quarta-feira, 7 de agosto de 2013

O Moisés Histórico (2)

Um fato sobre a ida e a escravização dos filhos de Israel, no Egito, está incontestavelmente estabelecido: que muitos estrangeiros se mudaram para aquele país, na época dos patriarcas, devido às dádivas com que o Nilo frequentemente o coroava. Por isso também, os governantes do Egito chegaram a reservar um lugar específico para abrigar os estrangeiros que para lá afluíam: o Delta do Nilo.
Nesse local, devemos supor que os israelitas viveram e é, de fato, ali que a Bíblia os localiza, uma vez que a Terra de Gósen, mencionada como morada dos filhos de Jacó, ficava no Delta. Ali também, Moisés emergiu, ao regressar de Midiã. De Gósen, a Bíblia relata frequentes deslocamentos dele e de Arão até a Corte de Faraó, a fim de pedir-lhe que libertasse os israelitas.
Essa cena, no início do Livro de Êxodo, faz supor que a Corte egípcia estava na época estabelecida no Delta, pois não haveria condições de Moisés ir com tanta frequência de Gósen à presença de Faraó, se ela estivesse longe dali. Sabemos, porém, que, a Corte de Faraó esteve estabelecida no Delta apenas em duas épocas: durante o Período Hicso e no longo reinado de Ramsés II, da XIX Dinastia. Em todas as outras etapas da História do Egito, a Corte dos Faraós radicou em locais distantes do Delta, o que impede a cena dos deslocamentos constantes de Gósen até ela e vice-versa que observamos em Êxodo.
Isso nos deixa com os únicos dois períodos citados como épocas em que o Êxodo pode ter ocorrido. E não é só. Outro conjunto de dados reforça essa mesma, dupla possibilidade: só os séculos XVI e XIII a. C. fornecem vestígios da destruição das cidades de Canaã localizada pelo Livro de Josué pouco depois do Êxodo. Em todos os outros séculos, não há idênticos sinais disponíveis. Portanto, também sob esse ângulo, somos levados a localizar o Êxodo em uma das duas épocas.
Claro que a existência de duas localizações quase igualmente possíveis para o Êxodo não justifica a do século XIII ter-se tornado tão mais usual do que a outra. Por que a preferência pelo período mais recente, em prejuízo do mais remoto? A resposta parece associada à atitude dos estudiosos para com os dados cronológicos do Antigo Testamento. O Pentateuco e os livros históricos fornecem-nos dois conjuntos de localizações cronológicas dos acontecimentos que narram. Chamarei cronologia remota o primeiro conjunto. O outro é a cronologia real, formada com dados das Cortes israelitas do Norte (Samaria) e do Sul (Jerusalém), que está contida nos livros de Reis e de Crônicas.
Os historiadores não duvidam da precisão desse segundo conjunto de dados, já que, nas Cortes do Antigo Oriente, existiam funcionários responsáveis pelo registro dos principais acontecimentos, ao contrário do que ocorria fora delas. Não foi diferente no caso dos israelitas, cuja primeira Corte foi organizada por Davi. Em torno da de Corte Davi e Salomão, é que o hebraico surgiu como idioma escrito, assim como outras línguas o fizeram ao redor de outras Cortes. É bastante crível, portanto, que os eventos da cronologia real das Escrituras tenham sido compostos, com certa precisão, nesse idioma.
Todavia, como a condição consistente numa Corte e num idioma escrito estava ausente antes, a precisão da cronologia de Reis e Crônicas aparentemente não se reproduz na cronologia remota. como a condição consistente numa Corte e num idioma escrito estava ausente antes, a precisão da cronologia de Reis e Crônicas aparentemente não se reproduz na cronologia remota. Pelo contrário, nesta, a maior parte das parcelas de tempo é constituída por números redondos como 40. A título de exemplo, a peregrinação de Israel no deserto (Nm 14:33-34) e os juizados de Otniel (Jz 3:11), Eúde, Sangar (Jz 3:30), Baraque (Jz 5:32) e Gideão (Jz 8:28) foi atribuída essa duração. O mesmo acontece com os reinados iniciais de Saul (At 13:21), Davi (1 Rs 2:11; 1 Cr 3:4) e Salomão (2 Cr 29:30), que também duraram 40 anos. Sem mencionar outros números redondos, como os 140 anos entre os nascimentos de Abraão e Isaque (Gn 11:26,32; 12:4) e os 100 entre Isaque e Jacó (Gn 21:5).
