quarta-feira, 17 de abril de 2013

A Reforma Profetizada

A Reforma da igreja cristã pode ser vista como um acontecimento, ao mesmo tempo, católico e protestante. Foi provocada, sem dúvida, por iniciativa de homens como Martinho Lutero, mas teve prosseguimento, simultaneamente, nos campos protestante e católico. Na postagem anterior, procurei mostrar que o movimento reformador, em não poucos aspectos, foi até mesmo mais longe entre os católicos.
O cerne da Reforma da igreja é a palavra de Deus. Por isso, embora apresente desdobramentos em vários terrenos, a Reforma se abrange em dois pontos principais: a devolução da palavra ao povo e a prática do livre exame. Esses pontos são principais, pois por eles se desenvolve o trabalho mais intenso do Espírito de Deus na humanidade.
Todos sabemos que a devolução da palavra ao povo se deu, no século XVI, por meio das traduções protestantes da Bíblia e sua ampla utilização no culto e na vida privada. No meio católico, a mesma realização ocorreu, gradualmente, entre os séculos XVI e XX (no qual o Concílio Vaticano II aboliu a missa em latim).
Porém, a situação é muito distinta em relação ao outro ponto, já que os reformadores protestantes do século XVI deram impulso à prática do livre exame, mas o movimento foi descontinuado nos séculos seguintes. De fato, o que se viu, nos meios luterano, reformado e, mais tarde, também no pentecostal, foi instituições eclesiásticas imporem interpretações da Bíblia por rígidos códigos de disciplina, inculcação doutrinária e intolerância para com interpretações divergentes. Na prática, isso resultou na padronização da interpretação da Bíblia, no seio de cada igreja.
No meio católico, porém, deu-se o contrário. Nos séculos que se seguiram à Reforma, o livre exame permaneceu interditado, pois o horror às ideias protestantes continuou a chocar os católicos. Porém, pouco a pouco, a Igreja de Roma se abriu a algo semelhante à livre interpretação não apenas da Bíblia como da doutrina de modo geral. Numa famosa encíclica sobre a liberdade humana, o Papa Leão XIII ensinou: “Se se trata de matérias livres, que Deus deixou entregues às discussões dos homens, a todos é permitido emitir sobre elas a sua opinião e exprimi-la livremente” (LEÃO XIII. Libertas. nº 31). Para que não se pense que as "matérias livres" mencionadas pelo Papa são poucas, ouça-se ainda: “Há imenso campo aberto em que a atividade humana pode dilatar-se e exercer-se livremente a razão: referimo-nos às matérias que não têm uma conexão necessária com a doutrina da fé e dos costumes cristãos, ou sobre as quais a Igreja, não usando da sua autoridade, deixa aos sábios a liberdade de suas opiniões” (idem. nº 36).
Pode-se afirmar, com certa segurança, que essas matérias livres são tudo o que não está abrangido na “verdade natural e na sobrenatural”. A encíclica de Leão esclarece que aquela são “os princípios da natureza e as conclusões próximas que deles deduz a razão” (idem. nº 33). Já a verdade sobrenatural são os “pontos principais de doutrina [cristã], por exemplo: há uma revelação divina; o Filho único de Deus fez-se homem para dar testemunho da verdade; por Ele foi fundada uma sociedade perfeita, isto é, a Igreja, de que Ele mesmo é o Chefe e com a qual prometeu estar até a consumação dos séculos” (idem. nº 33). Nesses pontos, a Igreja não admite, até hoje, a livre interpretação. Porém, em todos os demais, ela a consente.
Os maiores problemas dessa interdição limitada do livre exame localizam-se no campo da eclesiologia. Eles se manifestam, particularmente, no trecho de Libertas em que Leão XIII afirma que a Igreja (Católica) é uma sociedade perfeita. Não devemos, aqui, entender a palavra perfeita no sentido comum, mas no filosófico, que traduz o estado de um ser que se perfez, isto é, que desenvolveu as tendências de sua natureza. Nesse sentido, perfeito não significa carente de nada, pois o ser que desenvolveu a sua natureza continua destituído do que pertence à natureza de outros seres, mas não à sua.
