quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Livre Exame de Romanos (capítulos 4 a 6)

Abraão, Pai da Incircuncisão

Em Romanos 4, Paulo fundamentou a justificação pela fé em Abraão. Porém, a menção desse patriarca soava de um modo no primeiro século, soa de outro hoje. Poucos especialistas em ciências bíblicas reconhecem que Abraão existiu. Parte deles o considera uma figura lendária; outra parte pensa que resultou da fusão de vários ancestrais dos judeus, cujas histórias foram transmitidas de geração em geração.
A redução da narrativa bíblica a lenda é problemática, pois supõe ter sido inventada. Difícil é que histórias tão detalhadas e internamente concatenadas tenham sido simplesmente imaginadas. Porém, a teoria da fusão de personagens não é tão problemática quanto a da lenda e ainda apresenta a vantagem de se conformar ao processo pelo qual o Pentateuco se constituiu. O historiador judeu Georg Fohrer resume esse processo da seguinte maneira: “Quando a primeira narrativa básica [do Pentateuco] foi sendo formada, muitas outras tradições primitivas foram incorporadas: listas (Gn 22:20-24; 25:1-6; 36:31-39), narrativas concernentes à história das tribos e nações (Gn 16:4-14; 19:30-38; 21:8-21; 25:21-26a, 29-34; 29—30; 34; 38:27-30); sagas da natureza (Gn 19; Êx 16—17; Nm 11; 20); pequenas histórias (Gn 12:10ss; 20; 24; 26)” (FOHRER, Georg. História da religião de Israel. São Paulo: Academia Cristã/Paulus, 2008. p. 153).
Fohrer adere à teoria de que o Pentateuco é uma compilação de histórias transmitidas independentemente. Os versículos citados por ele são exemplos de narrativas reunidas, quando os judeus começaram a compor uma história coesa da sua nação, por volta de 1.200 a. C. A maior parte deles pertence ao Livro de Gênesis. Por isso, ajuda-nos a entender como as histórias sobre Abraão se formaram.
Se Abraão é um aglutinado de várias figuras antigas, umas bem conhecidas, outras não, a fusão das histórias a seu respeito pode ter ocorrido, quando a narrativa básica mencionada por Fohrer foi reduzida a escrito. Um autor bíblico desconhecido coseu as histórias umas nas outras, de modo a formar a biografia de um homem. Essa é, hoje, a visão mais provável do processo de formação do relato bíblico sobre Abraão.
Porém, a transformação do texto não estancou com a elaboração do primeiro Pentateuco. Na época de Jesus e de Paulo, muitas histórias sobre Abraão tinham sido acrescidas às que o Antigo Testamento transmite. Isso indica que a transformação da história básica de Abraão prosseguira. Uma parte dos acréscimos encontra-se na literatura apócrifa dos judeus. Outra parte foi incorporada, mais tarde, ao Talmude.
Os fariseus, partido mais numeroso e influente da época, criam tanto na inspiração divina das histórias bíblicas quanto nesses acréscimos. Aos seus ouvidos, os nomes de Adão, Abraão e Moisés evocavam mais do que as narrativas da Bíblia estabelecem a respeito deles. Por isso, é interessante recordar como Jesus e os primeiros cristãos trataram essas crenças.
Sabemos que Jesus combateu o costume fariseu de aceitar todo acréscimo à Lei e aos Profetas que circulava na sua época. Porém, as suas declarações sobre isso, em Mateus 15:1-6, são frequentemente distorcidas. Jesus apontou incoerências não percebidas entre algumas tradições orais dos judeus e as Escrituras. Disse, por exemplo, que a dispensa da obrigação de honrar pai e mãe, por meio de uma doação, violava o espírito dos Dez Mandamentos. Nas suas exatas palavras: "Por que transgredis vós o mandamento de Deus, por causa da vossa tradição? Porque Deus ordenou: Honra a teu pai e a tua mãe e Quem maldisser a seu pai ou a sua mãe seja punido de morte. Mas vós dizeis: Se alguém disser a seu pai ou a sua mãe: É oferta ao Senhor aquilo que poderias aproveitar de mim; esse jamais honrará a seu pai ou a sua mãe" (Mt 15:3-6).
Os fariseus eram os primeiros a reconhecerem que as Escrituras se situavam num plano superior ao das tradições orais que circulavam. Eles viam as tradições como comentários e adendos às Escrituras. Portanto, como acessórios do principal, que era a Bíblia. O historiador Flávio Josefo deixa isso claro na sua Resposta a Ápio. O problema é que os fariseus não reconheciam as incoerências entre as tradições e a Bíblia. Jesus apontou essas incoerências e acusou os escribas e fariseus de transgredirem o mandamento de Deus por apego a elas. De modo nenhum, porém, isso implica que Jesus tenha incidido no contrário do que os fariseus praticavam, isto é, que ele tenha anulado as tradições por meio da Bíblia.
As próprias Escrituras citam e aceitam partes da Tradição. O autor de Timóteo, por exemplo, adotou os nomes dos opositores egípcios de Moisés criados pela Tradição (2 Tm 3:8). E Jesus, ao condenar os escribas e fariseus por observarem as menores coisas da lei em prejuízo das maiores, não disse que os seus seguidores deviam desconsiderar aquelas, mas que deviam “fazer estas coisas, sem omitir aquelas” (Mt 23:23).
Será que, entre as menores coisas que os discípulos deviam praticar, não estavam incluídas as ordenanças da Tradição? Certamente estavam. Por isso também, Jesus ordenou a seus discípulos guardarem “tudo quanto” os escribas e os fariseus lhes ensinavam (Mt 23:3). Na palavra tudo, estão abrangidas as tradições.
Porém, há outro dado que ajuda a entender como os judeus concebiam a relação da Escritura com a Tradição. Trata-se do hábito dos copistas e autores do Antigo Testamento de só inserirem no texto bíblico citações dele próprio, nunca da Tradição. Chamarei autorreferência esse hábito, que só aqui e ali é excetuado por uma menção a Janes e Jambres ou ao livro apócrifo de Enoque (Jd 14).
Mais que qualquer outra característica, a autorreferência põe em relevo o papel exclusivo da Bíblia como revelação divina. Se Deus se comunica com os homens de muitas maneiras, o fato de a Bíblia nunca nos remeter diretamente a outra palavra além das que ela própria transmite diferencia as Escrituras das demais comunicações de Deus com seu povo. Torna-as um nível especial da palavra de Deus aos homens.
De fato, os livros da Bíblia fazem numerosas citações diretas, porém quase nunca de obras externas a eles. Contudo, essa autorreferência habitual não exclui as outras fontes da revelação a que damos o nome de Tradição. Sem a autorreferência, teríamos de adotar a contradição como único critério para limitar a diversidade no interior da revelação. Assim, só poderíamos eliminar da revelação oráculos conflitantes. Graças à autorreferência, podemos estabelecer um limite diferente. Podemos considerar que as tradições que contradizem outras, mas não contradizem a Bíblia são parte da palavra de Deus. Desse modo, uma diversidade maior de oráculos se torna possível no âmago da revelação.
A autorreferência, portanto, não exclui a Tradição. Pelo contrário, ela amplia o número de proposições que podem ser aceitas como palavra de Deus, ao deslocar o critério de exclusão da contradição em geral para a contradição com os pontos fundamentais da Bíblia.
Mas, se Jesus admitia as regras e as histórias da Tradição que não excluíam os princípios centrais das Escrituras, não devemos concluir que o Adão, o Abraão, o Moisés, o Davi, o Salomão, o Jonas e o Daniel aos quais ele se referiu eram mais elásticos do que costumamos pensar? Não devemos supor que eles continham nuanças, como as histórias sobre Abraão transmitidas pela Tradição?
Sob essa perspectiva, não há razão para não admitirmos que Abraão resulte da fusão de vários patriarcas. Se as personagens do Antigo Testamento, em geral, eram mistos de dados da Bíblia e da Tradição, por que os relatos sobre a época patriarcal não podem ter-se fundido, de modo a formar a história de Abraão? Não há nessa fusão qualquer anormalidade. Pelo contrário, é a própria essência do processo de combinação das palavras da Bíblia com as da Tradição.
Estou a propor que Abraão não existiu? Que não fez o que a Bíblia afirma que fez? Ou que Deus não disse a ele o que Gênesis narra? De modo nenhum. Existiram adoradores de Deus que fizeram o que a Bíblia atribui a Abraão. Deus deu-lhes promessas e mandamentos. Porém, os nomes de alguns ou de todos eles e certos detalhes das suas histórias perderam-se. Só o que sobrou foi reunido, de modo a compor a vida de Abraão como a conhecemos.
O que firmei até este ponto não nos deixa com mais do que uma nuvem de personagens, histórias transmitidas oralmente e costumes de época. Abraão parece ser essa nuvem. No entanto, o Abraão bíblico, mesmo quando levamos em conta todas as lições aproveitáveis da Crítica Histórica e Literária, parece mais sólido do que tal nuvem. E, se for mesmo assim, crer na existência de um ou dois homens que viveram parte da saga atribuída a Abraão pode não ser necessariamente um erro. A multiplicidade de histórias sobre o patriarca e o grau de detalhamento do seu conteúdo parecem falar-nos de fatos reais, que se tornaram históricos. Por outro lado, parece fora do campo do possível que um ou mais escribas tenham inventado elatos tão numerosos, detalhados e concatenados, poderíamos acrescentar: relatos tão significativos e belos quanto os de Gênesis sobre Abraão. Até porque, se tais escribas tiverem existido e criado o Abraão bíblico, estaremos diante de uma verdadeira teoria da conspiração e não me parece que textos se expliquem por semelhantes teorias.
Contudo, na era da ciência, precisamos explicar um pouco melhor o Abraão bíblico, se quisermos conferir-lhe solidez parecida com a que, por séculos, a letra da Bíblia lhe atribuiu. Precisamos, ao menos, mostrar como as histórias a respeito dele podem ter-se formado. Não tenho, a esse respeito, uma explicação pronta para fornecer. Mas tenho desconfianças e ideias vagas, que em mim se constituíram, durante o estudo cuidadoso dos textos. Por exemplo, se pudermos reunir e compactar em Abraão não só a nuvem de personagens e as linhas gerais das histórias, mas também os detalhes a respeito delas, enfim se pudermos aceitar que esses detalhes não são sinais de invenção, mas de transmissão de fatos verdadeiros, estaremos em condições de concluir que, ao lado da tradição oral, relatos escritos podem ter sido compostos sobre uma ou duas personagens denominada(s) Abraão. E, se a veneração dos textos tiver sido levada tão longe quanto a das histórias orais, não será impossível que, num momento da História, relatos semelhantes aos que hoje lemos sobre Abraão tenham sido compostos. O livro de Moisés, mencionado em Êxodo 17:14, é um candidato a conter tais relatos. Talvez incluísse versões embrionárias ou desenvolvidas das sagas de Abraão, Isaque, Jacó e do Êxodo. A possibilidade de ter sido realmente assim aumentará, se considerarmos que alguns hebreus primitivos não eram iletrados, mas cultivavam a escrita (possivelmente o semítico ocidental) e possuíam as condições necessárias para terem sido os transmissores dos textos primitivos sobre Abraão.
Não desenvolvo essas conjecturas para enaltecer ou diminuir a figura de Abraão. Meu objetivo é somente entendê-lo melhor. Tudo considerado, o patriarca bíblico não é simplesmente o da letra: é o da verdade, seja qual for e esteja onde estiver. Interpretar a Bíblia é amar essa verdade, ainda que se apresente fluida, como no caso de Abraão. A figura arrancada à letra de Gênesis não é o pai de muitas nações. É a sua caricatura, uma estátua de letra, um ídolo. O Abraão verdadeiro é imaterial e volátil como as tradições que o originaram. Mesmo assim, é portador dos princípios da salvação pela fé que Paulo tanto encarece e dos quais vivemos. Pois “o justo viverá pela fé”.
