pois “só podemos conhecer [cientificamente] uma coisa conhecendo-lhe a essência” (idem. p. 17).
Por esse motivo, o conhecimento de essências permaneceu o ideal da ciência por muitos séculos, até que Emmanuel Kant mostrou que o universal não revela a essência das coisas. Essa conclusão ele a extraiu, em parte, da segmentação do conhecimento numa espécie a priori e outra a posteriori. Diz-se a priori o conhecimento que possuímos antes de observar objetos e que usamos para observá-los. A posteriori, por sua vez, é o conhecimento que os objetos fazem nascer no nosso intelecto, durante a observação em-pírica, e que interpretamos como autênticas características deles.
O conhecimento do universal é incapaz de nos revelar a essência, porque, ao observar os objetos, inserimos neles certos conteúdos provenientes do conhecimento a priori, constituindo-os ao mesmo tempo em que os observamos. Kant descreveu meticulosamente como essa constituição se dá. Podemos resumi-la na afirmação de que a essência das coisas não se dá a descobrir, pois a sua constituição por meio do instrumental a priori impede qualquer certeza sobre o que, no conhecimento, provém de nós e o que provém das coisas.
Essa descoberta abalou, de maneira perene, a confiança na existência de um conhecimento certo e necessário do mundo, como o preconizado por Aristóteles. O acordo dos filósofos posteriores a Kant, que até hoje vigora, é no sentido de que um conhecimento com tais apanágios é impossível, já que não somos capazes de separar os atributos objetivos das coisas do que inserimos nelas.
A essa predominância do elemento a priori, na cognição, e à consequente centralidade do sujeito, na Filosofia, Kant denominou revolução copernicana. A alusão a Copérnico tem sentido metafórico, mas a metáfora é eloquente, pois indica que a gravitação do objeto ao redor do sujeito tem um papel tão fundamental na Filosofia quanto a revolução dos astros na Física.
Vale a pena recordar o que o próprio Kant assentou sobre esse giro copernicano: “Até agora, admitia-se que todo o nosso conhecimento se devia regular pelos objetos [...] Mas faça-se a prova consistente em ver se não seríamos mais afortunados nos problemas da metafísica formulando a hipótese de que os objetos devem se regular pelo nosso conhecimento” (KANT, Emmanuel. Citado em REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario. História da Filosofia. 2ª ed., São Paulo: Paulus, 1990. Vol. 2, pp. 876-877).
Com essa nova fundamentação do saber humano, Kant dá por aniquilada a doutrina platônica, segundo a qual vimos ao mundo com concepções latentes sobre as essências das coisas. No diálogo Fédon, essa doutrina é exposta por Sócrates nos seguintes termos: “Se, olhando para um objeto, alguém observa que ele almeja ser de uma maneira [determinada pela ideia a que corresponde], porém não chega a realizar plenamente essa sua tendência, pode-se concluir que a pessoa, que tira essa conclusão, já tinha um conhecimento prévio do padrão, a que o objeto tende [...] E se adquirimos esse conhecimento antes de termos nascido, ou seja, se já nascemos fazendo uso desse conhecimento, então conhecemos [...] não apenas a igualdade, mas a beleza, bondade, justiça, santidade e tudo o mais, em que imprimimos,como selo distintivo, o nome de essência” (PLATÃO.  Phaedo. In Great books of the western world. 2ª ed., Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1993. Vol. 6, p. 229).
Por que Kant considera essa doutrina aniquilada, morta e sepultada? Porque ele percebe, com nitidez, o erro do essencialismo em que está baseada. E por percebê-lo, ele não se dedica a destruí-la segunda vez, mas a demolir o que restou do mesmo erro, na filosofia de Aristóteles. Para este, o conhecimento dos fatos se estabelece por meio de premissas (afirmações ou negações que provam uma conclusão). Um fato é considerado verdadeiro, se corresponde às premissas de que deriva. Se nos dedicarmos a conferir a verdade dessas premissas, teremos de nos reportar a ainda outras premissas e assim sucessivamente, o que torna o conhecimento um retorno infinito a premissas cada vez mais remotas.
Como essa espécie de retorno é impossível, Aristóteles coloca no início do vasto sistema da ciência certas premissas básicas, cujo conhecimento se obtém pela observação direta dos objetos e não pelo retorno a premissas anteriores. Assim, ele encerra o conhecimento humano nos limites do mundo material, sem precisar de um mundo das ideias para fundamentá-lo. Não é preciso lembrar que essa explicação do conhecimento foi capaz de atravessar o tempo, como se verifica pela sua presença no ensinamento da Lógica em todos os séculos.
A realização maior de Kant consistiu em demolir a fundamentação aristotélica e não somente isso, mas em colocar em seu lugar uma outra, que denominou Lógica Transcendental. De acordo com Kant, essa nova Lógica se distingue pela consciência de que conhecer é usar as formas a priori da sensibilidade e do entendimento, a fim de moldar os objetos. E se moldamos o que conhecemos, nenhuma apreensão imediata é possível das essências objetivas das coisas. Claro que tampouco vimos ao mundo com um conhecimento latente daquelas essências.
Para podermos julgar o giro copernicano de Kant, precisamos entender um pouco melhor o processo que ele põe no lugar do conhecimento latente das coisas (próprio da filosofia platônica) e da apreensão imediata das suas essências (afirmada por Aristóteles), a começar pela distinção entre noumeno e fenômeno. Para Kant, noumeno é a coisa em si, o objeto como se encontra no mundo e não como o constituímos por meio do conhecimento. Já o fenômeno, é aquilo que conhecemos do objeto ou, para nos expressarmos com maior precisão, aquilo em que o constituímos. Para Kant, a única certeza possível sobre os objetos fora de nós é de que existem. O que eles são, sua essência e o restante do seu conteúdo, permanecem envoltos em total mistério.
Isso é radicalmente distinto da doutrina platônica das ideias e da apreensão imediata das essências, a que Aristóteles se referiu. Mas ainda assim, podemos ter do mundo um conhecimento fenomênico, moldado a priori, muito rico em conteúdo e passível de aplicações tão prodigiosas quanto as da tecnologia moderna. Podemos também viver, pensar e agir no mundo, por meio do conhecimento.
Não há dúvida de que a indeterminação das coisas, a indisponibilidade do seu conteúdo ao conhecimento, torna a filosofia de Kant uma “dessubstantificação” oposta à substantificação platônica. Não há substância sem conteúdo. Se nenhum conhecimento é possível do conteúdo das coisas, tampouco é possível substantificar algo. Por isso, o pensamento de Kant pode ser considerado o mais potente antídoto contra o velho vício da substantificação.
Mas tão potente é o antídoto que deixa o eu inteiramente desacompanhado de outras substâncias, como um náufrago a flutuar no oceano incógnito. Deve-se perguntar se essa é a face da verdade final, a sorrir para o homem que se despojou da ilusão e enfrentou inimigos portentosos para alcançá-la. Se esse é o fundamento filosófico mais adequado à ciência esplêndida do nosso tempo.
Se o for, aquela verdade e aquele fundamento serão inteiramente inaceitáveis ao homem, por contrariarem a natureza da sua alma. O homem não quer perecer, como é o destino do náufrago. Tampouco o ensinarão a fazê-lo. E se nada se pode saber do mundo, os seres que habitam o eu (suas ideias e sensações) não são seus pares, seus iguais ou seus companheiros, pois não compartilham sua natureza. O eu é real; as ideias e sensações que estão nele são meros espectros a flutuar sobre o oceano vazio. Assim, o giro kantiano se transforma em pesadelo.
Não admira que o homem nunca se tenha convencido de que sua condição seja a de tal náufrago. Tampouco surpre-ende que semelhante filosofia nunca tenha sido proposta antes de Kant e que ele próprio, com todo o seu senso lógico, a tenha escamoteado atrás de objetos com um único atributo certo: a existência. Esse atributo solitário sempre foi uma inconsistência, no vasto conjunto do pensamento kantiano, pois não se escora em necessidade lógica alguma. Nenhuma premissa o impõe, sequer o sugere ou chora suplicante. A existência das coisas é um deus ex machina, um heroi que o pensador faz baixar, no palco da sua filosofia, para realizar o que nenhuma personagem do drama pôde.
