sábado, 6 de abril de 2013

Criação: O que é, o que não é

céu estreladoEm fevereiro, Richard Dawkins resumiu o sentido da fé cristã nos seguintes Dez Arrazoados, que merecem ser grafados com iniciais maiúsculas:
"1) 'Se as mulheres quiserem aprender alguma coisa, interroguem em casa os seus maridos, pois é vergonhoso que as mulheres falem na igreja' [1 Co 14:35]. Faz sentido...
2) Isaías profetizou que uma jovem daria à luz um messias. A profecia foi mal traduzida para o grego, e a palavra jovem se tonrou virgem. Então, Jesus teve de nascer de uma virgem. Faz sentido...
3) Todo o mal do mundo decorre de uma serpente falante. Faz sentido...
4) Os 12 apóstolos de Jesus tinham pênis. Portanto, quem não tem pênis não pode ser sacerdote. Faz sentido...
5) A substância do vinho realmente se torna o sangue de um judeu do primeiro século. Só os acidentes são suco de uva fermentado. Faz sentido...
6) Adão nunca existiu, mas seu pecado foi tão imenso que o Criador do Universo em expansão precisou de um sacrifício de sangue para expiá-lo. Faz sentido...
7) Deus não encontrou um modo melhor de perdoar o pecado de Adão (que jamais existiu) do que executar o seu filho (ele próprio). Faz sentido...
8) Deus é simultaneamente ele próprio e seu filho (e um espírito). Faz sentido...
9) Uma bolacha, se abençoada por um sacerdote (cujos testículos devem estar intactos), se torna literalmente o corpo de Cristo. Faz sentido...
10) Joseph Ratzinger tornou-se infalível quando a fumaça subiu em 19/4/2005. Tornou-se de novo falível em 28/2/2013. Faz sentido..."

Esse o sentido que Dawkins encontra na fé cristã. Numa entrevista publicada 2ª feira, 01/04/2013, na Folha de S. Paulo (para celebrar o "dia da mentira"?), reafirmou que, se não adoramos Thor, tampouco devemos adorar Deus. Dawkins insiste em reduzir o significado da fé cristã a interpretações superadas, que já foram abandonadas pelos teólogos ou apenas esperam na fila das que serão retratadas. As Tábuas dos Arrazoados deixam isso claro. Infelizmente, ao gravá-las na mídia eletrônica, com o cinzel da ciência, ele se comporta como um novo Moisés enfurecido e vindo de Oxford, que reduz a pó interpretações da Bíblia transformadas por ele mesmo em caricaturas. Faz muito sentido...
Impressiona-me como Dawkins entende de sociedade. Num só capítulo de Deus, um delírio (São Paulo: Cia. das Letras, 2007), mostrou-nos como a religião se originou. Resolveu o grande enigma com tal desembaraço e tal facilidade. O resto da sua obra mostra como a religião terminará. Dawkins faz ambas as explicações, a do alfa e a do ômega, a do princípio e a escatológica, dependerem da ideia de evolução, que para ele exclui a de criação. Só se esquece de que todos os grupos humanos que sobreviveram, ao longo da evolução, descartaram a vida sem Deus e construíram as suas sociedades por meio da fé. Deus não é, por isso, um copinho plástico usado, que possa ser descartado sem mais. Ele integra o sentido da própria sociedade. Não é só Deus no céu; é também Deus na História. E isso não podemos abrogar.
O texto a seguir é um exemplo das graves questões interpretativas que Dawkins salta ao ridicularizar a fé cristã e igualá-la a um delírio cômico. O sentido que nele proponho é mais intrínseco à criação bíblica do que aquele que Dawkins adota para ridicularizar. Aliás, essa é sempre a estratégia dele: primeiro modifica os textos em que um item de fé se funda até deformá-los; em seguida os ridiculariza. Como se decifrar fosse o mesmo que desnaturar. Como se crítica não demandasse exegese. E exegese honesta!
