domingo, 14 de abril de 2013

A Reforma Católica

Numa entrevista publicada ontem, o Presidente reeleito da Assembleia de Deus no Brasil, José Wellington Bezerra da Costa, declarou que sua Igreja está alinhada com a Católica, no tocante aos temas políticos e sociais do momento. E, quando perguntado se o uso da gestão empresarial pelo Vaticano não agravará os escândalos naquela Igreja, afirmou que o modelo empresarial é utilizado da mesma forma no meio católico e no protestante (Folha de S. Paulo. 13/04/13. p. A 12). Deu a entender, enfim, que a racionalidade econômica própria das empresas é uma exigência do tempo para as instituições eclesiásticas de maior porte.
Essas e outras posições de líderes evangélicos mostram quanto o fosso entre os mundos católico e protestante estreitou-se, nas últimas décadas. Por trás do estreitamento, está o fato de que a Igreja Católica permanece uma realidade fundamental, para si, para o mundo e até para o maior movimento de ruptura jamais ocorrido nas suas fileiras: a Reforma Protestante.
Infelizmente, a posição da Assembleia e da própria Igreja Católica ainda não é a regra, no meio protestante brasileiro, que permanece mais disposto a ressaltar suas diferenças em relação aos católicos do que a construir pontes sobre o fosso da divisão histórica. Sem mencionar os setores mais histéricos do Protestantismo, que não se contentam em ser diferentes e querem ser superdiferentes ou, simplesmente, super.
O maior aliado da reaproximação entre católicos e protestantes é a História, o passado comum, que transmitiu aos dois setores da Cristandade uma identidade única. Essa identidade pode ser descrita como a centralidade de Cristo, cuja força considerável, tanto no campo católico como no protestante, autoriza-nos a concluir que a questão mais importante do momento atual é a das raízes profundas da união entre católicos e protestantes e o modo como ela opera. Desses dados e somente deles, deriva o significado básico da presente era.
Não há como desenvolvermos uma demonstração exaustiva dos vínculos entre as igrejas cristãs do Ocidente (ou entre elas e as do Oriente), em poucas palavras. Porém, negar-me a demonstrar, de algum modo, esses vínculos seria pedir ao leitor que aceitasse uma premissa sem a entender. Farei, pois, referência a duas dobras do laço que mantém os segmentos católico e protestante ligados, num nível profundo. São essas dobras: a transmissão da mensagem evangélica e a posse da Bíblia. De fato, se o Protestantismo é evangélico, não poderia existir sem o evangelho e os livros que o prepararam (o Antigo Testamento). Mas o Protestantismo deve esses bens, por inteiro, à Igreja Católica. Daí sua ligação visceral com ela.
Partamos, pois, da verdade evidente do débito dos protestantes para com a Igreja Católica, ao indagarmos o estado atual do “vínculo da paz” (Ef 4:3) entre os dois segmentos. E aceitemos ainda outra verdade, tão evidente quanto a primeira: a de que católicos e protestantes podem convergir em questões políticas e sociais, mas continuam pouco dispostos a negociar os pontos doutrinários que cada um não aceita no outro.
Ante esse quadro, não há modo de se evitar as perguntas: como a convergência decorrente da identidade comum de católicos e protestantes se expressa, no nosso tempo? Que forças a ameaçam? Podemos desenvolvê-la além do grau já alcançado? Tais perguntas só poderão ser respondidas, se os limites do inaceitável, em cada um dos campos da controvérsia, puderem ser removidos, alterados daqui para ali. Enfim, se os limites de fé católicos e protestantes puderem ser flexibilizados.
Comecemos por avaliar essa possibilidade, em relação ao princípio sola Scriptura (somente a Escritura), abraçado como fundamental pelos evangélicos. A posição protestante assim enunciada reage contra a igual importância que os católicos atribuem à Bíblia e à Tradição. A Constituição Dei Verbum é explícita, ao reafirmar tal igualdade. De acordo com ela, a palavra de Deus é composta pela Bíblia e pela Tradição (Dei Verbum. Cap. II, nº 8).