O giro copernicano é a negação total do vício da substantificação. Mas pasmem: a negação revela-se exagerada, soluciona demais, ministra uma dose fatal do remédio que avia para combater o grande vício. Se uma conclusão me ocorre de udo isso, é a de que a consistência absoluta nem sempre produz bom saber, pois este, em última instância, é fé, e a fé se alimenta da inconsistência e de toda lacuna atroz no conhecimento.
Quero dizer que, se é preciso extrair das premissas acima que as coisas podem ser ou não ser como os sentidos as representam, entre essas duas hipóteses, a decisão cabe à fé. Não decorre de qualquer das premissas. É preciso aceitar que é antes um salto que se dá com o coração trêmulo.
Se o homem comum nunca foi capaz de se guiar por razão tão robusta quanto a dos filósofos, não é natural que tenha formulado a questão da existência das coisas, por comparação com fantasmas e outros objetos de sua imaginação? E que tenha respondido sempre por fé a questão assim formulada? E que a evolução da espécie tenha-se encarregado de generalizar sua resposta? Por que deveríamos supor, contra tudo isso, que o conhecimento se estruturou por um método crítico, que só grandes mentes podem operar?
O método pelo qual o conhecimento humano se estruturou e estrutura até hoje é o utilizado pelo homem comum. É o método da espécie, não o dos filósofos e cientistas. Kant dá a impressão de perder a pista desse método, em certo momento, e de fundar o conhecimento em procedimentos que só os muito doutos podem realizar.
Se não anulam a eficácia do giro kantiano, as considerações acima inserem alguns problemas na sua estrutura. Não há dúvida de que, ao lermos Kant, colocamo-nos perante um dos maiores gênios filosóficos da História. Mas esse gênio tão incomum tornou a sua obra também incomum. E o caráter incomum dela, sua inusitada estranheza, acabou por limitar o poder explicativo da Lógica Transcendental. De fato, se o conhecimento é uma realização da espécie humana, há de no mínimo ser tida por estranha a gravitação consistente em manter o sujeito no centro e fantasmas à sua volta.

A Encarnação das Ideias

Ao giro copernicano proposto por Kant, no âmbito da Filosofia, seguiu-se outro, anticopernicano e reacionário, no da política europeia. Após a derrota de Napoleão, na campanha da Rússia, em 1812, e o fim da difusão dos ideais da Revolução Francesa que aquele estadista representou, uma onda de restaurações do Antigo Regime varreu a Europa.
Esses movimentos envolveram não só o retorno de dinastias antigas ao poder, mas o restabelecimento de um tipo autoritário de sociedade empregado com relativo sucesso para “manter a ordem”, durante milênios. É inegável que o uso da autoridade, nesses casos, infligiu um sacrifício brutal de vidas e de bem-estar às populações, mas não se pode deixar de notar que, embora comprada a esse preço, a “manutenção da ordem" continuou a parecer indispensável ao menos às pessoas que assistiram aos sacrifícios sem os padecer. É que a ordem sempre foi, para as sociedades, o que a sobrevivência é para a natureza. Assim como os animais lutam e não podem senão lutar pela sobrevivência, as sociedades combatem e têm de combater para não se romperem, ou seja, para manterem sua ordem interna.
No entanto, nenhuma condição histórica é como outra natural. Nenhuma condição histórica é eterna ou está fadada a um destino único e inevitável. Cedo ou tarde, soa sua hora final, e a vida tem de ser reinventada, pelos homens, senão com liberdade plena, ao menos sob condições históricas totalmente novas. A era moderna foi o início dessa hora, para a civilização ocidental. Nela, os povos começaram a notar a possibilidade de manterem a ordem sem o sacrifício de vidas e bem-estar oferecido durante tanto tempo. E compreenderam que valia a pena lutar por isso.
Mas como é difícil reinventar a vida humana! A cada grande avanço, seguem-se retrocessos. Foi o que se verificou na Europa, com o fim da Revolução Francesa, até que a modernização fosse retomada com os movimentos de 1848, a Comuna de 1870 e o avanço do pensamento socialista. Nesse intervalo encravado na Era das Revoluções, manifestou-se um violento movimento de reação às ideias de 1789 e à renovação da vida social. No campo da Filosofia, essa reação expressou-se de modo particularmente significativo no pensamento de Georg Wilhelm Friedrich Hegel.
Popper recorda: “O autoritarismo medieval começou a dissolver-se com o Renascimento. Mas, no continente europeu, a sua réplica política, o feudalismo medieval, não fora seriamente ameaçado antes da Revolução Francesa. (A Reforma apenas o fortalecera.) A luta pela sociedade aberta só voltou a começar com as ideias de 1789, e as monarquias feudais logo sentiram a seriedade desse perigo. Quando, em 1815, o partido reacionário começou a retomar o poder na Prússia, achou-se na extrema necessidade de uma ideologia. Hegel foi indicado para suprir essa necessidade” (POPPER, Karl. A sociedade aberta e seus inimigos. São Paulo: USP/Itatiaia, 1987. Tomo 2, p. 37).
O mesmo autor mostra que a filosofia política de Hegel foi moldada aos objetivos da dinastia no poder, na Prússia: “O coletivismo radical de Hegel depende tanto de Platão quanto depende de Frederico Guilherme II, rei da Prússia, no período crítico durante e após a Revolução Francesa. Sua doutrina é a de que o estado é tudo, e o indivíduo, nada, pois deve tudo ao estado, tanto sua existência física como espiritual” (idem. pp. 37-38). É algo evidente que essa doutrina foi forjada, por Hegel, para prestigiar as ambições de poder de Frederico.
Tal gênese política não é exclusiva da filosofia de Hegel. Pelo contrário, perpassa toda a Filosofia Moderna. Onde a separação entre Igreja e Estado implantou-se, a Filosofia deixou de derivar da fé para derivar do poder. A particularidade de Hegel foi a sua ligação com o soberano. Outros pensadores modernos associaram-se mais a instituições e partidos do que a líderes. Mas o comum a todos é que, ao se desconectarem da fé, aliaram-se ao poder. Não é demasiado cogitar que, sob essas novas condições, ao se emancipar da Teologia, a Filosofia não adquiriu o almejável status libertatis: antes, tornou-se escrava da política. E poucas vezes esse seu novo modo de ser foi visto em estado tão puro quanto em Hegel.
Cabe indagar, nesse caso: e o mérito interno da filosofia hegeliana? E o gênio desse pensador? Não foram determinantes para o enorme sucesso alcançado por ele? As opiniões variam muito a esse respeito. Schopenhauer, que o conheceu pessoalmente, declarou: “Hegel foi imposto de cima pelos poderes vigentes como o Grande Filósofo oficializado”. Notem bem as maiúsculas.
O contemporâneo de Hegel continua a descrevê-lo um tanto impiedosamente: “Era um charlatão de cérebro estreito, insípido, nauseante, ignorante, que alcançou o pináculo da audácia por garatujar e forjicar as mais malucas e mistificantes tolices” (SCHOPENHAUER, Arthur. Obras. Vol. II, p. 17).
O pior é que um filósofo como Popper, em vez de discordar desse parecer, ratificou-o. Para Popper, a mediocridade de Hegel como filósofo levou-o a lançar mão de uma linguagem às vezes impenetrável e propositadamente ininteligível. Motivada por mediocridade ou grandeza (não é o que mais importa), a ininteligibilidade permanece um fato. Popper deu dela o seguinte exemplo: “Escreve [Hegel]: O som é a mudança verificada na condição específica de segregação das partes materiais e na negação dessa condição; é meramente uma idealidade abstrata ou ideal, por assim dizer, dessa especificação. Mas essa mudança, em consequência, é imediatamente em si mesma a negação da subsistência específica material; o que é, portanto, a idealidade real da gravidade específica e da coesão, isto é, o calor. O aquecimento de corpos sonoros, assim como dos percutidos ou atritados, é a aparência de calor que se origina conceitualmente juntamente com o som” (POPPER, Karl. Ob. cit. p. 43). Uma verdadeira conversa de Caetano e Gil, nos bons tempos de Chico Anysio...
Mas é preciso pôr freio à muita radicalização. Às atribuições de mediocridade filosófica e às acusações congêneres, em que Schopenhauer e Popper incidem. Autor prolífico, dono de erudição incontestável e genuinamente interessado em questões metafísicas, Hegel foi grande a ponto de merecer sua inclusão na História da Filosofia, independentemente das relações que manteve com o poder em sua época. É preciso, porém, diferenciar grandeza de espírito do que se pode talvez denominar retidão filosófica. Não faltou grandeza intelectual a Hegel, mas lhe faltaram retidão e lisura. Hegel abusou conscientemente do hermetismo, do esoterismo, do solipsismo linguístico. Empregou toda sorte de artifícios para dobrar os espíritos. Teve lapsos de megalomania. E exerceu um poder brutal por meio do conhecimento.