O texto ajuda a perceber a distância a que a paixão sem exegese de Dawkins é capaz de se colocar da hermenêutica.  Apresento-o, por ocasião da taça de escárnio erguida (a si mesmo) pelo novo Darwin, no banquete do conhecimento. Claro que com toda a autoridade requerida para encerrá-lo. "Um anjo como tu quando se brinda/ Tem-se a missão cumprida e a festa finda/ Quebra-se a taça e não se bebe mais"! (Antero do Quental)

COLUNAS DO CÉU E DA TERRA

Muito antes de os relatos de Gênesis 1 e 2 sobre a criação serem escritos, os povos do Oriente Médio compartilhavam uma cosmovisão em que o Universo era representado como um semicírculo dividido em camadas que repousavam sobre colunas materiais. A camada superior era o céu empíreo, abaixo do qual estavam sucessivamente situados o oceano celeste, o céu sidéreo, a terra, o oceano terrestre e o lugar dos mortos. O céu empíreo e o oceano superior apoiavam-se nas águas inferiores. O céu sidéreo e a terra erguiam-se sobre colunas. Nessa arrebatadora visão, chama particularmente a atenção os papeis de sustentação dos céus e do oceano superior desempenhados pelas águas inferiores e pelas colunas do mundo.
Vestígios de uma representação semelhante do Universo podem ser encontrados em textos como Jó 9, 26, 28 e 38, Salmos 8, 19, 24, 90, 102, 104 e 148, Provérbios 8, Amós 9:6 e Isaías 40, entre outros. Em Jó 26:11, lemos: “As colunas do céu tremem”. Amós 9:6 reitera: “Deus é o que edifica as suas câmaras no céu e a sua abóbada fundou na terra”. As colunas da terra, por sua vez, aparecem em textos ainda mais numerosos, a exemplo de 1º de Samuel 2:8, Jó 9:6, Salmos 18:15, 24:2, 75:3, 102:25, 104:5, Provérbios 8:29 e Isaías 24:18.
Tantas referências aos alicerces, nos quais os mundos celeste e terreno descansam, impõem a compreensão de que os relatos da criação de Gênesis pressupõem esse cenário natural e a ele se referem. Não podemos deixar de reconhecer que esse é um dado incômodo, pois há muito sabemos que os mecanismos de sustentação dos céus e das águas superiores afirmados pelos antigos eram equivocados.
O que nem sempre se percebe é que o incômodo começou nos próprios tempos bíblicos e aumentou nos primeiros séculos da era cristã. Uma das causas dele foi a influência das obras de astrônomos e filósofos gregos, egípcios e babilônicos, sobre os teólogos como Ambrósio e Orígenes. Porém, o compromisso desses teólogos com as Escrituras era inabalável demais para considerarmos que eles trocaram suas concepções bíblicas por ideias astronômicas mais avançadas. Devemos, antes, perguntar se eles não encontraram, na própria Bíblia, motivos para reinterpretar o mundo físico, assim como os filósofos e astrônomos tinham encontrado os seus próprios motivos na investigação da natureza.
Não é possível compreender o que os primeiros teólogos cristãos realizaram, no tocante à descrição do mundo físico, sem admitir que, de algum modo, eles problematizaram as referências bíblicas à constituição sólida do firmamento, as colunas dos céus e da terra e outros aspectos da mundivisão do homem antigo. Problematizar não significa, aqui, rejeitar (pois isso eles nunca fizeram, nem poderiam ter feito), mas manifestar dúvidas e sugerir novas interpretações das expressões das Escrituras que refletem aquelas concepções mais antigas.
Ao refletir sobre a criação bíblica, parto desses teólogos dos séculos II a VI, porque as desconfianças que nutriram em relação à visão de mundo antiga não podem ser atribuídas à vontade de corrigi-la com base em descobertas científicas. Se nós, que vivemos no século XXI, sugeríssemos uma exegese da criação que harmonizasse o relato da Bíblia com a ciência atual, seríamos tidos como suspeitos, já que é fácil corrigir equívocos depois que eles se tornam patentes. Mas os autores antigos não conheceram a ciência moderna, que tornou os equívocos evidentes. Portanto, as desconfianças que mantiveram em relação à mundivisão arcaica merece ser investigada para verificarmos se, afinal, eles não encontraram, na própria Bíblia, motivos para relativizá-la.