Porém, mesmo que se entenda a doutrina da "sociedade perfeita" dessa maneira, considerar que a Igreja Católica desenvolveu totalmente a sua natureza é lá um exagero. Se fosse realmente perfeita, a Igreja de Roma teria manifestado essa perfeição em todas as épocas, pois existiu desde o primeiro século. Mas é especialmente difícil admitir a presença de tal perfeição entre os séculos IX e XVI, quando a Igreja viveu sua fase mais corrupta, e o uso das Escrituras chegou a ser abolido. Não pode ser perfeita uma igreja que não utiliza a Escritura, nem a comunica ao povo.
A eclesiologia católica só estaria correta, se a igreja não fosse passível de corrupção aos olhos de Deus. Mas ela o é. Em Apocalipse 1:12,20, as igrejas locais são representadas como candeeiros e, no capítulo 2, a de Éfeso é ameaçada de ter o seu candeeiro removido do lugar (Ef 2:5). Esse lugar, digamos, é o alto, já que "não se acende uma candeia para colocá-la debaixo do alqueire" (Mt 5:15). Portanto, a remoção do lugar é a passagem do alto para baixo, o que não equivale a apagar o candeeiro, mas a diminuir a intensidade da sua luz. Essa diminuição não é o fim da igreja em Éfeso, mas uma regressão no processo por meio do qual a igreja desenvolve a sua natureza.
Deus pode ver a igreja pelo ângulo de Efésios 5:27. Pode vê-la como “igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga nem cousa semelhante, porém santa e sem defeito”, mas também a pode ver pelo ângulo da diminuição do seu brilho. É o que acontece, de modo significativo, em 1ª a Timóteo 4:1-3. Diz esse texto: “Ora, o Espírito afirma expressamente que, nos últimos tempos, alguns apostatarão da fé, por obedecerem a espíritos enganadores e a ensinos de demônios, pela hipocrisia dos que falam mentiras, e que têm cauterizada a própria consciência, que proíbem o casamento, exigem abstinência de alimentos, que Deus criou para serem recebidos, com ações de graças, pelos fieis e por quantos conhecem plenamente a verdade”.
Essas palavras tornam, a meu ver, necessária a ideia de restauração da igreja, na medida em que a apresentam profundamente degradada. Notem, portanto, que somente a eclesiologia da reforma ou restauração se opõe realmente à católica. Todas as outras doutrinas da igreja se reduzem à católica, pois admitem que, mesmo quando cai num abismo como o de 1ª a Timóteo 4, a igreja permanece perfeita. Está claro, porém, que, se a igreja é assim sempre perfeita, devemos perguntar-nos o que estamos a fazer fora da Igreja Católica, já que ela nunca se corrompeu e foi sempre sem mácula.
Vejamos, porém, em maiores detalhes, como as Epístolas a Timóteo descrevem o abismo da grande apostasia. No capítulo 4 da primeira delas, as palavras “O Espírito afirma expressamente” são o equivalente neotestamentário da expressão "Assim diz o Senhor", empregada pelos profetas do Antigo Testamento. Estamos, portanto, claramente diante de um oráculo e de uma predição do futuro.
A apostasia mencionada em 1ª a Timóteo 4:1-3 pressupõe ainda um estado anterior de bênção. Os apóstolos nunca afirmaram que os gentios do mundo romano eram apóstatas, pois haviam nascido no politeísmo. Pelo contrário, eles declararam, diversas vezes, que os gentios viviam apartados de Deus e mergulhados na ignorância (At 14:16; 17:30; Rm 1:21-22; Ef 2:2-3,11-12; 4:17-19). Essa separação e ignorância totais não estão implicadas na apostasia da Epístola a Timóteo, que pressupõe um estado anterior de bênção, perdido pelo movimento apóstata.
Mais do que isso, 1ª a Timóteo 4:1-3 se segue a outro texto, em que o mistério da piedade é apresentado, e a igreja é denominada coluna e baluarte da verdade (1 Tm 3:15-16). O autor não poderia ter escolhido palavras mais fortes e positivas para exprimir a relação da igreja com a verdade. Note-se que ele não afirmou que a igreja é sustentada pela verdade, mas que ela a sustenta: é a sua coluna e baluarte. E em seguida afirmou que alguns apostatariam da fé. Quem são esses alguns? São pessoas do número dos que receberam o mistério da piedade e se fizeram coluna e baluarte da verdade.
