quarta-feira, 21 de agosto de 2013

O Romance da Filosofia - artigos reunidos (1)

Mais Platão, Mais Cristo

A conversão do mundo romano a Cristo foi precedida pela sua iniciação no pensamento de Platão. Não é descabido pensar, aliás, que os dois processos, que ganharam escala inacreditável, somaram-se, a partir de quando o judeu Paulo, natural de Tarso e familiarizado à língua e à cultura gregas, fez ressoar a mensagem de Cristo nas sinagogas judaicas espalhadas pelo mundo.
Embora fosse judeu, Paulo escreveu suas epístolas em grego, citou com frequência a tradução do Antigo Testamento nesse idioma e empregou recursos e ideias tipicamente gregos para expressar-se. Isso explica e justifica a declaração dele em 2ª aos Coríntios 11:5-6: “Porque suponho em nada ter sido inferior a esses tais [lit., aos mais excelentes] apóstolos. E, embora seja falto no falar, não o sou no conhecimento”.
Portanto, o ato do Espírito de Deus de levar o evangelho ao mundo, por meio de Paulo, inseriu-se num contexto mais amplo de difusão da literatura grega, que o preparou e com ele se coordenou. Não temo afirmar que o centro geométrico daquele vasto contexto foi ocupado pela filosofia platônica.
No Novo Testamento, Hebreus é o texto que mais reflete a aproximação do evangelho em relação a essa filoso-fia e à cultura grega de modo geral. O primeiro ponto de contato, entre eles, é o uso de termos platônicos para explicar a mensagem cristã. Demiurgo (o nome do Deus Criador em Platão) aparece em Hebreus 11:10: “Porque [Abraão] aguardava a cidade que tem fundamentos, da qual Deus é o arquiteto e edificador [demiurgo]”. Hipóstase, que significa substância e mais tarde foi empregada para indicar as pessoas da Deidade, está em 1:3 e 11:1. O primeiro desses versos lê: “Ele, que é o resplendor da glória e a expressão exata do seu ser [hipóstase]”. O próprio “resplendor da glória de Deus”, mencionado nesse versículo, é a mesma expressão usada por Fílon de Alexandria para explicar, em termos platônicos, as emanações de criaturas a partir de Deus.
Porém, o uso de ideias, em Hebreus, reflete ainda mais o pensamento grego que o de palavras, o que nos força a passar rapidamente a elas. É o caso das “figuras das cousas que se acham nos céus” (Hb 9:23), referência inequívoca ao mundo das ideias de Platão. Do mesmo modo, a epístola se refere às sombras terrenas de realidades celestes (Hb 10:1) e a uma série de itens do culto de Israel como réplicas de modelos originais no céu, assim como o tabernáculo (Hb 8:2,5; 9:11,22-24) e a Jerusalém celeste (Hb 11:10,16; 12:22; 13: 14). De Cristo também se diz ter vindo ao mundo como Sumo Sacerdote de “bens já realizados” (Hb9:11), o que indica que aqueles bens precederam a redenção cumprida na Terra.
Não é diferente com a representação do Universo, em Hebreus, que corresponde manifestamente às dos platônicos e, em particular, às que circulavam em Alexandria. O tabernáculo em que Cristo entrou, após ter realizado a redenção, é uma parte especial do cosmos, não um símbolo de Deus, como muitos pensam, já que é chamado "maior e mais perfeito" (Hb9:11) que o de Israel no deserto. Maior perfeição não é o mesmo que perfeição absoluta, como a que Deus possui. Como os platônicos distinguiam a matéria extensa e corpórea das realidades espirituais inextensas, o tabernáculo em que Cristo "entrou" não deve ter sido uma realidade espiritual, mas um lugar do espaço. Talvez corresponda à esfera que Orígenes e outros platônicos denominavam fixa (aplané), "em nada sujeita à corrupção, pois não recebeu as causas da corrupção. Na realidade, esse mundo pertence aos santos, aqueles que foram completamente purificados, e não aos ímpios, como o nosso" (ALEXANDRIA, Orígenes de. Tratado sobre os princípios. São Paulo: Paulus, 2012. 2º Livro, Cap. 7. p. 143).
Tudo isso se coaduna com a visão de Universo vigente nos círculos platônicos do primeiro século, ao mesmo tempo em que excede a doutrina do Antigo Testamento. O pensamento subjacente é de que o enxerto de ideias gregas no corpus das Escrituras não o deforma, se tivermos o cuidado de demarcar o que cabe a cada um. Ao importar ideias gregas, a Bíblia incorpora e assimila uma literatura, não um modo de vida ou um culto. Aliás, a literatura é tomada pelo método judeu consistente em usar determinadas obras e, ao mesmo tempo, exercer a liberdade de alterá-las.
Não precisamos sair do livro de Hebreus para encontrar tal método exemplificado. Sem maiores explicações, o texto desloca o incensário do Santo Lugar, onde o Antigo Testamento o localiza (Êx 30:6), ao Santo dos Santos, para onde também transporta o maná. É o que temos em 9:3-4: “Por trás do segundo véu se encontrava o tabernáculo que se chama o Santo dos Santos, ao qual pertencia um altar de ouro para o incenso, e a arca da aliança totalmente coberta de ouro, na qual estava uma urna de ouro contendo o maná”. Em contraste com essas afirmativas, em Êxodo 16:33-34, o maná foi depositado num vaso, quando o tabernáculo sequer existia. E em Êxodo 39:32-43; 40:1-15, quando ele passou a existir, os objetos pertencentes a ele foram enumerados duas vezes, sem qualquer alusão ao maná. De sorte que Hebreus modifica a tradição de Êxodo. E, ao culto do deserto, acrescenta ainda bodes, água, lã, escarlate e hissopo (Hb 9:19), que Êxodo desconhece completamente.
Era costume judeu usar o texto bíblico com alto grau de liberdade. O autor da Epístola aos Hebreus adere a essa prática. Nada mais, nada menos que isso. Pelo mesmo método, foram construídos os nomes dos magos que se opuseram a Moisés na corte de Faraó (2 Tm 3:8). Será que, se alteravam a Bíblia dessa maneira, ao citá-la, os judeus hesitavam em tocar em Platão, ao usá-lo, tantas vezes quantas fossem necessárias?
Sob essa concepção e esse modo de ver, o autor inspirado pode não ter pensado que as ideias platônicas existissem num mundo à parte, como Platão e a maioria dos seus seguidores sustentaram. O método hebreu de utilização de textos facultava-lhe adotar o núcleo da doutrina platônica e transformar outros pontos.
Creio que foi o que ele realizou com a doutrina das ideias, ao redigir Hebreus: aceitou que elas não têm corpo, extensão ou figura e que tudo quanto lhes ocorre não tem duração, exatamente como fez Platão. Mas concluiu, diferentemente dele, que não existem num lugar espacial, mas no intelecto. E que a nota comum entre elas e as coisas materiais (suas definições concordantes) aplica-se a ambas. Por esse motivo último, às ideias no interior do intelecto podem ou não corresponder objetos espirituais no céu. O culto dos céus a que Hebreus e Apocalipse se referem é um exemplo de ideia realizada nas esferas mais elevadas do real. Mas não há prova de que às outras ideias suceda o mesmo, até porque seria estranho um judeu pensar que as ideias de coisas negativas e o próprio pecado se realizassem nos mundos celestes.
Devemos atentar para o que essa minuciosa combinação de elementos gregos e cristãos indica. Penso que aponta, em primeiro lugar, a grande abertura de mente, que os cristãos primitivos mantinham para com o mundo ao seu redor. Para eles, “não amar o mundo” limitava-se a não se deixar seduzir pela “concupiscência da carne e dos olhos e pela soberba da vida” (1 Jo 2:15-16). Não impedia, portanto, amar o que Deus criou e o que o homem criou com ajuda divina.
Em segundo lugar, o Novo Testamento sugere que o processo de combinação e fusão da fé cristã com o pensamento grego não permaneceu no estágio indicado em Hebreus. A Carta de Clemente aos Coríntios, escrita por volta de 95 d. C. e considerada um dos mais importantes marcos literários cristãos, está tão imbuída de ideias gregas quanto Hebreus. Se pensarmos que esta foi escrita 30 anos antes da outra, teremos uma noção precisa da força, do alcance e da persistência que o processo de fusão assumiu em tão pouco tempo. E não ficaremos a pensar, um tanto confusamente, que tudo não passou de algo secundário, no quadro do primeiro século.
Por fim, a soma do evangelho a uma filosofia otimista como a platônica lembra-nos que, apesar do sucesso civilizatório alcançado, o mundo romano estava mergulhado em nuvens de pessimismo e em funda desesperança. Para libertá-lo delas, de alguma forma, foi útil somar Platão a Cristo. E que essa combinação, de certa maneira, foi uma agregação de otimismos.