Um dos argumentos mais fortes, manejados por Calvino (e por Lutero, antes dele), contra essa pretensão, é o das contradições entre os textos pelos quais a Tradição se manifesta. Os reformadores concentraram-se em criticar, sobretudo, as contradições entre documentos oficiais da Igreja. Deram, com isso, por incontroverso que as contradições dos teólogos são tão evidentes que nem precisam ser demonstradas.
Ao criticar a convocação do Concílio Vaticano I para discutir a infalibilidade do Papa, no século XIX, Janus nos forneceu outro rol de contradições da mesma espécie das que Lutero e Calvino haviam apontado antes. É, pois, um complemento precioso e uma atualização importante da lista dos reformadores. No rol de Janus, podem ser encontrados documentos escritos por papas, bispos e por papas e bispos conjuntamente, como os dos Concílios Ecumênicos.
Porém, o argumento baseado nas contradições é insuficiente para refutar a igualdade entre a Bíblia e a Tradição, por vários motivos: primeiro, porque contradições existem até entre os manuscritos dos livros bíblicos; em segundo lugar, porque a contradição dialética está presente na realidade e não raro se resolve em algum plano dela; por último, o argumento de que as contradições anulam a inspiração divina da Tradição não se sustenta, pois, para os católicos, o Magistério (ensino solene do Papa, sozinho ou assistido pelo episcopado) é capaz de resolver as discordâncias entre os vários elos da Tradição. Por exemplo: se dois doutores da Igreja divergem, a contradição entre eles pode ser resolvida pelo Papa, com ou sem a ajuda dos bispos.
Assim, as contradições em que os protestantes veem uma prova cabal da falibilidade da Tradição são tomadas, pelos católicos, como dado estrutural da sociabilidade do homem. Portanto, como algo que Deus avaliza. Aliás, não apenas as contradições humanas, mas também as que se notam no plano da natureza, assim como a competição entre os animais, desde Darwin, deixaram de ser vistas como consequência da queda de Adão e passaram a ser interpretadas como inerentes à criação.
A própria Bíblia foi escrita por certos instrumentos humanos (Moisés, Esdras, os profetas) e oficialmente reconhecida como palavra de Deus por outros. Os primeiros são os autores bíblicos. Os outros fazem parte da Tradição. Portanto, a Bíblia e a Tradição não são estanques, nem podem ser, sempre, nitidamente diferenciadas.
Sabemos que sempre houve múltiplos manuscritos dos textos bíblicos. Ao definirem o cânon das Escrituras, os integrantes da Tradição não criaram, porém, uma lista de manuscritos, mas de livros que consideraram inspirados. Eles não discriminaram entre este e aquele manuscrito, mas entre este e aquele livro. Com isso, manuscritos divergentes em diversos pontos foram tidos como sagrados, em conformidade com a declaração de 2ª a Timóteo 3:16 de que “toda Escritura [manuscrito] é inspirada por Deus”. E notem que essa declaração, como todos os outros textos bíblicos, não ingressou sozinha no cânon, mas foi nele inserida pela Tradição. De sorte que crer na Bíblia é crer na escolha da Tradição.
Sempre houve, também, dois cânons bíblicos: sete ou oito séculos antes de Cristo, um conjunto de livros sagrados foi usado no Reino do Norte (Israel), outro no Reino do Sul (Judá); no Período Helenístico, um cânon foi adotado na Palestina, outro pelos judeus da Diáspora; os próprios fariseus, saduceus e samaritanos tiveram coleções diferenciadas de livros que consideraram sagrados; nos primeiros séculos da era cristã, também houve um cânon da Igreja Latina (ocidental) e outro da Igreja Grega (oriental); por fim, a Reforma fez surgir o cânon protestante, em oposição ao católico. O ponto a ser destacado é que todas essas coleções diferenciadas, em todas as épocas, foram reconhecidas como inspiradas por pessoas distintas dos autores delas. Portanto, o princípio de que a escolha do cânon coube à Tradição não operou uma única vez, mas inúmeras, o que fez com que as marcas da Tradição se inserissem bem fundo, no tecido da Bíblia.
Não estou a afirmar que a posição católica sobre a palavra de Deus seja superior à protestante, mas que a solução mais adequada da divergência a respeito desse tema não é do tipo tudo-ou-nada. Nem a posição católica é inteiramente correta, nem a protestante. Um meio-termo há de ser encontrado. Talvez possamos expressar esse meio-termo, ao declarar que tanto a Bíblia quanto a Tradição são a palavra de Deus, mas os conflitos entre elas devem ser resolvidos em favor da primeira. Essa é uma síntese perfeitamente cabível da controvérsia católico-protestante sobre o cânon bíblico.