Paulo chama Abraão pai da incircuncisão. É nisso mais do que ousado. É quase temerário, como é próprio dos espíritos livres, quando pressionados, forçados a se inclinar ante interpretações literais. Fácil é ver que Abraão é o pai dos judeus. Basta ler as genealogias de Gênesis para o compreender. Basta atentar à letra e curvar-se a ela. Mas, para entender que ele é o pai da incircuncisão, demanda-se mais, muito mais. Demanda-se liberdade de espírito.
Não diz a Bíblia que Abraão se circuncidou? Como pode ter sido pai e exemplo para incircuncisos? De que parte surgiram as nações que não cultivam o costume de se circuncidar? Ainda uma vez, as genealogias respondem: de Abraão. Mas, se nasceram dele, o não praticarem a circuncisão não é um sinal de desobediência, assim como Israel praticá-la é sinal de fé? E não quebraram as nações, portanto, a tradição de seu pai? Paulo ousa apartar-se desse modo de pensar. De acordo com ele, “a fé foi imputada a Abraão para justiça. Como, pois, lhe foi atribuída? Estando ele já circuncidado ou ainda incircunciso? Não no regime da circuncisão, e, sim, quando incircunciso. E recebeu o sinal da circuncisão como selo da justiça da fé que teve quando ainda incircunciso; para vir a ser o pai de todos os que creem, embora não circuncidados” (4:11).
O apóstolo liga a justiça à incircuncisão, pois Abraão creu, e isso lhe foi imputado para justiça, quando era incircunciso. Desse fato ele extrai que os gentios precisam crer, mas não se circuncidar. Reconhece que Deus ordenou a Abraão circuncidar-se e denominou a circuncisão aliança entre ele e a descendência do patriarca. Mas Paulo acredita que a prática da circuncisão não é obrigatória. Verdade é que ele circuncidou Timóteo, mas o fez como concessão aos judeus (At 16:3). Sua fé não ia na direção desse ato isolado. Para ele, “nem a circuncisão é coisa alguma, nem a incircuncisão, mas o ser nova criatura” (Gl 6:15).
Não ser coisa alguma envolve não ser obrigatório. A circuncisão não é necessária, mas a incircuncisão tampouco o é. Para Paulo, o indivíduo pode escolher entre circuncidar-se ou não se circuncidar, pois todos os mandamentos carnais, isto é, externos, pressupõem a liberdade, não a escravidão.
Deus ter chamado a circuncisão “sua aliança” com a descendência de Abraão (Gn 17:10) e a ter feito feito um sinal (Gn 17:11) não a torna obrigatória. Ainda que tivesse sido chamada mil vezes aliança ou feita mil vezes sinal, a circuncisão continuaria a ser um mandamento carnal, portanto não obrigatório. Entre o mandamento exterior e a conduta, coloca-se um senhor soberano: o livre arbítrio. Esse senhor cumpre ou não cumpre o mandamento, como o desejar. Diferente é o caso dos mandamentos ditados por Deus ao próprio senhor soberano, isto é, ao livre arbítrio, a exemplo do amor, da misericórdia etc. Estes são obrigatórios.
Ao interpretar o Livro de Gênesis assim, Paulo não só parte da mistura de versos bíblicos e tradições que compunham o Abraão de seu tempo como ressalta aspectos desconhecidos dele. Chama-o “pai da circuncisão” (4:12), mas também “pai de todos os que creem, embora não circuncidados” (4:11).
Vemos por que, no tempo de Jesus e de Paulo, a palavra Abraão não evocava algo palpável e cristalizado na letra de Gênesis. Quando Paulo dizia “Creu Abraão em Deus, e isso lhe foi imputado para justiça”, as tradições sobre o patriarca não estavam fora de perspectiva. O apóstolo não era um protestante fundamentalista. Não adorava a estátua de letra. Não é, pois, de esperar que o seu Abraão fosse o da letra.
A estátua de letra não é melhor que a de pedra. Se a redução de Deus à pedra, à madeira, ao ouro ou à prata é condenável, a redução da palavra à letra não o é em menor medida. Observo incredulamente como, ainda hoje, o culto à verdade produz reações de revolta e perseguições da parte dos adoradores da letra, assim como o culto a Deus provocou a perseguição dos idólatras ao longo da História. Servir a verdade, mais cedo ou mais tarde, nos força a revirar os altares erguidos à letra. O Abraão literal é um desses altares espúrios e dedicados a ídolos, não a Deus, nem à verdade.
O Antigo Testamento é inteiramente perpassado pelo conflito entre Deus e os ídolos. A idolatria é o problema central que o percorre. No tempo atual, porém, a idolatria não se manifesta mais como culto à pedra, mas à letra. A interpretação da História Bíblica não coloca outro problema. Ao menos não coloca outro mais grave.
Por séculos, as igrejas protestantes radicalmente contrárias ao uso de imagens têm sido as campeãs da conformidade à fé literal. Quando a ciência mostrou que a História Bíblica às vezes não é literal, elas insistiram na afirmação da letra, do Abraão literal, do Moisés literal, do Jesus literal.
Contudo, há uma estranheza no ar. A cobrança da fé literal foi suspensa, no mundo evangélico. E, em vez de dar espaço à busca da verdade, enfraqueceu-a. Suspendeu-a também. O altar à letra inclinou-se, mas o da verdade não foi restaurado. Importa entoar o gospel, expulsar os demônios, buscar a prosperidade. A quem não o faz resta pregar para os bancos e se preocupar. Os partidários do gospel, da expulsão de demônios e da prosperidade não querem problemas de História, pois não combinam com as suas práticas. Os outros não os querem, pois afugentam as pessoas que ainda não os abandonaram.
Assim, estranhamente, a verdade a respeito da História parece não importar, onde a paixão pela letra foi represada e contida. Importa calar, a um tempo, a questão da verdade e a paixão pela letra. A verdade e a letra: não são elas o conteúdo histórico da igreja? Vivemos, porém, num tempo em que o conteúdo deixou de importar. Vivemos na era da aparência, da margem, do limbo. Nem a verdade, nem a letra têm nela lugar. Mas ninguém resiste para sempre ao furor e ao inexorável. Chegada a sua hora, o que se cala e recalca irromperá novamente. E ainda não nasceu quem possa imaginar o que então sucederá.

A Imputação da Justiça

Frequentemente, ouvimos dizer da experiência de Lutero, na torre, quando ele leu a citação de Habacuque por Paulo (“O justo viverá pela fé”). Ali, Lutero creu que Deus justifica o homem pela fé, independentemente de obras. Sua experiência costuma ser narrada para ressaltar a importância da descoberta de que o homem é incapaz de agradar a Deus, que o salva gratuitamente, por meio da redenção de Cristo. Porém, muito antes dela, a justificação pela fé fora descoberta por Paulo e mudara a sua vida para sempre. É o que verificamos à luz de Romanos.
Claramente, o ato de restituição do penhor ao pobre é imputado como justiça. Semelhantemente, doações a pessoas necessitadas também resultavam na justificação do doador: “Distribui, dá aos pobres; a sua justiça permanece para sempre” (Sl 112:9). O próprio Fineias, sacerdote, foi justificado por eliminar a causa da peste que aniquilava os israelitas: “Então, se levantou Fineias e executou o juízo; e cessou a peste. Isso lhe foi imputado por justiça” (Sl 106:30-31).
Tudo isso aponta para a existência de uma justiça relacionada à lei. Paulo a reconhece plenamente, pois lembra que “Moisés escreveu que o homem que praticar a justiça decorrente da lei viverá por ela” (Rm 10:5). Ele se refere a Levítico 18:5, em que Deus ordena: “Os meus estatutos e os meus juízos guardareis; cumprindo os quais o homem viverá”. Há aqui uma promessa de vida eterna, não gratuita, mas condicionada a determinadas obras. O problema é que o preenchimento da condição para obter o cumprimento da promessa é impossível, não porque seja difícil, já que Deuteronômio afirma “Este mandamento, que hoje te ordeno, não é demasiado difícil” (Dt 30:11), mas porque o homem tornou-se enfermo e incapaz de guardar a lei, por causa do pecado.
A impressão que se tem é de que a inviabilidade da justiça da lei infelicitou tão enormemente a Paulo (como a Lutero depois) que ele se pôs a buscar a resolução do problema, por todo o Antigo Testamento. É o que transparece das citações de Gênesis 15:6 e Salmo 32:1-2, em Romanos 4:3,7-8. Esses versos são agulhas retiradas por Paulo do vasto palheiro do Antigo Testamento, já que não se repetem, nem têm paralelos em outros textos.
Paulo aprofunda a sua descoberta dos versos misteriosos até onde lhe é possível. Extrai conclusões não da superfície deles, mas das suas profundezas. A que mais se destaca é o sentido do verbo imputar, cuja presença ele percebe tanto em Gênesis como no Salmo 32. E, por percebê-la, cita repetidamente a palavra, em Romanos 4. Às vezes Paulo a traduz imputar, outras vezes atribuir, ainda outras levar em conta, mas não se cansa de se referir à grande descoberta, como se nota nos seguintes trechos:
“Abraão creu em Deus, e isso lhe foi imputado para justiça [...] Ao que não trabalha, porém crê naquele que justifica ao ímpio, a sua fé lhe é atribuída como justiça [...] Davi declara ser bem-aventurado o homem a quem Deus atribui justiça, independentemente de obras [...] Bem-aventurado o homem a quem o Senhor jamais imputará pecado [...] Dizemos: A fé foi imputada a Abraão para justiça. Como, pois, lhe foi atribuída? [...] Pelo que isso lhe foi também imputado para justiça. E não somente por causa dele está escrito que lhe foi levado em conta, mas também por nossa causa, posto que a nós igualmente nos será imputado, a saber, a nós que cremos naquele que ressuscitou dentre os mortos a Jesus nosso Senhor” (4:3, 5-6,8,9-10, 22-24).
Nove vezes e em nove versículos, Paulo usa os verbos imputar, atribuir e levar em conta. Mostra, por meio deles, que, além da justiça da lei, há outra doada por Deus ao homem. Essa é a justiça da fé, a justiça atribuída ao que simplesmente crê, a justiça que mudou a vida de Paulo, a de Lutero e a própria História do mundo, libertando os homens da opressão do pecado e da lei.
Paulo se bate pela anterioridade dessa justiça à da lei. A justiça da fé manifestou-se a Abraão; a da lei veio séculos mais tarde, por meio de Moisés. Por ser anterior à lei, a justiça da fé é mais fundamental do que ela. Não só isso: a experiência das duas justiças é descrita com verbos distintos por Paulo. A justiça da lei manifestou-se, mas não pôde ser alcançada, pois o pecado tornara o homem incapaz de obtê-la. Quanto à da fé, Paulo abre o capítulo 4, indicando que Abraão a “alcançou”. Escancara esse fato e o põe em contraste com a justiça da lei, que se revelou, mas não foi jamais alcançada. O apóstolo indaga com ênfase: “Que diremos ter alcançado Abraão?” (4:1). Não importa só conhecer a justiça. Importa alcançá-la, como Abraão a alcançou.
Com base em Paulo, Santo Agostinho indica o motivo por que o homem não pôde alcançar a justiça da lei: “O livre arbítrio existiu perfeitamente no primeiro homem, mas em nós, antes da graça, não há o livre arbítrio de modo que não pequemos, mas somente de modo a não querermos pecar. Mas a graça faz com que não somente queiramos agir retamente, mas também com que o consigamos” (HIPONA, Agostinho de. Explicação de algumas proposições da Carta aos Romanos. São Paulo: Paulus, 2009. p. 26).
Infelizmente, a justiça da fé, descoberta por Paulo, perdeu-se na História que se seguiu. A consequência máxima da perda se vê na Idade Média, quando a hierarquia da Igreja Católica enfatizou a tal ponto a justificação pelas obras, para vender indulgências e outros benefícios, que o povo mergulhou em profunda superstição. A Reforma foi a reação inevitável a esse estado de coisas.