Por tudo isso, a história real da pregação do evangelho ao mundo parece ter sido muito distinta da versão ingênua e purista, segundo a qual os apóstolos levaram ideias da mente divina ao mundo romano, diretamente e sem qualquer mediação cultural. Esse purismo até hoje flagela muitas consciências.
“Que tem Jerusalém com Atenas?”, perguntou Tertuliano com eloquência forense, no século II. A pergunta atravessou o tempo. Reverberou em todo obstáculo sólido. Ditou discussões e sentidos sucessivamente emprestados à fé cristã. Porém, se a História oferece resposta a ela, parece ser um sardônico “Tanto!” Entre Jerusalém e Atenas, as eras de fato viram se constituir o volumoso e inquebrável vínculo da verdade. Os caminhos que partem de Jerusalém são muitos e muito caminhados, assim como os que saem de Atenas. Mas somente pelas veredas que ligam as duas cidades passam todos os homens, com as suas misérias e grandezas.

O Logos Divino


Orígenes de Alexandria tinha cerca de 65 anos, quando foi encarcerado e torturado por sua fé em Cristo, durante a perseguição movida pelo Imperador Décio. Manteve-se firme o tempo todo e jamais renegou a fé que abraçara ainda jovem. Solto, não resistiu às consequências da tortura e morreu, no ano 253.
Os livros que Orígenes nos deixou suscitaram muita polêmica. Não se discute, porém, que neles se encontra a primeira explanação completa da fé em Cristo, com ajuda da filosofia platônica, na História da Igreja. A explanação é o farol mais alto que nos permite enxergar como a doutrina a respeito de Cristo chegou até nós, em meio à voragem do tempo. Pode-se postular que ela se formou em duas etapas, marcadas pela influência de fontes bastante diversas: o testemunho dos Evangelhos canônicos e a interpretação da doutrina filosófica do Logos em termos cristão-platônicos.
Orígenes foi a maior fonte de luz sobre ambas as fontes, até Agostinho de Hipona. Mas, se a sua exegese dos Evangelhos foi fundamental, não há como não se reconhecer que outras a igualaram em estatura. O cristianismo não tem muita falta de notáveis exposições das suas Escrituras. Porém, a explicação da pessoa do Logos, que Orígenes nos legou, nunca foi igualada. Ela foi, de certa forma, o desenvolvimento máximo a que a reflexão cristã-platônica da Epístola aos Hebreus foi levada.
Uma primeira razão para isso foi o fato de Orígenes ter evitado os perigos do erro maior de Platão, a saber: a substantificação das ideias e do mundo das ideias. Vimos que esse erro consistiu na atribuição de consistência real às ideias de números, figuras geométricas e outros objetos, como se existissem não só no intelecto de quem os pensa, mas num mundo exterior a ele. Orígenes evitou cuidadosamente tal erro, ao atribuir às ideias consistência apenas intelectual, como se percebe na seguinte passagem do Tratado sobre os princípios: “Nosso Senhor e Salvador designa também um mundo que não é o visível. De fato, ele diz: ‘Eu não sou deste mundo’ (Jo17:14) [...] Não seja o caso que alguns encontrem aí pretexto para entender que com isso afirmamos a existência de certas imagens que os gregos chamam ideias; mas é completamente alheio ao nosso modo de pensar falar de um mundo não corpóreo que só tem consistência na fantasia ou em pensamentos escorregadios” (ALEXANDRIA, Orígenes de. Tratado sobre os princípios. São Paulo: Paulus, 2012. 2º Livro, Cap. 6. p. 141).
Negação mais decidida da doutrina platônica das formas ou ideias como realidades autoexistentes não é possível. Embora platônico sob outros pontos de vista, Orígenes não segue aquele mestre grego no ponto tópico relativo à natureza das ideias. Pelo contrário, ele declara fantasiosa a hipótese de um mundo incorpóreo composto por pensamentos. Por isso, embora derive a existência de realidades espirituais de um “mundo das ideias” (noetós) de Deus, ele emprega outro termo, para demarcar a diferença entre esse mundo e o dos seres espirituais efetivamente existentes: noerós (idem. nota 15, p. 144). Não é improvável que essa demarcação terminológica corresponda à distinção aristotélica entre o inteligível e as inteligências. Pelo contrário, as duas distinções parecem manter estreita relação.
O emprego de termos distintos para designar o inteligível e as inteligências, aliado a passagens como a citada acima, em que Orígenes se recusa a reconhecer objetividade às ideias, faz questionar de que parte esse filósofo retirou doutrina tão avançada e, ao mesmo tempo, contrária a tudo o que se ensinava nos meios platônicos da sua época. Uma explicação possível é a influência da doutrina de Aristóteles, para quem o suprassensível não é constituído de inteligíveis, como em Platão, mas de inteligências. É perfeitamente possível que Orígenes tenha recolhido essa doutrina direta ou indiretamente de Aristóteles e a adotado.
Mas, ainda assim, é de admirar a firmeza com que o filósofo cristão se opôs à tendência do platonismo da sua época. E ainda maior admiração infunde a lembrança de que o próprio Aristóteles, a quem aquela diferenciação é atribuída, apegou-se à noção substancialista de que as formas existentes nas coisas surgem no intelecto, por ocasião do conhecimento sensível. Quando nos damos conta desses particulares, notamos que Orígenes foi capaz de adotar o que há de mais avançado em Aristóteles, sem incidir no substancialismo daquele filósofo.
O fato é tão conspícuo que merece exame detido. Teria Orígenes realmente recebido a distinção de Aristóteles entre inteligível e inteligente e rejeitado a substantificação das ideias platônicas ou essas opiniões foram combinadas por outros pensadores, de quem o filósofo patrístico as recebeu? É provável que a rejeição da objetividade das ideias tenha sido tomada por Orígenes dos estoicos, que ensinavam que apenas os seres individuais, como a lua e Sócrates, existiam. Para os estoicos, termos gerais como homem e animal referiam-se a noções mentais (ennoemata) (STEAD, Christopher. A Filosofia na Antiguidade cristã. São Paulo: Paulus, 1999. p. 53). Tão semelhante é essa concepção à que vemos expressa em Orígenes que a dependência para com os estoicos se torna a hipótese mais provável.
Porém, a conquista maior da patrística não foi a combinação dessas ideias, por si já bastante fecunda, mas a adoção simultânea da intuição mais luminosa de quantas o platonismo trouxe ao mundo, a saber: a inteligibilidade do mundo. A ideia de que o mundo pode ser compreendido pertence ao senso comum. Não é, pois, uma ideia nova. Porém, o modo como ela se encontra no cabedal de conhecimentos comuns de tantos povos, inclusive dos antigos gregos, não se compara com o modo novo como Platão e Aristóteles entenderam a inteligibilidade. Para esses dois filósofos, o mundo ser inteligível é algo muito distinto do que o senso comum entende por essa afirmação. Significa que cada partícula do real, que os gregos havia séculos concebiam como material, está estruturada de modo a possibilitar o conhecimento racional.
Essa descoberta, que faz recordar a frase de Einstein segundo a qual o mais surpreendente sobre o Universo é o fato de poder ser conhecido, alça a inteligibilidade a um patamar totalmente novo. Pode-se mesmo afirmar que, com Platão, esse conceito passa do senso comum para o nível do conhecimento muito mais elevado que se usa denominar Metafísica.
No fundo, a inteligibilidade implica que, se reduzirmos o real às suas menores partes, ele continuará inteligível, pois o é por essência. Essa relação entre o mundo e o conhecimento não havia sido jamais postulada. Trazia consigo uma consequência revolucionária: se o mundo é eterno, como os gregos sempre o tinham pensado, segue-se que esteve eternamente dado ao conhecimento. Claro que, a uma oferta tão duradoura de inteligíveis, deviam corresponder inteligências eternas.
Para entendermos essa consequência da inteligibilidade do mundo, é útil recorrermos ao exemplo da água. Sabemos que, para haver vida, é preciso haver água e que o contrário é também provável: onde há água, deve haver algum tipo de vida. Não é diferente com a oferta infinita de inteligíveis, que acabamos de demonstrar. Ela sugere a existência de inteligências eternas.
Se o mundo é tão profundamente inteligível, devem ter sempre existido inteligências. Isso não prova a existência de inteligências eternas, mas sugere de um modo novo e particularmente vigoroso a eternidade da inteligência. A Filosofia Cristã não é compreendida enquanto não se reconhece que ela nasce e se orienta por essa intuição.