Enfim, a proximidade do poder absoluto não caiu bem a Hegel. A frase de Lord Acton ressoa, nesse caso, como o grito abafado de um fantasma: “O poder corrompe, e o poder absoluto corrompe absolutamente”. O poder absoluto parece ter corrompido absolutamente a filosofia do grande Hegel.
Examinemos, porém, mais de perto, as linhas mestras do pensar desse filósofo e sofista. O ponto de partida de Hegel, sua verdade inicial e inamovível são as ideias platônicas. Ele percebe que, concebidas à maneira de Platão, as ideias se tornam inconciliáveis com o materialismo que impregna tanto o senso comum quanto a ciência. Parte, pois, do velho pressuposto de que, se as ideias existem, a matéria não pode ser considerada a realidade fundamental. E, para combater os vícios materialistas arraigados em toda cultura, recomenda o remédio da dialética.
Que originalidade há nesse ponto de partida da filosofia de Hegel? Nenhuma. É platonismo puro. Que mérito há nele, além da inventividade palpável? Bem pouco, pois vimos que a atribuição de realidade às ideias não é mais que um vício do pensamento. E o método dialético: introduz algo novo? Sim, a contradição. Para Hegel, a contradição pode parecer ausente do mundo, somente quando o imobilizamos. No seu fluir, o real é pura e simples contradição, pois as coisas sempre fluem para o oposto: o que é quente esfria-se, o que se move, desacelera-se e tende ao repouso, o que vive caminha para a morte. Fluir é mover-se em direção ao oposto. Portanto, se a imobilidade é substancial, o movimento é dialético. Claro: esquecia-me de mencionar que Platão já dera essa descrição do movimento, na passagem do Fédon em que mencionou "o princípio geral da geração, segundo o qual das coisas contrárias é que nascem as coisas que lhes são opostas [...] O mesmo acontece com aquilo que se chama misturar-se, separar-se, aquecer, esfriar, e todas as outras coisas" (PLATÃO. FédonIn Diálogos. São Paulo: Hemus. p. 118).
O problema é que o senso comum e a ciência baseiam-se no princípio de não contradição, que não pode ser aplicado ao que é precisamente contraditório. Isso não implica menos que a falsidade de todo o senso comum e de toda a ciência. De sorte que é preciso forjar outra lógica dos movimentos reais, que Hegel chama dialética.
Em que consiste essa lógica? Que procedimentos assinalam o pensar dialético? Hegel ensina que a dialética é o movimento em que as ideias (que ele denomina Absoluto) refletem-se em si mesmas. O primeiro momento dessa reflexão é a configuração das ideias em si. O segundo é o seu movimento para fora de si, que envolve a sua negação (contradição). Por fim, o terceiro momento é o retorno das ideias a si.
O primeiro momento dialético tem como resultado líquido o que Hegel denomina Ideia; o segundo gera a Natureza, em que as ideias adquirem um corpo, portanto se encarnam; por fim, o terceiro momento resulta no Espírito. Embora constitua um retorno da ideia a si mesma, o Espírito não se realiza numa sobrenatureza, mas na História (isto é, na Prússia!).
Hegel vai além. Enuncia três leis, que presidem os movimentos do real nos vários momentos dialéticos. A primeira lei é a da transformação da quantidade em qualidade e vice-versa. O aumento da quantidade de qualquer elemento de um ser, além de determinado limite, produz uma transformação qualitativa. Friedrich Engels deu o seguinte exemplo da atuação dessa lei: “Se três átomos [de oxigênio] se agruparem em uma molécula, em vez dos dois átomos habituais [que formam o oxigênio], teremos o ozônio, corpo muito diferente do oxigênio ordinário, quer por sua cor, quer por sua ação” (ENGELS, Friedrich. A dialética da natureza. 6ª ed., São Paulo Paz e Terra, 2000. p. 37).
A segunda lei, por sua vez, enuncia a interpenetração e a conversibilidade dos opostos. Isso porque, para passar de uma coisa ao seu oposto, é preciso que a primeira contenha o último e vice-versa. A segunda lei explica os movimentos atrativos dos opostos, assim como os das cargas que se atraem, por tenderem ao estado uma da outra.
Por fim, a terceira lei dialética assevera que a toda negação corresponde outra de sentido contrário. Não se pode deixar de ver, nessa lei, uma generalização da ação e reação enunciadas por Newton: a toda ação corresponde uma reação de mesma intensidade e sentido contrário. Com a única ressalva de que Hegel vê a ação como uma primeira negação destinada a ser, ela própria, negada. Devido à terceira lei, tudo tende a retornar à sua forma originária.
Não convém passarmos sem um exemplo da terceira lei: "Se [um grão de cevada] cai em solo adequado e sofre as transformações certas por influência da umidade e do calor, o grão em questão germina. Isso significa que o grão deixa de existir. Ele é negado. No seu lugar, surge uma planta, que é a negação do grão. Qual é, entretanto, o processo normal de vida dessa planta? Ela cresce, floresce, é fertilizada e, ao final, produz outros grãos de cevada. Tão-logo amadurecem, estes últimos grãos, por sua vez, também morrem. Também eles são negados. Em consequência desta negação da negação, temos de novo um grão de cevada, não mais, aliás, um grão individual, mas dez, vinte, trinta deles" (ENGELS, Friedrich. Anti-Dühring. Chapter 13. Disponível em: http://www.marxists.org). O exemplo é tão eloquente quanto claro. E tem a indefectível vantagem do ar de parábola materialista...
Não há distância intransponível entre a realização dialética das ideias, em Hegel, e a processão de todas as coisas a partir do Uno, em Plotino. Pelo contrário, há imitação desta doutrina naquela. A Ideia resultante do primeiro momento dialético não é muito diferente do Espírito e da Alma plotinianos. A Natureza de Hegel é a matéria plotiniana. E o Espírito é o retorno das coisas ao Uno.
Verdade é que os esquemas também apresentam certas diferenças. Além dos nomes variantes que atribuem aos momentos do devir geral, para Hegel, todas as etapas do movimento dialético são positivas. Ou, para dizê-lo melhor, cada etapa representa uma autorrealização mais plena do ser. Já para Plotino, a processão é um movimento decadente, até o abismo da matéria. Só o retorno ao Uno é ascendente.
Mas essas diferenças perfunctórias escondem a similitude profunda dos dois esquemas. A criatividade da dialética de Hegel é a de Plotino, retocada aqui e ali. O único problema é que elas padecem de um mal idêntico ao de todos os grandes sonhos: não são reais. Pior: tomam a ilusão por verdade, o vulto por corpo, a sombra por luz. Se isso é admissível na arte, na ciência é fatal.
Verdade é que Plotino e Hegel têm a favor de si uma atividade criadora de mundos sem paralelo na História do Pensamento, uma vocação demiúrgica que lhes escorre dos poros. Enfim, um método de realização que parece assimilado da encarnação do Logos no cristianismo. Mas que haveremos de replicar a um velho marxista rebelde que, parodiando, sugerir que Cristo trouxe à luz a tragédia, Plotino, a farsa, e a Hegel restou matar-nos de rir com a comédia?
Em Hegel, a Filosofia faz-se comédia. Platão fornece a matéria da mais pura objetivação das ideias; como um novo Plauto, Hegel lhes sopra a forma que, na História, não lhes tinha sido antes atribuída.

Redução à Matéria

Na Crítica da razão pura, Kant lançou a semente de um novo tipo de materialismo, ao afirmar que “a harmonia que existe no mundo torna evidente o caráter contingente da forma, não da matéria, isto é, da substância do mundo” (KANT, Emmanuel. Critique of pure reason. In Great books of the western world. 2ª ed., Chicago: 1993. Vol. 39, Transcendental Logic, Second Division, Book II, Chapter II, Section VI, p. 190).
