Nem mesmo em sonho, a vasta sequência de desertos da Arábia e da Península do Sinai, com seu território tórrido, possuía a capacidade de alimentar contingente tão espetacular. Ainda hoje, após o insondável desenvolvimento tecnológico dos últimos séculos, não se encontram, nessas regiões desérticas, mais do que alguns milhares de habitantes. Portanto, a população de israelitas que saiu do Egito nem de longe deve ter-se aproximado das cifras apontadas em Números.
Claro que Deus pode operar milhares, mas não encontramos um único, em toda a Bíblia, que coloque uma nação inteira, por tempo tão longo, em contradição com as condições normais de existência de todos os outros povos. Isso não deve ter ocorrido, portanto, durante a fuga de Israel do Egito e a sua permanência no deserto.
Informações bíblicas sugerem que o contrário teve lugar, ou seja, que o número de israelitas que saiu do Egito era de, no máximo, alguns milhares. Êxodo, por exemplo, trata os israelitas radicados no Egito, antes do Êxodo, como uma colônia de escravos oprimidos. O contraste entre essa descrição e o poderoso exército de 600 mil homens com alto nível de organização, que Números retrata, é praticamente insuperável. Sobretudo se considerarmos que o exército formou-se num deserto inóspito.
Não podemos esquecer que apenas 70 descendentes de Jacó desceram ao Egito. Sabemos que eles se multiplicaram grandemente na Terra de Gósen, mas é inconcebível que o tenham feito a ponto de atingir uma população de dois milhões de pessoas em 430 anos. Essa é a população sugerida pelos censos de Números. Porém, quando lemos sobre a equilibrada batalha que Israel travou com os amalequitas, logo depois do Êxodo (Êx 17:11), percebemos que a realidade deve ter sido outra. Amaleque era uma pequena tribo que habitava em Canaã (Nm 13: 29; 14:43). Os amalequitas que enfrentaram os filhos de Israel, no deserto, não constituíam a totalidade da tribo. Eram só um grupo de integrantes dela. Mesmo assim, Israel teve grandes dificuldades para derrotá-lo, o que indica que o seu porte e organização militar não eram muito notáveis.
Por razões como essas, ao pintarmos o retrato do Moisés bíblico, um desafio que se coloca é o de explicar o contraste entre as informações que apresentam Israel como um modesto grupo de fugitivos e as que o retratam com 600 mil homens de guerra. Para superar o desafio, é importante recordarmos que, na época do Êxodo, havia dois principais contingentes de israelitas, no Oriente Médio. O primeiro era constituído pelos descendentes de Jacó radicados no Egito. O outro era integrado pelos descendentes de Abraão, Isaque e Jacó que não desceram com o último para o Egito. Os próprios hicsos podem ter feito parte desse contingente palestino de hebreus.
Moisés não ignorava a existência dos dois contingentes. É possível que ele tenha envidado esforços para atrair hebreus de Canaã, durante a peregrinação. Porém, nada justifica que a população implícita em Números possa ter sido alcançada, por esse meio.
A dificuldade relacionada à real população israelita é, portanto, considerável. Não é possível resolvê-la, nos moldes das interpretações tradicionais do Antigo Testamento. Há, porém, uma maneira de explicar os censos de Números, sem incidir na população exorbitante mencionada nesse livro. John Thompson mostrou que “o termo hebraico elef [traduzido mil, nos capítulos sobre os censos] pode ter vários significados – clã, um subgrupo de uma tribo, um grupo militar” (THOMPSON, John Arthur. A Bíblia e a Arqueologia – quando a ciência descobre a fé. 2ª ed., São Paulo: Vida Cristã, 2007. p. 86). Mil é somente uma das traduções possíveis do termo.
Quando Deus ordenou que Moisés levantasse o censo dos filhos de Israel, determinou que eles fossem contados nominalmente, cabeça por cabeça. Nas exatas palavras de Números: “Levantai o censo de toda a congregação dos filhos de Israel, segundo as suas famílias, segundo a casa de seus pais, contando todos os homens, nominalmente, cabeça por cabeça” (Nm 1:2). O que observamos no texto, porém, é que, a essa ordem, seguiu-se o levantamento da série de números redondos de Números 1:20-46. De cada tribo apurou-se existirem um número de milhares e outro de centenas de homens. As centenas são sempre expressas por cifras redondas: cinco na Tribo de Rúben, totalizando 500 israelitas, três na de Simeão (mais 300) e assim por diante.
Além de redondas, as centenas que exprimem o número de homens de cada tribo não são seguidas de dezenas e unidades. Isso faz com que cada número, estranhamente, termine nas próprias centenas. Nem uma vez o número de israelitas de uma tribo termina em 190, 180, 170, 30, 20, 10, 7, 6 ou qualquer outro número menor que 200. Somos levados a concluir que esses números não cumprem a determinação de Deus para levantar o censo nominalmente e cabeça por cabeça, pois, se isso tivesse ocorrido, teríamos mais números terminados em dezenas e unidades. Alguma informação deve, pois, faltar para termos acesso ao significado dos censos levantados no deserto.