Tantas e tão profundas são as consequências da intuição a que me refiro que nenhum pensador antigo as extraiu todas. Podemos até afirmar que a ideia permaneceu implícita no platonismo antigo. Não foi desenvolvida ao ponto de as suas principais consequências tornarem-se claras. Refiro-me à inteligibilidade profunda do cosmo, àquela que Einstein declarou constituir a mais fundamental de todas as verdades sobre a natureza. Essa é a ideia maior do platonismo, que permaneceu implícita, subjacente às obras de Platão, Aristóteles e seus seguidores. É também a ideia que mais seduziu pensadores cristãos como Orígenes.
Fílon viveu 200 anos antes de Orígenes, na mesma cidade dele. Foi o primeiro a conciliar os resultados da Filosofia grega à exposição do Antigo Testamento. Porém, como costuma ocorrer nos inícios de toda nova doutrina e de toda nova técnica, há em Fílon equívocos que foram corrigidos por seus sucessores, a exemplo de Orígenes. O mais proeminente deles é o estatuto das ideias, que Fílon considera reais (existentes no mundo exterior), e Orígenes, intelectuais (existentes só no intelecto, mas que podem ser reproduzidas, com alterações, no mundo celeste ou terreno).
As concepções de Deus de Fílon e Orígenes desprendem-se do modo pelo qual cada um conceitua o mundo das ideias. Como em Fílon as ideias são reais, Deus é o Todo constituído por elas. Esse Todo contém o mundo material, que nele tem sua gênese. Mas, em Orígenes, as ideias são inteligíveis e não têm existência alguma pelo simples fato de o serem. Deus existe não por ser uma ideia ou a soma de todas as ideias, mas como pessoa eterna.
Essa conclusão só é possível, em Orígenes, por-que as ideias não têm existência real. Se a possuíssem, a soma de todas elas seria maior e mais poderosa que o Deus pessoal, que já não seria supremo, o que é absurdo. Portanto, Orígenes parece relacionar o Deus pessoal supremo à inexistência objetiva do mundo das ideias.
Mas a modificação a que Fílon submete o conceito estoico de Logos tem ainda maior importância para a formação do kerigma (pregação) cristãos do que as concepções acima a respeito de Deus e das ideias. Diferentemente de Platão, Fílon acredita que as ideias não são eternas, mas foram criadas por Deus para ser-virem de modelos na formação do mundo físico. São, pois, criaturas especiais, por refletirem de modo perfeito a natureza imaterial do Criador, verdadeiras imagens intelectuais do ser divino.
A ideia principal que Deus cria, a imagem mais importante, de acordo com Fílon, é o Logos, em que todas as outras ideias estão abrangidas. O Logos é, pois, a imagem perfeita de Deus, o modelo de todas as coisas criadas.
É útil transcrever a seguinte exposição da dou-trina do Logos, a fim de que as consequências dela para a formação da fé cristã sejam elucidadas: “Filo distingue o Logos de Deus e faz dele quase uma hipóstase, e o denomina até mesmo ‘filho primogênito do Pai incriado’, ‘Deus segundo’, ‘imagem de Deus’” (REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. 2ª ed., São Paulo: Loyola, 2001. Vol. IV, p. 249).
Não é preciso mais para transmitir quanto a doutrina neotestamentária de Cristo, e a de Hebreus em particular, têm em comum com essa. A semelhança é tão espantosa que sugere derivação. Como os 66 livros do Antigo Testamento nada apresentam de tão semelhante, é preciso perquirir se o que recebemos, como doutrina sobre a pessoa de Cristo, não resultou da fusão (e contínua reelaboração) do retrato dele nos quatro Evangelhos com a filosofia judaicoplatônica do Logos, derivada de Fílon. É possível que tenha sido esse o caso.
É particularmente edificante entender como Orígenes recepciona essa filosofia, submete-a a rigo-rosa comparação com as Escrituras e a consolida. Para explicar o sentido dos versos em que Paulo afirma que o Filho, “subsistindo em forma de Deus não julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes a si mesmo se esvaziou etc.” (Fp 2:6-7), Orígenes recorre à comparação com “uma estátua tão grande que pudesse conter toda a terra e que devido à sua imensidão ninguém pu-desse enxergar, e que outra estátua fosse feita, em tudo parecida com a primeira”, com o objetivo de revelá-la aos que não a podiam conhecer. Ele conclui: “De modo análogo, o Filho, se aniquilando ao abandonar a igualdade com o Pai, e nos mostrando o caminho para conhecê-lo, tornou-se ‘marca impressa da figura da sua substância’” (ALEXANDRIA, Orígenes de. Ob. cit. 1º Livro, Cap. 8. p.77).
De onde Orígenes extrai a expressão “marca impressa da figura da sua substância”? Extrai-a de Hebreus 1:3, e é bom que se diga que ninguém o supera em matéria de citar, com fidelidade e precisão, os originais gregos. Marca impressa da figura da substância divina é o que nossas Bíblias vertem “expressão exata do seu ser”. Orígenes ensina que ela é a imagem acabada, não só das ideias da mente divina, mas da es-sência de Deus. Essa imagem nada mais é que o Logos, que ao se encarnar produziu uma “marca” na matéria corpórea. Será preciso acrescentar que isso tudo, em Fílon, Hebreus e Orígenes, é profundamente platônico?
Orígenes busca nos apócrifos incorporados à Bíblia judaica da Diáspora (cânon helenista) passagens que se assemelham à acima citada de Hebreus, para explicar o mistério da encarnação do Verbo (Logos). Age prudentemente, já que esses livros pertencem ao período helenístico e refletem ideias gregas e platônicas. Particularmente Sabedoria 7:25-26 discorre: “Ela [a sabedoria] é um sopro do poder de Deus, e aporroia, isto é, emanação puríssima da glória do Todo-poderoso, esplendor da luz eterna, espelho imaculado da atividade ou do poder de Deus e imagem da sua bondade”. Perguntarei novamente: será necessário acrescentar que a fonte de que essas palavras emanam é a Academia de Atenas?
A História da Filosofia pode ser contada, de certa forma, como um romance, pois é percorrida por um fio condutor, que interliga as inquietações, discussões e exposições que se manifestam nos seus vários períodos. É, como tal, uma história sobre alguma coisa central, uma narrativa com um sentido geral, não uma multidão de fatos ou de doutrinas desconexas. Não foi por outro motivo que os primeiros cristãos a entenderam como revelação do Logos.
Nada disso se põe por uma prova definitiva. É, pois, matéria de dúvida. Mas é, no mínimo, surpreendente que tal dúvida possa ser expressa em linguagem filosófica. E ainda mais que essa linguagem seja substancialmente pré-cristã. 

A Escola de Atenas

No Palácio Apostólico do Vaticano, há um grande afresco com imagens de 57 pessoas num amplo e sofisticado ambiente, em cujo centro se percebe um corre-dor encimado por sucessivos arcos e, ao final, um pórtico. Tanto as paredes do corredor como as do pórtico são esculpidas e ornamentadas com estátuas. No centro do afresco, dois homens conversam, ladeados por 13 outros. Os demais se aglomeram em 11 grupos de interlocutores entretidos em diferentes diálogos e atividades. Só duas pessoas estão relativamente isoladas das outras e, com exceção das que ocupam o centro, tem-se a impressão de que elas estão na parte mais proeminente do afresco.
Pintada por Rafael, no início do século XVI, essa cena intitulada Escola de Atenas é uma alegoria do conhecimento secular. As pessoas nela representadas são sábios ou amigos de sábios de diferentes séculos. Um bom número é de filósofos. No centro, portando cada qual um livro, estão Platão e Aristóteles. O primeiro aponta para cima com o indicador; o outro, com a mão espalmada, mostra o chão.
As figuras talvez mais criativas da História da Filosofia estão na metade do quadro em que se acha Platão, inclusive Sócrates. Do lado de Aristóteles, estão estudiosos do mundo natural e de ciências exatas, a exemplo de Euclides e Ptolomeu. A notável exceção é Plotino, mestre maior do Platonismo Médio, cujas concepções guardam assinalado contraste com as das pessoas próximas dele e de Aristóteles. À primeira vista, Plotino parece cumprir o papel de uma ovelha negra. Porém, ao refletirmos um pouco mais, perguntamos se não terá sido posto ali para indicar que a metade aristotélica do saber não exclui uma forte presença do platonismo, assim como a História das Ideias, como um to-do, tem o seu palco na Academia, o imponente edifício da escola fundada e dirigida por Platão, em que todas as 57 pessoas se encontram.