No século VI, Boécio sintetizou os avanços alcançados pelos astrônomos e os questionamentos dos teólogos cristãos, numa passagem célebre: “Toda a extensão da Terra, como bem o sabes graças às demonstrações dos astrônomos, comparada à extensão do Céu, não passa de um pequeno ponto: isso quer dizer que, comparada à extensão dos céus, a magnitude da Terra não é quase nada. E, dessa região tão ínfima, apenas um quarto, segundo os cálculos de Ptolomeu, é habitado por seres vivos. E, se desse quarto tu tirares toda a superfície ocupada por oceanos, lagos, desertos, etc., restará uma ínfima parte onde habitam os homens" (BOÉCIO, Severino. A consolação da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2012. p. 63).
A descrição dos céus de Boécio desafia a concepção geocêntrica do semicírculo calcado em colunas, que colocava a terra no centro do Universo. Ela resulta, manifestamente, do lento desenvolvimento de uma visão concorrente sobre o mundo físico, que se desenvolveu na Grécia, em Israel e outros povos.
Sobre a passagem do Livro de Jó que afirma que Deus “faz pairar a terra sobre o nada” (Jó 26:7), Ambrósio de Milão se pronunciou da seguinte maneira: “Deus suspende a terra no nada. Não importa discutir se ela está suspensa no ar ou em cima da água, para que daí nasça uma controvérsia: de que modo a natureza do ar, tênue e muito mole, pode sustentar o peso da terra? Ou então, se está sobre as águas, como é que a massa das terras não cai e não afunda nelas? [...] Assim como a terra está suspensa no vazio e permanece imóvel devido ao equilíbrio de peso em toda parte, assim também a água é equilibrada com a terra por pesos superiores ou iguais ao seu. Por isso o mar não se espalha facilmente sobre as terras.”
As citações acima refletem a crença de que a terra repousa sobre fundamentos sólidos, tanto quanto sobre a água e o ar. Esses três elementos misturam-se sob o solo. O modo específico da mistura é responsável pela sustentação da terra e dos mares.
Por isso, de acordo com Ambrósio: “Não podemos pensar que a terra esteja realmente apoiada sobre colunas, mas sim sobre aquela virtude que sustenta e mantém a sua substância”. A palavra virtude não é aqui empregada em sentido moral, mas físico. Indica uma propriedade da matéria. Não há motivo para duvidar de que esta é uma autêntica reinterpretação das colunas subterrâneas de que os antigos falavam.
Vejamos, porém, outro aspecto da visão antiga. Muitos sustentam que a crença na existência de águas sobre o firmamento era um equívoco, mas esse juízo só é possível se adotarmos a perspectiva do homem moderno. Para os antigos, a palavra água tinha sentido elástico, como se depreende da seguinte passagem de Ambrósio: “Uma só e a mesma é a água e geralmente assume aparências diferentes [...] Fica ácida nos sucos prematuros; torna-se amarga no absinto; tem sabor mais intenso no vinho, mais azedo em outras bebidas, gosto ruim no veneno, doce no mel [...] Algumas espécies de águas produzem seiva mais amarga, outras mais doces, umas tardias, outras precocemente. Seus próprios perfumes também se distinguem entre si. Um é o perfume da videira, outro da oliveira, outro das cerejeiras, outro da figueira, diferente na macieira, ímpar na tamareira.”
O homem antigo não tinha à mão as informações científicas que nós possuímos sobre a natureza. Considerava que os sucos, vinhos, seivas e resinas de árvores continham água ou eram água acrescida de outras propriedades. Claro que, com tantas formas possíveis de água, dificilmente o judeu se atrevia a afirmar, de maneira precisa, como eram as águas sobre o firmamento.
É oportuno lembrar que, antes de Ambrósio, o autor de Jó reconhecera sua ignorância sobre o que havia nos céus: “Acaso a chuva tem pai? Ou quem gera as gotas do orvalho? De que ventre procede o gelo? E quem dá à luz a geada do céu? [...] Sabes tu as ordenanças dos céus, podes estabelecer a sua influência sobre a terra? [...] Quem pôs sabedoria nas camadas de nuvens? Ou quem deu entendimento ao meteoro? Quem pode numerar com sabedoria as nuvens? (Jó 38:28-29,33,36-37)o ”.
Os questionamentos de Ambrósio ecoam os do Livro de Jó. Mas, se o autor bíblico formula tantos questionamentos, como podemos entender os seus ditos como sentenças definitivas sobre a natureza, a exemplo do que alguns cristãos até hoje fazem? Não tinha razão Ambrósio ao aprofundar os questionamentos de Jó, em vez de transformá-los em afirmações?