Nessa passagem com cheiro de materialismo grego, a matéria é considerada a substância do mundo, a realidade última e não contingente, isto é, necessária. Verdade é que Kant nunca extraiu claramente as consequências dessa afirmação, que se duplica aqui e ali na sua obra. Ele parece ter feito questão de manter seu materialismo esboçado e latente, à sombra das extremidades da sua Crítica. Porém, não muito tempo depois, Ludwig Feuerbach deu pleno desenvolvimento a essas implicações da obra de Kant (e a outras da de Hegel), ao propor a primeira argumentação moderna que parece inteiramente plausível, em prol de uma filosofia claramente materialista.
Em A essência do Cristianismo, Ludwig Feuerbach resumiu sua tese de que o conceito de Deus se reduz ao do homem nos seguintes termos: “Mostro então que o verdadeiro significado da teologia é a antropologia, que entre os predicados da essência divina e humana [...] também entre o sujeito ou a essência divina e humana não há distinção, são idênticos” (FEUERBACH, Ludwig. A essência do Cristianismo. 2ª ed., Campi-nas: Papirus, 1988. p. 30).
O conceito de essência aludido por Feuerbach tem sua origem em Aristóteles, o que fica claro não apenas em razão de o conceito aristotélico ser de uso comum, no século XIX, mas na própria obra de Feuerbach: "Sempre que os predicados [...] expressam a essência do sujeito, não existe distin-ção entre predicado e sujeito, podendo o predicado ser posto no lugar do sujeito, pelo que indico a Analítica de Aristóteles ou ainda a Introdução [Isagoge] de Porfírio" (idem).
Quando Feuerbach afirma que, em alguns predicados, a essência coincide com o sujeito, como explicado na Analítica e na Isagoge, a essência, o sujeito e o predicado são claramente empregados no sentido dos autores daquelas obras, isto é, de Aristóteles e de Porfírio. Por isso, na cons-trução da sua tese sobre a redução do divino ao humano, ele parte de tais conceitos.
Porém, Feuerbach modifica o conceito aristotélico num ponto fundamental ao afirmar que, “na vida lida-mos com indivíduos, na ciência com gêneros. Mas somente um ser para o qual o seu próprio gênero, a sua quididade [essência], torna-se objeto pode ter por objeto outras coisas" (idem. p. 43).
Nessa passagem, a essência não é tomada como conteúdo da definição, como em Aristóteles, mas como sinônimo de gênero. Por isso, os dois conceitos são postos em paralelo na frase “o seu próprio gênero, a sua quididade”, que é a essência.
Como o gênero é o conjunto de características comuns a certo número de seres, com a modificação que rea-liza, Feuerbach passa a pensar a essência muito mais como o gênero do que como a definição. É o que fica claro também na seguinte afirmação: “A vida interior do homem é a vida relacionada com o seu gênero, com a sua essência”. E nesta outra: “O homem é para si ao mesmo tempo Eu e Tu; ele pode se colocar no lugar do outro exatamente porque o seu gênero, a sua essência, não somente a sua individualidade, é para ele objeto”.
Notemos que ta afirmação “ele pode se colocar no lugar do outro exatamente porque o seu gênero, a sua essência [...] é para ele objeto” reproduz exatamente a anterior: “somente um ser para o qual o seu próprio gênero, a sua quididade, torna-se objeto pode ter por objeto outras coisas”. Comparando-as, não se torna apenas claro, mas inequívoco que Feuerbach emprega as palavras essência e quididade como sinônimas, mas faz o conceito respectivo equivaler ao de gênero.
Mas o gênero, que é? Quanto a isso, não creio errar quanto penso que os seres humanos são inumeráveis e cada um deles possui características exclusivas e outras comuns à espécie. Estas, quando abstraídas e reunidas, formam o gênero humano, que Feuerbach faz corresponder à essência. Assim, a essência é transfigurada no conteúdo comum a todos os indivíduos.
Dou, pois, a identificação da essência com o gênero como certa. E, com base nela, gostaria de tecer uma avaliação, talvez diferente da que comumente ouvimos, da tese central de A essência do Cristianismo.
A ideia de essência, isto é, do gênero, aparece já nesse título. E não é preciso muito esforço para extrair da leitura da obra que o conteúdo da essência do Cristianismo (Deus e o divino) a que Feuerbach se refere já no seu título é o humano, pois ele afirma expressamente que “entre a essên-cia divina e a humana não há distinção, são idênticas”. Esse é o real sentido da redução da teologia à antropologia operada por Feuerbach.
Para entendermos as consequências desse mo-do de pensar e da crítica à ideia de Deus que Feuerbach formulou com base nele, nada melhor do que retornar um instante ao conceito de essência de Aristóteles. Já afirmei que, nesse autor, a essência corresponde à definição de um objeto. Por isso, pode ser bem entendida como o mínimo que basta para diferenciá-lo de outros objetos. Ou, se quisermos empregar as palavras por meio das quais o próprio Aristóteles exprimia uma definição, ela é a soma do gênero próximo e da diferença específica, o que implica que não é só o gênero, mas também aquilo que o diferencia.
Curiosamente, o que Feuerbah chamou gênero está bem longe de ser o mesmo que o gênero que Aristóteles consideou parte da definição. Vimos que, para Feuerbah, o gênero era a essência ou quididade de um ser. Portanto, o que é comum a todos os indivíduos daquele tipo. Para Aristóteles, muito diferentemente, o gênero incluído na definição não era o do ser definido, mas outro mais vasto, assim como o gênero animal no caso do homem.
A definição, para Aristóteles, é esse gênero vasto reduzido e singularizado por meio da diferença específica. E, embora esta pertença a todos os indivíduos do gênero, não é qualquer característica compartilhada por todos eles, mas uma apta a diferenciar o gênero amplo a tal ponto que o ser definido (o homem, no exemplo dado) não se confunda com qualquer outro.
Assim concebida, a definição aristotélica se diferencia da essência feuerbachiana. Esta é uma universalidade, um conjunto de características comuns a indivíduos de um mesmo tipo e nada mais. O gênero não supõe que as características nele reunidas estejam dispostas em determina-da ordem. A essência aristotélica, ao contrário, o supõe. A essência é a mesma universalidade que enunciamos pela palavra gênero organizada de determinada maneira. No caso do ser humano, é o conjunto de traços comuns aos animais dispostos sob o critério organizador da racionalidade.
É provável que Feuerbach tenha tomado o seu conceito de essência do hegelianismo alemão. Não o encontro em Kant, nem explicitamente em Hegel, mas em Marx e Feuerbach, que foram hegelianos. Marx escreveu: "O Cristianismo é a religião kat exohin, a essência da religião, o homem deificado sob a forma de uma religião particular. Semelhantemente, a democracia é a essência de toda constituição política, o homem socializado sob a forma de uma particular constituição do Estado, a qual se relaciona a outras constituições como o gênero à sua espécie" (MARX, Karl. Critique of Hegel’s Philosophy of right.Part 2, c, d. Disponível em www.marxists.org).   
Marx refere-se ao Cristianismo como o homem deificado. Pensa a religião cristã como fruto da confusão de Deus com o homem, em conformidade com Feuerbach. E prossegue para afirmar que o Cristianismo é a essência da religião, e a democracia, a essência de toda constituição política. A democracia é o homem tornado Estado, como o Cristianismo é o homem tornado Deus. Aquela é a ilusão política; este, a ilusão religiosa. E arremata: a democracia relaciona-se aos outros regimes como o gênero à espécie. Chama, assim, a democracia gênero, e os outros regimes, espécies. Claro que, se a democracia é a essência dos regimes políticos, segue-se que o gênero é a essência, em Marx como em Feuerbach.
Marx toma a essência pelo gênero exatamente e com tanat convicção quanto Feuerbach: "Se as formas da existência social do homem, assim como a família, a sociedade civil, o Estado etc., devem ser consideradas como a atualização, a objetivação da essência humana, então [...] o homem permanece como o conteúdo essencial dessas realidades, e elas como a sua universalidade atualizada, portanto como algo comum a todos os homens" (idem).
A essência aqui mencionada não é a aristotélica. Não são os atributos animais organizados sob critério racional. É antes o gênero, o agregado puro e simples daqueles atributos. A única diferença é que, segundo a filosofia de Hegel (seguida neste passo por Marx), esse agregado assume as formas concretas da família, da sociedade civil e do Esta-do, que são a essência humana objetivada. 
Isso basta como indicação de que o hegelianismo foi responsável por modificar o significado clássico da essência, e que o novo conceito surgido naquele momento foi utilizado por vários filósofos. Basta também para mostrar que, ao invocar Aristóteles e Porfírio, Feuerbach usou o conceito modificado como se correspondesse ao original.