A ideia central da obra-prima de Rafael, se ela tem uma, é o tanto de continuidade que subsiste na cultura e na filosofia das mais diferentes épocas. Estas devem o que são ao saber de Platão, Aristóteles e dos demais construtores do conhecimento das eras. É o que o quadro sugere. E não deixa de impressionar que o saber teológico, eixo de todos os outros, na época de Rafael, não esteja representado no quadro.
Uma pergunta que merece ser formulada é o que cada pessoa tem a manifestar sobre o quadro. Como ele a afeta? Porém, interessa indagar ainda mais o que teríamos a declarar, se a figura central do quadro (Platão) pudesse ser acusada de um erro significativo. Se o saber depende de Platão do modo como o afresco sugere, que aconteceria se ele nos faltasse? A humanidade pagã in-teira seria devolvida ao inferno, a que a comédia de Dante a consagra?
É desconcertante pensar que, em certo ponto da Idade Antiga, um erro com essas consequências começou a ser atribuído a Platão. E que o responsável pela imputação foi seu maior discípulo, Aristóteles.
Para bem entender o erro, é útil retornarmos à época situada um ou dois séculos antes, quando a Filosofia grega ainda se formava. Nesse tempo, Parmênides de Eleia lançou uma provocação destinada a influir decisivamente na cena que Rafael mais tarde retrataria. No poema intitulado Sobre a natureza, ele escreveu: “Pensar e ser é o mesmo/Pensar é o mesmo/E isso em função do que o pensamento existe/ Porque sem o ser, no qual é expresso/Não encontrarás o pensar”. Seguem-se muitos outros versos, que porém se limitam a reprisar e a extrair consequências dessa afirmação nuclear.
A equivalência entre o ser e o pensar proposta por Parmênides não constitui o erro crasso, que a pressa, a inépcia e o pragmatismo às vezes sugerem. Fundamenta-se, pelo contrário, numa reflexão profunda sobre a natureza do cogitar humano. De fato, para pensar, é preciso inserir o objeto pensado no ser. Desse ponto, qualquer retrocesso, rodeio ou negação do que foi afirmado importa contradição, portanto erro. De modo que o pensar, para Parmênides e sua escola, é um indício, quando não uma evidência de que aquilo que o pensa-mento concebe deve existir, de algum modo e em algum lugar.
Sem recuar em face do cunho antiintuitivo e incomum dessa concepção de Parmênides, Platão foi o primeiro a lhe dar desenvolvimento integral. Mas, em vez de embrenhar-se nas sendas labirínticas que Parmênides e outros trilharam, ao tentarem explicar por que tantas ideias não existem, com cativante simplicidade, Platão afirmou que elas não estão aqui, pois estão em outra parte. E a essa outra parte ele chamou mundo das ideias, pois os conteúdos inobserváveis do pensa-mento são puras ideias.
Hoje está claro que Platão e Parmênides incorreram num grave erro. Não se pode negar a distinção entre um objeto material e a ideia usada para designá-lo. As ideias se formam após termos experimentado sensações de vários seres. Assim, por exemplo, a ideia de homem surge após o intelecto abstrair as características peculiares dos indivíduos humanos e se ater aos traços comuns a eles.
Não é difícil perceber que, por resultarem do despojamento dos indivíduos e coisas de tantas características, as ideias que emergem ao final do processo não se confundem com eles. Isso é muito bem estabelecido e reconhecido. O erro de Parmênides e Platão consistiu em não terem admitido as consequências dessa distinção relativamente a uma ideia em particular: a de existência. Eles não reconheceram que a existência é uma ideia que, como as outras, deve distinguir-se da realidade que serve para indicar, isto é, da existência real. Talvez levados por esse engano, embora reconheces-sem a diferença estrutural entre as idéias das coisas e as próprias coisas, aqueles pensadores atribuíram existência real às ideias.
O platonismo pode ser visto como o vasto desenvolvimento de uma solução dos problemas suscitados pela escola de Parmênides. E as filosofias que se seguiram a Platão podem ser expostas da mesma maneira, já que são elos na sequência de avanços e retrocessos em relação a Parmênides. Vezes sem fim, as escolas lutaram entre si, criticaram-se, resolveram diferentemente os problemas que propuseram. Mas elas propuseram os mesmos problemas fundamentais, e isso é curial. Aristóteles, por exemplo, criticou a localização das ideias num mundo à parte. E sobre o princípio diverso a que chegou por esse meio, viu-se florescer uma visão de Universo nova, eminentemente empírica, terrena.
Por isso, temos Platão a apontar para o céu, e Aristóteles, para o chão, na obra de Rafael. Mas é possível perguntar se, por trás de diferenças tão mani-festas, um princípio unificador não percorre os erros tanto quanto as grandes verdades que as escolas platônicas e aristotélicas afirmaram.
A tendência a aceitar em profundidade cada vez maior a mão apontada para baixo, na História, abalou a Cristandade. Mas não tanto quanto a crítica a Aristóteles, que se desenvolveu mais tarde. Não porque Aristóteles fosse tão distinto de Platão quanto as mãos para baixo de um e para cima de outro podem sugerir, mas porque, por muito tempo, ele foi visto como o próprio Platão: o derradeiro, mais denso e mais extenso Platão, embora também, para alguns. Por ver Aristóteles dessa maneira, Santo Agostinho pôde escrever que ele “e Platão estavam tão perfeitamente de acordo entre si que só aos ignorantes e desatentos podiam parecer discordar” (AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. São Paulo: Paulus, 2008. p. 144).
Convicção tão claramente expressa, por um dos mais admirados filósofos da Antiguidade, Santo Agostinho, não era, porém, apenas dele. A oposição entre Platão e Aristóteles, que nos é recomendada, às vezes com tanta ênfase, nos cursos de Filosofia atuais, não foi sempre admitida. Nos alvores das duas doutrinas, quando as gerações imediatas àqueles filósofos viram for-mar-se as respectivas escolas, as exposições de platônicos e peripatéticos não raro valorizaram as diferenças entre Platão e Aristóteles. Porém, com o tempo, a ênfase nas diferenças cedeu lugar à valorização das con-vergências entre eles. Cícero o afirma com todas as letras, no De legibus, que a antiga Academia (primeiras gerações de filósofos platônicos) dividia-se num ramo integrado por Euspesipo, Xenócrates e Polemon, entre outros, e outro composto por “aqueles que seguiram Aristóteles e Teofrasto, que concordavam com os primeiros na doutrina, mas diferiam no método” (CÍCERO, Marco Túlio. De legibus. Livro I. Disponível em www.oll.libertyfund.org).
Uma das figuras mais enigmáticas da Hitória da Filosofia Antiga, Amônio Sacas, que não deixou obra escrita, mas foi mestre de Orígenes e Plotino, entre outros, parece ter sido um dos principais responsáveis pela difusão da interpretação de Aristóteles defendida por Cícero, como atestou Hiérocles, no século V: 
“Amônio introduziu o princípio que serve de regra comum para todas as opiniões comuns de Plotino, de Orígenes, de Porfírio, de Jâmblico e de Plutarco, ou seja, o de que a verdade sobre a natureza das coisas está inteiramente contida na doutrina purificada de Platão. Antes dele, os platônicos e os peripatéticos exageravam as oposições entre os dois sistemas, e essas discussões perduraram até Amônio, o Teodidata” (BERGSON, Henri. Cursos sobre a Filosofia Grega. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 5).
O testemunho de Hiérocles foi preservado por Fócio, patriarca de Constantinopla no século IX e figura central da História da Igreja. Dá conta de que a convergência entre Platão e Aristóteles, pouco valorizada por seus primeiros discípulos, tornou-se a “regra comum para todas as opiniões comuns” desde Amônio Sacas. Não espanta Santo Agostinho integrar o cortejo dos que pensavam da maneira a princípio ensinada por Sacas. 
A dependência parcial de Aristóteles para com Platão não é absolutamente desconhecida dos pensadores que se dedicaram a esse período da História das Ideias. Karl Popper, por exemplo, escreveu que "o pensamento aristotélico é inteiramente dominado pelo de Platão. Um pouco recalcitrantemente, seguiu ele seu grande mestre, tão de perto como o permitia seu temperamento, não só em suas perspectivas políticas gerais, mas em todos os demais pontos" (POPPER, Karl R. A sociedade aberta e seus inimigos. 3ª ed., São Paulo: EDUSP, 1987. Tomo 2, p. 8). 
Provavelmente, o Platão e o Aristóteles que Rafael representou em seu afresco ainda eram os filósofos convergentes. Rafael retratou exatamente a força dessa convergência, que as eras tinham admitido e que tinha moldado as eras. E é claro que Platão ser refutado, nesse contexto, era algo grave, porém as bases da sua filo-sofia poderiam ser salvaguardadas enquanto Aristóteles permanecesse íntegro. O mesmo não sucederia, porém, se Aristóteles se desintegrasse. Se isso ocorresse, Platão ruiria com ele, e a segunda navegação chegaria ao fim.
