O trânsito de São Paulo estava terrível. Uma hora para ir a uma reunião, quase duas para voltar. Normalmente levo meia hora para cada trajeto. Para complicar, após 25 anos de exercício profissional, não consigo receber horas in itinere. Só me restou contentar-me com o notíciário. No centro de todos eles, estava o caso do pastor Feliciano. Apresentadores, analistas políticos, entrevistados em geral: cada qual acrescia a sua cor à transfiguração midiática dos fatos.
E não pensem que o interesse da mídia falada é maior que o das outras. Os jornais impressos que leio diariamente não têm atribuído menor importância ao caso. Notícias, comentários, colunas, análises pululam nas suas páginas, sobre o pastor investido de responsabilidade pelos direitos humanos. Hoje, coube a Silas Malafaia sair como um cruzado em defesa de Feliciano, na página 3 de um deles. Dá para entender: é sua imagem e semelhança. São pastores da Assembleia de Deus. Não são exatamente neopentecostais, mas pregam a teologia da prosperidade característica desse segmento evangélico.
Durante a semana, conversei com um Senador, cliente do nosso Escritório, sobre assuntos jurídicos. Ao terminarmos, prolonguei a conversa com a pergunta que não queria calar: “E o pastor Feliciano?” A resposta veio pronta: “Aqui, só se fala disso”. Nem poderia ser diferente. Poucos episódios renderam tantas dificuldades ao exercício normal do Poder Legislativo no país, desde o último fechamento do Congresso, quanto as aventuras do pastor. A Comissão de Direitos Humanos da Câmara, cuja presidência foi assumida por ele, passou a funcionar com portas fechadas, pois as manifestações de apoio e repúdio a Feliciano já não permitiam que as suas sessões transcorressem.
É, pois, fato consumado: mal havíamos esquecido os gregos do Congresso, os Demóstenes e os Protógenes, e um deputado com conhecimentos não só de grego, mas também de hebraico arrebata-lhes a cena. Sob todos os aspectos, veem-se vantagens: mais línguas, maior diversidade de assuntos, temperatura mais alta nos debates democráticos. Claro que o tempo de exposição à mídia, para o bem ou para o mal, quase sempre, tem o místico condão de transformar em votos o banho de luz a que os expostos se submetem. No caso atual, o exposto é o decifrador de etimologia hebraica, Feliciano.
E nesse clima de instabilidade um tanto sem precedentes, uma das frases sobre o pastor, que mais se ouve de manifestantes e não manifestantes, evangélicos e não evangélicos, analistas e não analistas é: “O pastor não me representa” ou “Ele não representa os direitos humanos”. É compreensível que os não evangélicos assim se manifestem. Mas chama a atenção a frequência com que as frases têm ressoado, no mundo evangélico. Hoje mesmo, um pedido de afastamento do pastor, assinado por 150 líderes de igrejas, foi apresentado à Câmara. “Feliciano não me representa” também é a frase que mais aparece, numa interminável série de comentários do caso, na Internet. Pergunto-me em que medida a frase denuncia correntes de opinião conflitantes sobre questões de costumes e até que ponto é reflexo de um desencanto mais amplo com a classe política.
Do ponto de vista jurídico, um vereador, um deputado ou um senador não representam indivíduos, mas a nação. Por isso, não podem ser removidos dos cargos que ocupam, por iniciativa dos eleitores, como Hans Kelsen um dia ensinou: “Os membros do parlamento, em especial nas democracias modernas, não são, via de regra, juridicamente responsáveis para com o seu eleitorado; eles não podem ser destituídos pelo seu eleitorado [...] O seu mandato legislativo não possui o caráter de um mandat impératif, como os franceses denominam a função de um deputado eleito, caso ele seja juridicamente obrigado a executar a vontade dos seus eleitores” (KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 415).
Assim, os que bradam “Feliciano não me representa” demandam uma espécie de representação que não é realmente possível. Nenhuma autoridade eleita representa setores do eleitorado ou mesmo o eleitorado todo. Cada qual representa a nação. Isso é ainda mais verdadeiro, quando se trata do Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara. Ao exercer esse cargo, o deputado, seja quem for, não representa os evangélicos. Muito menos esta ou aquela Igreja. Representa a nação, na sua estonteante diversidade de grupos, raças, crenças, costumes e instituições.
