sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Livre Exame de Romanos (12): O Último Adão

O capítulo 4 de Romanos fala-nos tanto da imputação do pecado como da justiça. Da primeira, Paulo trata rapidamente, mas se demora na última, ao expor o caráter da experiência de fé de Abraão. Suas palavras deixam perceber, claramente, a correlação que se estabelece entre as duas modalidades de imputação. Por isso, ao retomar o tema, no capítulo 5, o apóstolo procura um ponto sólido em que escorar tanto uma como a outra modalidade de intervenção de Deus no mundo moral.
No tocante ao pecado, ele encontra esse ponto fixo em Adão, ao qual faz retrocederem não apenas as transgressões de todos os homens, mas também a declaração divina da sua pecaminosidade. A visão de que Adão não é só o princípio do pecado, mas também das declarações que imputam aos homens suas transgressões permeia Romanos 5 como os raios do sol atravessam o ar. Essa visão é o que doa sentido ao capítulo. Paulo não se preocupa tanto com a história de Adão, com a origem ou o desenvolvimento do pecado, mas com o caráter intrínseco dele, que é determinado pela imputação de culpa a Adão. O pecado de Adão só é verdadeiro pecado, porque Deus o imputa como tal. Semelhantemente, os pecados dos descendentes desse patriarca só são pecados, porque Deus os imputa a eles.
Essa é a dura conclusão que extraímos dos versos 5:12-21. Quando lemos que, “por um só homem, entrou o pecado no mundo”, devemos entender que a imputação do pecado entrou. E quando ouvimos falar da transgressão de Adão, devemos pensar na sua constituição como pecador por Deus. Isso porque, no pensamento de Paulo, a declaração da culpa de Adão por Deus é mais importante que o seu pecado. Se assim não o fosse, ele não teria afirmado que, “onde não há lei, o pecado não é levado em conta”.
Na Antiguidade, Santo Agostinho foi quem mais se elevou à compreensão da doutrina de Paulo sobre a imputação. É comum outros autores, inclusive os melhores, relacionarem a salvação às obras que acompanham a fé. Em Santo Agostinho, vemos outro discurso, o da soberania da graça. No entanto, apesar de sua elevada importância para a doutrina da graça, Agostinho escorregou num erro de tradução muito comum em sua época, ao criar sua doutrina do pecado original. Esse erro consistia em interpretar Romanos 5:12 como se “num só homem" o pecado tivesse entrado no mundo. Emil Brunner chama nossa atenção para esse antigo erro (BRUNNER, Emil. Romanos. São Paulo: Fonte, 2007. p. 74). A advertência é consistente, como constatamos ao ler a seguinte passagem do autor patrístico: "Os pecados de origem são chamados alheios porque cada um os herda de seus pais, mas, não sem motivo, são chamados também nossos, porque, como diz o Apóstolo, nele todos pecaram (Rm 5:12)" (HIPONA, Agostinho de. A correção e a graça. In A graça (II). 2ª ed., São Paulo: Paulus, 2002. Cap. VI, 9. p. 92). Agostinho diz: "Nele", isto é, em Adão, "todos pecaram", pois era o que se lia em muitos códices à sua época.
Pelo menos desde Calvino, o erro de tradução foi sanado. Hoje lemos nas nossas Bíblias: “Assim como por um só homem entrou o pecado no mundo e pelo pecado a morte”. Se há, pois, pecado original, no sentido de uma transgressão primeira e determinante para a série de todos os outros pecados, ela ocorreu por Adão, não em Adão. A diferença entre essas alternativas é a teologia da hereditariedade do pecado. "Em Adão" foi tomado, por Santo Agostinho, como prova de que o pecado de todos estava contido no de Adão e apenas se transmitiu, como herança, aos seus descendentes.