Ambrósio delineou sua própria síntese do que se sabia e não se sabia, na sua época, a respeito dos céus: “Nós ouvimos os trovões produzidos pela colisão das nuvens [...] Que digam com exatidão de que forma o ar se condensa em nuvem e se a chuva é produzida pelas nuvens. Vemos muitas vezes as nuvens saírem dos montes. Pergunto: é a água que sobe das terras ou a que está acima dos céus que desce em grande aguaceiro? Se a água sobe, é certamente contra a natureza que ela sobe para o alto, porque é mais pesada e é transportada pelo ar, que é mais tênue.”
Claramente, Ambrósio admite que a água sobe da terra às nuvens, mas não explica como um líquido pode-se transformar em ar, e este condensar-se em nuvem. Ele sabe que as chuvas resultam da colisão de nuvens, mas desconhece como ou por que isso ocorre.
As palavras de Ambrósio sobre o movimento ascendente das águas da terra às nuvens ecoam Isaías: "Assim como descem a chuva e a neve dos céus, e para lá não tornam, sem que primeiro reguem a terra e a fecundem e a façam brotar, para dar semente ao semeador e pão ao que come, assim será a palavra que sair da minha boca: não voltará para mim vazia, mas fará o que me apraz, e prosperará naquilo para que a designei" (Is 55:10-11). Se a chuva e a neve descem dos céus e para lá não tornam, sem que reguem a terra e fecundem o solo, segue-se que retornam depois de o terem feito. Poderia haver descrição mais coincidente com o que a ciência também nos ensina sobre a evaporação da água na terra?
O autor de Jó declarou que Deus “estende o norte sobre o vazio” (Jó 26:7), que “Deus é quem sozinho estende os céus” (Jó 9:8). Vemos também o salmista e o livro de Isaías afirmarem: “Deus estende o céu como uma cortina” (Sl 104:2); “É ele quem estende os céus como cortina” (Is 40:22).
O verbo estender, utilizado nesses versículos, sugere que o céu não é fixo. Torna também implícito que o firmamento criado no segundo e no quarto dias de Gênesis 1 é aéreo e não sólido. Por isso ele é tratado, em Gênesis, Jó, Salmos e Isaías, como expansão. Em nenhum desses versículos, há sinal da abóbada celeste sólida assentada sobre colunas, que tende a desaparecer do texto bíblico.
Devemos reconhecer, nessas passagens, as verdadeiras sementes do movimento de suspeição e relativização da mundivisão arcaica, que os autores patrísticos desenvolveram até as últimas consequências. A visão antiga não foi abandonada por eles, mas podemos considerar que ela foi revirada e reinterpretada como uma série de questionamentos, hipóteses, enfim como variações sobre a natureza inseridas no interior da própria Bíblia.
Todas essas conjecturas podem ser resumidas numa só palavra: problematização. O homem atual sente forte atração por doutrinas prontas e definidas. Mas é forçoso reconhecer que as Escrituras não contêm apenas isso. Só algumas doutrinas, nelas, são prontas e definidas. A maior parte foi afirmada como verdades parciais ou apenas possíveis.
Nunca é demais lembrar que, no caso dos versos sobre a natureza, a problematização amplia-se, quando consideramos que a maior parte deles foi composta em linguagem poética. Praticamente não há afirmações semelhantes, nos textos didáticos, históricos ou doutrinários das Escrituras. Como textos poéticos dão-se a sentidos variáveis e figurados, não temos como afirmar que as descrições bíblicas da natureza são, propriamente, certas ou erradas.
A grande exceção é Gênesis 1, que tem claramente a intenção de ensinar algo sobre as origens. A página inaugural da Biblia é, pelo menos, um texto didático, um ensino sobre a criação. Faremos melhor se afirmarmos que é uma cosmogonia, uma história sobre as origens. Por isso, dedicarei esta série a explorar, basicamente, o texto de Gênesis 1.