Mas, exatamente por isso, é vedado ao Presidente da Comissão de Direitos Humanos adotar posição preconceituosa ou discriminatória contra aqueles grupos, raças, costumes e instituições. Tanto mais quanto essa posição for genérica, dirigida a coletividades inteiras ou a práticas abstratamente consideradas. Claro que, em consequência disso, tampouco se deve admitir que a presidência da Comissão seja exercida por pessoa que, no passado, assumiu notórias posturas preconceituosas, como é o caso de Feliciano.
No entanto, a frase “ele não me representa” não merece ser desqualificada. Embora imprecisa, ela é muito significativa, do ponto de vista evangélico. Se não nos diz muita coisa sobre representação política, ela toca em questões profundas do pensamento cristão, assim como: Que significa ser um cristão evangélico? Que relação entre os evangélicos e a sociedade a política deve refletir?
A primeira pergunta centra-se no que se pode denominar identidade evangélica. Não se discute que o ponto nuclear dessa identidade é a mensagem de salvação de Jesus Cristo. Sempre houve controvérsias sobre como essa mensagem deve ser interpretada. Mas, independentemente disso, a crença nas proposições simples e centrais do evangelho basta como sempre bastou para definir o que significa alguém ser evangélico. O católico crê nessas proposições, mas só na medida em que a Igreja as anuncia. Isso porque, no Catolicismo, o argumento da autoridade define o conteúdo das proposições nucleares de fé, o que não ocorre no mundo protestante, em que cabe à consciência de cada fiel defini-lo, a fim de abraçar as proposições pela fé.
Porém, ao mesmo tempo em que leva a remoer questões de identidade, o caso do pastor, como já dito, tem propiciado ocasião para o mundo evangélico se perguntar qual há de ser a relação mais adequada entre ele e a sociedade brasileira. Essa segunda pergunta envolve muito mais coisas do que a primeira. Abrange problemas como o caráter laico do Estado, a participação dos cristãos na política e o valor que o evangelho atribui às várias vertentes da secularidade. Para citar algumas questões em que o problema se desdobra, a homossexualidade, como fato biológico ou opção, tabus protestantes tradicionais, a exemplo do sexo antes do casamento, o tratamento a ser dispensado ao divórcio, o papel social da mulher, o próprio racismo estão implicados no problema da sociedade civil e o meio evangélico.
O fato de esses temas serem discutidos, nas igrejas, já mostra que estão longe de ser pacíficos, principalmente em seus desdobramentos práticos. Daí o desconforto que o caso Feliciano causou. Daí a divisão, em vez de apoio unânime, que despertou. E o desnível citado, entre dogma e prática, aponta para outro ainda mais fundamental, entre dogma e crença. O fato de as pessoas cogitarem se afastar do dogma por motivos práticos já indica que ele não corresponde, exatamente, à crença delas. Uma diferença importante existe entre os dois, nas igrejas evangélicas.
Isso não significa que o dogma não se revista de importância. Inquestionável é que ele exerce uma enorme força uniformizadora sobre as consciências. Porém, hoje, ele já não o faz com a mesma eficácia de ontem. O povo simples, no interior das igrejas evangélicas (inclusive das neopentecostais), é capaz de administrar o desnível entre dogma e prática com equilíbrio e peculiar sabedoria. Ele sabe que foi a esta ou àquela igreja, arrastado por problemas práticos. Na contingência de optar entre o dogma e a prática, escolhe portanto a última.
O dogma diz: os que não são evangélicos são Satanás, queira a palavra dizer diabo ou adversário. No entanto, a prática coloca o crente em contato com não evangélicos, nos quais ele não consegue enxergar Satanás algum. Se o contato com a pessoa se aprofundar, será questão de tempo para o evangélico vir a optar pelo juízo a respeito dela que a prática lhe ministrou, em prejuízo do dogma.