Essa ideia foi reforçada pelo modo peculiar como o homem antigo entendia a hereditariedade. Para ele, hereditário era algo que estava no pai e era integralmente transmitido ao filho, sob forma modificada. De fato, ao passar do pai para o filho, a característica hereditária reduzia-se, pois o filho é menor do que o pai e recebe a característica paterna num estado reduzido. Para exprimi-lo na linguagem filosófica da época, era como se a característica estivesse em ato no pai e em ato ou potência no filho. Como se os olhos azuis ou castanhos, para darmos um exemplo, inteiramente formados no pai, se apresentassem em estado potencial no embrião humano e no recém-nascido, posto que nem todos os filhos o desenvolvem.
Prestemos, porém, atenção ao fato de que a hereditariedade, como concebida na Antiguidade, era pura participação. Era o estar de uma mesma coisa em outra. Até porque o ato e a potência eram considerados estados da mesma coisa.
Daí o erro de tradução de Romanos 5:12 ter sido tão importante para o desenvolvimento da doutrina do pecado original de Santo Agostinho. Entendeu, esse teólogo, que o versículo afirma que o pecado do mundo todo estava contido em germe no de Adão. Claro que, se Agostinho tivesse recebido outra ideia de hereditariedade, sua doutrina do pecado original teria sido bastante distinta. Mas, como depende dessas concepções, ela se tornou a doutrina da desobediência potencial, latente, embrionária, que nem por isso é menos desobediência, pois tem a mesma essência da de Adão.
A transmissão do pecado original de Adão, como concebida por Santo Agostinho, é pouco compatível com a doutrina de Paulo em Romanos 5, que é a da imputação. A hereditariedade é um processo natural; a imputação, algo não natural, principalmente quando aplicada a Deus. Por isso, nenhuma transgressão herdada pode ou precisa ser declarada pecaminosa.
Precisamos entender a doutrina do pecado original em termos de imputação mais que de hereditariedade, se quisermos adaptá-la ao pensamento de Paulo. Para fazermos isso, afastando-nos o menos possível da formulação da doutrina em questão, ao longo da História da Igreja, o melhor caminho é entender o pecado original como algo relacionado ao mandamento de Deus e não à hereditariedade. Esse pecado transmite-se de pai a filho não porque seja rigorosamente hereditário, mas porque o mandamento dado no Jardim do Éden permanece em vigor para todos os homens, o que nos remete a uma transgressão de conteúdo moral que não se confunde com o comer literal de um fruto.
Em meu livro sobre a história em Gênesis, identifiquei esse pecado como o homicídio. É o que está implícito em João 5:44, onde lemos que "o Diabo foi homicida desde o princípio". No contexto do primeiro século, a declaração nos remete ao relato de Gênesis 3 (e somente a ele), no qual a serpente levou o homem a pecar. O verbo no passado não aponta para uma ação apenas planejada ou iniciada, porém não concluída. Aponta, ao contrário, para uma ação consumada. Indica, portanto, que o Diabo foi a causa de um homicídio cometido, em Gênesis 3, o que pode ser entendido como se a realidade por trás da ação simbólica de comer o fruto fosse exatamente esse crime.
Demonstrei esse mesmo fato com muitos outros argumentos, na obra citada acima. Porém, o verso de João basta para nos transmitir, ao menos, uma noção primeira de que o pecado original pode ter sido a violação específica de um mandamento também específico, que nunca foi revogado. Como a imputação do pecado baseia-se no preceito de Deus, a vigência contínua do primeiro mandamento de Gênesis 2:17 até o dia de hoje basta para entendermos por que a culpabilidade de Adão é imputada a todos os homens. A imputação geral não é uma arbitrariedade: decorre da simples inversão da afirmativa de que "onde não há lei, não há transgressão", isto é, onde há mandamento, há também transgressão.
Se as ideias de herança natural e de imputação são incompatíveis, a opção mais acertada é a que se faz pela imputação. O motivo está no restante do versículo 5:12: “o pecado passou a todos os homens, porque todos pecaram”. Não passou a todos, porque todos o herdaram, mas porque todos pecaram. Cada um incidiu no pecado por culpa própria ou, em outras palavras, porque essa culpa lhe foi imputada.
