sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Livre Exame de Romanos (13): De Escravos a Servos

A palavra grega doulos (escravo) abunda na Epístola aos Romanos. Porém, nunca é empregada no sentido comum, para indicar o escravo literal, o homem desprovido de liberdade. Pelo contrário, nas passagens em que aparece, doulos é o escravo ou o servo espiritual. Esse é o caso dos versículos 6:6,16-20,22.
Em 6:6, o lado negativo da escravidão espiritual é mencionado: “Sabendo isto, que foi crucificado com ele o nosso velho homem, para que o corpo do pecado seja destruído, e não sirvamos o pecado como escravos”. Servir como escravo é uma tradução bem apropriada do pensamento do apóstolo. Paulo se refere à mais dura relação dentre todas as que o homem pode manter, sobre a Terra: a escravidão. Para entendermos o que ele pensa, porém, precisamos retornar aos Salmos e ao Livro de Gênesis.
A Teologia e a Antropologia formulam uma mesma questão. Na Bíblia, vemos a questão expressa no oitavo salmo: "Que é o homem para que dele te lembres?" (Sl 8:4). A pergunta é formulada em tom solene, por não ter resposta fácil. O homem é um mistério. Olhemos para a natureza: por que a espécie humana e só ela elevou-se ao fastígio, em toda a criação? Por que o homem e ele somente foi coroado de honra e de glória, quando Deus lhe submeteu “ovelhas e bois, todos, e também os animais do campo” (Sl 8:7)?
Gênesis parece indicar que o homem é vocacionado para o poder, não para um poder que se exerce sobre o semelhante, sobre o outro homem, pois não vemos essa lição expressa no primeiro livro da Bíblia. Tampouco lhe é dado poder sobre os fenômenos naturais, mas sobre as criaturas vivas que Deus criou. Não apenas sobre as criaturas que se chamam amigos do homem, como o boi e a ovelha, mas também sobre as selvagens.
Sabemos, porém, que o homem decaiu desse estado e, ao fazê-lo, perdeu as condições objetivas que antes possuía para exercer ascendência sobre as criaturas vivas. Assim como foi criado para lavrar a terra, que veio a lhe produzir cardos e espinhos, do mesmo modo, o homem foi criado para dominar os seres cuja natureza os dispõe abaixo dele, mas esse domínio se fez sobremaneira difícil depois da queda.
Por que se tornou difícil? A razão não parece estar na indocilidade dos seres vivos, mas na corrupção da faculdade humana da dominação, isto é, no poder do homem. Antes da queda, o homem devia alimentar-se somente de vegetais: “Eis que vos tenho dado todas as ervas que dão semente e se acham na superfície de toda a terra, e todas as árvores em que há fruto que dê semente; isso vos será para mantimento" (Gn 1:29). O homem não agredia, portanto, os animais, nem derramava o seu sangue.
Da mesma forma, no Éden, ele podia comer livremente de toda árvore, exceto uma (Gn 2:16-17; 3:2-4). Não se diz que comesse animais. Mas, quando comeu da árvore proibida, está implícito que o homem perdeu o poder que possuía de dominar sem derramamento de sangue. Seu poder passou, então, a exercer-se pela força. Paulo nos informa, por isso, que a natureza geme e suporta angústias até agora, vale dizer, desde a queda (8:22). Ele não se refere às árvores, mas aos animais, pois sobre eles é que Deus mandou o homem exercer o seu soft power.
A perda do poder de dominar sem oprimir está, porém, retratada em Gênesis como exemplo de outros acontecimentos semelhantes, não como caso isolado. Quando olhamos para as palavras de Deus à serpente, à mulher e ao homem, após a queda (Gn 3:15-24), descobrimos quantas outras coisas a estirpe de Adão perdeu com a queda. Perdeu a relação que tinha com a serpente, o bom parto, que foi substituído pelo mais penoso, a liberdade da mulher, a fertilidade da terra, o acesso à árvore da vida.
Devemos entender, porém, que esses são apenas outros tantos exemplos das perdas que o homem sofreu com a queda. Assim como não se esgota na corrupção da harmonia com os animais, a extensão das perdas humanas tampouco se abrange nesses outros exemplos examinados. A lição de Gênesis parece ser de que o homem perdeu ainda muitas outras coisas além das que já mencionamos com a queda.