Se Boécio e Ambrósio formularam interrogações sobre a estrutura dos céus e da terra, Orígenes estendeu a problematização à vida e à alma: “Entre os seres que se movem há uns que são a própria causa do seu movimento, e há outros que só se movem por algo externo. Movem-se apenas a partir de fora aqueles objetos que podemos transportar, como as madeiras [...] Têm em si mesmos a causa do seu movimento os animais, as plantas e, em resumo, tudo o que subsiste devido à sua natureza e tem alma. Dizem que também os veios metálicos e, além disso, o fogo têm seu próprio movimento, e talvez até as fontes de água.”
O maior mérito da releitura da criação de Gênesis, levada a efeito no período patrístico, foi ter sacudido dessa maneira a cosmovisão antiga, no interior da Bíblia, sem temer abalá-la e sem, de fato, a abalar. Graças ao trabalho corajoso e perito assim e desenvolvido, tornou-se possível a nós levar a efeito a releitura de Gênesis 1 desenvolvida nas postagens seguintes.

TRÊS INTERPRETAÇÕES DE GÊNESIS

Na primeira postagem desta série, vimos que um paradigma ou modelo interpretativo da criação foi elaborado, pelos pais da igreja cristã, e aceito por séculos a fio. Esse paradigma emergiu da desconfiança para com a interpretação literal dos textos que descreviam o Universo como um semicírculo dividido em camadas, que repousavam sobre colunas. Porém, embora relativizasse o sentido literal desses versículos, o paradigma patrístico interpretava literalmente os capítulos 1 e 2 de Gênesis.
Com o desenvolvimento da Teoria da Evolução, por Charles Darwin, eruditos e intérpretes das Escrituras, como G. H. Pember, promoveram a primeira grande releitura de Gênesis 1, com base em novas evidências científicas. Dessa releitura emergiu um segundo modelo interpretativo, que não abandonou a exegese do Período Patrístico, mas lhe acrescentou um ou outro dado novo, assim como o intervalo entre Gênesis 1:1 e 1:2 ou a interpretação dos seis dias como eras. Dessa releitura emergiu um segundo modelo interpretativo, que não abandonou a exegese do Período Patrístico, mas lhe acrescentou um ou outro dado novo, assim como o intervalo entre Gênesis 1:1 e 1:2 ou a interpretação dos seis dias como eras. Porém, o conhecimento de um número cada vez maior de fatos sobre as origens tem provocado um desgaste tão grande desse segundo modelo quanto do primeiro.
Não é possível, nos limites deste curto texto, apresentar o desgaste em detalhes. Vou-me limitar a mostrar como ele se manifesta na interpretação de Gênesis 1 apresentada por Pember. A quantidade de vezes que esse autor menciona os fósseis, no clássico As eras mais primitivas da Terra, mostra como a sua releitura de Gênesis 1 foi motivada pelo desenvolvimento das ciências naturais. Nas suas próprias palavras, “Vemos, então, que Deus criou os céus e a terra no princípio, de um modo lindo e perfeito [...] Conforme os resíduos de fósseis claramente mostram, não houve apenas doença e morte [nesse período] – companheiros inseparáveis do pecado então predominante entre as criaturas vivas da terra – mas até mesmo ferocidade e matança” (ob. cit. São Paulo: Editora dos Clássicos, 2002. Tomo 1, pp. 59-60). Se os fósseis mencionados são de plantas e animais, a morte e até mesmo a violência já exerciam o seu império na criação primitiva, o que Pember aceitou e explicou muito bem por meio do intervalo.
Porém, em quase todos os outros pontos, a interpretação que ele nos transmitiu reafirma o modelo patrístico. Vejamos por quê. Para Pember, antes da queda, “o espírito que Deus soprara dentro de [Adão e Eva] guardava total poder e vigor [...] e brilhando pela forma física, projetava uma auréola lustrosa ao redor de ambos” (idem. p. 152). Essa é uma nítida reafirmação da ideia patrística de que os corpos de Adão e Eva eram etéreos e distintos dos nossos. Ao referir-se à tentação de Eva pela serpente, o autor inglês afirmou: “A serpente se aproximou e dirigiu-se a ela. O fato de ela não se ter assustado parece indicar a existência de uma comunicação inteligente entre o homem e as criaturas inferiores antes da queda” (idem. p. 140).