A transmissão hereditária prescinde, ao mesmo tempo, do pecado efetivo e da sua imputação. É uma expressão mutilada do que Paulo afirmou sobre Adão. Em Romanos 5, ele retrocedeu a Adão, a fim de encontrar um ponto fixo e final para a série de imputações de pecados. Seria absurdo identificar esse ponto com a transmissão hereditária do pecado, pois isso transformaria a série pecaminosa em herança natural.
Paulo pensa em três coisas, em Romanos 5:12: o ato inicial da série (a transgressão de Adão), a reprodução desse ato, de modo a constituir a série (“porque todos pecaram”), e a imputação divina. Nem o segundo, nem o terceiro elos dessa cadeia podem ser compreendidos, se a doutrina clássica do pecado original for tomada em todos os seus elementos. A herança do pecado exclui a necessidade dos pecados de todos os homens. E é claro que, se os exclui, não há o que imputar aos homens, sob esse ponto de vista.
Tudo isso está claramente consignado em Romanos 5:12-21. É consequência da afirmativa do capítulo 4 de que não há só justiça imputada, mas também pecado. Porém, o objetivo maior de Romanos não é salientar o aspecto negativo da imputação. Assim como, no capítulo 4, a imputação do pecado é mencionada (“Bem-aventurado o homem a quem Deus não imputa pecado”), mas dela logo se passa à questão da justiça, no 5, Adão é citado como mero contraste a Cristo. Ele é o paradigma da imputação do pecado, que tem por objetivo realçar que Cristo é o paradigma da imputação da justiça. Este, o ponto nodal do capítulo e de todo o livro de Romanos.
Algo curioso ocorre, porém, quando Paulo passa de Adão a Cristo. Vimos que, na série pecaminosa, três coisas são apontadas como fundamentais: o ato inicial de Adão, a reprodução dele por todos os homens e a imputação de Deus. Na série da justiça (pois ela também é uma série), vemos só duas coisas: o ato inicial de Cristo e a imputação divina. O ponto intermediário está ausente, pois os atos dos crentes não reproduzem a justiça inerente à obra de Cristo. Eles não são atos inerentemente justos. Só um ato de Deus o pode ser. Embora tenha sofrido e morrido como homem, Cristo caminhou para a cruz com a fortaleza de Deus, o que constituiu um ato inerentemente justo.Por isso, Paulo não se cansa de mostrar que o ato de Adão e o de Cristo estão em paralelo, são semelhantes, mas a semelhança entre eles é imperfeita. “Não é assim o dom gratuito como a ofensa” (Rm 5:15). Uma dessemelhança bem radical se estabelece entre o ato de Cristo na cruz e a ofensa de Adão. Por quê? “Porque, se pela ofensa de um morreram muitos, muito mais a graça de Deus, e o dom pela graça de um só homem, Jesus Cristo, foi abundante sobre muitos” (Rm 5:15).
A imputação da justiça é “muito mais” que a do pecado. Muito mais o quê? Muito mais intensa, forte, positiva, gloriosa e mil outras coisas. Sim, há duas imputações, mas um desnível vigora entre elas. A imputação positiva é muito mais forte do que a negativa.
Paulo continua a escrever e a ser implacável: “Se pela ofensa de um, e por meio de um só, reinou a morte, muito mais os que recebem a abundância da graça e o dom da justiça, reinarão em vida por meio de um só, a saber, Jesus Cristo” (Rm 5:17). De novo, as palavras muito mais aparecem. E de novo, aparece a alusão de que a imputação da justiça é muito mais eficaz que a do pecado.
Se tivéssemos apenas Romanos 4, a imputação da justiça ficaria sem um fundamento último. Deus imputa a justiça aos que creem em Cristo, mas por que o faz? A resposta de Paulo é que o faz, porque a série de imputações reporta-se a um ponto final e absolutamente firme. A uma rocha em que seu alicerce é lançado. Deus nos imputa justiça, pois a imputou antes a Cristo. Esse é o porquê definitivo, imóvel e imutável da série de imputações positivas.
Não haveria a série de pecados, sem a transgressão de Adão. Deus poderia dar mandamentos aos filhos de Adão, e estes poderiam transgredi-los. Mas, em tal caso, teríamos transgressões desconexas, não em série. Romanos ensina que as transgressões humanas formam uma série, pois se reportam a Adão, cuja transgressão é paradigmática, pois fere não o conteúdo de um mandamento, mas a autoridade com que foi dado.