A grande questão antropológica que Gênesis 3 coloca, portanto, é: que se torna aquele ser que perde tantas coisas? Na concepção do homem antigo, a resposta à pergunta é clara: ele se torna um escravo. Só o escravo é alguém destituído de tudo, como Adão após pecar. Gênesis mostra, portanto, que Adão entrou no paraíso como rei e saiu como escravo. Lembra também que, de todas as perdas que um escravo suporta, as maiores são a da liberdade e a da personalidade.
No Direito Romano, o escravo era res (coisa), não persona (pessoa). Não tinha liberdade, nem personalidade. Por isso, seu dono podia surrá-lo, vendê-lo e até matá-lo, o que não ocorria com pouca frequência, nem com muito escândalo. A antropologia bíblica, se existe mesmo uma, como acredito, ensina-nos que essa é a condição do homem, depois da queda. Adão tornou-se um ser depauperado até mesmo dos atributos da sua personalidade. Um verdadeiro nada.
Sabemos, porém, que, ao lado da escravidão, os antigos conheciam outra relação que envolvia desproporção de poder entre duas partes: a servidão. Em grego, tanto a escravidão como a servidão se exprimiam pela mesma palavra, mas eram muito distintas.
O fato de a relação servil não ser designada por um termo específico deve inspirar-nos a devida reflexão, pois indica a ausência da necessidade de diferenciar criteriosamente as relações mencionadas. Se necessidade houvesse de discriminação, uma palavra específica para a servidão teria sido criada, mas não o foi. Por quê? Penso que a resposta que a História fornece é de que, embora a servidão existisse, não era tão comum quanto a escravidão. Sabemos que o modo de produção predominante no Império Romano era o escravagista. Nesse contexto, o avassalamento do servo a um senhor ainda esperava para se tornar predominante, o que só viria a ocorrer na Idade Média.
Porém, ainda assim, a servidão não estava ausente. Em A origem da família, da propriedade privada e do Estado, Engels mostrou que ela já havia fincado raízes, no mundo romano, havia algum tempo, quando Paulo escreveu Romanos. Só não era a relação mais importante, pois não dava suporte à técnica produtiva. Essa função cabia à escravidão.
Porém, como já vimos, a servidão era distinta da escravidão. Diferentemente do escravo, o servo era considerado pessoa e usufruía de certa liberdade. Não podia ser preso, surrado, vendido ou morto, a não ser em casos especiais. Por meio dessas diferenças, percebemos que o pecador descrito por Paulo, em Romanos, corresponde ao escravo, e o homem liberto do pecado, ao servo.
Por isso, quando se declara servo de Jesus Cristo (1:1), devemos compreender que Paulo passa do caso comum de doulos (do escravo) ao caso menos comum (do servo). Isso está claro no décimo-sexto versículo: “Não sabeis que daquele a quem vos ofereceis como servos para obediência, desse mesmo a quem obedeceis sois servos?” Paulo não diz que somos subjugados por aquele de quem nos tornamos servos. Isso seria próprio da escravidão. Afirma, ao contrário, que nos oferecemos livremente para sermos servos.
Infelizmente, alguns mestres, na ânsia ou premência de ensinar novidades, insistem em se referir a esse segundo sentido de doulos como uma escravidão (a Deus ou a Cristo). Esse é um desvio do ensinamento de Paulo, pois, como vimos, o escravo era destituído não só de liberdade, mas até de personalidade, o que não é próprio do cristão. O fato de se submeter a Deus não despoja o homem seja da sua liberdade, seja da sua personalidade. Não o torna res, coisa. Por isso, o cristão deve ser considerado o que de fato é: servo, não escravo, de Deus.
Em Filipenses 2:6-7, vemos que a condição de servo que Paulo se atribuiu em Romanos 1:1 foi assumida pelo Filho de Deus, Jesus Cristo ao encarnar-se: “pois ele, subsistindo em forma de Deus não julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens”. Jesus foi o primeiro servo de Deus. Antes dele, só existiam escravos do pecado e (por que não dizer?) de Deus. O homem que se sobrecarregava de obrigações legais para servir a Deus tornava-se escravo de Deus. E, por não as cumprir, fazia-se escravo também do pecado (Jo 8:34).