Não é, de fato, possível que uma distribuição aleatória de números como os que quantificam as populações do mundo resulte em cifras redondas. Assim como não é possível que, das 26 populações de tribos e da nação de Israel medidas nos censos, todas tivessem números redondos de integrantes. E que esses números terminassem quase sempre em centenas (400, 500, 700 etc.), nunca dezenas ou unidades. Portanto, o que os milhares e as centenas dos censos exprimem não são populações, mas outra coisa.
Só alcançamos compreensão do que os censos realmente mediram, quando consideramos a sua finalidade de contar o número dos homens “da idade de vinte anos para cima [...] capazes de sair à guerra em Israel [...] segundo os seus exércitos” (Êx 1:3). Essas palavras tornam evidente que o objetivo dos censos não foi demográfico, não foi determinar o tamanho da população israelita, mas constituir exércitos. Os censos foram arrolamentos militares, atos de conscrição em massa e de organização de um vasto aparato de guerra. Por isso, as mulheres e as crianças não foram contadas.
Sob essa concepção alternativa, as cifras que encontramos antes da palavra elef, em cada número dos censos, não indicam quantos milhares de homens, mas quantos destacamentos militares havia em cada tribo de Israel. Por exemplo, em Rúben, foram contados 46 mil e quinhentos homens, o que significa que, nessa tribo, havia 46 destacamentos (milhares ou elefs), dos quais apenas 500 homens permaneciam fora. A conjunção e, que liga os 46 elefs aos 500 homens indica soma ou acréscimo. Portanto, que os 500 existiram ao lado dos 46 destacamentos.
Essa interpretação dos elefs de Números é melhor elucidada com ajuda de outras passagens das Escrituras. No 1º Livro de Crônicas 12:29-30, lemos: "dos filhos de Benjamim, irmãos de Saul, vieram três mil; porque até então havia ainda muitos deles que eram pela casa de Saul; dos filhos de Efraim, vinte mil e oitocentos homens valentes e de renome em casa de seus pais". O texto continua, até o verso 37, mencionando os elefs (milhares) das outras tribos. Porém, à diferença do Livro de Números, em Crônicas, somente num caso, os milhares são seguidos por outra cifra. Refiro-me aos "vinte e oito mil e seiscentos" guerreiros de Dã (1 Cr 12:35).
Diferentemente de Números, portanto, em Crônicas, não temos centenas ao lado de milhares, a não ser no caso isolado de Dã. Pelo contrário, temos apenas milhares. Que isso indica? Indica uma reorganização militar. Indica que, após o Êxodo, os israelitas dividiram seu exército em grupos de milhares e de centenas. E que, na época de Davi, essa organização fora alterada apenas para grupos de milhares.
Miqueias 5:2 mostra que a nova organização perdurou. Nesse versículo, os “grupos de milhares” de Judá são os mesmos destacamentos militares (elefs) mencionados nos censos e em Crônicas. Miqueias afirma que Belém era uma aldeia pequena demais para constituir um único desses destacamentos. Disso depreendemos que a organização militar de Crônicas foi preservada, por muito tempo, após a entrada de Israel em Canaã.
Nada nos autoriza a supor que os “grupos de milhares” de Miqueias eram, invariavelmente, constituídos por mil homens. Talvez o número mil nunca ocorresse. Não havia necessidade alguma de manter vigilância para que o destacamento permanecesse com mil integrantes, se podia funcionar perfeitamente com 500, 700, 990 ou mais homens de guerra. O mesmo se conclui do período da peregrinação no deserto, ao qual o Livro de Números nos remete. Durante aquele período, não havia necessidade alguma de os elefs terem um efetivo de mil integrantes. Portanto, não devem ter mantido esse número de homens, mas qualquer outro.
Pode-se perguntar por que cada tribo possuía alguns elefs “e” algumas centenas de homens? Por que aos destacamentos somavam-se homens não incluídos neles? Ou, para exemplificarmos com o caso de Rúben, por que os 500 homens que aparecem ao final do resultado do censo da tribo não pertenciam aos 46 elefs?
Há várias explicações possíveis para isso. Uma delas é que a cada tribo foram atribuídas duas obrigações militares: a de manterem grupos maiores (elefs) e menores (centenas). Por exemplo: em Números 26:25, lemos que Issacar possuía 64 destacamentos (elefs ou milhares) e 300 homens não alocados neles. Números 26:27 indica que Zebulom tinha 60 mil grupos e 500 homens.
Essa interpretação pode parecer imaginativa, mas a palavra elef era amplamente empregada para indicar um grupo militar. Vimos que, em Miqueias 5:2, não faz sentido pensar que os milhares de Judá fossem grupos de mil. Eram, antes, regimentos ou destacamentos com número variável de homens. Não há por que pensar que, em Números, fosse diferente. Também nesse livro, elef é um destacamento militar, não um grupo de mil.