Foi o que sucedeu. Exemplo cabal é dado pelas categorias do ser de Aristóteles. Os gregos, em geral, consideravam o ser sinônimo de realidade. Nesse contexto não apenas filosófico, mas cultural, as dez categorias (substância, relação, quantidade, qualidade, quando, onde, ação, paixão, ter e jazer) foram vistas como modos pelos quais o real se organiza. O mundo não está em desordem. Ele é estruturado, e os mecanismos que fundam sua estrutura são as categorias. Para ser ainda mais claro, tudo o que existe é uma substância, mantém relações com outros seres, existe em deter-minadas quantidade, apresenta qualidades etc. Portanto, existe segundo as categorias, que não se encontram só no intelecto, mas também fora dele, como Aristóteles afirmou expressamente em seu livro Sobre as categorias.
Fica, pois, claro que, se não somos capazes de pensar alguma coisa sem recorrer a conceitos como os de tempo (quando), espaço (onde), ação, relação, quantidade e qualidade, por outro lado, a transferência desses conceitos da mente ao mundo, sua substantificação, tem por consequência a fetichização das coisas. Não sabemos pensar sem categorias como as aristotélicas. Mas elas foram impregnadas do encanto substancialista dos antigos gregos. A ponto de terem tornado a cultura um balé das ideias à realidade e desta de volta às ideias ou vice-versa.
O erro de Platão não revela suas consequências mais drásticas ao ser detectado nele, mas em Aristóteles. A ordem do céu rompe-se com maior estrondo, quando se manifesta como ordem da terra. O empirista Aristóteles tinha sido o canal de ligação do platonismo etéreo com as mais diversas áreas do saber terreno e da vida humana. Sua mão voltada para baixo gerara uma ampla visão da natureza, do pensamento científico e do comum, tanto quanto uma ordem social plástica, mas que perpetuava o antigo e reproduzia o poder. Pouco restava ao mundo fora dessa visão.
Por isso, o desmoronamento de Aristóteles, na parte final da Idade Média, foi sentido como o maior de todos os terremotos intelectuais até então. Duas forças, uma antiga, outra nova, uma de cunho sagrado, outra secular, a exegese bíblica e a ciência moderna, foram responsáveis pelos abalos e trabalharam para substituir, pouco a pouco, as ideias desmoronadas.

Aristóteles Desaparece

No século XIX, o artista alemão Wilhelm von Kaulbach pintou a sua própria Escola de Atenas, não para retratar a Filosofia Antiga, como Rafael na sua obra três séculos anterior, mas para pôr em causa o drama da Reforma Protestante. Refiro-me à tela Era da Reforma, que transmite a mesma ideia de efervescência intelectual palpável em Escola de Atenas. Contudo, no centro da obra de Kaulbach, em vez de Platão e Aristóteles, vemos Martinho Lutero a erguer com as mãos uma Bíblia aberta.
As duas obras de arte desvelam ambientes culturais opostos, em que foram forjadas filosofias também contrastantes: no primeiro, a doutrina de Platão aponta o céu, e a de Aristóteles, para a terra. Nenhuma dessas doutrinas parece ter convencido profundamente Dante, que não vacilou em alojar Aristóteles no topo do círculo infernal reservado aos pagãos, e Platão abaixo dele. "Dura lex, sed lex": lei severa, mas é a lei. Não se pode negar que, com a sua definição literária dos destinos, Dante saltou as mediações convencionais, os rodeios, os circunlóquios, a fim de captar as consequências do pensamento radical de sua época. Tornou-se, assim, o próprio pensamento radical.
Séculos antes dele, Aristóteles tinha sido absorvido no platonismo, por duas razões: porque fora havido como um dos maiores platônicos e porque as peculiaridades da sua filosofia haviam-no tornado difícil de ler. Com efeito, no início da Idade Média, Aristóteles era tido como um filósofo excessivamente técnico, até mesmo obscuro. Por isso, afigurou-se melhor a muitos assimilá-lo ao corpus platônico do que lê-lo ou copiá-lo. Ao que devemos o desaparecimento gradual das suas obras. Cícero chegou a declarar que, no seu tempo, muito poucos filósofos conheciam diretamente Aristóteles. O ocaso da cultura pagã agravou ainda mais essa situação.
Não podemos, porém, esquecer que o primeiro passo do processo de desaparecimento das obras de Aristóteles foi a absorção das suas ideias pela filosofia platônica. Com absorção quero dizer a metabolização das suas doutrinas. Discípulos e admiradores de Aristóteles inseriram as ideias dele no corpus da tradição platônica. E uma vez alojadas ali, elas foram assimiladas como elementos do amplo arcabouço daquela filosofia.
As categorias aristotélicas do ser e a doutrina das causas estão claramente entretecidas com os textos de autores patrísticos como Orígenes de Alexandria. Mas a incorporação de Aristóteles não se limitou àquelas teorias. A doutrina estoica das razões seminais depende da do movimento como passagem da potência ao ato, que foi desenvolvida por Aristóteles. Ela também foi adotada, por pensadores platônicos de Orígenes a Santo Agostinho, com todas as consequências que se podem inferir. E os cânones da Lógica, na Idade Média, como se sabe, permaneceram solidamente aristotélicos, ainda que tenham sido transmitidos por autores como Boécio.
Alguns exemplos de ideias aristotélicas encontradas em Orígenes ajudarão a entender como se deu a assimilação de Aristóteles pelo platonismo. No Tratado sobre os princípios, esse autor afirmou: “Toda outra natureza que é santa [além da de Deus] tem a sua santificação pelo que recebeu do Espírito Santo, ou [foi] por ele inspirada para se santificar, não sendo assim por natureza, mas de modo acidental, pelo que pode perder o que alcançou” (ALEXANDRIA, Orígenes de. Tratado sobre os princípios. São Paulo: Paulus, 2012. 1º Livro, Cap. 3. p. 123). No texto acima, a ideia de acidente como algo oposto à natureza (substância) deriva de Aristóteles.
Noutra passagem, Orígenes registrou: “Nada pode ser visto senão pela sua forma, grandeza e cor, que é o próprio dos corpos. E se [a heresia gnóstica] afirma que Deus é corpo, consequentemente Deus seria feito de matéria, uma vez que todos os corpos são feitos de matéria” (idem. 2º Livro, Cap. 3, p. 149). De novo, a atribuição de forma, grandeza e cor como acidentes aos corpos, assim como a ideia de causa material, detectadas em Orígenes, são aristotélicas.
Escreveu ele ainda: “A bondade é o gênero das virtudes, a justiça e a santidade são as espécies desse gênero” (idem. 2º Livro, Cap. 5, p. 158). Sabemos que o gênero e a espécie são os dois grandes tipos de universais, em Aristóteles. Vemos Orígenes usá-los com maestria, como se tivesse a Metafísica aberta ao escrever. No entanto, ele não cita Aristóteles, nem a Metafísica ou o livro Sobre as categorias, antes os tem por assimilados.
Como se esses exemplos não fossem por si eloquentes, Orígenes escreveu, a respeito de Cristo, que “tão bem escolheu amar a justiça que, em consequência da imensidão do seu amor, aderiu a ela de maneira inconvertível e inseparável, de tal modo que [...] o que se encontrava na vontade se transformou em natureza em decorrência de longo hábito”. Novamente, a natureza é citada em sentido aristotélico. E o hábito a que Orígenes se referiu é um dos nomes pelos quais Aristóteles deu à décima categoria do ser.
No século IV, Gregório de Nissa referiu-se à alma como “forma mesma do corpo” (NISSA, Gregório de. A criação do homem. São Paulo: Paulus, 2011. p. 59). Trata-se de mais um ensinamento marcadamente aristotélico. Além disso, afirmou que “cada homem é como um utensílio que a combinação dos vários elementos forma a partir da matéria comum: a sua forma particular é a causa da sua grande diferença em relação aos seus semelhantes” (NISSA, Gregório de. A alma e a ressurreição. São Paulo: Paulus, 2011. p. 220). Matéria, forma e causa, nessa passagem, são utilizadas em sentido aristotélico.