A serpente perguntou à mulher: “É assim que Deus disse: Não comereis de toda árvore do jardim?” (Gn 3:1). Ao lermos essa pergunta, pensamos no conteúdo da palavra de Deus a Adão, invertido pela serpente. Lembramos também que a mulher corrigiu a inversão, ao responder à serpente: “Do fruto das árvores do jardim podemos comer” (Gn 3:2). E ao completar: “Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Deus: dele não comereis” (Gn 3:3).
Porém, a serpente não estava preocupada com o conteúdo do mandamento de Deus: se ele ordenara ou não comer livremente das árvores do jardim e se mandara o homem comer ou se abster de comer do fruto proibido. A serpente não tinha em vista essas coisas, mas a autoridade com que o mandamento havia sido dado. Ela desejava subverter essa autoridade. Por isso, desviou a conversa para a consequência da transgressão: “É certo que não morrereis [se comerdes do fruto proibido]” (Gn 3:4). Queria, com isso, não só que o homem e a mulher comessem da árvore do conhecimento, mas direcionar esse ato pecaminoso contra a autoridade de Deus, que havia dito: “No dia em que dela comeres, certamente morrerás” (Gn 2:17). A serpente queria mudar a fé da mulher e do homem para que comessem com o objetivo de se erguerem contra Deus.
Por se revestir dessas características, a transgressão de Adão é paradigmática. Não consiste no ataque ao conteúdo de um mandamento, mas à autoridade com que foi dado por Deus. Por isso, a obediência de Cristo tampouco é o cumprimento do conteúdo de um mandamento, mas a sua submissão direta e perfeita a Deus. Sequer havia um mandamento para que Cristo abraçasse a cruz, quando ele caminhou para ela. As profecias que descrevem a morte de Cristo não são mandamentos. Algumas referem-se à morte vicária. Não a colocam, porém, numa cruz. Ao menos não de modo claro. “Maldito aquele que é pendurado no madeiro” não é uma alusão clara à cruz romana. Menos ainda é um mandamento. Por isso, Cristo, Senhor, orou: “Se possível, passa de mim esse cálice” (Lc 22:42).
A morte de Cristo foi um ato de perfeita obediência. Mas obediência perfeita não é a que se dirige ao conteúdo de um mandamento, mas ao conteúdo de uma vontade, no caso a de Deus. Cristo ofereceu-se em sacrifício para fazer a vontade de Deus, que o enviara ao mundo para salvá-lo. Não havia muitas maneiras de Deus ou de Cristo salvarem o mundo. Na verdade, havia uma só: Deus devia oferecer-se como satisfação pelos pecados da humanidade inteira. No século XI, Santo Anselmo ensinou que a satisfação por um erro exige o oferecimento de algo maior do que ele. Se todos pecaram, e o pecado poluiu o Universo inteiro, como lemos em Colossenses 1:20, era preciso que a satisfação se realizasse por algo maior do que a humanidade e o Universo, a saber: pelo Filho de Deus.
Pelo Espírito eterno, então, Cristo ofereceu-se sem mácula a Deus (Hb 9:14), a fim de realizar a sua vontade. “Por isso, ao entrar no mundo, diz [...] Eis aqui estou (no rolo do livro está escrito a meu respeito) para fazer, ó Deus, a tua vontade” (Hb 10:5,7).
Adão falhou em cumprir a vontade de Deus. Pecou, por desviar-se dela e ingressar no jogo de interpretações do mandamento de Deus que lemos em Gênesis 3. Ganhou a escaramuça, quando Eva corrigiu a interpretação do mandamento de Deus pela serpente, mas perdeu a batalha decisiva: a da obediência a Deus.
Cristo, porém, é o último Adão (1 Co 15:45), por ser o Antiadão. Ser o último e o anti é, nesse caso, guardar obediência não à relatividade de uma interpretação, mas ao caráter absoluto de uma vontade, da única vontade soberana: a de Deus.