A crise assim instalada colocou as duas justiças face a face. Pouco antes do Concílio de Trento (1545-1563), teólogos católicos e protestantes chegaram a um consenso sobre o problema, no Colóquio de Ratisbona, ocorrido em 1541. Esse foi um momento histórico crucial, pois nele o rasgo iniciado com a Reforma esteve a ponto de cerzir-se. O consenso alcançado em Ratisbona, que se tornou conhecido como “fórmula da dupla justiça”, consistiu em afirmar que as obras anteriores à justificação do pecador não o auxiliam a obtê-la, mas as posteriores lhe são imputadas para justiça.
Infelizmente, o Concílio de Trento não só rejeitou a dupla justiça como aprovou, consecutivamente, a doutrina da colaboração do homem na justificação, a eficácia dos sacramentos, independentemente da fé, a atualização do sacrifício de Cristo na missa, a autoridade exclusiva da hierarquia eclesiástica, o purgatório e as orações aos santos. Assim, o desvio da justificação pela fé obteve um fôlego novo e se comunicou aos séculos que se seguiram.
Mas a justificação exposta em Romanos não se perdeu apenas na Idade Média. Ainda hoje, ela é frequentemente reduzida a experiência única, ocorrida no início da caminhada espiritual do homem com Deus. É inegável que a imputação inicial de justiça é um aspecto da justificação pela fé, mas não é o único. Não é possível reduzir a justificação a esse aspecto. Em Romanos 4:18-22, o apóstolo diz que “Abraão, esperando contra a esperança, creu, para vir a ser pai de muitas nações, segundo lhe fora dito: Assim será a tua descendência. E, sem enfraquecer na fé [...] não duvidou da promessa de Deus, por incredulidade; mas, pela fé, se fortaleceu, dando glória a Deus, estando plenamente convicto de que ele era poderoso para cumprir o que prometera. Pelo que isso lhe foi também imputado para justiça”.
O versículo 18 refere-se à primeira experiência de fé de Abraão. A promessa nele citada (“Assim será a tua descendência”) antecede a frase decisiva do Antigo Testamento: “Creu Abraão no Senhor, e isso lhe foi imputado para justiça” (Gn 15:5-6). Retrata, portanto, a atribuição inicial de justiça ao patriarca. Mas o versículo 22 indica que Abraão foi novamente justificado por Deus, ao alcançar convicção de que Deus era poderoso para cumprir a promessa de lhe dar novo filho.
Isso mostra que a fé e a atribuição de justiça não ocorrem só uma vez, na vida de cada indivíduo. São um trato contínuo de Deus com ele. Ao longo de toda a vida, o homem recebe a imputação da justiça. Ele é justificado por fé várias vezes. A partir da primeira justificação, suas obras passam a contar diante de Deus, porém não sem a fé ou desacompanhadas dela. Por isso é que o autor de Tiago reivindicou o papel das obras na salvação. A que exemplo ele recorreu, ao reivindicá-lo? Ao de Abraão, pois disse: “Não foi por obras que Abraão, o nosso pai, foi justificado, quando ofereceu sobre o altar o próprio filho, Isaque? Vês como a fé operava juntamente com as suas obras; com efeito, foi pelas obras que a fé se consumou, e se cumpriu a Escritura, a qual diz: Ora, Abraão creu em Deus, e isso lhe foi imputado para justiça; e foi chamado amigo de Deus. Verificais que a pessoa é justificada por obras e não por fé somente” (Tg 2:21-24).
Tiago depositou a fé no interior das obras. Viu, pois, as obras como locus natural da fé. Além de teológica, sua posição é antropológica. Indica que sentimentos como a fé nascem de experiências concretas. Não são abstratos. Podemos não só concordar com ele como admitir que o princípio que ele afirmou é universal. Vigora tanto antes como depois da primeira justificação. De sorte que, nesta, a fé já está misturada às obras. Não a boas obras, é bem verdade, mas a pecados, pois tudo e não apenas parte do que o homem realiza antes de crer é pecado.
A própria fé que o homem possui, antes de ser recriada pela imputação de Deus, é pecado. O homem crê, mas sua fé não tem força salvífica. É até mesmo pecado. Como poderia o pecador acumular insultos a Deus, esmagar o seu próximo, e a fé tudo apagar, sem o favor de Deus? Somos salvos por fé, porque Deus no-la imputa como justiça, não porque ela tenha o poder intrínseco de nos salvar.
O que torna a fé proveitosa não é ela própria, nem algo inerente a ela. É a imputação de Deus. Deus imputa a fé como justiça, o que lhe comunica a eficácia ou poder de produzir a justiça. Assim, concluímos que, antes da justificação, as obras são imputadas ao homem como pecados; quando ele crê em Cristo, sua fé lhe é imputada para justiça. E, depois que o homem crê, como o exemplo de Abraão esclarece, a fé continua a lhe ser imputada para justiça.
Esse renascimento da fé, pela imputação, é uma recriação do ato de crer. É o que se chama o dom da fé. A fé é muitas vezes vista como ato inteiramente humano, mas não o é. Hebreus 12:2 chama Jesus autor da nossa fé. Atribui-lhe com isso o ato de crer. João também afirma: “A obra de Deus é esta: que creiais naquele que me enviou” (Jo 6:29). Mas, se crer é obra de Deus, a fé é uma criação dele. Por isso, o original de Gálatas 2:20 menciona a fé do (não no) Filho de Deus, indicando que Cristo é a sua fonte, não nós.
Nesse sentido, a justificação pela fé é um trato contínuo de Deus com o homem, não uma experiência isolada ou única. Nada temos que não tenhamos recebido, afirma Paulo (1 Co 4:7). Na sua declaração, está implícito: exceto pecados. Não é correto supor que o homem nada tenha absolutamente. Ele tem suas obras. Mas tampouco é correto afirmar que essas obras são qualquer outra coisa, em si mesmas, além de pecados. Do mesmo modo, o livre arbítrio é capaz de muitas coisas. É capaz, inclusive, de querer agradar a Deus. Mas só é capaz de o querer eficazmente por meio da imputação de Deus.
A imputação divina é a doação de significado e eficácia a tudo o que existe. Na esfera moral, nada encontra em si mesmo o seu sentido. Tudo possui o sentido que Deus lhe imputa. É a consequência, no plano moral, de Deus ter criado e conservar todas as coisas por seu imenso poder. A revelação nos ensina que Deus tudo criou para tudo preencher. Por isso, a sua declaração de mais amplo alcance talvez seja que “nele vivemos, e nos movemos, e existimos” (At 17:28). Por que Deus, que criou e preenche todas as coisas, abandonaria a esfera moral à luta dos opostos? Ele não a pode ter abandonado, se encabeça essa ordem como o seu vértice. Se, pela imputação da justiça, decide os destinos dos espíritos.

Imputação ou Infusão?

A Igreja Católica adota a doutrina da justificação forjada por São Tomás de Aquino, para quem “todo mérito é contrário à graça, como o Apóstolo afirma: Se é pela graça, já não é pelas obras (Rm 11:6)". Porém, para Aquino, essa limitação ao mérito opera somente "antes de o homem se colocar sob a graça [...] pois o termo [final] da salvação é a vida eterna, e o progresso nesse caminho é o aumento da caridade ou da graça, em conformidade com Provérbios 4:18: A vereda do justo é como a luz da aurora, que vai brilhando mais e mais, até ser dia perfeito. Portanto, o aumento da graça inclui o mérito” (AQUINO, São Tomás de. Summa theologica. In "Great books of the western world". Vol. 18. II, 114, 5. p. 374, 376).
Esse ensinamento de Tomás não se ajusta ao de Paulo de maneira perfeita. Para o apóstolo, a imputação exclui totalmente o mérito e não apenas antes da conversão. Imputação e mérito são termos antagônicos e, como a justiça é sempre imputada, o mérito nunca a introduz. Isso não quer dizer que a vida humana não envolva uma cadeia de atos meritórios e não meritórios. Ela o faz e é por isso que a Bíblia nos fala de recompensas e punições. Porém, a cadeia do mérito é paralela à da graça, não faz parte dela, pois a imputação exclui o mérito, tanto antes quanto depois da primeira graça.
Num blog católico, encontro a seguinte crítica à doutrina protestante da justificação: “Para os protestantes, a justificação é imputação de justiça. Ou seja, o homem não é justo, e nunca o será, mas (creiam-me ou não) Deus finge que ele é. Ou seja, pela doutrina protestante, Deus como que nos diria: "sei que não sois justos, sei que não tendes boas obras, mas finjo que sois aquilo e que tendes estas" [...] Por que cargas d'água um protestante prefere acreditar nesta 'pantomina divina' do que crer, serenamente, que Deus é poderoso para fazer de nós homens cada dia mais próximos da perfeição?” (www.veritatis.com.br).
Essa é uma caricatura do que os evangélicos realmente sustentam. Para eles, Deus imputa os pecados do homem a Cristo, não finge que eles não são pecados. Imputa, também e inversamente, a justiça de Cristo ao homem. É o que nos diz Paulo: “Aquele que não conheceu pecado, ele o fez pecado por nós; para que nele fôssemos feitos justiça de Deus” (2 Co 5:21). A explicação da doutrina de Paulo, que acabo de mencionar, é de R. C. Sproul.
Observo, com consternação, a polêmica contra Sproul, em que o Living Stream Ministry (agora Ministries?) se engajou nos Estados Unidos. Vivi sob esse ministério, muitos anos. Aceito a legitimidade do seu empenho em levar os ensinos de Witness Lee ao meio evangélico. Por isso também, compreendo os motivos que levaram o Christian Research Institute a se retratar da acusação de heresia feita a Lee no passado, ao publicar um número inteiro da sua revista sobre esse tema, com o título “We were wrong” (Christian Research Journal. Vol. 32, nº 6, 2009). Mas as críticas do LSM a Sproul revelam uma radicalização doutrinária perigosa.
Cá no Brasil, nunca discutimos os erros fundamentais de Lee, a não ser superficialmente. Os norteamericanos mostraram-se muito mais bereanos que nós. Discutiram e até hoje discutem, em profundidade, a teologia de Lee. Ao ler os seus debates, porém, encontro nos teólogos prontos a condená-lo, certa incompreensão da personalidade de Lee. Não que a instância doutrinária não se revista de autonomia, mas a compreensão da vida da pessoa ajuda a entender a formação da sua doutrina.
Digo-o como quem, simplesmente, manifesta a sua opinião. E olhem que não ignoro os escritos de Lee. Sou dado à leitura, mas devo dizer que, por muito que tenha lido tantos autores, li mais Witness Lee do que todos eles. Isso porque, com paixão própria da pouca idade, submeti-me a um rigoroso treinamento na teologia dele, que transcendeu o que era exigido nos cursos oficiais do Living Stream. Mas li-o tanto também por encontrar em Lee uma inteligência criativa e uma paixão pela vida interior com Cristo que me atraíram fortemente.
A criatividade é um traço da personalidade desse teólogo chinês. Um traço que, talvez, o tivesse feito um intelectual bem-sucedido em outros campos, caso tivesse dedicado a eles a sua existência. Mas Lee dedicou-se à Teologia, embora não gostasse de utilizar essa palavra e, ainda menos, o termo religião (basta lembrar Christ versus religion)! Infelizmente, na Teologia, os terrenos estão minados para a criatividade, e os espíritos, armados contra ela. O preço da criatividade foi cobrado a Lee em incompreensões. Por isso acolho com boa vontade a palavra final favorável do Instituto de Pesquisa Cristã sobre ele.