Mas a verdade é que o novo conceito é muito diferente do antigo. A essência genérica mencionada por Feuerbach e Marx não é o mesmo que a essência como definição de um objeto. É, antes, o contrário dela. É a definição desagregada, a definição cujos elementos se desprenderam do eixo organizador e se dispuseram sob outra ordem.
O problema é que a noção de essência genérica encontrada na tradição hegeliana rompe com o conceito sedimentado de essência de quase todo o restante da tradição filosófica, o que causa um grave problema de comunicação e de compreensão.
As consequências dessa ruptura não foram pequenas. Por meio dela, Feuerbach construiu a sua tese de que a essência de Deus é igual à do homem e, por isso, Deus é uma invenção humana. A sugestão tem fascínio. Brilha como uma descoberta da razão pura, mas não o é, pois nada nos diz sobre a confusão da definição de Deus com a definição do homem, que é toda uma outra coisa.
Apenas se admitirmos o giro filosófico tentado pelos hegelianos, a crítica de Feuerbach faz sentido. Só nesse universo conceitual, a essência de Deus confunde-se com a do homem e, ainda assim, de maneira vaga e não claramente comprovada. Se nos movermos em outro universo (aquele fundado pela Analítica de Aristóteles), chegaremos a conclusão muito distinta. Penso que esse outro universo conceitual é muito superior ao de Hegel, que se desmancha em inconsistências. 
Ao acusar o Cristianismo de tomar a essência de Deus como se fosse a do homem, Feuerbach acusou-o de substantificar a essência humana sob a forma de Deus. Se a acusação fosse procedente, o Cristianismo seria a mais vasta e grosseira de todas as substantificações de ideias já realiza-das. Mas Feuerbach tomou a essência como o gênero. Afirmou que Deus é o que os indivíduos humanos têm em comum. Se isso fazia sentido no universo hegeliano, por certo não faz sentido naquele fundado em Lógica mais rigorosa. 
Os indivíduos humanos têm em comum seus erros. Deus é perfeito. Eles têm em comum um poder mínimo, quimérico. Deus é todo-poderoso. Os homens têm em comum a mortalidade; Deus é imortal. Claro que, por levar a consequências como essas, a crítica de Feuerbach não parece realmente se sustentar.
Em cada um dos capítulos de A essência do Cristianismo, um ou outro aspecto do Deus cristão é referido ao gênero humano. Página após página, a sôfrega racionalidade humana, a não menos sôfrega moralidade dos homens, a encarnação, o sofrimento, a relação mãe-filho, a relação pai-filho, os fenômenos naturais e tantas outras coisas humanas são convertidas em experiências de Deus, sem provar coisa alguma sobre a confusão (ou não) das definições de Deus e do homem.              
Apesar dessas deficiências, a crítica de Feuerbach foi saudada como grande conquista do saber humano. Em alemão, o nome Feuerbach significa riacho de fogo. Troçando, Marx afirmou que não é possível ingressar no pensamento crítico, sem passar pelo riacho de fogo da filosofia de Feuerbach. Ao que tudo indica, ele quis, com isso, se referir precisamente à crítica do conceito de Deus por aquele filósofo. Mas a que parte o riacho realmente nos leva? Para muitos, leva à consciência crítica de que, ao adorar a Deus, o homem adora a si mesmo e, ao falar de Deus, fala de si. Para outros, porém, leva somente a um feixe de tolices.

O Materialismo Revolucionado

Este é um tempo estranho, em que se requer do homem que viva no mundo sem uma visão de mundo. Continuamos a ter um mundo para viver e decifrar, e olhem que ele nunca foi tão complexo. Porém, ao contrário de todas as outras épocas, hoje não possuímos visões de mundo que nos ajudem a entender e a viver neste complexo orbe. Visões de conjunto diversas das que integram o senso comum tornaram-se tão raras que parecem um luxo, um capricho, quando não são tratadas como coisas inalcançáveis.
Mas, se a impossibilidade de visões de mundo fosse verdadeira, tanto a Filosofia como a Teologia estariam, de chofre, inviabilizadas. Não seriam possíveis, pois nada mais são que instrumentos de construção de visões de conjunto das coisas. Dediquei minha vida a essas duas disciplinas. E dos grandes teólogos e filósofos que pude estudar, dois me atraíram mais a atenção: Santo Agostinho e Karl Marx.
Curioso é que são pensadores em tudo opostos. Agostinho teve uma formação romana clássica. Estudou letras e retórica. Na tenra idade, assimilou o modo grego de pensar mais do que o cristianismo de sua mãe, Mônica, em relação ao qual cultivou admiração e ressalvas. E não o fez sem motivos. As doutrinas de que Agostinho se enamorou, nesse tempo, mostram que ele se inclinou com ímpeto para as visões de mundo materialistas (no caso, o maniqueísmo) e céticas (academicismo) que circulavam no Império. Só a partir de sua conversão, aos 33 anos, Santo Agostinho trocou o materialismo típico da cultura grega pela fé cristã, da qual se tornou o pensador exemplar e o maior referencial doutrinário, durante quase toda a Idade Média.
Marx realizou o percurso contrário. Nasceu numa família de rabinos e se criou numa sociedade (a da Prússia) em que a filosofia reinante, promovida pelo próprio Estado, era o idealismo teológico de Hegel. Durante sua vida, Marx transitou dessas influências para o materialismo histórico que ele próprio criou, com ajuda de Friedrich Engels. Apesar de todas as dificuldades de interpretação do mundo social em que se envolveu, o materialismo de Marx pode ser considerado o mais bem-sucedido exemplar dessa orientação filosófica em toda a História.
O motivo primeiro de meu igual interesse por pensadores tão opostos quanto Agostinho e Marx foi o propósito de empreender o exame mais honesto possível das filosofias que pudesse percorrer. Nada faculta análise mais proveitosa de uma doutrina do que o exame igualmente acurado da doutrina oposta. Como, desde o início de minha trajetória filosófica, eu me inclinara para o pensamento cristão, o aprofundamento na obra de Marx permitiu-me o contato com um modo diverso e inverso de ver o mundo. Permitiu-me estudá-lo também ao avesso e indagar seriamente se a visão de mundo materialista, porventura, não seria mais fecunda que o cristã.
Porém, há outro motivo tão fundamental quanto esse para o meu interesse por Agostinho e Marx. É que, embora as teologias e as filosofias facultem construir distintas visões de mundo, a História parece apontar a existência de duas e somente duas metavisões. Refiro-me ao materialismo, que Marx tão bem representa, e à metafísica, à qual a Teologia foi quase sempre anexada. Agostinho está entre os mais destacados cultores da metavisão teológico-metafísica.
Se a visão de mundo é uma interpretação global da realidade ou de parte significativa dela, a metavisão é mais do que isso. É um agregado de visões distintas, mas convergentes. Pode-se propor que uma metavisão é uma visão de visões do mundo. Talvez, na História do Pensamento, não haja mais do que duas metavisões capazes de agregar todas as concepções filosóficas propostas. São elas o materialismo e a metafísica.
Isso se torna claro, quando lançamos à História do Pensamento um olhar a partir do alto. Ao fazê-lo, divisamos um período inicial de formação em que a Filosofia grega foi, antes de tudo, materialista. Logo em seguida, as obras de Platão e Aristóteles desafiaram e chegaram a abalar os pressupostos dos materialismos pré-socráticos e da cultura grega como um todo. Isso ocorreu desde que Platão ousou propor a existência de um nível da realidade subsistente à parte da matéria: aquele que hoje denominamos espírito e que ele chamou mundo inteligível ou das ideias. Discorri mais amplamente sobre os motivos profundos dessa revolução filosófica, no artigo sobre o Logos divino.
Porém, o condicionamento exercido pelo modo grego de pensar, o peso total da cultura grega, fez com que, após o desaparecimento de Platão e Aristóteles, os filósofos tornassem progressivamente às visões de mundo materialistas. Os seguidores de Platão foram a exceção a esse movimento, pois continuaram a defender concepções metafísicas.