Aqui, o texto de Pember admite a interpretação literal da comunicação da serpente com Eva. Dessa comunicação sobreveio o pecado, “o feito fatal, que, aproximadamente seis mil anos não foram suficientes para obliterar” (idem. p. 146). As palavras seis mil anos deixam claro que, para Pember, os acontecimentos do Jardim do Éden devem ser situados nesse tempo. Sobre o Dilúvio, ele declarou: “O mundo tremeu com os rápidos pingos de chuva que caíam, os primeiros que eles já tinham contemplado” (idem. p. 217). Neste ponto, é reafirmada a interpretação comum de Gênesis 2:5-6, segundo a qual o Senhor ainda não fizera chover no planeta.
Por esses exemplos se vê que G. H. Pember aderiu fortemente ao modelo antigo de interpretação literal de Gênesis. E a esse quadro, por si já bastante problemático, ele ainda acrescentou dificuldades novas. Por exemplo, o cataclisma que destruiu o planeta, resultando no quadro de Gênesis 1:2, foi descrito da seguinte maneira: “A terra arruinada [...] foi inundada pelas águas do oceano; seu sol havia-se extinguido, as estrelas não eram mais vistas, suas nuvens e atmosfera, não tendo força de atração para mantê-las em suspensão, haviam descido” (idem. p. 101).
Pember comparou esse acontecimento com o Dilúvio de Noé, quando “a arca flutuava sobre as águas, e a terra foi mais uma vez, quase como havia sido antes dos seis dias de restauração, coberta, até o pico mais elevado, pelo oceano” (idem. p. 217). Contra essas descrições do cataclisma de Gênesis 1:2 e do Dilúvio como fenômenos universais, milita o fato de não haver o menor indício de inundações totais da Terra, nos últimos três bilhões de anos, muito menos há poucos milhares. Há ainda a passagem de As eras mais primitivas que afirma que o cataclisma levou a Terra a "um estado de completa desolação, ficando totalmente sem vida. Não apenas seus lugares frutíferos se tornaram um deserto, e todas as suas cidades foram destruídas" (idem. p. 59). Nesse trecho de sua famosa obra, Pember supôs a existência de verdadeiras cidades, quando o cataclisma desabou sobre a Terra.
Portanto, analisada amplamente, a teoria de Pember (como as da maioria dos outros autores que acrescentaram algum tipo de remendo à interpretação literal antiga) está longe de cumprir o que ele pretendeu ao publicá-la em 1876. As afirmações do livro de Pember não explicam um bom número de fatos e se chocam com outros ainda mais numerosos.
Necessário é, portanto, buscar um terceiro modelo interpretativo de Gênesis 1. Mais do que isso: para que o novo modelo alcance o que se propõe, é preciso fazê-lo negar amplamente, não apenas num ponto ou noutro, a interpretação literal. Isso não significa negar que o relato bíblico formule afirmações sobre a História Natural. É exatamente isso que ele faz, como mostrarei a seguir. Todavia, é bom lembrar que a Bíblia o faz num quadro geral de seis dias com tardes e manhãs metafóricas.
Essa primeira metáfora, que emoldura o capítulo 1 de Gênesis, cria um importante precedente para a interpretação alegórica de ainda outros textos sobre a criação. Por que não entendermos Gênesis 2 nos termos propostos por Orígenes de Alexandria, no século III: “O jardim e a maneira como se diz que Deus o plantou ‘no Éden, no Oriente’, e que em seguida fez crescer do solo toda espécie de árvores formosas de ver e boas de comer, e a árvore da vida no meio do jardim, e a árvore do conhecimento do bem e do mal [...] tudo isto pode, sem inconveniência, ser interpretado em sentido figurado” (ALEXANDRIA, Orígenes de. Contra Celso. São Paulo: Paulus, 2004. p. 318)?
Mesmo assim, a contribuição de Pember à exegese de Gênesis 1 é inestimável. Sua teoria do intervalo permanece atual e válida, embora possa (e a meu ver deva) ser compatibilizada com a interpretação dos seis dias como eras. Porém, ao harmonizarmos as teorias, é útil apararmos os excessos da exegese literal, que Pember herdou do modelo patrístico de interpretação. Não estamos mais no século III ou IV, nem no século de Pember, para reincidirmos em tal erro. Estamos no século XXI e é nele que Deus quer que estejamos. Ou será que a exegese literal da criação se ajusta ao século em que vivemos?