Mas não a tomo como definitiva. Vivi o bastante para aprender que a heresia é um perigo real. Estou a afirmar que Lee foi herético? Não, pois sinceramente o que aprendi sobre ele não me parece suficiente para fechar tal juízo. Entendo que Lee ande perto do que, em geral, se entende por heresia, no meio protestante. Mas Paulo e os primeiros cristãos não tinham semelhante conceito do desvio herético. Num meio que admitia variações doutrinárias tão amplas quanto as que vigoravam entre os fariseus, os saduceus, os zelotes e os essênios, sem mencionar as subcorrentes desses grupos e as seitas menores, heresia era mais o isolamento de uma facção em torno de uma doutrina absurda do que diferenças na interpretação das Escrituras.
Por isso achamos tanta liberdade de falar, por exemplo, em Paulo. Nada encontramos, no primeiro século, que se pareça com a defesa da imputação que ele nos legou, nessa página imortal que é Romanos 4. Paulo verdadeiramente afirmou algo novo e chocante na sua época. E só o fez, porque sentiu liberdade para isso. Uma liberdade dupla, aliás: liberdade interior decorrente da fé e exterior por causa da relativa aceitação da diversidade doutrinária no meio em que ele vivia.
Mas, se a criatividade é um traço da personalidade de Lee, não posso afirmar o mesmo da ênfase que depositava na vida interior. A vida com Deus não é própria da personalidade de alguém. É antes um dom. E pode tornar-se (no caso de Lee, tornou-se) um dom muito desenvolvido e notável.
Disse que, no Brasil, nunca nos ocupamos dos erros fundamentais de Lee. Mas tal era a atenção que alguns (muitos) de nós dispensavam aos seus ensinamentos que, se tivessem caráter tão nocivo quanto o que os críticos americanos lhes atribuem, dificilmente teriam passado assim tão in albis para tanta gente. Tínhamos um ambiente parcamente bereano, é verdade, mas não almas pouco bereanas. Individualmente, líamos Lee com atenção. Se estávamos condicionados a concordar com ele, também devotávamos aos seus escritos e pregações uma atenção que duvido se reproduza na maior parte dos teólogos que o estudaram. E acho espantoso que, lendo-o e escutando-o dessa maneira, jamais tenhamos chegado ao fio das condenações que se pronunciaram a respeito dele. Suspeito que não o tenhamos feito, não porque não entendêssemos o que se passava, mas porque entendíamos melhor a sua personalidade e a diretriz fundamental da sua vida, que foi a experiência interior com Cristo.
Porém, assim como as grandes virtudes, os erros de Lee também emanaram das características da criatividade e da vida interior que tanto o distinguem. Foram antes de tudo excessos cometidos nessas linhas. A partir de certo momento e não sem ser insuflado por seguidores diretos, Lee se tornou um novidadeiro. A invenção de palavras novas e a afirmação de doutrinas críticas foram levadas tão longe, por ele, que originaram rematados absurdos. Muitos desses absurdos são dogmaticamente irrelevantes, mas alguns não o são. E, no clima de louvação santa (como se tal disparate fosse possível) que se instalou, em torno dele, Lee passou a revelar uma disposição cada vez menor a aprender com os outros.
A paixão pela vida interior, por sua vez, levou Lee a desenvolver uma justificação teológica dela, em flagrante conflito com a doutrina da imputação. Nesse ponto particular, ele se aproximou inconscientemente da doutrina católica da infusão gradual de justiça não simplesmente a partir de fora, mas no interior do crente. Tudo de forma bastante incomum, já que Lee não abominava menos (nem mais) os erros católicos do que os setores protestantes fundamentalistas.
Para aquilatar bem isso, ouçamos o que o blog católico já mencionado assevera sobre a justificação: “Uma vez que eles [os protestantes] creem no sola fide veem-se obrigados a garimpar uma doutrina da justificação que dispense as boas obras. Em outras palavras [...] uma justificação que lhes seja externa. Uma justificação que não tenha, no fundo, e no frigir dos ovos, nada a ver com o crente” (www.veritatis.com.br).
O texto ataca a justificação pela fé, para defender a doutrina católica da infusão da justiça mediante as obras, os sacramentos etc. Lee sustentou coisa semelhante, em busca de uma justificação teológica para a sua proposta de espiritualidade. Para ele, a vida de Cristo é infundida no crente, gradativamente, ao longo de toda a sua vida. Nisso consiste a salvação para Lee e não só num procedimento de imputação.
É o que se costuma exprimir como uma salvação com aspectos complementares, um deles judicial, outro orgânico ou de infusão de vida.
A busca do meio-termo entre correntes opostas, que se digladiaram sem composição na História, é comum em Witness Lee. Mas, quase nunca, é bem-sucedida. É o caso da doutrina da infusão defendida por ele, que tanto depende da sua proposta de espiritualidade e, por isso, precisa ser analisada à luz dela. No que tem de mais proveitoso, a espiritualidade de Lee é haurida de uma série de místicos cristãos da História. A maior parte, a exemplo de Madame Guyon e Father Fenèlon, pertenceu à Igreja Católica. Escritores protestantes como William Law e Andrew Murray, em que Lee também se inspirou, embora ligados a uma espiritualidade viva e intensa, talvez não mereçam o enquadramento simples de místicos.
Pode-se questionar, também, em que medida Lee absorveu sua proposta de espiritualidade de Watchman Nee. Não há dúvida de que ele inspirou-se muito nesse pregador chinês, mas o ímpeto inovador que sempre demonstrou levou-o a transcender até as crenças e práticas místicas de sua principal fonte de inspiração. Somos, pois, levados a concluir que a espiritualidade proposta por Lee não é de cepa católica, nem protestante. Tampouco é exatamente a de Watchman Nee. É uma espiritualidade singularíssima. Característica ressaltada dela é ter-se tornado radical, não como experiência individual, mas coletiva. A mística de Lee é, a meu ver, com efeito, uma prática coletiva, uma prática de reuniões. Com o desenvolvimento de tecnologias de última geração, tem-se tornado, também e estranhamente, uma prática virtual.
O tratamento de uma espiritualidade tão peculiar não cabe nos limites deste texto dedicado à justificação. Não tentarei, pois, realizá-lo. Basta-me assinalar o traço extremado dela e da doutrina da infusão plasmada a fim de justificá-la. Só na aparência, a doutrina de Lee é um meio-termo. No fundo e em verdade, ela é uma radicalização malsucedida.
A inteira questão gira em torno da ideia de filiação defendida por Lee. Numa tentativa de refutar o número “We were wrong”, do periódico CRI, o teólogo Brandon Adams selecionou as seguintes passagens de escritos de Lee e do LSM sobre o tema: “Toda vida produz descendência segundo a sua espécie (Gn 1:11,21,24). Como filhos de nosso pai físico, temos a vida e a natureza de nosso pai, mas não somos a mesma pessoa que ele. Um avô, um pai e um filho têm todos a mesma vida e natureza, mas são diferentes pessoas. Em vida e natureza, eles são o mesmo, mas em pessoa são diferentes. Como filhos de Deus (Rm 8:16; 1 Jo 3:1), fomos deificados, não em pessoa, mas em vida e natureza (The experience and growth in life. pp. 209-210)”.
Num outro texto, o Living Stream volta suas baterias contra Sproul: “Ele [Sproul] escreve que ‘Jesus é o único Filho natural de Deus. Todos os outros entram na sua família pela adoção’. Tal afirmativa contradiz diretamente a revelação das Sagradas Escrituras, que nos dizem em termos inequívocos que nós, crentes, nascemos de Deus e consequentemente somos sua prole real (Sproul’s saved from what?)” (ADAMS, Brandon. "The false gospel of Witness Lee and the Living Stream Ministries”. Disponível em www.contrast2.wordpress.com/2010/09/25).
Esse é um erro de Lee, mas um erro que se comete no mister de interpretar um ensino bastante complexo, com vertentes literais e simbólicas que se interpenetram: o do novo nascimento e da nova vida em Cristo. Sproul interpreta o novo nascimento, à luz da imputação. Conclui que Deus nos imputa a condição de filhos, o que equivale a adotar-nos. Em seu apoio, está a evidência léxica de que huiostesía, termo grego traduzido adoção em nossas Bíblias, era correntemente usado nesse sentido, no primeiro século. Lee argumenta que o termo inclui o radical huiós (filho). Aí tropeça, pois a tradução de uma palavra não é igual à da soma de seus elementos. Átomo vem de elementos que significam não e partes. Se o princípio hermenêutico de Lee estivesse correto, a palavra deveria ser traduzida “coisa sem partes” ou indivisível, mas continuou a ser empregada da mesma maneira, depois que o átomo foi fracionado. Não pode, assim, indicar algo indivisível, pelo mesmo motivo por que a presença do radical filho em huiostesía não infiltra no termo o significado de filiação natural.
No fundo, a ideia de filiação de Lee é uma reductio ad absurdum (redução ao absurdo) da mística. É válido a alma crer-se mesclada e em koinonía com Deus. 2ª de Pedro 1:4 chega a afirmar que somos participantes (comungantes, no original) da natureza de Deus. Mas o contexto do verso explicita que seu autor referia-se à participação que decorre do ato de entender algo. Não de entender a natureza de Deus, é claro, mas de entender as promessas divinas. Os antigos achavam que entender era participar da ideia do que é pensado. Para muitos, isso era o mesmo que participar desse ser. Difícil é extrair a palavra participantes desse contexto filológico e cultural para lhe atribuir interpretação apropriada a experiências místicas. Mas foi exatamente o que Lee realizou.
E o que se diz da filiação vale, em linhas gerais, também para o nascer de novo, o ser nova criatura etc. Esses termos foram empregados como metáforas, por Jesus e por Paulo, ambos mestres da linguagem simbólica. Porém, todas as vezes em que a entrada na família de Deus é abordada em termos literais, na Bíblia, a palavra adoção e equivalentes são utilizados. É o caso de João 1:12: “A todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus; a saber: aos que creem no seu nome”. Um poder de ser feito não é um nascimento literal. É, antes, uma imputação.
Acresce que, assim como exclui o mérito, a imputação também exclui a regeneração literal, pois imputar é atribuir um significado para criar uma relação nova. A condição de filhos de Deus é-nos imputada, a fim de inaugurar um novo tipo de relação entre nós e Deus. Essa relação é tão forte que é descrita pela metáfora do novo nascimento. Mas, com ampla ajuda do termo huiostesía, ela foi sempre entendida, pelos primeiros cristãos, como adoção. É o que consta em toda a literatura patrística.
A esse esclarecimento, haverá quem alegue o que lemos na continuação de João 1:12: "os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus". Se desejamos extrair do verso um nascimento de Deus, fazemos bem. Mas é preciso atentar para o alcance de vistas que o autor sagrado tinha, ao escrever João 1:12. Antes de afirmar que nascemos de Deus, ele considerou três espécies de geração: do sangue, da vontade da carne e da vontade do homem. Sabemos o que é geração do sangue, mas às vezes passamos por alto a geração da vontade, que o autor do Evangelho claramente considerou. Ora, nascer da vontade é experimentar um nascimento psíquico, não físico. Esse é um ponto importante, pois não há garantia alguma de que o nascimento de Deus mencionado no verso não seja também psíquico. Parece-me que é um nascimento da vontade de Deus, pois se deve à sua decisão de nos imputar a condição de filhos. Os membros das Igrejas Locais têm dificuldade de admitir isso, pois separam radicalmente o espírito da mente do homem e localizam o novo nascimento no primeiro. Mas não é isso que Paulo faz, em Romanos. Pelo contrário, vemos, nos capítulos 6 a 8 da epístola, que ele coloca a mente no centro do processo de salvação e da própria regeneração. No que não diverge do pensamento cristão da época.
A vida e a natureza de Deus são incomunicáveis. Se as possuíssemos, teríamos as propriedades consequentes delas, assim como a onisciência, a onipotência e a onipresença, mas estamos infinitamente longe disso. A fé cristã não veio ao mundo para ampliar a incompreensão do real por absurdos tão rematados. Veio para aumentar a compreensão da vida, a posse da verdade pelo homem, e desse modo foi entendida, nos primeiros séculos. Esse é também o estado em que o Novo Testamento deixa a questão da nossa relação com Deus.