Numa obra à qual não atribuímos a relevância devida, Santo Agostinho mencionou, uma a uma, as categorias de Aristóteles: “Nas coisas criadas e mutáveis, o que não se diz segundo a substância deve dizer-se segundo os acidentes. Tudo pode acontecer com os seres criados, pois sofrem perdas ou diminuem, tanto em relação à dimensão quanto à qualidade. Diga-se o mesmo das relações, como, por exemplo, a relação de amizade, parentesco, emprego, semelhança, igualdade e outras. E há ainda os acidentes de posição e hábito, lugar e tempo, ação e paixão” (HIPONA, Agostinho de. A Trindade. São Paulo: Paulus, 1995. Livro V, Cap. V, p. 196). No último período são enumeradas quatro das 10 categorias (“posição e hábito, lugar e tempo, ação e paixão”). Antes dele, vemos as outras quatro: substância, dimensão ou quantidade, qualidade e relação. Dificilmente acharemos prova mais clara da assimilação da doutrina de Aristóteles por representantes de outras correntes filosóficas.
Fílon afirmou que a existência de Deus é facilmente demonstrada, ao contrário da sua essência, que é muito mais impenetrável. Demonstrou-a, em seguida, mediante os reflexos dos atributos divinos na natureza: "Vendo os montes e as planícies repletos de animais e de plantas, as torrentes dos rios e dos riachos, a extensão dos mares, o clima bem temperado, a regularidade do ciclo das estações, e depois o sol e a lua dos quais dependem o dia e a noite, as revoluções e os movimentos dos outros planetas e das estrelas fixas e de todo o céu, não deverá formar-se com verossimilhança e, antes, com necessidade, a noção do Criador, Pai e Senhor? De fato, nenhuma das obras de arte se produz a si mesma, e esse cosmo implica suma arte e sumo conhecimento, de modo que deve ter sido produzido por um artífice dotado de conhecimento e de perfeição absolutos. Desse modo, formamos a noção da existência de Deus" (ALEXANDRIA, Fílon de. As leis especiais. I, 32-35).
Paulo afirmou coisa parecida, em Romanos. Declarou evidente que Deus existe. Porém, Fílon o precedeu. Paulo não precisou gastar vários capítulos da sua epístola para demonstrar a existência de Deus, exatamente porque o argumento de Fílon, baseado no motor imóvel de Aristóteles, tinha sido amplamente assimilado.
Nem a demonstração de Fílon, nem a alusão de Paulo à existência de Deus tiram sua força argumentativa da evocação de uma vaga semelhança entre as coisas criadas e Deus. Sua eficácia decorre da possibilidade de remontar das coisas criadas às suas causas e destas à Primeira Causa ou Primeiro Motor, que Aristóteles chamara Deus. Essa é a ideia com força demonstrativa, por trás das afirmações de Paulo e de Fílon. Para Aristóteles, demonstrar era dar a causa de algo. Portanto, partindo das coisas criadas, era possível se remontar à Causa Primeira, que é Deus ou o Primeiro Motor. Também essa doutrina aristotélica foi absorvida pelo platonismo.
Vê-se portanto que, embora as obras de Aristóteles tivessem rareado e depois desaparecido, pontos cruciais da sua filosofia foram incorporados à visão de Universo platônica, que vigorou na Antiguidade e no início da Idade Média. Isso não significa que os autores patrísticos tenham compreendido tão claramente o platonismo de Aristóteles. Na maior parte das vezes, isso não aconteceu. Até porque, como veremos, após a morte de Aristóteles, seus herdeiros mais próximos, chamados peripatéticos, voltaram a afirmar o materialismo tradicional dos gregos, o que contribuiu para o obscurecimento da verdadeira orientação do aristotelismo.
Porém, de algum modo, autores patrísticos como Orígenes e Gregório de Nissa tiveram contato direto com textos de Aristóteles. O primeiro escreveu: “Aristóteles, depois de ouvir [Platão] durante vinte anos, dele se afastou, rejeitou a doutrina da imortalidade da alma e tachou de gorjeios as ideias platônicas” (ALEXANDRIA, Orígenes de. Contra Celso. São Paulo: Paulus, 2004. p. 135). E Gregório referiu-se a Aristóteles como “o filósofo sucessivo [a Platão], o qual indagando habilmente sobre os fenômenos e examinando com cuidado o problema que nesse momento nos interessa [a natureza da alma] nos mostrou que a alma é mortal” (idem. p. 199).
A apresentação do pensamento de Aristóteles por Orígenes e Gregório sugere que eles conheciam o livro De anima, em que aquele filósofo afirmou que a alma nasce e desaparece com o corpo. Porém, indica a ignorância do diálogo Eudemo, em que o Estagirita defendeu a imortalidade da alma, o que confirma que os livros desse autor passaram a ser pouco reproduzidos.
O desaparecimento gradual das obras de Aristóteles não pode ser confundido com a crítica das suas ideias, ocorrida a partir do século XIII, já que não permitiu, como ela, a avaliação desfavorável e a própria rejeição do conteúdo do filósofo grego. Foi, porém, um processo importante, pois atrasou a compreensão de Aristóteles como um pensador não platônico.
No século XII, quando se deu o resgate dos textos de Aristóteles, do interior da cultura islâmica, que os descobrira e estudara extensamente, eles foram não só relidos, mas reinterpretados. Dessa reinterpretação, adveio o que em Filosofia se denomina Segunda Escolástica, que tomou o Estagirita como autêntica alternativa ao platonismo.
A principal controvérsia que a Segunda Escolástica desenvolveu foi a dos universais. Por tal conceito, entende-se toda ideia que pode ser predicada de vários seres, em oposição às que se aplicam a um único. Os modos de ser (em tal lugar, em tal época, em pé, sentado) e as qualidades (preto, branco, liso, áspero) dos objetos são universais, pois podem ser predicados de várias pessoas e coisas (que estão em determinados lugares em determinadas épocas, que estão em pé, sentadas, são pretas, brancas, lisas ou ásperas). O cerne da questão dos universais, o problema nuclear que suscitam, consiste em determinar se existem só no intelecto ou também no mundo real.
Sobre esse ponto, duas correntes de pensamento se organizaram: a realista, que teve em Tomás de Aquino seu maior expoente, considerava que os universais correspondem a características do mundo real. Portanto que algo é amarelo, porque a cor amarela está de fato nele. Os nominalistas, por outro lado, consideravam os universais meros nomes desprovidos de substancialidade. Para eles, a afirmação de que algo é amarelo implica que a nossa mente assim organiza o que vê e entende. Para além desse uso funcional dos universais, nada há que se possa afirmar com certeza uma propriedade abstrata das coisas.
Fiel a esse princípio interpretativo, um nominalista como Guilherme de Ockham negava que as categorias correspondessem a coisas reais. Como todo conceito, elas não eram mais do que nomes que nos permitem fazer referência ao real. Ockham lembrava que Aristóteles e Boécio tinham entendido as categorias nesse sentido. Nas suas palavras, "Boécio pretende, em diversas passagens de seu Comentário às categorias, que o Filósofo [Aristóteles] trata naquele livro de palavras faladas e, assim, consequentemente, chama substâncias primeiras e segundas as próprias palavras" (OCKHAM, Guilherme de. Lógica dos termos. Porto Alegre: PUC-RS/USF, 1999. Vol. III, item 42, p. 235).
Esse deslocamento das categorias para o interior do intelecto não anula, por certo, a sua racionalidade, mas drena a racionalidade que os gregos reconheciam no mundo. Já não podemos supor que a divisão estrita do ser em categorias, proposta por Aristóteles, seja uma propriedade do mundo. É como se o ser e a sua racionalidade fossem deslocados para o intelecto, e o real fosse despojado de tudo o que diz respeito ao ser e às categorias. É, enfim, como se a Metafísica se tornasse uma esfera privativa da mente.
A consequência mais radical do deslocamento das categorias ao interior do intelecto e ao plano da comunicação humana (flatus vocis) é o deslocamento da ordem que preside o cosmos para a mente e para o ar. A ideia de um cosmo ordenado foi, assim, desafiada pela primeira vez.
Ao ver enfermar a racionalidade do mundo, ao entregá-la à dúvida, Ockham a substitui por outro poder, que tudo sustenta: a vontade. Não a vontade do homem, mas a de Deus. Por essa vontade, não por imposições racionais, tudo veio a existir e se conserva até hoje. Se Deus tivesse querido outra coisa, outro mundo, outros fatos, os acontecimentos de todos os tempos também teriam sido outros.
Cedo se percebeu que essa reinterpretação de Aristóteles coloca em xeque toda a Filosofia Clássica. Em O nome da rosa, de Umberto Eco, outro Guilherme, um frade ockhamista do século XIV, treme ao pensar nas consequências dessa revolucionária ideia.

Da Matéria a Cristo

Embora a Filosofia Antiga e a Medieval pareçam oscilar como um pêndulo entre Platão e Aristóteles, seus seguidores e continuadores, um elemento presente na origem da Filosofia retorna ao primeiro plano, em muitos momentos, até o século V. Trata-se do materialismo dos antigos filósofos pré-socráticos.