O DESAFIO DE DARWIN

Nos séculos III e IV, os teólogos patrísticos Orígenes de Alexandria, Basílio de Cesareia, Gregório de Nissa, Ambrósio de Milão e Agostinho de Hipona publicaram uma série de obras, sobre a ideia judaica de criação do mundo por Deus. Esses textos não apenas foram aceitos como estabeleceram um novo paradigma, um modelo de pensamento inédito, que atravessou a Idade Média e a Modernidade, até a época de Charles Darwin.
O modelo patrístico surgiu sobre as cinzas da cosmovisão apresentada na primeira postagem desta série, que retratava o Universo como um semicírculo dividido em camadas, que repousavam sobre colunas materiais às vezes denominadas pilares dos céus e da Terra. Essa cosmovisão, compartilhada por vários povos, foi tratada com crescente desconfiança, também em vários lugares do mundo. A Astronomia antiga lançou desafios a ela. A Filosofia grega também. E não foi diferente em Israel, cuja cosmologia se formou em reação à cosmovisão tradicional do Oriente Médio.
Ao contrário do que se costuma pensar, Darwin não demoliu o paradigma patrístico da criação, ao criar a Teoria da Evolução. No seu clássico A origem das espécies, ele adotou esse paradigma como ponto de partida para a apresentação de sua teoria revolucionária. Vejamos duas passagens em que Darwin deixou isso claro:
“Acredito que os animais descendem de, no máximo, quatro ou cinco progenitores, e as plantas, de um número igual ou inferior” (The origin of species. In Great books of the western world. Vol. 49. Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1993. p. 240-241). E de novo: “Há grandiosidade nessa visão da vida, com os seus vários poderes, tendo sido soprada pelo Criador em umas poucas formas ou mesmo em uma só. A partir de um início tão simples, enquanto o planeta seguia girando segundo a lei fixa da gravidade, infinitas formas de beleza e de maravilha insuperáveis evoluíram e continuam até hoje a evoluir” (idem. p. 243).
Nos textos acima, Darwin fez todas as formas de vida que conhecemos retrocederem a menos de dez protótipos ou grupos fundamentais criados por Deus. Isso mostra que o pai da Evolução não rejeitou, antes adotou a criação como starting point da sua teoria. No entanto, meio século após sua morte, o paradigma da criação estava arrasado, destruído. Não destruído no âmbito religioso, no qual continua a ser aceito até hoje, mas no interior da ciência, ou seja, do conhecimento tido como o mais exato sobre a realidade.
Quem foi responsável por essa grande transformação? Que motivos a justificaram ou justificam? A primeira pergunta não é difícil de responder: a demolição do paradigma patrístico da criação foi levada a efeito pelos cientistas que trataram da Evolução depois de Darwin. É claro que outros pensadores emularam os cientistas na execução de sua tarefa e vieram a ser considerados pais de materialismos diversos, assim como Nietzsche, Feuerbach, Marx e Freud, porém a remoção do paradigma criacionista não foi obra deles e sim dos cientistas que relançaram a Teoria de Evolução de Darwin sob o novo nome de Teoria Sintética.
A segunda pergunta acima ressurge nesse exato ponto: que motivos levaram os autores da Teoria Sintética a rejeitar o paradigma da criação? O motivo principal foi a descoberta de uma série de mecanismos naturais que explicam, com precisão, como certos pedaços do DNA denominados genes sofrem transformações, que originam espécies novas. Esses mecanismos receberam nomes complicados, assim como erros de duplicação, alterações químicas e físicas do DNA, mudanças adaptativas e desadaptativas no fenótipo e intensificação da taxa de mutação. Por meio deles, a Teoria Especial da Evolução (sobre o surgimento de novas espécies) foi amplamente confirmada, porém a Teoria Geral (sobre a origem de grupos maiores) não o foi. Tanto é que múltiplos pontos dela foram corrigidos pela Teoria Sintética.
O erro que culminou na eliminação do paradigma da criação ocorreu exatamente nessa transição da Teoria Geral da Evolução, de autoria do próprio Darwin, para a Teoria Sintética dos neodarwinistas. Vários problemas contribuíram para o equívoco. Os mais importantes foram: a) o fato de o paradigma da criação funcionar em linguagem teológica, e o da Teoria Sintética, em linguagem biológica; b) a paralisação da exegese de Gênesis 1 a 5 no estágio em que os escritores patrísticos a deixaram. Tratarei desse último problema nos parágrafos abaixo.