Se pensasse que nascemos literalmente de Deus, acaso Paulo teria posto tanta ênfase na imputação e mencionado essa ideia nove vezes, só no capítulo 4 de Romanos? Não teria antes se dedicado a mostrar as glórias de possuirmos os atributos inerentes à vida e à natureza de Deus? Notemos a ausência de qualquer ensino claro e não metafórico, a esse respeito, em Romanos. E saibamos concluir dela que não era intenção do apóstolo transmitir tal ensino.
Sei que as pessoas gostam de decisões do tipo herético ou não herético. Querem posições peremptórias. Mas esse gosto dogmático nem sempre pode ser satisfeito. Não havia tal dogmatismo no primeiro século. Como podemos atribuir às doutrinas dos cristãos daquela época o que nem eles próprios colocavam nelas?
O dogma veio bem depois das cartas de Paulo, do Evangelho de João e dos livros neotestamentários de modo geral. O que não significa que não tenha grande importância, como cristalização histórica. Mas um é o poder do indivíduo; outro, o das gerações. O indivíduo pode ter convicções, mas não lhe cabe fechar julgamentos sobre questões que estão além de seu poder. Quem sou eu para dizer que João se interpreta assim e Romanos de tal outro modo? Digo o que sinto e aprendi sobre João e Romanos, apenas isso. O mais as gerações construirão, pois a elas incumbe tal tarefa.
As gerações estão acima de nós, como a nuvem de testemunhas de Hebreus 12:1. Porém, as Escrituras estão acima das gerações. Os dogmas brotaram do chão da História; as Escrituras surgiram de um lugar situado fora dela. Surgiram do alto. Por isso, para interpretá-las, o indivíduo deve saber onde tem o seu nariz. Mas tem também o direito sagrado de proceder como indivíduo livre.

A Visão de Mundo de Paulo

Há séculos, a Teologia sustenta que Deus é onipresente, que ele “enche tudo em todas as coisas” (Ef 1:23). Mas Deus não está em toda parte por acaso ou por não ter o que fazer. A lição bíblica é de que ele criou o espaço, com o fim deliberado de ocupá-lo.
Porém, embora claro, esse dado introduz um problema: por que Deus quer ocupar o vazio? Acaso ele ama o nada? As respostas a essas perguntas não são tão óbvias quanto podem parecer. Não faz sentido pensar que Deus ocupa o espaço infinito por amor ao nada. E não ajuda afirmar que ele o faz para criar seres vivos e se relacionar com eles. Se é Todo-Poderoso, Deus poderia criar seres vivos, sem produzir um espaço infinito e vazio. De sorte que, se o Universo é um enigma, o espaço parece constituir o ponto nevrálgico dele.
No século XX, a ciência descobriu que o espaço não é vazio, mas preenchido por criaturas que, de tão pequeninas, não são percebidas e, na maior parte do tempo, não são sequer detectáveis. Mais do que isso: as criaturas que formam o espaço são os blocos fundamentais de tudo o mais, já que tudo contém espaço. Até a matéria mais sólida, vista ao microscópio, é quase inteiramente vazia, e esse vazio, esse nada, essa geometria interna, é o que lhe confere a estrutura que possui.
À luz de revelações como essas, podemos refletir de maneira nova sobre Efésios 1:23. Podemos pensar que Deus não ocupa o espaço para assistir às interações da energia que o constitui, mas para determiná-las. Não nos dizem as Escrituras que Deus criou e conserva todas as coisas? Que ele se importa com o Universo e intervém, no seu interior, para fazer cumprir seu propósito eterno? E, se assim é, não deve Deus intervir, também, nas interações fundamentais do espaço, com base nas quais o Universo é estruturado? A Bíblia parece indicar, com efeito, que Deus tudo enche para estruturar todas as coisas.
Essa visão de mundo é vertiginosa. No Areópago, Paulo declarou que, em Deus, nós “vivemos, e nos movemos, e existimos” (At 17:28). Isso significa que Deus preenche a inteira esfera, em que a nossa existência se desenrola. Significa que ele preenche o mundo todo, sem ser o mundo todo. De modo nenhum podemos pensar que ele o faz sem motivo. Devemos, antes, entender que Deus preenche todas as coisas para as sustentar e formar o mundo em constante formação.
Os autores bíblicos e Paulo, em particular, viam o Universo físico impregnado de sentido divino. Para o apóstolo, a redenção de Cristo não só eliminava o pecado do homem como reconciliava com Deus “todas as coisas, quer sobre a terra, quer nos céus”, isto é, o Universo inteiro (Cl 1:20).
A imputação, como Paulo a apresenta em Romanos, aplica-se ao homem, justifica-o e remove seus pecados. Porém, em outras passagens, verificamos que os seus efeitos se irradiam pelo Universo todo. Por esse motivo, embora seja uma doutrina da salvação humana, a imputação é ao mesmo tempo uma visão de mundo, uma chave para a interpretação do Universo. Assim devemos tomá-la.
“E, para ser o cabeça sobre todas as coisas, [Deus] deu [Cristo] à igreja, a qual é o seu corpo” (Ef 1:22-23). O plano de Deus não consiste só em preencher todas as coisas e em estruturar o Universo, por meio disso, mas em encabeçar todas as coisas, nos céus e na terra, em Cristo. Esse encabeçamento não é do Universo todo, mas especialmente dos seres livres, que podem submeter-se ou ser submetidos a ele.
Assim, se o preenchimento de todas as coisas por Deus é a moldura geral do Universo e se ele é revitalizado pela reconciliação de tudo com o Criador, o encabeçamento dos seres racionais é o quadro propriamente dito, a razão de ser específica do Universo. Romanos nos mostra que o objetivo desse encabeçamento só é alcançado, por meio da imputação. Só é alcançado, porque Deus renova o significado de todas as relações cósmicas ao lastreá-as em Cristo.
A validade dessa visão, para a qual Paulo contribuiu com o elemento decisivo da imputação, até hoje não precluiu. Nem toda a ciência pôde mostrar que a visão é equivocada. Tampouco é ufanista afirmar que a ciência comprovou parte da visão. Resumidamente, portanto, a Bíblia nos informa que o Universo não é obra do acaso, que ele foi criado, conservado e estruturado por Deus para que o encabeçamento das criaturas racionais em Cristo tivesse lugar.
Nesse vasto contexto, é que a linguagem judicial de Romanos transmite a verdade real, não simbólica, sobre a salvação humana. A ela se liga outra linguagem, que nos comunica a verdade simbólica da salvação. A presença das duas linguagens se torna patente, quando Paulo afirma: “Se nós, quando inimigos, fomos reconciliados com Deus mediante a morte do seu Filho, muito mais, estando já reconciliados, seremos salvos pela sua vida” (5:10).
A reconciliação por meio da morte de Cristo é uma verdade real (há quem prefira dizer literal). A salvação pela sua vida é uma verdade simbólica, já que não temos tal vida literalmente. Isso nos conduz à conclusão de que, no que tem de real e de nuclear, a salvação ocorre por imputação, mas esta é representada simbolicamente pela filiação natural.
Em outras palavras, para retratar com cores mais vivas o fato da imputação, tanto Paulo como o autor de 1ª de João recorreram ao símbolo da geração de filhos. É o que está implícito na expressão “salvos pela sua vida” e também nos versículos “Todo aquele que crê que Jesus é o Cristo é nascido de Deus e todo aquele que ama ao que o gerou, também ama ao que dele é nascido” (1 Jo 5:1) e “Aquele que é nascido de Deus não vive em pecado; antes, aquele que nasceu de Deus o guarda, e o maligno não lhe toca” (1 Jo 5:18). Em todos esses casos, a metáfora é usada para reforçar e ilustrar a consequência da filiação imputada ao homem por Deus.
A vida mencionada em 5:10, pela qual somos salvos, é a de Cristo. Portanto, é a vida de Deus. Mas sermos salvos pela sua vida não é o mesmo que nascermos de Deus, do modo como Cristo nasceu. O nascimento divino de Cristo lhe é exclusivo. Por isso, quando 1ª de João afirma que somos nascidos de Deus, sua linguagem é simbólica. O símbolo que utiliza é extraído do ensinamento comum das múltiplas gerações e emanações do divino. Esse ensinamento era fundamental tanto no judaísmo helenista como no platonismo e no gnosticismo. Por meio dos judeus helenistas, penetrara, inclusive, na Palestina.
No contexto desse ensino comum e disseminado, portanto, não surpreende encontrarmos as múltiplas gerações divinas também entre os cristãos. Só não podemos concluir, daí, que a geração é real, isto é, natural. No Areópago, Paulo declarou que a humanidade é “geração [de Deus]” (At 17:28-29). E, em Lucas 3:38, o próprio Adão é chamado filho de Deus. Nem por isso, devemos concluir que Adão e seus filhos nasceram de Deus ou têm a vida divina. E, se eles não nasceram de Deus, nem possuem a sua vida, que mão haverá de inserir, na geração dos crentes,o traço diferencial do nascimento de Deus?
A doutrina da imputação real ajusta-se maravilhosamente à visão de mundo bíblica. Mostra que Deus, que criou, sustenta e estrutura todas as coisas, não busca só louvor para si, mas salvação para o homem. E isso não por meio da força, mas da fraqueza de Cristo, na cruz, e da imputação de eficácia salvadora a ela. Os primeiros cristãos perceberam que, assim aclarada, a representação bíblica do Universo é muito diferente da de todas as outras religiões. Nenhuma fé jamais apresentou um quadro tão coerente ou tão realista do Universo. Nenhuma constituiu um acréscimo ao conhecimento acumulado, durante séculos, sobre o Universo, por meio do estudo e da observação. Só a visão de mundo cristã tem essas características.
O realismo maior dessa arrebatadora visão fez com que, desde o princípio, ela concorresse menos com a religião grecorromana do que com as filosofias racionais da antiga Grécia e do período romano. Pouco vemos autores cristãos debaterem mitologia; vemo-los discutir a compatibilidade ou não da fé cristã com a Filosofia. O próprio Paulo discutiu com os filósofos, em Atenas. E não foi por outro motivo que, até a Reforma, o Novo Testamento foi progressivamente entendido e explicado com ajuda da Filosofia.
Estou a afirmar que a fé cristã é um racionalismo? Longe de mim tal propósito. A fé é um modo de vida com Deus baseado na oração, mas tanto a oração como a fé são interiorizações da palavra de Deus e não existem sem ela. Ora, a palavra é logos, não um transe profético em que se perde a razão. Como logos, ela nos apresenta Deus de modo compatível com o Universo.
O que há de real, na experiência dos místicos, é a relação com Deus, não a participação que creem possuir na vida divina. Pela imputação de justiça, entramos em relação real e próxima com o Criador e Conservador de todas as coisas nos céus e na Terra: na relação específica de filhos dele. Nesse sentido, oramos e devemos orar a Deus. Nesse sentido, temos comunhão com ele. Mas o que vai além disso é equívoco. A mística da coincidência do crente com Deus é um equívoco, pois reduz a nitidez da visão de mundo bíblica e atenta contra a sua verdade.
Ao longo de toda a História, vemos os povos em busca de uma visão geral do mundo. Porém, até o advento da Filosofia, tudo o que a humanidade alcançou, nesse caminho, foi o senso comum de cada época. O que devemos convir que é pouco, pouquíssimo, considerando o modo de ser do mundo.
A ciência contemporânea nos deu muito mais, é verdade. Mas não nos deu o essencial. O espaço se expande? A matéria se auto-organiza? Sim, a ciência o provou. Mas, se isso ocorre, por que não ocorreu antes? Por que não ocorreu, se os elementos do mundo são eternos, como ela supõe, e um tempo infinito esteve à disposição para que tivesse lugar? Em que pese o desenvolvimento científico, o materialismo não tem melhores respostas para essas perguntas, hoje, do que tinha no primeiro século. As explicações científicas cessam nesses pontos fundamentais, por absoluta falência, comprometendo a visão de Universo do homem contemporâneo.