Os historiadores costumam pensar que esses números redondos são todos aproximados ou têm função meramente mística. Em qualquer caso, eles não refletem a real duração dos juizados e reinados a eles associados. Por isso, os especialistas concluem que as épocas e o conteúdo dos fatos remotos da Pré-História e da História de Israel foram estabelecidos arbitrariamente e que a História confiável, na Bíblia, é, portanto, a que cobre o período do reino dividido. A outra História, anterior, apresenta características fabulosas. Esta, a situação dos debates sobre a História dos israelitas e sua peculiar cronologia.
A conclusão dos historiadores que acabo de mencionar contém um furo, uma falha que pode ser demonstrada da seguinte maneira maneira. É possível estabelecer pontos fixos, acontecimentos datados com precisão, no corpo da História remota das Escrituras, tanto por meio de dados bíblicos como por informações paralelas. O Dilúvio de Noé é um desses possíveis pontos. Sua época, de acordo com a Bíblia, é aproximadamente 2.635 a. C. Vestígios de inundações, no local onde o Dilúvio ocorreu, foram datados do fim do terceiro milênio a. C. São, pois, bons exemplos da confirmação de dados bíblicos por extrabíblicos.
Mas estão longe de serem os únicos. O fundador da Antiga Assíria (Sargão) é amplamente conhecido de inscrições e testemunhos paralelos. É possível o identificarmos com Ninrode (Gn 10:10-11) ou um de seus descendentes. Esse é, portanto, um segundo ponto firme, estabelecido por informações bíblicas e extrabíblicas, na História remota. Podemos ainda mencionar os conquistadores das Tribos, no Período dos Juízes, como Cusã-Risataim, Eglom, Jabim e outros cujos feitos, embora não apareçam identicamente em inscrições estrangeiras, se coadunam com o que conhecemos da Palestina da época. A ocupação da Transjordânia pelos filisteus (Jz 13:1) se destaca, entre esses acontecimentos do Período de Juízes consistentes com as crônicas de outros povos. De sorte que não poucos acontecimentos podem ser confirmados por informações bíblicas e extrabíblicas, entre o Dilúvio e o final da História remota.
A questão, portanto, é: se a História do Pentateuco, de Josué e Juízes (chamada História remota) foi composta mediante a utilização de números redondos, como acontecimentos a exemplo dos que acabo de apontar puderam ser datados corretamente? Números redondos levam ao estabelecimento de épocas arbitrárias. Como algumas podem não o ser? Como a distância entre o Dilúvio (2.635 a. C.) e a ocupação da Transjordânia pelos filisteus (1.191 a. C.), por exemplo, pode estar correta, se foi estabelecida por comparação com um sem-número de datas redondas?
Sejamos, se possível, ainda mais claros: se A, B, C, D até J são acontecimentos da História remota, como as distâncias entre quaisquer deles são arbitrárias, e a distância entre D e E não o é? Como pode ser assim, se a fixação das épocas de todos os acontecimentos se deu por um só e mesmo método (comparação de números redondos)?
Temos, pois, de reconhecer que a conclusão de que as datas da História remota são incorretas é contraditória, pois algumas dentre elas, manifestamente, não o são. E, se não o são, como as outras podem ser, quando todas foram estabelecidas pelo mesmo método?
Não podemos esquecer-nos ainda de que muitas datas da História remota não são redondas. Consideremos a genealogia de Gênesis 5: ela possui nove números e apenas dois redondos. Não escapa, portanto, às características de uma distribuição aleatória de números. Menos ainda exige que as suas datas se tenham formado, na ausência de informações específicas. A situação da genealogia de Gênesis 11 não é muito distinta. Também nela, os números redondos parecem indicar suplementação de informações disponíveis, não inexistência de informações.
E, se as informações que levaram ao estabelecimento dos números não redondos existiram, devemos perguntar se eram confiáveis. É provável que sim, pois vimos que nos conduzem a muitas localizações corretas de acontecimentos. Se as localizações estão certas, por que as datas ou épocas em que se baseiam estariam erradas? Simplesmente, não parece provável.
Nada indica que os números não redondos das genealogias de Gênesis 5 e 11 não tenham sido produzidos em Cortes, que já conheciam a escrita. As gerações dessas listas são muito antigas, mas não pré-históricas. Viveram num dos lugares mais desenvolvidos do mundo antigo: a Mesopotâmia. Listas com os seus nomes podem, portanto, ter sido escritas bastante cedo. Penso que foi o que aconteceu.