A interpretação mais comum da apostasia de 1ª a Timóteo 4 liga-a à heresia gnóstica, sobre a qual Ireneu, bispo de Lião, escreveu no segundo século: “Afirmam eles [os gnósticos Saturnino, Menandro e seus seguidores] [...] que casar e procriar é diabólico e muitos dos seus discípulos se abstêm de comer carnes” (LIÃO, Ireneu de. Contra as heresias. 2ª ed., São Paulo: Paulus, 1995. I Livro, 24,2, p. 102). E novamente: “Os [gnósticos] que se chamam encratitas, que se inspiram em Saturnino e Marcião, proclamam a abstenção do casamento, condenando a primitiva instituição divina e acusando falsamente Aquele que fez o homem e a mulher ordenados à procriação. Introduziram o celibato dos chamados espirituais [...] Taciano [...] como os discípulos de Valentim, conta a história dos Eões invisíveis e, como Marcião e Saturnino, tacha o casamento de corrupção e fornicação, e no que lhe é próprio nega a salvação de Adão. Outros ainda, baseando-se em Basílides e Carpócrates, introduzem o amor livre e a poligamia” (idem. nº 28, p. 111).
Não se pode negar que a apostasia predita em Timóteo coincide com as crenças dos gnósticos mencionadas por Ireneu. Porém, apesar das coincidências, o cumprimento do desvio apóstata naquela seita (na realidade, foram incontáveis seitas) apresenta vários problemas. O primeiro deles é que, dos gnósticos, não se pode afirmar que viveram num estado de bênção do qual decaíram. Eles sempre foram hereges. Sempre viveram apartados da comunhão da igreja. Por isso, o termo apostasia não lhes cai bem. Teria sido muito fácil e melhor o autor sagrado ter utilizado outro termo, se pretendesse referir-se a pessoas como os gnósticos.
O segundo problema da interpretação é que dispomos de provas da existência de ascetas gnósticos, como os mencionados em Timóteo, na segunda metade do século I d. C. (Cl 2:4,8,16,23). Tudo indica que as Epístolas a Timóteo foram escritas no final dessa época. Portanto, é estranho a primeira delas afirmar que a apostasia estava por vir, se se tratasse do gnosticismo, que já estava presente no mundo.
Por fim, o terceiro problema da interpretação comum da grande apostasia é o fato de esse movimento de degeneração ser expressamente associado a Anticristo, em 2ª aos Tessalonicenses 2:2-3: “Não vos demovais da vossa mente [...] supondo tenha chegado o dia do Senhor. Ninguém de nenhum modo vos engane, porque isto não acontecerá sem que primeiro venha a apostasia, e seja revelado o homem da iniquidade, o filho da perdição [Anticristo]”.
Os gnósticos não antecederam imediatamente a vinda de Anticristo. Eles foram uma terrível heresia, mas não “a apostasia” mencionada por Paulo. Claro que sempre há a possibilidade de Tessalonicenses referir-se a uma apostasia, e Timóteo a outra, mas não parece ser esse o caso. A palavra apostasia é forte demais para designar movimentos diferentes, na mesma época. E não podemos descurar que as duas epístolas expressam o mesmo pensamento geral (o de Paulo), no qual a apostasia antecede a vinda de Anticristo.
É hora de o dizermos, pois, abertamente: a apostasia prevista ajusta-se melhor ao grande movimento de corrupção, que se iniciou na Igreja por volta do nono século e durou até a Reforma do décimo-sexto. Esse período de sete séculos foi o mais negro de toda a História da Igreja, o que justifica o denominarmos “a apostasia”. Ele também se verificou no seio de uma genuína igreja cristã, que vivera em estado de bênção especial, a saber: a Igreja Católica do início da Idade Média.
Embora a promiscuidade sexual tenha grassado em Roma, durante aquele período, a observância do celibato era exigida dos clérigos no mundo todo. O mesmo pode ser dito da abstenção de alimentos nos dias santos, que era obrigatória e não facultativa. 1ª a Timóteo 4:3 refere-se ao erro dos que “exigem” (é o termo empregado) “abstinência de alimentos”. Exatamente isso foi praticado pela Igreja Católica no período em questão.