A Bíblia e a Tradição apresentam-nos Cristo. E, se assim é, a instância final de resolução das contradições entre elas não pode ser senão os testemunhos de primeira mão sobre o que Jesus fez e falou. Ou alguém preferirá resolver as controvérsias mais básicas sobre a pessoa e a obra de Jesus por impressões vagas de cidadãos que viveram muito tempo depois dele? Que sucederia concretamente à fé cristã, se essa espécie de solução de controvérsias fosse aplicada como regra?
Mas os testemunhos de primeira mão também têm obscuridades. Vimos que os próprios manuscritos em que eles foram registrados divergem entre si, em múltiplos pontos. Isso significa que não basta definir quais livros são inspirados. É preciso, ainda, interpretá-los, o que nos remete à questão de como se deve enfrentar e resolver os problemas de exegese dos Evangelhos.
Podemos exprimir essa questão por outra mais incisiva: devemos resolver os conflitos de interpretação sobre a pessoa, as palavras e a obra de Jesus com base na mentalidade dos homens que escreveram os testemunhos diretos sobre ele ou no modo de pensar de homens posteriores? E, se as testemunhas diretas de Jesus foram os autores do Novo Testamento ou as fontes que eles consultaram, de onde se podem extrair lições sobre a mentalidade deles, a não ser do Antigo Testamento? Por isso, também a interpretação definitiva do evangelho deve ser realizada, com base no Antigo e no Novo Testamentos.
Na sua época mais negra, o Catolicismo cometeu equívocos que ainda se refletem no mundo atual. Porém, muita coisa mudou, daquele tempo até hoje. O uso da Bíblia vulgarizou-se, entre os católicos, embora menos que no meio protestante. A Igreja passou a contar com exímios escrituristas (peritos nas Escrituras) e órgãos dedicados ao estudo e à difusão da Bíblia. A missa na língua do povo e a Renovação Carismática Católica também contribuem para que a Bíblia seja pregada e crida. Essas mudanças estão no âmago do que se pode denominar uma autêntica Reforma Católica.
A herança comum dos dois ramos cristãos, a Bíblia e o evangelho, perdeu-se na Idade Média, é verdade. Teve de ser recuperada mais tarde. Uma Reforma reinstaurou-a no mundo protestante. As igrejas evangélicas referem-se a essa Reforma insistentemente. Têm-na por bons motivos como a sua razão de ser. Porém, uma Reforma sob certos aspectos ainda mais importante (a Católica) também ocorreu.
Ao retomarmos consciência da Reforma Católica, então, será justo afirmarmos que ela foi parcial, e a Protestante, completa? Que ela foi imperfeita, e a evangélica, perfeita? E os erros protestantes? E a falta de perspectiva histórica das nossas igrejas: não foram responsáveis pela transformação da grande abertura da Reforma do século XVI no fechamento do Protestantismo atual? O Protestantismo não se transformou numa longa (e enfadonha) sequência de fechamentos à Filosofia, à revelação dinâmica e dialética, às manifestações artísticas, ao tempo presente em benefício do passado (ah, o primeiro século!), ao Catolicismo que ele tanto demonizou? Não escrevo para fustigar os protestantes, mas para perguntar: nós, que incorremos em tudo isso, podemos afirmar que a Reforma Católica foi insuficiente? Podemos colocar em dúvida a sua existência?
Adélia Prado deu forma verbal a um suspiro: “Porque acima e abaixo e ao redor do que existe permaneces” E: “O mar é tão pequenino diante do que eu choraria/ se não fosses meu Pai” (PRADO, Adélia. "O homem humano"). Como essa lágrima do coração, essa teofania em versos, tornou-se possível? Não requereu, de algum modo, a fé cristã? Sim, mas exatamente qual das vertentes dessa fé? As duas, dirão com motivos. Mas muito mais a católica, será preciso completar. Invalidaríamos, pois, a vertente católica e, com ela, o poema, o suspiro, a lágrima, a teofania?