Sobre esses pontos, resta o que sempre restou: as religiões e a Bíblia, que desde o princípio pareceu tão peculiar e diferenciada dos outros livros sagrados. Nela, vemos a criação do Universo, o pecado e a imputação da justiça ligarem-se numa ampla visão de conjunto. Em Gênesis, temos a criação; nos quatro Evangelhos, a redenção. Entre eles, situa-se a lei, o pecado e a ira, como Paulo tanto enfatiza. A ira de Deus é a rejeição da criação por ele, não quando o homem pecou, mas quando o pecado avultou por meio da lei.
No entanto, o aborrecimento de Deus não é como o do homem. Não vai de mal a pior. Na plenitude do tempo, Deus tudo mudou, enviando seu Filho para salvar o mundo. E o Filho, cooperando com o Pai, ofereceu-se, na cruz, em remissão de todos os nossos crimes. Com base no seu sacrifício, Deus renovou relações com toda a sua criação e o homem em particular.
Alguém dirá que isso não se passou? Que Jesus não morreu pelos nossos pecados? Mudem a História, e acreditarei. Mas será difícil mudá-la. Uma verdade formada por imputação não é como um fato natural. O fato é efeito de uma causa. A imputação o é de um querer. O fato se prova ou refuta por meios empíricos; a imputação, só por testemunhos do querer que a produziu. Os quatro Evangelhos e Atos são esse testemunho e me parece que eles não desabonam a interpretação de que Cristo, de fato, morreu pelos nossos pecados e ressuscitou para a nossa justificação.
Falta os opositores de hoje dizerem que os Evangelhos e Atos não são a palavra de Deus, após gerações de seres humanos lhes terem imputado exatamente essa condição. Claro: a má-fé não tem fim e a raça dos que estão sempre prontos a novas patifarias para refutar a visão de mundo da Bíblia tampouco o tem. Mas ela foi retratada nos versos em que Deus mostrou a Jó as coisas abstrusas da natureza, como a avestruz que "trata com dureza os seus filhos, como se não fossem seus; embora seja em vão o seu trabalho, ela está tranquila, porque Deus lhe negou sabedoria e não lhe deu entendimento [...] Ri-se do temor e não se espanta;e não torna atrás por causa da espada" (Jó 39:17-18, 22). Não percebem que Deus se mostra nas regularidades do céu porém, muito mais, em todas as durezas da Terra.

O Último Adão

O capítulo 4 de Romanos fala-nos tanto da imputação do pecado como da justiça. Da primeira, Paulo trata rapidamente, mas se demora na última, ao expor o caráter da experiência de fé de Abraão. Suas palavras deixam perceber, claramente, a correlação que se estabelece entre as duas modalidades de imputação. Por isso, ao retomar o tema, no capítulo 5, o apóstolo procura um ponto sólido em que escorar tanto uma como a outra modalidade de intervenção de Deus no mundo moral.
No tocante ao pecado, ele encontra esse ponto fixo em Adão, ao qual faz retrocederem não apenas as transgressões de todos os homens, mas também a declaração divina da sua pecaminosidade. A visão de que Adão não é só o princípio do pecado, mas também das declarações que imputam aos homens suas transgressões permeia Romanos 5 como os raios do sol atravessam o ar. Essa visão é o que doa sentido ao capítulo. Paulo não se preocupa tanto com a história de Adão, com a origem ou o desenvolvimento do pecado, mas com o caráter intrínseco dele, que é determinado pela imputação de culpa a Adão. O pecado de Adão só é verdadeiro pecado, porque Deus o imputa como tal. Semelhantemente, os pecados dos descendentes desse patriarca só são pecados, porque Deus os imputa a eles.
Essa é a dura conclusão que extraímos dos versos 5:12-21. Quando lemos que, “por um só homem, entrou o pecado no mundo”, devemos entender que a imputação do pecado entrou. E quando ouvimos falar da transgressão de Adão, devemos pensar na sua constituição como pecador por Deus. Isso porque, no pensamento de Paulo, a declaração da culpa de Adão por Deus é mais importante que o seu pecado. Se assim não o fosse, ele não teria afirmado que, “onde não há lei, o pecado não é levado em conta”.
Na Antiguidade, Santo Agostinho foi quem mais se elevou à compreensão da doutrina de Paulo sobre a imputação. É comum outros autores, inclusive os melhores, relacionarem a salvação às obras que acompanham a fé. Em Santo Agostinho, vemos outro discurso, o da soberania da graça. No entanto, apesar de sua elevada importância para a doutrina da graça, Agostinho escorregou num erro de tradução muito comum em sua época, ao criar sua doutrina do pecado original. Esse erro consistia em interpretar Romanos 5:12 como se “num só homem" o pecado tivesse entrado no mundo. Emil Brunner chama nossa atenção para esse antigo erro (BRUNNER, Emil. Romanos. São Paulo: Fonte, 2007. p. 74). A advertência é consistente, como constatamos ao ler a seguinte passagem do autor patrístico: "Os pecados de origem são chamados alheios porque cada um os herda de seus pais, mas, não sem motivo, são chamados também nossos, porque, como diz o Apóstolo, nele todos pecaram (Rm 5:12)" (HIPONA, Agostinho de. A correção e a graça. In A graça (II). 2ª ed., São Paulo: Paulus, 2002. Cap. VI, 9. p. 92). Agostinho diz: "Nele", isto é, em Adão, "todos pecaram", pois era o que se lia em muitos códices à sua época.
Pelo menos desde Calvino, o erro de tradução foi sanado. Hoje lemos nas nossas Bíblias: “Assim como por um só homem entrou o pecado no mundo e pelo pecado a morte”. Se há, pois, pecado original, no sentido de uma transgressão primeira e determinante para a série de todos os outros pecados, ela ocorreu por Adão, não em Adão. A diferença entre essas alternativas é a teologia da hereditariedade do pecado. "Em Adão" foi tomado, por Santo Agostinho, como prova de que o pecado de todos estava contido no de Adão e apenas se transmitiu, como herança, aos seus descendentes.
Essa ideia foi reforçada pelo modo peculiar como o homem antigo entendia a hereditariedade. Para ele, hereditário era algo que estava no pai e era integralmente transmitido ao filho, sob forma modificada. De fato, ao passar do pai para o filho, a característica hereditária reduzia-se, pois o filho é menor do que o pai e recebe a característica paterna num estado reduzido. Para exprimi-lo na linguagem filosófica da época, era como se a característica estivesse em ato no pai e em ato ou potência no filho. Como se os olhos azuis ou castanhos, para darmos um exemplo, inteiramente formados no pai, se apresentassem em estado potencial no embrião humano e no recém-nascido, posto que nem todos os filhos o desenvolvem.
Prestemos, porém, atenção ao fato de que a hereditariedade, como concebida na Antiguidade, era pura participação. Era o estar de uma mesma coisa em outra. Até porque o ato e a potência eram considerados estados da mesma coisa.
Daí o erro de tradução de Romanos 5:12 ter sido tão importante para o desenvolvimento da doutrina do pecado original de Santo Agostinho. Entendeu, esse teólogo, que o versículo afirma que o pecado do mundo todo estava contido em germe no de Adão. Claro que, se Agostinho tivesse recebido outra ideia de hereditariedade, sua doutrina do pecado original teria sido bastante distinta. Mas, como depende dessas concepções, ela se tornou a doutrina da desobediência potencial, latente, embrionária, que nem por isso é menos desobediência, pois tem a mesma essência da de Adão.
A transmissão do pecado original de Adão, como concebida por Santo Agostinho, é pouco compatível com a doutrina de Paulo em Romanos 5, que é a da imputação. A hereditariedade é um processo natural; a imputação, algo não natural, principalmente quando aplicada a Deus. Por isso, nenhuma transgressão herdada pode ou precisa ser declarada pecaminosa.
Precisamos entender a doutrina do pecado original em termos de imputação mais que de hereditariedade, se quisermos adaptá-la ao pensamento de Paulo. Para fazermos isso, afastando-nos o menos possível da formulação da doutrina em questão, ao longo da História da Igreja, o melhor caminho é entender o pecado original como algo relacionado ao mandamento de Deus e não à hereditariedade. Esse pecado transmite-se de pai a filho não porque seja rigorosamente hereditário, mas porque o mandamento dado no Jardim do Éden permanece em vigor para todos os homens, o que nos remete a uma transgressão de conteúdo moral que não se confunde com o comer literal de um fruto.
Em meu livro sobre a história em Gênesis, identifiquei esse pecado como o homicídio. É o que está implícito em João 5:44, onde lemos que "o Diabo foi homicida desde o princípio". No contexto do primeiro século, a declaração nos remete ao relato de Gênesis 3 (e somente a ele), no qual a serpente levou o homem a pecar. O verbo no passado não aponta para uma ação apenas planejada ou iniciada, porém não concluída. Aponta, ao contrário, para uma ação consumada. Indica, portanto, que o Diabo foi a causa de um homicídio cometido, em Gênesis 3, o que pode ser entendido como se a realidade por trás da ação simbólica de comer o fruto fosse exatamente esse crime.
Demonstrei esse mesmo fato com muitos outros argumentos, na obra citada acima. Porém, o verso de João basta para nos transmitir, ao menos, uma noção primeira de que o pecado original pode ter sido a violação específica de um mandamento também específico, que nunca foi revogado. Como a imputação do pecado baseia-se no preceito de Deus, a vigência contínua do primeiro mandamento de Gênesis 2:17 até o dia de hoje basta para entendermos por que a culpabilidade de Adão é imputada a todos os homens. A imputação geral não é uma arbitrariedade: decorre da simples inversão da afirmativa de que "onde não há lei, não há transgressão", isto é, onde há mandamento, há também transgressão.

Se as ideias de herança natural e de imputação são incompatíveis, a opção mais acertada é a que se faz pela imputação. O motivo está no restante do versículo 5:12: “o pecado passou a todos os homens, porque todos pecaram”. Não passou a todos, porque todos o herdaram, mas porque todos pecaram. Cada um incidiu no pecado por culpa própria ou, em outras palavras, porque essa culpa lhe foi imputada.
A transmissão hereditária prescinde, ao mesmo tempo, do pecado efetivo e da sua imputação. É uma expressão mutilada do que Paulo afirmou sobre Adão. Em Romanos 5, ele retrocedeu a Adão, a fim de encontrar um ponto fixo e final para a série de imputações de pecados. Seria absurdo identificar esse ponto com a transmissão hereditária do pecado, pois isso transformaria a série pecaminosa em herança natural.
Paulo pensa em três coisas, em Romanos 5:12: o ato inicial da série (a transgressão de Adão), a reprodução desse ato, de modo a constituir a série (“porque todos pecaram”), e a imputação divina. Nem o segundo, nem o terceiro elos dessa cadeia podem ser compreendidos, se a doutrina clássica do pecado original for tomada em todos os seus elementos. A herança do pecado exclui a necessidade dos pecados de todos os homens. E é claro que, se os exclui, não há o que imputar aos homens, sob esse ponto de vista.
Tudo isso está claramente consignado em Romanos 5:12-21. É consequência da afirmativa do capítulo 4 de que não há só justiça imputada, mas também pecado. Porém, o objetivo maior de Romanos não é salientar o aspecto negativo da imputação. Assim como, no capítulo 4, a imputação do pecado é mencionada (“Bem-aventurado o homem a quem Deus não imputa pecado”), mas dela logo se passa à questão da justiça, no 5, Adão é citado como mero contraste a Cristo. Ele é o paradigma da imputação do pecado, que tem por objetivo realçar que Cristo é o paradigma da imputação da justiça. Este, o ponto nodal do capítulo e de todo o livro de Romanos.