Por terem permanecido praticamente os únicos a defenderem a novidade metafísica é que os platônicos se tornaram tão importantes na Filosofia Antiga. Por isso também, foram tão associados ao cristianismo. Só ao nos darmos conta da oposição persistente entre materialismo e metafísica, compreendemos por que, desde o século II, o cristianismo juntou suas águas às do platonismo em escala tão ampla. Não é exagero afirmar que o elemento platônico e o cristão se fundiram quase totalmente, devido às afinidades que os associavam no plano da metavisão. No entanto, a fusão nunca resultou em confusão. Os grandes pensadores, ao menos, sempre discerniram perfeitamente o que, no pensamento cristão medieval, era platonismo, e o que era fruto do cristianismo primitivo.
Essa fusão de platonismo e cristianismo foi responsável pelo verdadeiro funeral dos materialismos, ocorrido entre os séculos IV e V. Não se tratou de um enterro individual, mas coletivo, do sepultamento de toda uma civilização, da cultura pagã inteira, que feneceu nesses séculos e arrastou para a cova os materialismos filosóficos penosamente construídos. Até os pressupostos vulgares, entranhados na maneira grecorromana de ver o real como matéria, foram então abandonados. O materialismo exauriu-se até a última gota e desapareceu do mundo cristão.
Os motivos desse espantoso acontecimento constituem um dos mais empolgantes capítulos da História, pois poucos movimentos nos levam mais diretamente ao significado da Idade Média e da Modernidade como antítese dela. A era medieval foi fruto do desmoronamento da cultura pagã, cujas sementes não se perderam, mas cuja forma foi varrida da face da Terra. E, se a Modernidade pode ser definida de várias maneiras, do ponto de vista das visões de mundo, o elemento central dela há de ser identificado como o reaparecimento do materialismo no mundo.
Continuemos, porém, a olhar os acontecimentos a partir do ponto elevado a que me referi. Ao fazê-lo, descobriremos que os materialismos ressurgidos na Idade Moderna destruíram os sistemas metafísicos apenas para serem, eles próprios, refutados em seguida. De fato, nenhum dos materialismos filosóficos propostos, na Modernidade, manteve-se íntegro. Todos foram reduzidos a pó. Arrastaram também consigo as metafísicas, mas por outro motivo, a saber: porque demonstraram que estas eram irrefutáveis, estavam fora do campo da ciência e, portanto, eram inúteis para fazer avançar o conhecimento.
Não descrevo esse traçado da Filosofia e mais amplamente das Ideias como resposta a questões formuladas na busca do conhecimento, mas como recolocação das próprias questões. O reconhecimento das metavisões materialista e metafísica é um modo de interrogar os fatos da História do Pensamento. É um modo de perguntar aonde esse incrível traçado de reflexões nos conduz.
Nesse ponto, precisamente, a consideração das obras de Santo Agostinho e de Marx se torna fundamental. Se a refutação do materialismo antigo, na época de Agostinho, teve bons fundamentos, e dificilmente se pode duvidar desse fato, a compreensão do estado atual das metavisões passa pela indagação do grau em que a metafísica agostiniana foi abalada pelos materialismos modernos e pelo de Marx, em particular. Verdade é que esses materialismos se preocuparam com as metafísicas clássicas, com Platão e Aristóteles, mais do que com Agostinho e com o próprio Tomás, mas o corpus agostiniano foi o que mais as revitalizou e proveu as condições indispensáveis para a metafísica continuar a existir no futuro incerto das reflexões filosóficas. Não foi sem motivos que a Alta Idade Média se fez agostiniana e que a Reforma afundou suas raízes no teólogo de Hipona.
Por outro lado, quando o materialismo voltou a florescer, no século XIX, a variedade que se impôs às demais, tanto no campo da práxis como no das ideias, foi o marxista. Chamemo-lo pelo nome mais adequado dentre os que foram usados para designá-lo, ora corretamente, ora de modo impreciso. Chamemo-lo materialismo histórico.
Essa variedade de materialismo não se tornou dominante por motivos casuais, mas por conter, desde o início, a mais consistente proposta de liquidação da metafísica dentre as que já haviam sido apresentadas. Melhor não apenas por ter sido a mais longamente gestada, por Marx e Engels, mas por ter sido a única que, ao mesmo tempo, inverteu o materialismo antigo e os seus equivalentes modernos que, na época de Marx, eram os da chamada esquerda hegeliana.
Os materialismos da Antiguidade, que Santo Agostinho enterrara, e os modernos, hegelianos, tinham como denominador comum o enviezamento abstrato. Marx alcançou tanto sucesso em colocar o seu próprio materialismo num patamar superior aos demais, por tê-lo tornado concreto. Por isso, a expressão materialismo histórico, mais que materialismo dialético ou socialismo científico, faz jus ao sentido básico do marxismo. Histórico invoca antes de tudo o concreto, o não abstrato. Não acontece o mesmo com as expressões materialismo dialético e socialismo científico.
O materialismo não fora tão amplamente abandonado, entre os séculos IV e XVII, sem bons motivos. Essa conclusão é confirmada, quando nos debruçamos sobre o problema maior que as concepções metafísicas do real serviram para propagar, a saber: o vício da substantificação. Como esse vício não pode ser corretamente atribuído a Platão, mas ao senso comum, é possível mostrar a sua presença inclusive nas correntes materialistas de pensamento. O monismo de Spinoza é um exemplo, mas podemos citar outros, como os materialismos da esquerda hegeliana.
Praticamente todos os materialismos antigos e diversos dentre os modernos estão gravemente maculados pelo vício de pensamento central da História da Filosofia. Não é diferente sequer com o de Marx, na medida em que adota a “crítica do céu” de Feuerbach. Porém, há um sentido em que o materialismo de Marx pode ser emancipado de Feuerbach. Há um sentido em que ele funciona independentemente das categorias daquele filósofo. Esse é exatamente o sentido concreto do materialismo histórico.
Marx não encanta tanto por ter invertido a metafísica, o que ele também realizou, mas por ter invertido o próprio materialismo antigo e moderno e, com eles, a substantificação de que estão impregnados. Essa, a meu ver, é a razão da superioridade do materialismo de Marx às outras variedades da mesma doutrina. O materialismo histórico é melhor que a ampla maioria dos outros por ter maior consciência desse problema central da História da Filosofia. Tão central, aliás, que, em certos momentos, chega a se confundir com ela.
Na perspectiva proporcionada pela História da Filosofia, portanto, o período em que a objetivação das ideias foi mais superada, na Antiguidade, foram os séculos III a V e, na Modernidade, os séculos XIX e XX. A inversão mais recente, porém, não se deu em todas as vertentes materialistas, nem por influência delas, mas sobretudo a partir da influência do materialismo histórico.
E, se esses dois períodos conheceram as mais significativas superações da substantificação, podemos perguntar qual foi o impacto do materialismo de Marx sobre a metafísica agostiniana. A que espécie de conclusão o cotejo dessas versões da metafísica e do materialismo conduz? Marx permite remover a metafísica do período dos pais da igreja?
Na verdade, como as metafísicas são irrefutáveis por definição, é claro que a agostiniana não foi destronada pelo materialismo histórico. Por outro lado, ela própria não fornece os instrumentos necessários para refutar o marxismo construído tantos séculos depois de Santo Agostinho, sobre evidências desconhecidas por ele. Tudo o que se pode fazer, digamos, é comparar as duas grandes doutrinas, é entender que Santo Agostinho construiu uma doutrina da liberdade de Deus e do homem. Para ele, Deus é a verdade, e a verdade é libérrima. Nesse sentido, Agostinho antecipa Escoto e Ockham: o Universo é como é, porque Deus o quis. Mais do que isso, quando se torna conhecida do homem, a verdade rompe todos os seus grilhões. “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (Jo 8:32). A verdade libérrima promove a libertação do homem. Isso é Santo Agostinho. Marx, por sua vez, ancora sua obra no valor da igualdade e o promove muito mais do que a liberdade. Isso torna o materialismo histórico praticamente incomparável com a metafísica de Santo Agostinho Portanto, nenhum dos dois sistemas refuta o outro. 
Michel Foucault foi historiador e filósofo materialista. Para ele, “à diferença do mundo cristão, universalmente tecido pela aranha divina [...] o mundo da história efetiva conhece apenas um único reino, onde não há nem providência, nem causa final, mas somente as mãos de ferro da necessidade que sacode o copo de dados do acaso” (FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1999. p. 28).