Lembramos que, na Batalha
de Jericó, essa cidade foi rodeada uma vez por dia, durante seis dias, por “todos
os homens de guerra” de Israel. É o que Josué 6:3 expressamente informa. A cidade foi ainda rodeada sete vezes no sétimo dia. Sabemos que Jericó tinha poucas centenas de metros de extensão, na época em que os israelitas a conquistaram (aproximadamente 1.550 a. C.). Considerando que uma
densidade muito elevada (poucas vezes verificada), em grandes aglomerações, é
de 5 pessoas por metro quadrado: se Israel tivesse 600.000 homens de
guerra, eles teriam ocupado uma extensão de 120 quilômetros, o que torna o relato da conquista de Jericó incompatível com os censos de Números.
Temos de concluir, pois, que os números dos censos levantados durante a peregrinação nada nos informam sobre a população de Israel. Não sabemos quantos homens em idade de guerra havia, na nação, durante a marcha no deserto. Muito menos qual era a população total. Porém, nada indica que fosse superior a alguns milhares. Thomas Römer estimou que, muito mais tarde, no século VI a. C., a população total de Judá era de 80 a 100 mil pessoas (RÖMER. Thomas. A chamada História Deuteronomista – introdução sociológica, histórica e literária. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 111). Claro que, dez séculos antes, num lugar tão inóspito, ela era muito menor.Chegamos, assim, à conclusão de que os 600 mil israelitas que o Pentateuco afirma terem saído do Egito e peregrinado, no deserto, por 40 anos, podem não ter sido 600 mil homens, mas 600 grupos militares em que a nação se dividiu, a fim de enfrentar os perigos do lugar e se preparar para a almejada conquista de Canaã. O número total de homens, nesses grupos, permanece desconhecido, assim como a população total da nação. Sabemos, porém, que as centenas de milhares ou mesmo milhões de pessoas que os censos parecem apontar, provavelmente, nunca existiram.
Ainda assim, o fato de Israel ter irrompido em Canaã, por volta de 1.540 a. C., e ter conquistado diversas cidades, inclusive algumas muradas, dá a entender que o número de homens, tanto quanto as alianças celebradas pelo Grupo de Moisés aumentaram muito, durante a peregrinação. A possível fusão com os hicsos que se retiraram do Egito, por volta de 1.570 a. C., é a melhor explicação disponível para esse crescimento espetacular. Sabemos do poderio e da experiência dos hicsos na arte da guerra. Porém, a existência de um líder extraordinário como Moisés permanece indispensável para completar a explicação, pois dificilmente as fusões e alianças poderiam ter ocorrido sem a atuação de um grande líder.
De alguns milhares de homens que deixaram o Egito, Israel deve ter chegado a dezenas de milhares, ao se aproximar dos limites da Terra Prometida. Desses, muitos eram experimentados guerreiros, sob uma aprimorada organização militar e o comando de um líder: Josué. Esse câmbio de horda em exército parece ter sido obra de Moisés. Seu incessante labor e o sucesso das suas audaciosas ações produziu a convergência necessária à formação de uma aliança, que permitiu aos israelitas a conquista da região central de Canaã.
Por tudo isso, a resposta mais provável à questão “Moisés existiu?” é que temos de pressupor que sim. O relato básico do Pentateuco é internamente indesafiável e harmônico com quase toda a evidência paralela que conhecemos. O que um dia pareceu lendário, nesse relato, estudos detidos mostram que pode constituir história. É o caso dos censos da nação de Israel.
Mas, se o Pentateuco é tão sólido e internamente consistente, como a figura mais importante que emerge, nas suas páginas, pode não ter existido? A existência de Moisés e os atos que ele praticou são difíceis de estabelecer em caráter definitivo, dada a sua localização remota no tempo, mas temos de pressupô-los para explicar o Pentateuco e, de resto, Israel. Para explicar, por exemplo, o parentesco dos israelitas com os hicsos e a informação de Josefo de que a saída de ambos do Egito constituiu o Êxodo, para explicar a comprovada presença de Israel, em Canaã, no Período dos Juízes, e todo um rol de coisas semelhantes.
Podemos não dispor de provas contundentes e inelidíveis, do Êxodo ou dos dados bíblicos sobre Moisés, mas não é nisso que consiste o compreender possível a partir da fé, que buscamos. Como crentes, basta-nos a fé nos acontecimentos das Escrituras; como homens, basta-nos exercer sobre eles a nossa razão. O exercício da razão não nos permite entender ou definir tudo, longe disso. Daí o campo sempre aberto que a razão deixa à fé. Mas, após tê-la exercido consistentemente e até o fim, sentimos ter cumprido o mandamento primeiro que Deus entregou ao homem: o de ser simplesmente homem, portanto pensar, não ser besta, nem anjo. Quem sabe, na interminável tarefa desse pensar, que não é ver, como os anjos, nem fazer sem pensar, como as bestas, o pano que cobre a História remota um dia será erguido e nos será dado espiar, de modo mais claro, o que lá se encontra. Enquanto isso, basta-nos continuar a exercer o duplo mister de ser homens e crentes, crentes e homens, não apenas uma dessas coisas.