Algo curioso ocorre, porém, quando Paulo passa de Adão a Cristo. Vimos que, na série pecaminosa, três coisas são apontadas como fundamentais: o ato inicial de Adão, a reprodução dele por todos os homens e a imputação de Deus. Na série da justiça (pois ela também é uma série), vemos só duas coisas: o ato inicial de Cristo e a imputação divina. O ponto intermediário está ausente, pois os atos dos crentes não reproduzem a justiça inerente à obra de Cristo. Eles não são atos inerentemente justos. Só um ato de Deus o pode ser. Embora tenha sofrido e morrido como homem, Cristo caminhou para a cruz com a fortaleza de Deus, o que constituiu um ato inerentemente justo.
Por isso, Paulo não se cansa de mostrar que o ato de Adão e o de Cristo estão em paralelo, são semelhantes, mas a semelhança entre eles é imperfeita. “Não é assim o dom gratuito como a ofensa” (Rm 5:15). Uma dessemelhança bem radical se estabelece entre o ato de Cristo na cruz e a ofensa de Adão. Por quê? “Porque, se pela ofensa de um morreram muitos, muito mais a graça de Deus, e o dom pela graça de um só homem, Jesus Cristo, foi abundante sobre muitos” (Rm 5:15).
A imputação da justiça é “muito mais” que a do pecado. Muito mais o quê? Muito mais intensa, forte, positiva, gloriosa e mil outras coisas. Sim, há duas imputações, mas um desnível vigora entre elas. A imputação positiva é muito mais forte do que a negativa.
Paulo continua a escrever e a ser implacável: “Se pela ofensa de um, e por meio de um só, reinou a morte, muito mais os que recebem a abundância da graça e o dom da justiça, reinarão em vida por meio de um só, a saber, Jesus Cristo” (Rm 5:17). De novo, as palavras muito mais aparecem. E de novo, aparece a alusão de que a imputação da justiça é muito mais eficaz que a do pecado.
Se tivéssemos apenas Romanos 4, a imputação da justiça ficaria sem um fundamento último. Deus imputa a justiça aos que creem em Cristo, mas por que o faz? A resposta de Paulo é que o faz, porque a série de imputações reporta-se a um ponto final e absolutamente firme. A uma rocha em que seu alicerce é lançado. Deus nos imputa justiça, pois a imputou antes a Cristo. Esse é o porquê definitivo, imóvel e imutável da série de imputações positivas.
Não haveria a série de pecados, sem a transgressão de Adão. Deus poderia dar mandamentos aos filhos de Adão, e estes poderiam transgredi-los. Mas, em tal caso, teríamos transgressões desconexas, não em série. Romanos ensina que as transgressões humanas formam uma série, pois se reportam a Adão, cuja transgressão é paradigmática, pois fere não o conteúdo de um mandamento, mas a autoridade com que foi dado.
A serpente perguntou à mulher: “É assim que Deus disse: Não comereis de toda árvore do jardim?” (Gn 3:1). Ao lermos essa pergunta, pensamos no conteúdo da palavra de Deus a Adão, invertido pela serpente. Lembramos também que a mulher corrigiu a inversão, ao responder à serpente: “Do fruto das árvores do jardim podemos comer” (Gn 3:2). E ao completar: “Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Deus: dele não comereis” (Gn 3:3).
Porém, a serpente não estava preocupada com o conteúdo do mandamento de Deus: se ele ordenara ou não comer livremente das árvores do jardim e se mandara o homem comer ou se abster de comer do fruto proibido. A serpente não tinha em vista essas coisas, mas a autoridade com que o mandamento havia sido dado. Ela desejava subverter essa autoridade. Por isso, desviou a conversa para a consequência da transgressão: “É certo que não morrereis [se comerdes do fruto proibido]” (Gn 3:4). Queria, com isso, não só que o homem e a mulher comessem da árvore do conhecimento, mas direcionar esse ato pecaminoso contra a autoridade de Deus, que havia dito: “No dia em que dela comeres, certamente morrerás” (Gn 2:17). A serpente queria mudar a fé da mulher e do homem para que comessem com o objetivo de se erguerem contra Deus.
Por se revestir dessas características, a transgressão de Adão é paradigmática. Não consiste no ataque ao conteúdo de um mandamento, mas à autoridade com que foi dado por Deus. Por isso, a obediência de Cristo tampouco é o cumprimento do conteúdo de um mandamento, mas a sua submissão direta e perfeita a Deus. Sequer havia um mandamento para que Cristo abraçasse a cruz, quando ele caminhou para ela. As profecias que descrevem a morte de Cristo não são mandamentos. Algumas referem-se à morte vicária. Não a colocam, porém, numa cruz. Ao menos não de modo claro. “Maldito aquele que é pendurado no madeiro” não é uma alusão clara à cruz romana. Menos ainda é um mandamento. Por isso, Cristo, Senhor, orou: “Se possível, passa de mim esse cálice” (Lc 22:42).
A morte de Cristo foi um ato de perfeita obediência. Mas obediência perfeita não é a que se dirige ao conteúdo de um mandamento, mas ao conteúdo de uma vontade, no caso a de Deus. Cristo ofereceu-se em sacrifício para fazer a vontade de Deus, que o enviara ao mundo para salvá-lo. Não havia muitas maneiras de Deus ou de Cristo salvarem o mundo. Na verdade, havia uma só: Deus devia oferecer-se como satisfação pelos pecados da humanidade inteira. No século XI, Santo Anselmo ensinou que a satisfação por um erro exige o oferecimento de algo maior do que ele. Se todos pecaram, e o pecado poluiu o Universo inteiro, como lemos em Colossenses 1:20, era preciso que a satisfação se realizasse por algo maior do que a humanidade e o Universo, a saber: pelo Filho de Deus.
Pelo Espírito eterno, então, Cristo ofereceu-se sem mácula a Deus (Hb 9:14), a fim de realizar a sua vontade. “Por isso, ao entrar no mundo, diz [...] Eis aqui estou (no rolo do livro está escrito a meu respeito) para fazer, ó Deus, a tua vontade” (Hb 10:5,7).
Adão falhou em cumprir a vontade de Deus. Pecou, por desviar-se dela e ingressar no jogo de interpretações do mandamento de Deus que lemos em Gênesis 3. Ganhou a escaramuça, quando Eva corrigiu a interpretação do mandamento de Deus pela serpente, mas perdeu a batalha decisiva: a da obediência a Deus.
Cristo, porém, é o último Adão (1 Co 15:45), por ser o Antiadão. Ser o último e o anti é, nesse caso, guardar obediência não à relatividade de uma interpretação, mas ao caráter absoluto de uma vontade, da única vontade soberana: a de Deus.

De Escravos a Servos

A palavra grega doulos (escravo) abunda na Epístola aos Romanos. Porém, nunca é empregada no sentido comum, para indicar o escravo literal, o homem desprovido de liberdade. Pelo contrário, nas passagens em que aparece, doulos é o escravo ou o servo espiritual. Esse é o caso dos versículos 6:6,16-20,22.
Em 6:6, o lado negativo da escravidão espiritual é mencionado: “Sabendo isto, que foi crucificado com ele o nosso velho homem, para que o corpo do pecado seja destruído, e não sirvamos o pecado como escravos”. Servir como escravo é uma tradução bem apropriada do pensamento do apóstolo. Paulo se refere à mais dura relação dentre todas as que o homem pode manter, sobre a Terra: a escravidão. Para entendermos o que ele pensa, porém, precisamos retornar aos Salmos e ao Livro de Gênesis.
A Teologia e a Antropologia formulam uma mesma questão. Na Bíblia, vemos a questão expressa no oitavo salmo: "Que é o homem para que dele te lembres?" (Sl 8:4). A pergunta é formulada em tom solene, por não ter resposta fácil. O homem é um mistério. Olhemos para a natureza: por que a espécie humana e só ela elevou-se ao fastígio, em toda a criação? Por que o homem e ele somente foi coroado de honra e de glória, quando Deus lhe submeteu “ovelhas e bois, todos, e também os animais do campo” (Sl 8:7)?
Gênesis parece indicar que o homem é vocacionado para o poder, não para um poder que se exerce sobre o semelhante, sobre o outro homem, pois não vemos essa lição expressa no primeiro livro da Bíblia. Tampouco lhe é dado poder sobre os fenômenos naturais, mas sobre as criaturas vivas que Deus criou. Não apenas sobre as criaturas que se chamam amigos do homem, como o boi e a ovelha, mas também sobre as selvagens.
Sabemos, porém, que o homem decaiu desse estado e, ao fazê-lo, perdeu as condições objetivas que antes possuía para exercer ascendência sobre as criaturas vivas. Assim como foi criado para lavrar a terra, que veio a lhe produzir cardos e espinhos, do mesmo modo, o homem foi criado para dominar os seres cuja natureza os dispõe abaixo dele, mas esse domínio se fez sobremaneira difícil depois da queda.
Por que se tornou difícil? A razão não parece estar na indocilidade dos seres vivos, mas na corrupção da faculdade humana da dominação, isto é, no poder do homem. Antes da queda, o homem devia alimentar-se somente de vegetais: “Eis que vos tenho dado todas as ervas que dão semente e se acham na superfície de toda a terra, e todas as árvores em que há fruto que dê semente; isso vos será para mantimento" (Gn 1:29). O homem não agredia, portanto, os animais, nem derramava o seu sangue.
Da mesma forma, no Éden, ele podia comer livremente de toda árvore, exceto uma (Gn 2:16-17; 3:2-4). Não se diz que comesse animais. Mas, quando comeu da árvore proibida, está implícito que o homem perdeu o poder que possuía de dominar sem derramamento de sangue. Seu poder passou, então, a exercer-se pela força. Paulo nos informa, por isso, que a natureza geme e suporta angústias até agora, vale dizer, desde a queda (8:22). Ele não se refere às árvores, mas aos animais, pois sobre eles é que Deus mandou o homem exercer o seu soft power.
A perda do poder de dominar sem oprimir está, porém, retratada em Gênesis como exemplo de outros acontecimentos semelhantes, não como caso isolado. Quando olhamos para as palavras de Deus à serpente, à mulher e ao homem, após a queda (Gn 3:15-24), descobrimos quantas outras coisas a estirpe de Adão perdeu com a queda. Perdeu a relação que tinha com a serpente, o bom parto, que foi substituído pelo mais penoso, a liberdade da mulher, a fertilidade da terra, o acesso à árvore da vida.
Devemos entender, porém, que esses são apenas outros tantos exemplos das perdas que o homem sofreu com a queda. Assim como não se esgota na corrupção da harmonia com os animais, a extensão das perdas humanas tampouco se abrange nesses outros exemplos examinados. A lição de Gênesis parece ser de que o homem perdeu ainda muitas outras coisas além das que já mencionamos com a queda.
A grande questão antropológica que Gênesis 3 coloca, portanto, é: que se torna aquele ser que perde tantas coisas? Na concepção do homem antigo, a resposta à pergunta é clara: ele se torna um escravo. Só o escravo é alguém destituído de tudo, como Adão após pecar. Gênesis mostra, portanto, que Adão entrou no paraíso como rei e saiu como escravo. Lembra também que, de todas as perdas que um escravo suporta, as maiores são a da liberdade e a da personalidade.
No Direito Romano, o escravo era res (coisa), não persona (pessoa). Não tinha liberdade, nem personalidade. Por isso, seu dono podia surrá-lo, vendê-lo e até matá-lo, o que não ocorria com pouca frequência, nem com muito escândalo. A antropologia bíblica, se existe mesmo uma, como acredito, ensina-nos que essa é a condição do homem, depois da queda. Adão tornou-se um ser depauperado até mesmo dos atributos da sua personalidade. Um verdadeiro nada.