Mas, em Foucault, pressupostos materialistas como estes não importam tanto. A contribuição por excelência dele consistiu na tradução do pensamento de Marx em linguagem política, na extração de toda uma série de consequências políticas que tinham permanecido à sombra do corpus marxista e careciam de desenvolvimento. Foucault mostrou que o poder não se encarna num sujeito particular, por mais privilegiado que seja (por exemplo, o Estado ou uma classe), mas se difunde no tecido social. Por isso, o poder é impessoal. Sempre que se apresenta personificado ou concentrado, ele não é mais que a miragem de um fato complexo não discernido ou a cristalização provisória de uma potência prestes a se desagregar.
Nada melhor que as palavras do próprio Foucault sobre o tema: “O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem. O poder funciona e se exerce em rede” (idem. p. 183).
Embora vacile ao se ver questionado sobre a natureza do poder, Foucault tende afinal a considerá-lo a expressão de uma luta. O contorno dos fatos, do real histórico, “não obedece a uma destinação, nem a uma mecânica, mas ao acaso da luta” (idem. p. 28). Essa concepção é tributária da noção de igualdade de Marx. Ambas afirmam a igualdade com prejuízo, maior ou menor, para a liberdade. Por maior que tenha sido a boa vontade de Foucault, não é possível concluir que a luta constante produza outro resultado. Ao menos como a vimos travar-se até hoje, é preciso concluir que a luta por si só não liberta, mas acorrenta.
Marx falou da revolução permanente. Que é tal revolução, a não ser a luta contínua? Na imensa rede de conflitos que ela envolve, o homem não pode ser livre. Permanece cativo. De quem? De ninguém. Apenas da própria luta. Lutar, lutar e lutar, sem solução e sem fim, torna-se o destino dele.
É essa uma doutrina da liberdade? Não aparenta. Marx e Foucault criaram doutrinas que priorizam a igualdade, mas que conduzem à ampliação demasiada e à perpetuação dos conflitos, não à pacificação social. Portanto, não à libertação do homem. A não ser que creiamos que o “acaso da luta” trará paz à Terra e libertará o homem da violência.
A partir do século XVIII, em muitas sociedades, a fé em Deus foi parcialmente substituída por utopias políticas como a de Marx. Quase todas as vezes em que isso ocorreu, uma versão de materialismo, teórico ou prático, operou a transição entre as duas. Mas Deus e a política são incomensuráveis. Deus é o transcendente, a política, o imanente. Deus é invisível, a política, visível. Deus é o atemporal; a política, o temporal. Deus, o incompreensível, a política é o que compreendemos da sociedade. Não há elemento comum entre eles. Por isso, não podem ser aproximados e comparados. E, se não o podem, como é possível opô-los ou substituir um pelo outro? Toda e qualquer substituição operada, por esse meio, padecerá de uma falha lógica cujo preço será um dia cobrado.
No entanto, que fazem os materialismos modernos quase sem exceção? Comparam Deus e a política. Não contente, Marx ainda compara a libertação promovida por Deus com a igualdade alcançável pela política. À primeira chama ópio do povo, por desviar da outra. Não há, nessa vindicação da política, uma pretensão excessiva? Pode Marx, por qualquer outro método, chamar ópio a religião, a não ser comparando-a com a política? Mas a comparação é devida?
Se o melhor dos materialismos tem esse fim, que dizer dos piores? Por outro lado, o valor científico nulo das metafísicas ficou demonstrado, ao longo da História. Assim se chegou não à falência, mas ao paradoxo do conhecimento atual, que faz sentir e pressentir a escassa disponibilidade de visões de mundo que nos ajudam realmente a viver. Resta indagar se o paradoxo permite novos tratamentos para a histórica disjunção entre Deus e a matéria.

O Super-Homem

A desintegração dos mundos sociais materialistas, no fim do século XX e início do XXI, e a sua substituição por mundos erigidos sobre uma base econômica oposta (capitalista), no contexto de um movimento internacional também oposto (a globalização), têm especial significado para a História da Filosofia Cristã. Não poderia ser diferente. Se a História do Pensamento reflete a dos mundos sociais, a derrocada das sociedades materialistas contemporâneas está a nos gri-tar que há algo de errado com a sua metavisão de mundo.
O percurso das escolas filosóficas mais recentes tem algo a nos dizer sobre esse problema. Se o traçado do pensamento oitocentista é o de uma proliferação e profunda diversificação de propostas, a nos segredarem a insuficiência do materialismo, do lado metafísico, as variações não foram menores. Para abordá-las com maior facilidade, é útil dividi-las em doutrinas cristãs, numa banda do rio Lete, e não cristãs, na outra banda.
Na primeira banda do rio, observamos o contínuo desenvolvimento de filosofias históricas, como o tomismo escolástico e o nominalismo medievo. No seu reaparecimento, durante o século XIX, a primeira e a última dessas filosofias foram adotadas mais como inspiração do que como sistemas completos e acabados. A primeira foi adotada, algumas vezes, como uma espécie de philosophia universalis. Não é difícil perceber que, nesse caudal de pensamento, inserem-se Jolivet, Mercier, Maritain e outros filósofos neotomistas. O Papa Bento XVI também representa essa corrente.
Não há maior novidade, nas acomodações ocorridas, no interior desses arraiais. Exceções luminosas são as doutrinas de um Kierkegaard, de um Bergson e de uma Hannah Arendt, que inalam a inspiração cristã e tentam desenvolver algo novo. Mas, em geral, o cheiro desse amplo movimento é de monastério ou, pior, de sacristia.
No entanto, o que de maior valor metafísico se produziu, nesse período, não veio da margem cristã do rio que cruza o Hades, mas da outra banda. Refiro-me às correntes de pensamento emanadas de Nietzsche e de Heidegger. O primeiro pouco se preocupa em fundamentar o que afirma. Isso é próprio do seu pensamento. Não é muito diferente em Heidegger, apesar das longas apresentações históricas que fornece de suas teses. Mas o raro da demonstração e da fundamentação, nos dois casos, decorre consequentemente das premissas do pensamento deles.
Tanto Nietzsche como Heidegger esforçam-se para se emancipar da Metafísica Antiga. O primeiro encontra motivo para fazê-lo no momento histórico único, que o décimo-nono século descortina. Para descrevê-lo e anunciar o futuro que se fará, Nietzsche cria uma ilustre personagem, Zaratustra, mestre e profeta da sociedade por vir.
Heidegger é um dos mais autorizados intérpretes desse ponto da filosofia de Nietzsche. Vale a pena escutá-lo: “Com o nome super-homem [cujo advento Zaratustra anuncia], Nietzsche não se refere à superdimensionalização do homem até hoje vigente. Ele também não pensa uma espécie de homem que descarta o humano e que faz da arbitrariedade nua e crua a lei e da fúria titânica, a regra. Tomando, antes, a palavra em sentido literal, o super-homem (Über-mensch) é o homem que vai para além do homem até hoje vigente [...] Mas de onde vem o clamor pela necessidade do super-homem? Por que o homem não é mais suficiente? Porque Nietzsche reconhece o instante histórico em que o homem se prepara para entrar na total dominação da Terra [devido ao amplo desenvolvimento da ciência e da técnica]. Nietzsche é o primeiro pensador que, considerando a história do mundo tal como esta pela primeira vez nos chega, coloca a pergunta decisiva e a pensa através de toda sua amplitude metafísica. A pergunta é: o homem enquanto homem, em sua constituição de essência até hoje vigente, está preparado para assumir a dominação da terra?” (HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 91).
Não só isso. Heidegger introduz outro ponto. Embora cheio de todas as pulsões e de todos os ideais do homem antigo, grego e romano, Zaratustra anuncia o super-homem, exatamente porque as novas condições sociais tornaram o atual inadequado e até superado. Sobre esse segundo ponto, nosso autor discorre nos seguintes termos:
“Qual a ponte que permite a ultrapassagem para o super-homem e assim permite ao ultrapassante [ao próprio super-homem] ir-se embora do homem até hoje vigente, de modo tal que ele possa enfim dele livrar-se? A obra Assim falava Zaratustra, que deve mostrar a ultrapassagem do ultrapassante, está de tal modo estruturada que a resposta é dada na parte II [...] ‘Pois que o homem seja redimido da vingança: isto é para mim a ponte para a mais elevada esperança e um arco-íris após longa intempérie’ [...] Segundo a palavra de Nietzsche, o pensamento até hoje vigente é determinado pelo espírito de vingança. Como então pensa Nietzsche a essência da vingança, posto que ele a pensa metafisicamente? Na segunda parte de Assim falava Zaratustra, no discurso já mencionado ‘Da redenção’, Nietzsche deixa seu Zaratustra dizer: ‘Isto, sim, isto somente é a própria vingança: a recalcitrância da vontade contra o tempo e o seu era’ [...] Como poderá o homem assumir a dominação da Terra, como pode ele tomar a Terra como Terra sob sua guarda, se e enquanto ele subestima o que é terreno, à medida que o espírito de vingança determina sua reflexão? Se isto, a saber, salvar a Terra como Terra, procede, então, primeiro, é preciso que o espírito de vingança desapareça” (idem. pp. 95,99,101).