Esse elemento era tão constitutivo da cultura grega que a propensão metafísica de Platão e Aristóteles não deve ser considerada um fruto característico daquela cultura, mas resultado de um esforço contrário a ela. Foi quase como uma reflexão antinatural. Por isso também, com o desaparecimento daqueles pensadores, o pendor materialista grego voltou a dar as cartas e a exercer sua hegemonia de modo inconteste na Filosofia grega. Sinais claros disso foram o recuo dos discípulos de Aristóteles a posições materialistas e o surgimento de uma série de escolas com abordagens diversas das dele e Platão.
Dentre as posições filosóficas propostas e de-fendidas, após Aristóteles, as que alcançaram maior sucesso foram quase todas materialistas. Por volta do século I, essas posições tinham-se tornado majoritárias, de novo, entre os filósofos. O epicurismo e o estoicis-mo são destacados exemplos disso. A narrativa de Atos dos Apóstolos mostra o apóstolo Paulo envolvido em discussões com filósofos, em Atenas. No entanto, entre as escolas ali existentes, aponta somente as dos estoicos e epicureus.
A menção dessas correntes, em Atos, deve refletir a notoriedade maior dos pensadores da Estoá e dos seguidores de Epicuro, no contexto de Atenas. Ela coincide com a afirmação de Cícero, um século antes, de que os estoicos, epicureus e acadêmicos eram as filosofias “mais consideráveis" da época (CÍCERO, Marco Túlio. De natura deorum. I, vi, vii).
Tanto os estoicos como os epicureus eram materialistas. Os primeiros o eram no sentido tradicional. Não deixavam de ser religiosos e de acreditar nos deuses. Os epicureus iam além dessa posição, pois consideravam toda matéria constituída por átomos irredutíveis a qualquer outra coisa, que se entrechocavam de modo a formar os objetos que conhecemos.
Santo Agostinho viveu numa época em que esse ainda era o cenário da Filosofia. Recebeu educação romana típica. Foi um retórico, admirador de Cícero e estudou as correntes filosóficas da sua época, tanto antes quanto depois de aderir ao maniqueísmo, uma mistura de religião persa, filosofia grega e cristianismo.
O gênio filosófico de Agostinho faz questionar por que abraçou doutrina tão exótica quanto o maniqueísmo, quando filosofias mais sofisticadas e bem aça-badas estavam à disposição, assim como o neoplatonismo, o ceticismo acadêmico e o neoestoicismo.
A resposta envolve vários fatores. O primeiro foi a idade (19 anos) com que Agostinho se converteu ao maniqueísmo. Em segundo lugar, nenhuma das escolas citadas acima era cristã, o que não satisfazia Agostinho, que fora conduzido por sua mãe a admirar os ensinamentos de Cristo. Embora considerado herético, por seguir uma versão gnóstica de cristianismo, o maniqueísmo ao menos propiciava o contato com o Novo Testamento.
O neoplatonismo tinha uma doutrina, em geral, mais próxima do cristianismo. Porém, para a mente romana de Agostinho, ele tinha o inconveniente de não ser materialista, como o maniqueísmo, que sustentava que tudo é constituído de matéria. É, portanto, possível que o materialismo maniqueísta tenha pesado e até desempatado o concurso das filosofias, na mente juvenil de Agostinho.
Esse contexto ajuda a entender que a consagração de Agostinho a Cristo, que se tornou definitiva com o seu desligamento do maniqueísmo, importou a rejeição do materialismo que ele professara e ao qual convertera vários de seus amigos. Esse materialismo implicava que tudo o que existe é feito de matéria, a qual é eterna.
Ao se converter, Agostinho passou a considerar a matéria criada por Deus, portanto não mais eterna. Do mesmo modo, a dimensão principal da realidade passou a ser constituída por espíritos imateriais. Em síntese, a conversão de Agostinho constituiu uma substituição não só do maniqueísmo, mas também do materialismo pela filosofia platônica.
Santo Agostinho destaca-se, na História da Filosofia, não só por ter pertencido, sucessivamente, aos polos materialista e metafísico do pensamento antigo, mas por ter sido responsável pela mais significativa superação do materialismo não apenas até a sua época, mas talvez em todos os séculos.
Esse juízo se justifica por que os grandes filósofos patrísticos, de Orígenes a Santo Agostinho, passando por Gregório de Nissa, constituem uma era de ouro encravada na Filosofia Antiga. Ao menos do ponto de vista da filosofia do ser, nem antes, nem depois desse período foram construídas soluções tão plausíveis para o impasse a que o pensamento de Platão e Aristóteles conduz.
Se Platão e Aristóteles comandam a Filosofia, eles trazem também problemas que os filósofos patrísticos que souberam superar o platonismo resolveram de maneira suprema. Agostinho é o exemplo típico e até mesmo o modelo desses pensadores, pois superou a concepção materialista de um modo que outros grandes pensadores cristãos, como Tertuliano, não conseguiram alcançar. Por exemplo, “Tertuliano acreditou que a alma é um corpo, não por outra razão senão porque não conseguiu pensá-la como incorpórea, por isso teve receio de que fosse nada, se não fosse um corpo” (HIPONA, Agostinho de. Comentário literal ao Gênesis. In Comentário ao Gênesis. São Paulo: Paulus, 2005. p. 380).
A influência do materialismo sobre um cristão como Tertuliano causaria espanto, se não compreendêssemos que a primazia da matéria não era só uma filosofia, mas uma ideia conformadora do modo de pensar das pessoas, no mundo romano. Tão conforma-dora, aliás, que nem uma das mentes mais brilhantes dos primeiros séculos, alimentada com o ensinamento dualista do Novo Testamento, conseguiu livrar-se dele.
Agostinho não só abandonou o materialismo ao se converter ao cristianismo como veio a se tornar o mais importante coveiro dele. O ponto de partida, para essa reviravolta, Agostinho encontrou-o na ideia judaica de criação a partir do nada, como se nota na seguinte passagem: “Deus criou todas as coisas do nada, pois, embora todas as coisas dotadas de forma tenham sido feitas desta matéria [mencionada em Gênesis 1:2], contudo, esta matéria foi feita do nada absoluto” (HIPONA, Agostinho de. Sobre o Gênesis cotra os maniqueus. In Comentário ao Gênesis. São Paulo: Paulus, 2005. p. 510).
Porém, essa mesma afirmativa permite perceber que Agostinho desmontou o materialismo antigo, sem deixar de atribuir à matéria um papel central na criação. Para ele, o que Deus criou do nada foi a matéria dos céus e da terra citados em Gênesis 1:1. Todas as outras coisas foram formadas dessa matéria primordial e informe.
Esse ponto de partida é importante não só para a teologia, mas também para as definições filosóficas do pensamento de Santo Agostinho. Para melhor exprimi-lo, Agostinho adotou a noção de razões seminais desenvolvida pelos estoicos, como Orígenes e Gregório de Nissa já haviam feito antes dele. Aristóteles tinha ensinado que a matéria é isenta de forma. Porém, depois dele, os estoicos tinham sugerido que, embora não possua forma, a matéria contém as sementes ou germes das formas que vemos no mundo. Essas sementes foram denominadas razões seminais pelos estoicos.
A ideia de razão seminal tinha a considerável vantagem de evitar a concepção aristotélica, segundo a qual a forma vem de não-sei-onde para se unir à matéria a fim de constituir todas as coisas. Se a forma está na matéria, ainda que em germe, como os estoicos afirmaram e os pensadores patrísticos aceitaram, seu surgi-mento pode resultar de um processo de desenvolvimento. Assim, a forma não tem existência metafísica própria, num lugar à parte, antes de se unir à matéria ou após o intelecto extraí-la dos dados sensoriais.
Ouçamos o próprio Agostinho: “Assim como, observando a semente da árvore, dizemos que ali estão as raízes, o tronco, os ramos, os frutos e as folhas, não porque já existam, mas porque dela existirão, do mesmo modo foi dito: No princípio, Deus criou o céu e a terra, como que uma semente do céu e da terra, estando ainda indeterminada a matéria do céu e da terra [...] To-dos estes nomes, seja céu e terra, seja terra invisível e vaga e abismo tenebroso, seja água sobre a qual pairava o Espírito, são designações da matéria informe” (Comentário literal ao Gênesis. pp. 511-512). Assim, para Agostinho, a matéria primordial de Gênesis 1:2 foi cria-da do nada com as sementes de todas as coisas.
A trabalhosa coleta de pontos de filosofias várias e a sua combinação num todo coerente, pelos filósofos patrísticos e Santo Agostinho em particular, criou a segunda era de ouro da Metafísica, após as obras de Platão e Aristóteles, que constituíram a primeira. A terceira era viria com o desenvolvimento da Filosofia Árabe e da Escolástica Medieval.