Sabemos, porém, que, ao lado da escravidão, os antigos conheciam outra relação que envolvia desproporção de poder entre duas partes: a servidão. Em grego, tanto a escravidão como a servidão se exprimiam pela mesma palavra, mas eram muito distintas.
O fato de a relação servil não ser designada por um termo específico deve inspirar-nos a devida reflexão, pois indica a ausência da necessidade de diferenciar criteriosamente as relações mencionadas. Se necessidade houvesse de discriminação, uma palavra específica para a servidão teria sido criada, mas não o foi. Por quê? Penso que a resposta que a História fornece é de que, embora a servidão existisse, não era tão comum quanto a escravidão. Sabemos que o modo de produção predominante no Império Romano era o escravagista. Nesse contexto, o avassalamento do servo a um senhor ainda esperava para se tornar predominante, o que só viria a ocorrer na Idade Média.
Porém, ainda assim, a servidão não estava ausente. Em A origem da família, da propriedade privada e do Estado, Engels mostrou que ela já havia fincado raízes, no mundo romano, havia algum tempo, quando Paulo escreveu Romanos. Só não era a relação mais importante, pois não dava suporte à técnica produtiva. Essa função cabia à escravidão.
Porém, como já vimos, a servidão era distinta da escravidão. Diferentemente do escravo, o servo era considerado pessoa e usufruía de certa liberdade. Não podia ser preso, surrado, vendido ou morto, a não ser em casos especiais. Por meio dessas diferenças, percebemos que o pecador descrito por Paulo, em Romanos, corresponde ao escravo, e o homem liberto do pecado, ao servo.
Por isso, quando se declara servo de Jesus Cristo (1:1), devemos compreender que Paulo passa do caso comum de doulos (do escravo) ao caso menos comum (do servo). Isso está claro no décimo-sexto versículo: “Não sabeis que daquele a quem vos ofereceis como servos para obediência, desse mesmo a quem obedeceis sois servos?” Paulo não diz que somos subjugados por aquele de quem nos tornamos servos. Isso seria próprio da escravidão. Afirma, ao contrário, que nos oferecemos livremente para sermos servos.
Infelizmente, alguns mestres, na ânsia ou premência de ensinar novidades, insistem em se referir a esse segundo sentido de doulos como uma escravidão (a Deus ou a Cristo). Esse é um desvio do ensinamento de Paulo, pois, como vimos, o escravo era destituído não só de liberdade, mas até de personalidade, o que não é próprio do cristão. O fato de se submeter a Deus não despoja o homem seja da sua liberdade, seja da sua personalidade. Não o torna res, coisa. Por isso, o cristão deve ser considerado o que de fato é: servo, não escravo, de Deus.
Em Filipenses 2:6-7, vemos que a condição de servo que Paulo se atribuiu em Romanos 1:1 foi assumida pelo Filho de Deus, Jesus Cristo ao encarnar-se: “pois ele, subsistindo em forma de Deus não julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens”. Jesus foi o primeiro servo de Deus. Antes dele, só existiam escravos do pecado e (por que não dizer?) de Deus. O homem que se sobrecarregava de obrigações legais para servir a Deus tornava-se escravo de Deus. E, por não as cumprir, fazia-se escravo também do pecado (Jo 8:34).
Na passagem citada de Filipenses, porém, a palavra servo é empregada de um modo tão essencial à pessoa encarnada de Cristo que parece indicar a condição essencial do homem. Não sua antiga condição, que Gênesis descreve como uma escravidão, mas uma condição inteiramente nova. O fato de Cristo ter-se esvaziado da igualdade com Deus e se ter feito servo não ficou sem consequências. Pelo contrário, Cristo Jesus se tornou o primeiro de muitos servos de Deus. Criou, em si, uma nova condição humana, que é indicada pelo segundo significado da palavra doulos.
Em 1ª aos Coríntios 15:45, Cristo é denominado o último Adão. E de fato o foi, já que pôs fim à estirpe adâmica. Porém, raras vezes é lembrado que, em 1ª aos Coríntios 15:47, ele é também chamado o segundo homem. Recebe esse título, não apenas porque, em toda a saga da humanidade, houve dois e somente dois homens (Adão e Cristo), mas também porque houve duas e somente duas condições humanas: a de Adão e a de Cristo. A primeira foi a escravidão ao pecado, a outra é a servidão a Deus.

A diferença entre servo e escravo é bem nítida. Mais do que isso, ela é crucial para a compreensão da mensagem do Novo Testamento. Não é vontade de Deus submeter a si seres destituídos de personalidade. Deus não quer coisas, mas pessoas. Por isso, nos faz e nos fez seus servos, não escravos.
Nada disso é mero jogo de palavras. A palavra doulos aponta o próprio núcleo da relação que temos com Deus no Novo Testamento. Esse núcleo é a submissão ao jugo de Cristo. É a sujeição de uma vontade a outra. É impossível acentuar quanto isso é crucial. Sem essa sujeição não há reino de Deus, pois ele não reina sobre quem quer que seja. Daí Romanos 6 e 7. Mas, para isso, é preciso existir vontade e personalidade. Coisas não se submetem: são apropriadas. 
O grau e a profundidade dessa submissão são transmitidos nas seguintes palavras de Martinho Lutero: “Aqueles, porém, que verdadeiramente amam a Deus com um amor filial e com amizade, que não têm a sua origem na natureza, mas se originam exclusivamente no Espírito Santo [...] se conformam livremente com toda a vontade de Deus, mesmo com o inferno e a morte eterna, bastando que assim Deus o queira, que a sua vontade se cumpra plenamente – é dessa forma intensa que eles deixam de buscar qualquer coisa que seja deles próprios. E, não obstante, assim como se conformam, incondicionalmente, dessa maneira, à vontade de Deus, também é impossível que permaneçam no inferno. É impossível que esteja fora de Deus aquele que se entregou integralmente à vontade de Deus” (LUTERO, Martinho. A Epístola aos Romanos. In Martinho Lutero – Obras selecionadas. São Leopoldo: Sinodal/Concórdia, 2003. Vol. 8, p. 134).
Não por outro motivo, fomos batizados na morte de Cristo (6:3-4). Cristo morreu como o último Adão, ressuscitou como o segundo homem. Por isso, o batismo é a sepultura de Adão, de todos os Adões; e a ressurreição é uma maternidade de novas criaturas forjadas à imagem do segundo homem.
Paulo escreve: “como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai, assim também andemos nós em novidade de vida” (6:4). A que novidade ele se refere? À que, no verso seguinte,  chama “semelhança da ressurreição de Cristo” (6:5). A declaração solene que Paulo faz sobre essa semelhança deveria bastar contra as alegações dos que afirmam que experimentamos a realidade da ressurreição de Jesus. Paulo não o afirma. A novidade de vida a que ele alude é a semelhança, o esboço simbólico, da ressurreição do Filho de Deus. O que passa disso é mística alucinada. É pajelança hermenêutica.
O mesmo se aplica ao batismo: Paulo não afirma que morremos, literalmente, com Cristo, pelo batismo ou por qualquer outra experiência cristã, sacramental ou espiritual. Declara que fomos unidos a ele na semelhança da sua morte. São suas palavras: “Se fomos unidos a ele na semelhança da sua morte, certamente o seremos também na semelhança da sua ressurreição” (6:5). Não experimentamos, portanto, a realidade, mas a semelhança da morte de Cristo.
A semelhança seja da morte, seja da ressurreição é um estado em que ingressamos pela eficácia da declaração divina. Unimo-nos a Cristo na semelhança da sua morte, porque Deus nos declara mortos com ele, não literalmente, mas no que diz respeito à possibilidade de retornarmos ao pecado. E unimo-nos a ele na semelhança da sua ressurreição, pois Deus declara o nosso direito a uma vida que não transcorre à revelia de Deus, mas em união com ele.
Que união é essa? Não é a que se convencionou denominar união orgânica. É antes um nunca-ser-abandonado-por-Deus. É a realização plena do vigésimo-terceiro salmo: “Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal nenhum, porque tu estás comigo” (Sl 23:4). Esse salmo é, sabidamente, o Monte Everest do Antigo Testamento. E  o seu quarto versículo é como o cimo do monte. Eles o são, aliás, não doutrinariamente, mas por indicarem uma experiência que não é própria do Antigo Testamento e sim do Novo. Salmo 23 é o Novo Testamento no Antigo; e o versículo 4 dele é Romanos 6 no Saltério!
A Teologia da Libertação, cuja influência foi determinante na transformação cultural da América Latina, defende não só uma opção pelo pobre, mas que a condição essencial do cristão é de pobreza material e espiritual. Embora haja um mal-entendido nessa afirmação, posso aceitar a pobreza (talvez seja melhor dizer carência) a que ela se refere como elemento intrínseco da servidão em que Cristo nos introduziu.
A carência não está menos implícita em 6:16 do que em Filipenses 2:6-7: “Não sabeis que aquele a quem vos ofereceis como servos para obediência, desse mesmo a quem obedeceis sois servos, seja do pecado para a morte, ou da obediência para a justiça?” (6:16). A servidão aí aludida pressupõe um despojamento tanto espiritual como material. Despojamento espiritual porque Cristo esvaziou-se da igualdade com Deus, e devemos esvaziar-nos das coisas da nossa velha condição. Despojamento material porque toda servidão envolve carência de recursos indispensáveis para viver em condição de abundância.
Mais uma vez, vemos isso expresso no Antigo Testamento, cujos profetas foram íntimos do despojamento material. Alguns tiveram abundância de bens por certo tempo, porém, quando isso ocorreu, faltaram-lhes as condições necessárias para usufruir perenemente daqueles bens. De modo que, quando os bens abundavam, o uso que o homem de Deus fazia deles estava sujeito a sobressaltos. E quando não estava sujeito a sobressaltos, os bens não eram abundantes.
Essa carência não era exatamente pobreza, pois nem todos os servos de Deus, no Antigo Testamento, foram pobres. Porém, todos foram carentes, já que ninguém teve a posse das condições necessárias para usufruir de modo tranquilo e constante do que possuía, fosse pouco, fosse muito. Pelo contrário, nas circunstâncias de vida deles, sempre reinaram a instabilidade e a insegurança.
Não creio que o apóstolo, que exortou os romanos a apresentarem não a sua alma, mas o seu corpo a Deus como instrumento de justiça (6:13,19), pretendesse excluir da servidão a Deus o elemento material da carência, que lhe era intrínseco no Antigo Testamento. Podemos ter ou não ter, ter pouco ou ter muito: em todos os casos, é nosso dever tomar o pouco ou o muito como condição precária, isto é, transitória de vida. É nosso dever ter consciência de que a precariedade não é uma tendência ao muito, mas ao pouco. Não é tendência a ganhar, mas a perder.
Carência e precariedade, porém, foram somente o princípio da experiência que Cristo teve da servidão. Filipenses prossegue: “e, reconhecido em figura humana, a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz” (Fp 2:7-8). O que principiou como carência e precariedade consumou-se como morte e morte de cruz.
Por isso, na epístola tão frequentemente esquecida que é 2ª aos Coríntios, lemos que “Cristo foi crucificado em fraqueza”. E que “nós também somos fracos nele” (2 Co 13:4). Pode-se pensar que, na cruz, só os fracos são levantados. Mas quem poderia esperar que Paulo descrevesse a condição apostólica como uma fraqueza? Não são os apóstolos gloriosos, sábios, santos e impolutos? Não são eles poderosos em Deus? Sim, mas, apesar disso tudo e mais intensamente do que tudo isso, Paulo afirma que eles são fracos em Cristo. Poderia uma afirmação mais insólita ser formulada no Novo Testamento?
A servidão se consuma, portanto, em quatro passos: carência, precariedade, cruz e morte. Não nos é dado retirar qualquer deles, para aliviar a condição cristã do seu peso inerente. Nela, ganhar é realmente perder. É sofrer a carência, a precariedade, a cruz e a morte em alto grau, como Cristo as sofreu em primeiro lugar, e em grau altíssimo.