Heidegger não vacila em apontar o caráter destoante de tal anúncio, em relação à obra de Nietzsche. Este é o apologista da vontade de poder e da política da guerra, como os elementos primários da História, até a subversão judaico-cristã, que ele vê como o envenenamento do homem, pois cunhou os pseudovalores da humildade, da compaixão etc., para impor o reinado dos fracos (e patifes) sobre os fortes, contra tudo o que a vontade de viver instituiu, no plano da Natureza, e a vontade de poder instaurou, no da História. Porém, diz Nietzsche, a mais exata expressão da vontade de poder, o espírito de vingança que atravessa a História, deve desaparecer, para que a dominação do super-homem se implante.
Vale a pena avaliar com cuidado esse imponente edifício de ideias. Se a Filosofia e o pensamento humano se fazem significativos, na medida em que dão origem a modos de ser sociais, temos de perguntar se as de Nietzsche e Heidegger têm tal utilidade. Para não adotarmos suspeições pouco claras, como as do envolvimento propalado (e comprovado) de Heidegger com o nacional-socialismo, podemos observar que essa nova e extraordinária forma de Metafísica não contribuiu, ao menos até agora, para o advento de uma só sociedade nova. O super-homem não veio. Pelo contrário, no espaço de tempo em que devia ter-se manifestado, o homem produziu duas Guerras Mundiais.
É escusado duvidar do real advento desse novo homem, um século e duas Guerras Mundiais depois de Nietzsche. Ainda mais com a agravante de as guerras terem sido movidas num espírito nada distante do que a filosofia dele pregava. Tampouco estamos autorizados a interpretar a redenção da vingança a que Nietzsche se refere como algo mais que uma nova forma dela.
No entanto, o decisivo para renegar a filosofia de Nietzsche e de Heidegger não é a promessa sempre adiada do super-homem e do aparecimento do mundo novo, mas a desconexão entre eles. É o fato de a situação histórica propícia para a entrada do homem na dominação da Terra ter passado, sem que o super-homem tivesse vindo. Vivemos no brave new world sobrevivente daquela situação: um montão de problemas ecológicos graves e a conjugação ameaçadora de tecnologias de destruição em massa e fundamentalismos religiosos. Pouco aproveita justificar os elementos positivos dessa nova ordem, se não conseguimos, com eles, fazer recuar a ameaça representada pelos que são negativos. Sem contar a lembrança viva de duas Guerras Mundiais, da transformação que as seguiu de uma metade do mundo em socialista e do estrepitoso desmoronamento dela.
Esse meio mundo realmente desabou, e o materialismo contemporâneo com ele, como o antigo havia desabado após o aparecimento da Metafísica e sua combinação com o cristianismo. Reanimar esse novo e finado materialismo é, portanto, recalcitrar contra a História Social e a Filosofia. Daí a importância de Nietzsche e de Heidegger, que foram argutos o suficiente para perceberem que, se a Filosofia devia-se revestir de um modo de ser não cristão, era preciso encontrá-lo fora do materialismo, o que equivale a afirmar dentro da Metafísica.
Mas a tão grande distância das condições históricas que Nietzsche vislumbrou presentes e considerou favoráveis ao aparecimento do super-homem, já não é mais possível esperá-lo. Pergunto-me até se é possível uma Metafísica sem Teodiceia, uma Filosofia sem Deus, como Nietzsche e Heidegger pretenderam. Pergunto-me, enfim, se a margem não cristã do Lete continua habitável.
Se a filosofia de Nietzsche proclama o super-homem numa situação histórica, o término dessa situação não pode deixar de lhe ser debitado. A menos que acreditemos que o eterno retorno em que aquele filósofo erigiu o seu pensamento trará a situação de volta... Mas rezar para Nietzsche e Heidegger e esperar essa volta são práticas pouco consistentes com a cena atual do mundo.
Se filósofos são como pedreiros e carpinteiros, se eles ajudam a erguer mundos sociais, onde estão os da margem esquerda do Lete anunciados no século XIX? Não estão em parte alguma, nem podem estar. Mundos não se erguem sobre sonhos, mas sobre fés, religiosas ou não. Pergunto-me se Nietzsche e Heidegger não inviabilizaram o seu próprio projeto, ao reduzirem o papel da fé. Pergunto-me, enfim, se a desagradável sensação que deixaram, ao seccionar o cristianismo da História da Filosofia como carne pútrida, não foi o seu erro fatal.
Voltemo-nos, porém, um instante, à acusação de falta de fundamentação formulada em face de Nietzsche, pois merece maior atenção. A acusação pode ser estendida, também, às teses centrais de Heidegger. A Metafísica antiga era um método de fundamentação, na medida em que era conduzida pela razão. Na terminologia própria de Aristóteles, ela era um método de estabelecimento das causas das coisas, ou seja, da sua explicação. A nova Metafísica, ao superar a antiga, livra-se daquelas causas, mas também do império da razão. Heidegger mostra que a nova Metafísica é atravessada pela vontade, como a antiga o era pela razão. Daí a dívida da filosofia de Nietzsche e da de Heidegger para com a arte e a força indômita da existência humana.
Mas explicar pelas causas não é só afirmar o encadeamento delas. É ao mesmo tempo manter consciência do princípio da razão suficiente. Em casos extremos, o que existe empiricamente pode não ser efeito de causa alguma. Nem por isso está livre de ter uma razão suficiente para existir, o que nos mantém nos domínios da Lógica. Portanto, embora a vontade tenha um papel relevante na Metafísica, o ser não pode ser pensado fora dos limites lógicos.
A força dessa verdade manifesta-se na afirmação nuclear de que a Metafísica Antiga é um método de fundamentação, e a nova Metafísica, sua negação, não o é. O silogismo em que essa assertiva se funda (A é diferente de B; se A é C, logo B não pode ser C) cheira a Aristóteles. A dependência da nova Metafísica para com esse silogismo de modo nenhum confirma sua independência da antiga forma de razão. De fato, há em Heidegger mais do que a Metafísica destilada da vontade. A antiga Metafísica, vertida do alambique da razão, também está presente nele e no próprio alicerce. De modo que a separação das duas não é de maneira alguma clara.
Perguntamos como Nietzsche e Heidegger podem voar para longe da antiga razão metafísica, se tanto dependem dela? Como podem construir de modo tão consequente sobre aquela razão, e a despedir, num instante e sem carta de divórcio? Não será, a nova Metafísica, no fundo, a antiga transfigurada? Enfim, onde estamos, ao ler Nietzsche e Heidegger: na Metafísica antiga ou na nova?
Curvemo-nos aos imperativos existenciais que Heidegger tanto encarece. Admitamos que eles justifiquem o seu pensamento. Consideremos ainda, em toda a extensão, esse misterioso dom que a arte possui de apascentar o coração humano. Embora a questão existencial, no mundo de hoje, seja mais complexa do que tudo isso, aquiesçamos e admitamos apresentá-la dessa maneira. Ainda assim, a Filosofia é mais do que o existencialismo heideggeriano parece sugerir. E tanto mais do que Nietzsche pretende fazê-la.
A Filosofia é uma corda de três dobras. Uma das dobras é a função existencial que desempenha. As outras são a razão e a base empírica do pensamento. É preciso não enfraquecer a razão para afirmar a existência e atualizá-las em relação à base de conhecimento empírico de cada época. Só assim a Filosofia é capaz de exercer o seu magistério no campo da Teodiceia. Só assim ela pode pensar o homem como ser genérico.
Estão essas tarefas além das possibilidades de qualquer filósofo? Sem dúvida, porém não além do que a própria Filosofia sempre guiou o homem a buscar e do que o esforço coordenado dos filósofos pode talvez, um dia, alcançar.