Exceto em momentos especiais, o que realmente importa, no meio cristão, é a crença e não o dogma. A crença que o evangélico substitui ao dogma, sempre que o faz ceder. Essa inflexão é o que mais orienta o cristão evangélico, quando tem de enfrentar as duras diferenças que subsistem entre ele e pessoas de outros segmentos da sociedade. Entre ele e o gay que não é evangélico. Entre ele e os que tem por devassos. Entre ele e o católico não praticante. Entre ele e o ateu. Entre ele e as autoridades. Claro que, em nenhum desses casos, a inflexão é perfeita, mas ela tende a se aperfeiçoar com o tempo e a experiência.
Por trás da inflexão que o povo evangélico pobre, mas rico em votos realiza, está a chamada teologia da prosperidade. A inflexão mais importante e a mais difícil de realizar continua a ser, para ele, a do dinheiro. Daí a importância que aquela teologia assumiu hoje em dia. Não é o caso de a negarmos, se possui tal justificação. Como os adeptos de uma doutrina radical da predestinação um dia forjaram a ética protestante para se adaptarem à sociedade capitalista e como a Igreja de Roma criou a sua doutrina social, para reduzir revoltas políticas à unidade possível, a teologia da prosperidade é a ferramenta que o neopentecostal utiliza não para enriquecer, mas para viver num mundo em que a abastança é um fato cada vez mais notório e imperioso. Não tenhamos dúvidas de que o enorme e sofrido povo que abraça essa teologia é sábio o bastante para torna-la funcional.
Calvino não foi um teólogo da prosperidade, mas ensinou que o Antigo Testamento inteiro apresenta a promessa da imortalidade, sob a alegoria da prosperidade terrena. Nas suas próprias palavras: “Nos tempos antigos, aprouve ao Senhor dirigir os pensamentos do seu povo e elevar as suas mentes à herança celestial [...] sob bênçãos terrenas, ao passo que, agora, o dom da vida futura é exposto mais claramente e de modo direto no evangelho” (CALVINO, Jean. Institutes of the Christian religion. In Great books of the western world. 2ª ed., Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1993. Vol. 20, Book Second, chapter XI, 1, p. 208).
A poética descrição das riquezas de Canaã, em Deuteronômio 8, fala-nos de certo tipo de prosperidade, assim como as bênçãos e maldições de Moisés, no limiar da boa terra, o fazem. De certa forma, há uma teologia de prosperidade desenvolvida, nas páginas do Antigo Testamento.
Só não podemos confundir essa prosperidade com riqueza. Israel não conheceu opulência, em qualquer etapa do Antigo Testamento. A riqueza proverbial dos judeus se fez com a Diáspora. É um dado tardio. Canaã era uma terra de riquezas, mas elas permaneceram no solo. Israel só foi capaz de extraí-las na medida necessária à sua subsistência. Por isso, no Antigo Testamento, a prosperidade nunca significou riqueza, abastança. Sempre teve o sentido de uma subsistência provida amplamente. Não tenho dúvidas de que, assim entendida, a teologia da prosperidade pode ter consistência interna.
Perguntarão: e os enganadores do povo, os maníacos, os criminosos arrancadores de dízimos? Devem ser resistidos, sempre que possível, e processados judicialmente, quando pegos, assim como políticos corruptos também o devem. Mas, do modo como a política não é uma atividade corrupta, a pregação da prosperidade tampouco o é. O princípio da prosperidade está inserido no Antigo Testamento. Não é uma aberração. A distância entre o inferno e o céu a que ele pode conduzir depende do que cada um se digna a fazer com ele.
Infelizmente, as versões da prosperidade que pastores como Feliciano pregam não se reduzem, nem se moldam com docilidade à Bíblia. Variam da pregação do sustento material sem carência à prédica entorpecente do enriquecimento por meio do dízimo. Quando o evangélico se questiona se Feliciano o representa ou não, a variação está mais implicada do que pode parecer. O povo neopentecostal, em particular, não pode ser entendido, à parte da teologia que lhe ressoa na mente e que, dia a dia, ele trata de transformar em sua crença.