O pensamento metafísico de Agostinho apresenta diversas vantagens em relação ao de Platão e Aristóteles, sem mencionar as filosofias materialistas, cujo fundo não era mais que expressão filosófica do senso comum, o qual nos informa incessantemente que tudo o que existe é matéria, mais sólida ou rarefeita.
Por outro lado (e isso é parte da sua esmerada construção filosófica), Agostinho não recorreu ao imaterial para explicar o que ocorre ordinariamente, assim como a combinação de matéria e forma nas coisas, já que, para ele, a forma é inerente à matéria e se desenvolve por processos tão naturais quanto o leva a semente a se transformar em árvore. Desse modo, a vigorosa afirmação do imaterial, por Agostinho, não se deu com prejuízo para a explicação mais simples possivel dos processos naturais observados.
Agostinho adotou ainda outra teoria corretiva de erros antigos afirmada também por Orígenes, segundo o qual as ideias têm existência estritamente mental em Deus. Essa transferência das ideias de um cosmos inteligível para a mente divina é importante por retirar-lhes a objetividade que tinham ostentado desde Platão e evitar o erro da substantificação.
Na prece com que abre o livro dos Solilóquios, nosso autor se refere a uma série de ideias abstratas como conteúdos da mente de Deus. Com isso, Agostinho reafirma claramente o caráter intelectual das ideias, não as converte em coisas, pessoas ou qualquer outro ser.
Nas palavras da famosa prece: “Eu te invoco, Deus Verdade, em quem, por quem e mediante quem é verdadeiro tudo o que é verdadeiro. Deus Sabedoria, em quem, por quem e mediante quem têm sabedoria todos os que sabem. Deus, verdadeira e suprema Vida, em quem, por quem e mediante quem tem vida tudo o que goza de vida verdadeira.Deus Felicidade, em quem, por quem e mediante quem são felizes todos os seres que gozam de felicidade. Deus Bondade e Beleza, em quem, por quem e mediante quem é bom e belo tudo o que tem bondade e beleza. Deus Luz inteligível, em quem, por quem e mediante quem tem brilho intenso tudo o que brilha com inteligência” (HIPONA, Agostinho de. Solilóquios. São Paulo: Paulus, 1998. pp. 16-17).
A importância dessa concepção das ideias só é totalmente aquilatada, ao considerarmos a influência da teoria das formas de Aristóteles, ao longo da História. De acordo com essa teoria, formas como a brancura existem, ao mesmo tempo, nas coisas e no intelecto de quem as pensa. Para Santo Agostinho não. Para ele, a ideia de branco que está no intelecto não é o mesmo que a forma que vemos nas coisas, após a eclosão e desenvolvimento das razões seminais. É algo que lhe corresponde. Assim Agostinho evita a substantificação das idéias.
Por não colocar as idéias num mundo à parte, Santo Agostinho pôde escrever sobre o versículo 20 do capítulo 11 do Livro da Sabedoria: “Pense se estas três coisas: medida, número e peso [que são três ideias], nas quais, conforme está escrito, Deus ordenou todas as coisas, existiam em alguma parte antes que fossem criadas todas as criaturas, ou se também elas foram criadas; se existiam antes, onde estavam. Pois antes da criatura, nada havia a não ser o Criador. Portanto, existiam nele [...] E o afirmado: Tudo dispuseste com medida, número e peso, nada mais significa, de acordo com o que foi possível à mente e à língua humanas, senão: Dispuseste tudo em ti” (Comentário literal ao Gênesis. p. 123).
Medida, número e peso existem na mente de Deus como ideias. A mente (de Deus e das criaturas) é o único e exclusivo lugar das idéias, no pensamento de gostinho. A afirmação de que a medida, o número e o peso foram também criados significa que o foram sob outra forma. Do contrário, Deus seria o mesmo que a natureza, e Agostinho seria panteísta. Como Deus não é a natureza, e Agostinho não é panteísta, segue-se que a sua doutrina das ideias supõe clara separação entre elas e as coisas.
Noutra célebre passagem, Agostinho reafirma a imanência da ideia na mente, ao compará-la com a Trindade: “Há na criatura humana uma imagem interiorizada da Trindade: a mente, o conhecimento de si mesma e o amor. Essas três realidades são iguais e da mesma essência [...] A mente que ama e que conhece é substância; seu conhecimento é substância; seu amor é substância” (HIPONA, Agostinho de. A Trindade. São Paulo: Paulus, 1995. Livro IX, Introdução, Cap. 4, pp. 285, 292).
Alguém poderia enxergar, nesse trecho do autor patrístico, uma afirmação da substancialidade independente das ideias e dos sentimentos, na linha proposta por Platão e reafirmada em quase todo o platonismo. Mas isso demandaria converter Agostinho em triteísta. Como a intenção expressa dele, em A Trindade, era afirmar o monoteísmo e não o triteísmo, a interpretação correta da passagem é a que reconhece que o conheci-mento e o sentimento têm substância, porém não pró-pria, vale dizer, que eles participam da substância da mente e são o que a mente é. Portanto, não existem fora da mente.
A concepção das ideias como pensamentos de Deus é anterior a Orígenes e Agostinho. Estava presente em Fílon de Alexandria, em representantes do Platonismo Médio e em Plotino. Porém, Fílon considerava que as ideias também se projetaram fora da mente divina, ao constituírem o cosmo inteligível, que serviu de modelo para a criação do mundo físico. Pensava, portanto, que as ideias subsistiam, ao mesmo tempo, em Deus e fora dele. Em geral, os platônicos médios e o próprio Plotino pensavam da mesma maneira.
Coube a Orígenes e Agostinho desenvolver a noção das ideias como pensamentos de Deus não objetivados num cosmo como o de Fílon ou o de Plotino, que denominou Espírito as ideias subsistentes fora da mente divina. E, como as de Plotino e Agostinho são as mais importantes reformas da doutrina das ideias na Antiguidade, não é difícil perceber a superioridade da doutrina de Agostinho a todo o neoplatonismo.
Claro que o legado filosófico de Santo Agostinho não inclui só intuições luminosas como essas, mas também ideias duvidosas. Exemplos dessas limitações no seu pensamento são, a meu ver, a teoria da iluminação e a concepção de alma de Santo Agostinho. A primeira teria permanecido fora do alcance da crítica, se tivesse sido aplicada somente à revelação. Mas Agostinho estendeu seu alcance a todo o conhecimento, desde o mais simples ao mais complexo. Para ele, todo conhecimento se dá na medida em que Deus ilumina o intelecto. Embora de grande valor para a religião, essa hipótese é, no mínimo, desnecessária como explicação de conhecimentos simples.
A psicologia agostiniana também apresenta problemas. É por demais tributária do dualismo platônico. A favor do filósofo patristico, pode-se lembrar que o seu dualismo não chegava aos extremos do de Platão. Agostinho não considerava "possível dizer qual é a substância da alma", embora soubesse que não é constituída dos quatro elementos de que é feita a matéria, isto é, "nem de terra, nem de água, nem do ar, nem do fogo" (HIPONA, Agostinho de. A grandeza da alma. In Santo Agostinho. São Paulo: Paulus, 2008. p. 260).
Vemos por que a época de Santo Agostinho foi aquela em que a Filosofia superou, ao mesmo tempo e com maior nitidez, o materialismo e a substantificação das ideias. O interesse, o volume e o refinamento da Metafísica aumentarão muito, até o século XIV. Porém, no que concerne aos dois problemas que mais de perto nos interessam, a História da Filosofia só tem uma Época de Ouro, e ela é o período entre os séculos III e V. Tão vigorosa e profunda foi a refutação do materialismo que então se produziu que esse polo da reflexão filosófica ficará despovoado, até o século XIX, quando os mate-rialismos ensaiarão seu retorno, com vigor e propostas renovadas.
Parte dos novos materialismos foi superada pelo avanço do conhecimento. Outra parte arruinou-se com o Muro de Berlim, do qual já se disse tudo menos da relação que tem com a Metafísica. Deve ter alguma, já que o homem atual continua entregue às obras opostas que o Santo de Hipona tão bem descreveu: "Dois amo-res fundaram duas cidades: o amor a si, levado ao desprezo de Deus, a terrena; o amor a Deus, levado ao desprezo de si, a celestial" (HIPONA, Agostinho de. A cidade de Deus – contra os pagãos. 2ª ed., Petrópolis: Vozes, 1989. Livro XIV, Cap. 28). Se o amor a Deus requer o complemento da razão, ninguém melhor que Agoatinho indicou o seu fundamento filosófico.