Os judeus entraram em contato com essas listas, onde elas foram compostas, isto é, na Mesopotâmia, durante o Exílio Babilônico. Usaram-nas para compor Gênesis 5 e 11, que, acrescidos às informações cronológicas de Josué e Juízes, vieram a formar o arcabouço da História remota do povo hebreu, comumente chamada Deuteronomista.
Nada disso nos aconselha a considerar não fidedignas as informações sobre as épocas da História remota. E, se elas são fidedignas, exigem localizarmos o Êxodo no século XVI. não no XIII a. C. Quando lemos, portanto, Moisés e Arão irem a Faraó e retornarem às residências hebreias, irem de novo e de novo retornarem, sabemo-nos diante de uma cena somente possível no Período Hicso. Exatamente como Josefo afirmou, com base no único historiador que escreveu sobre aquele período (Maneton).
Maneton diz-nos, inclusive, que os hicsos reconstruíram Avaris, que é Ramsés, e a fizeram sua capital em pleno Delta, ao que tudo indica no século XVII a. C. Moisés e Arão nasceram, por essa época. Exatamente como Êxodo informa.
O palácio em que Moisés se criou deve ter sido, portanto, o do soberano hicso. A filha de Faraó, sua ama na primeira idade, também foi hicsa. E o próprio Moisés, com o tempo, absorveu a cultura desse povo, não a cultura egípcia. Os hicsos, provavelmente, falavam semítico ocidental. Porém, não podem ter utilizado uma escrita baseada em alfabeto, já que não havia alfabeto no Egito, no século XVII a. C. Embora Moisés deva ter aprendido a escrita baseada em hieróglifos dos egípcios, é duvidoso que ele tenha escrito as palavras sagradas do seu Deus no idioma dos inimigos egípcios.
Como as escritas baseada em alfabetos ainda não haviam sido inventadas, é mais provável que Moisés tenha escrito seus textos legais em cuneiforme. A favor dessa alternativa está o fato de os Dez Mandamentos terem sido escritos em tábuas de pedra. Henri Cazelles escreveu que "As fontes cuneiformes (Mesopotâmia, Síria, Ásia Menor) são escritas com ferramentas, fazendo-se sulcos com ferramentas sobre uma tabuinha de argila. Mas costumavam-se gravar sinais sobre a pedra dura [...] A cultura cuneiforme dominou a Síria-Palestina durante mais da metade do segundo milênio a. C." (CAZELLES, Henri. História política de Israel – desde as origens até Alexandre Magno. 3ª ed., São Paulo: Paulus, 2008. p. 35).
Os sinais cuneiformes gravados “sobre pedra dura”, a que Cazelles se refere, podem ter constituído a técnica, segundo a qual o Decálogo foi escrito. Não podemos perder de vista, aliás, que o mesmo capítulo de Êxodo afirma que ele foi escrito por Deus e por Moisés (Êx 34:1,28).
Na verdade, o fato de o Decálogo ter sido escrito em pedra é mais uma confirmação da localização do Êxodo no décimo-sexto século, uma vez que o cuneiforme era a única escrita disponível na Palestina, nesse período. A situação da fuga dos israelitas no século XIII diminui a harmonia entre Êxodo e as técnicas de redação atestadas.
O livro de Moisés, mencionado em Êxodo 17:14, é um candidato a conter tais relatos. Talvez incluísse versões embrionárias ou desenvolvidas das sagas de Abraão, Isaque, Jacó e do Êxodo. A possibilidade de ter sido assim aumentará, se considerarmos que alguns hebreus primitivos não eram iletrados, mas cultivavam a escrita (provavelmente cuneiforme) e possuíam as condições necessárias para terem sido os transmissores dos textos primitivos sobre Abraão.Os fatos indicam, em suma, que a história do Êxodo não se originou de uma única fonte, mas de várias, que foram reunidas e modificadas, até se transformarem no texto que conhecemos. O Êxodo nunca foi um relato, mas vários. Porém, há indícios da participação decisiva de um autor situado em tempo bastante remoto, que reuniu os primeiros materiais e redigiu a primeira versão dos acontecimentos. As gerações identificaram esse autor ancestral com o próprio Moisés.
Todas essas cores, porém, essas linhas e informações, concorrem e se encaixam, somente, na grande tela do reino hicso estabelecido no Egito. Não estamos no Império de Ramsés, que reedificou Avaris muito mais tarde e a chamou pelo próprio nome. Estamos no crepúsculo do poderio hicso sobre o Delta, na aurora de um dos povos com passado mais insigne que já existiram.
Sobre a tez envelhecida de Moisés, o sol do vale do Nilo projetava seus raios, que na montanha, pouco mais tarde, a fariam rejuvenescer e brilhar em glória.