Na passagem citada de Filipenses, porém, a palavra servo é empregada de um modo tão essencial à pessoa encarnada de Cristo que parece indicar a condição essencial do homem. Não sua antiga condição, que Gênesis descreve como uma escravidão, mas uma condição inteiramente nova. O fato de Cristo ter-se esvaziado da igualdade com Deus e se ter feito servo não ficou sem consequências. Pelo contrário, Cristo Jesus se tornou o primeiro de muitos servos de Deus. Criou, em si, uma nova condição humana, que é indicada pelo segundo significado da palavra doulos.
Em 1ª aos Coríntios 15:45, Cristo é denominado o último Adão. E de fato o foi, já que pôs fim à estirpe adâmica. Porém, raras vezes é lembrado que, em 1ª aos Coríntios 15:47, ele é também chamado o segundo homem. Recebe esse título, não apenas porque, em toda a saga da humanidade, houve dois e somente dois homens (Adão e Cristo), mas também porque houve duas e somente duas condições humanas: a de Adão e a de Cristo. A primeira foi a escravidão ao pecado, a outra é a servidão a Deus.

A diferença entre servo e escravo é bem nítida. Mais do que isso, ela é crucial para a compreensão da mensagem do Novo Testamento. Não é vontade de Deus submeter a si seres destituídos de personalidade. Deus não quer coisas, mas pessoas. Por isso, nos faz e nos fez seus servos, não escravos. Nada disso é mero jogo de palavras. A palavra doulos aponta o próprio núcleo da relação que temos com Deus no Novo Testamento. Esse núcleo é a submissão ao jugo de Cristo. É a sujeição de uma vontade a outra. É impossível acentuar quanto isso é crucial. Sem essa sujeição não há reino de Deus, pois ele não reina sobre quem quer que seja. Daí Romanos 6 e 7. Mas, para isso, é preciso existir vontade e personalidade. Coisas não se submetem: são apropriadas.  O grau e a profundidade dessa submissão são transmitidos nas seguintes palavras de Martinho Lutero: “Aqueles, porém, que verdadeiramente amam a Deus com um amor filial e com amizade, que não têm a sua origem na natureza, mas se originam exclusivamente no Espírito Santo [...] se conformam livremente com toda a vontade de Deus, mesmo com o inferno e a morte eterna, bastando que assim Deus o queira, que a sua vontade se cumpra plenamente – é dessa forma intensa que eles deixam de buscar qualquer coisa que seja deles próprios. E, não obstante, assim como se conformam, incondicionalmente, dessa maneira, à vontade de Deus, também é impossível que permaneçam no inferno. É impossível que esteja fora de Deus aquele que se entregou integralmente à vontade de Deus” (LUTERO, Martinho. A Epístola aos Romanos. In Martinho Lutero – Obras selecionadas. São Leopoldo: Sinodal/Concórdia, 2003. Vol. 8, p. 134).
Não por outro motivo, fomos batizados na morte de Cristo (6:3-4). Cristo morreu como o último Adão, ressuscitou como o segundo homem. Por isso, o batismo é a sepultura de Adão, de todos os Adões; e a ressurreição é uma maternidade de novas criaturas forjadas à imagem do segundo homem.
Paulo escreve: “como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai, assim também andemos nós em novidade de vida” (6:4). A que novidade ele se refere? À que, no verso seguinte,  chama “semelhança da ressurreição de Cristo” (6:5). A declaração solene que Paulo faz sobre essa semelhança deveria bastar contra as alegações dos que afirmam que experimentamos a realidade da ressurreição de Jesus. Paulo não o afirma. A novidade de vida a que ele alude é a semelhança, o esboço simbólico, da ressurreição do Filho de Deus. O que passa disso é mística alucinada. É pajelança hermenêutica.
O mesmo se aplica ao batismo: Paulo não afirma que morremos, literalmente, com Cristo, pelo batismo ou por qualquer outra experiência cristã, sacramental ou espiritual. Declara que fomos unidos a ele na semelhança da sua morte. São suas palavras: “Se fomos unidos a ele na semelhança da sua morte, certamente o seremos também na semelhança da sua ressurreição” (6:5). Não experimentamos, portanto, a realidade, mas a semelhança da morte de Cristo.
A semelhança seja da morte, seja da ressurreição é um estado em que ingressamos pela eficácia da declaração divina. Unimo-nos a Cristo na semelhança da sua morte, porque Deus nos declara mortos com ele, não literalmente, mas no que diz respeito à possibilidade de retornarmos ao pecado. E unimo-nos a ele na semelhança da sua ressurreição, pois Deus declara o nosso direito a uma vida que não transcorre à revelia de Deus, mas em união com ele.