Calcula-se que, em “todas as Ordens, criadas no tronco da Santa Madre Igreja, mandavam observar o mais estrito jejum em certos dias. Ora vejamos: 52 sextas-feiras; a Quaresma e a Páscoa; o dia do Santo patrono da Igreja e da cidade… ao todo, sem errar contas, digamos que se fazia jejum, na Idade Média, cerca de 120 dias por ano” (disponível em www.cadernosdahistoria.weebly.com/uma-capelinha-branca-nas-serras-ndash-aquilino-ribeiro-e-o-coratildeo.html). Uma das consequências dessa prática disseminada do jejum foi o famoso surto de anorexia da Idade Média.
2ª a Timóteo 3:1-2 desenvolvem ainda mais o tema em análise: “Nos últimos dias sobrevirão tempos difíceis; pois os homens serão egoístas, avarentos”. Segue-se uma longa série de vícios, bem ao estilo paulino. Não há motivos para crer que o desvio implicado por essas palavras seja distinto da apostasia do capítulo 4 da primeira epístola. O mesmo é verdade da referência aos que se “cercarão de mestres, segundo as suas próprias cobiças, como que sentindo coceira nos ouvidos; e se recusarão a dar ouvidos à verdade, entregando-se às fábulas” (2 Tm 4:4).
Fábulas como as desse versículo foram peculiarmente abundantes, nos séculos XIII a XVI. Em 1484, o Papa Inocêncio VIII fez publicar uma bula em que se lê: “Chegou a nossos ouvidos, não sem nos afligir com a mais amarga pena, a notícia de que em algumas partes da Alemanha setentrional [...] muitas pessoas de um e de outro sexo se abandonaram a demônios, íncubos e súcubos, e em seus encantamentos, feitiçarias [...] mataram crianças que estavam no útero materno e também o fizeram com as crias do gado; arruinaram os produtos da terra, as uvas da videira, os frutos das árvores e, mais ainda, a homens e mulheres, animais de carga, rebanhos e animais de outras classes, vinhedos, hortas, pradarias, campos de pastagens, trigais, cevadas e todos outros cereais” (INOCÊNCIO VIII. Citado em LEWIS, Brenda Ralph. A história secreta dos Papas – vício, assassinato e corrupção no Vaticano. São Paulo: Europa, 2009. p. 108).
Acreditava-se que as mulheres a que a bula se refere eram bruxas, e os homens eram lobisomens! Não é preciso mais para mostrar como toda a concepção de mundo daquela época era fruto de uma mentalidade fabulosa muito semelhante à que 2ª a Timóteo 4:4 prevê. O realismo com que as pessoas viveram delírios insanos inspira arrepios. No processo contra Desle la Mansenée, acusada de bruxaria, foi ouvida uma testemunha de nome Antoine Godin, que declarou que, 30 anos antes, o filho de Desle lhe tinha contado que sua mãe era bruxa e ele a vira “voando em um pedaço de salgueiro” (idem. p. 117). Só em 1623, o Papa Gregório mandou reduzir ou abandonar os castigos sádicos aplicados às bruxas, na ordenação Omnipotentis Dei (idem. p. 119).
Temos, pois, bons motivos para entender a grande apostasia de Timóteo como a corrupção da igreja cristã, a partir do século IX. E, se a corrupção está ali predita, temos de concluir que a restauração é uma consequência necessária dela. Por isso, somente uma teologia da restauração se opõe, realmente, à eclesiologia católica de uma igreja sempre perfeita e impassível.
A ideia de restauração ou reforma da igreja é consequência direta da crença em que Deus não pode permitir que o seu povo permaneça no estado a que a mentalidade supersticiosa da Idade Média o levou. Se firmou aliança com a descendência de Noé, quando a de Adão corrompeu seu caminho, se chamou Abraão, quando os filhos de Noé passaram a adorar outros deuses, se retirou os israelitas do Egito, apesar das tendências idólatras deles, e os trouxe de volta de Babilônia, por que misteriosos desígnios Deus não restauraria a igreja em que se congregam os que foram comprados com o sangue de Cristo?