Que união é essa? Não é a que se convencionou denominar união orgânica. É antes um nunca-ser-abandonado-por-Deus. É a realização plena do vigésimo-terceiro salmo: “Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal nenhum, porque tu estás comigo” (Sl 23:4). Esse salmo é, sabidamente, o Monte Everest do Antigo Testamento. E  o seu quarto versículo é como o cimo do monte. Eles o são, aliás, não doutrinariamente, mas por indicarem uma experiência que não é própria do Antigo Testamento e sim do Novo. Salmo 23 é o Novo Testamento no Antigo; e o versículo 4 dele é Romanos 6 no Saltério!
A Teologia da Libertação, cuja influência foi determinante na transformação cultural da América Latina, defende não só uma opção pelo pobre, mas que a condição essencial do cristão é de pobreza material e espiritual. Embora haja um mal-entendido nessa afirmação, posso aceitar a pobreza (talvez seja melhor dizer carência) a que ela se refere como elemento intrínseco da servidão em que Cristo nos introduziu.
A carência não está menos implícita em 6:16 do que em Filipenses 2:6-7: “Não sabeis que aquele a quem vos ofereceis como servos para obediência, desse mesmo a quem obedeceis sois servos, seja do pecado para a morte, ou da obediência para a justiça?” (6:16). A servidão aí aludida pressupõe um despojamento tanto espiritual como material. Despojamento espiritual porque Cristo esvaziou-se da igualdade com Deus, e devemos esvaziar-nos das coisas da nossa velha condição. Despojamento material porque toda servidão envolve carência de recursos indispensáveis para viver em condição de abundância.
Mais uma vez, vemos isso expresso no Antigo Testamento, cujos profetas foram íntimos do despojamento material. Alguns tiveram abundância de bens por certo tempo, porém, quando isso ocorreu, faltaram-lhes as condições necessárias para usufruir perenemente daqueles bens. De modo que, quando os bens abundavam, o uso que o homem de Deus fazia deles estava sujeito a sobressaltos. E quando não estava sujeito a sobressaltos, os bens não eram abundantes.
Essa carência não era exatamente pobreza, pois nem todos os servos de Deus, no Antigo Testamento, foram pobres. Porém, todos foram carentes, já que ninguém teve a posse das condições necessárias para usufruir de modo tranquilo e constante do que possuía, fosse pouco, fosse muito. Pelo contrário, nas circunstâncias de vida deles, sempre reinaram a instabilidade e a insegurança.
Não creio que o apóstolo, que exortou os romanos a apresentarem não a sua alma, mas o seu corpo a Deus como instrumento de justiça (6:13,19), pretendesse excluir da servidão a Deus o elemento material da carência, que lhe era intrínseco no Antigo Testamento. Podemos ter ou não ter, ter pouco ou ter muito: em todos os casos, é nosso dever tomar o pouco ou o muito como condição precária, isto é, transitória de vida. É nosso dever ter consciência de que a precariedade não é uma tendência ao muito, mas ao pouco. Não é tendência a ganhar, mas a perder.
Carência e precariedade, porém, foram somente o princípio da experiência que Cristo teve da servidão. Filipenses prossegue: “e, reconhecido em figura humana, a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz” (Fp 2:7-8). O que principiou como carência e precariedade consumou-se como morte e morte de cruz.
Por isso, na epístola tão frequentemente esquecida que é 2ª aos Coríntios, lemos que “Cristo foi crucificado em fraqueza”. E que “nós também somos fracos nele” (2 Co 13:4). Pode-se pensar que, na cruz, só os fracos são levantados. Mas quem poderia esperar que Paulo descrevesse a condição apostólica como uma fraqueza? Não são os apóstolos gloriosos, sábios, santos e impolutos? Não são eles poderosos em Deus? Sim, mas, apesar disso tudo e mais intensamente do que tudo isso, Paulo afirma que eles são fracos em Cristo. Poderia uma afirmação mais insólita ser formulada no Novo Testamento?
A servidão se consuma, portanto, em quatro passos: carência, precariedade, cruz e morte. Não nos é dado retirar qualquer deles, para aliviar a condição cristã do seu peso inerente. Nela, ganhar é realmente perder. É sofrer a carência, a precariedade, a cruz e a morte em alto grau, como Cristo as sofreu em primeiro lugar, e em grau altíssimo.