OS SEIS DIAS

A palavra dia (em hebraico yom), no primeiro capítulo de Gênesis, pode significar um período de 24 horas ou de extensão indeterminada. Com base nesse último significado, já se propôs que a criação dos seis dias se deu em seis eras.
Em 1876, quando publicou Earth’s earliest ages, George Hawkins Pember combateu a interpretação dos dias como eras geológicas, por entender que a palavra yom pode significar período indeterminado, mas o mesmo não ocorre com os termos tarde e manhã, em que os dias da criação se dividem e que só podem indicar as metades dos ciclos de 24 horas (Earth’s earliest ages. 2ª ed. 1884. pp. 87-88).
Essas dificuldades da compreensão dos dias como eras levaram Pember a explicar os fósseis de seres vivos que viveram há milhões de anos, por meio da teoria do intervalo entre Gênesis 1:1 e 1:2. O primeiro desses versículos descreve a criação original dos céus e da Terra. Pember explicou os fósseis como remanescentes desse período, em que a Terra foi amplamente habitada por seres vivos. Até que um cataclisma introduziu o caos do segundo verso. Então, durante os seis dias, Deus recriou o que fora destruído pelo cataclisma.

terra devastada

 É preciso lembrar que, após mais de um século da publicação de Earth’s earliest ages, está claro que nem o evento extintivo, nem a recriação mencionados na obra podem ter ocorrido há poucos milhares de anos, como Pember supôs. A impressão que se tem é de que, do modo como foi elaborada, a teoria do intervalo troca uma criação há 6.000 anos por uma extinção e uma recriação nessa mesma época, o que pouco altera o descompasso de Gênesis com a evidência científica, já que as provas de uma Terra jovem são tão inexistentes quanto as de uma extinção em massa há apenas alguns milhares de anos.
Os problemas da teoria de Pember só desaparecem, quando a adotamos juntamente com a interpretação dos dias como períodos indeterminados, que fazem o grande cataclisma e a recriação recuarem indefinidamente. O intervalo de Gênesis 1:1-2 permite entender os seis dias como uma progressiva passagem do caos à ordem. Essa transição explica por que as palavras tarde e manhã foram empregadas, em cada um dos seis dias: como período de trevas, tarde refere-se metaforicamente ao caos (ou à ordem inferior) existente antes de Deus intervir; já a palavra dia indica a nova ordem implantada pela intervenção divina.
Essa reinterpretação de tarde e manhã permite explicar ainda outras características do texto da criação. Por exemplo: todos os seis primeiros dias são encerrados pela expressão “Houve tarde e manhã, o dia tal”. Só no sétimo dia, essas palavras não aparecem. A omissão pode ser explicada, com base em que, no sétimo dia, a obra de Deus estava completa. Não havia mais caos ou ordem inferior, apenas a ordem sublime da criação divina.
No entanto, apesar dessas vantagens, assim como ocorre com a teoria do intervalo, os dias-eras são uma ideia, que não se sustenta sozinha. Tomadas sozinhas, as eras de Gênesis 1 formam uma sequência bastante distinta da que a ciência descobriu. O caso mais conspícuo de divergência é o aparecimento das aves voadoras e das grandes baleias antes dos répteis, na narrativa bíblica, o que contraria os dados científicos. Porém, é notável que, ao serem adotadas simultaneamente, as teorias do intervalo e dos dias-eras eliminam toda e qualquer incompatibilidade do relato da criação com as descobertas da ciência.
CRIAR E FAZER

A ideia de criação do Universo e do homem por Deus só assumiu importância decisiva, em Israel, nos últimos séculos antes de Cristo. São dessa época as principais passagens do Antigo Testamento e o versículo de 2º dos Macabeus sobre o tema: “Suplico-te, meu filho, que olhes para o céu e para a terra e para todas as coisas que há neles, e que penses bem que Deus as criou do nada, assim como todos os homens” (2 Mc 7:28).
Mas, em que pese a efervescência da ideia de criação, entre os séculos VI e I a. C., não há registros de que a recriação tenha sido discutida ou conhecida, nessa época. Nem Macabeus, nem Flávio Josefo, nem Fílon a mencionam. Como é claro que uma variante tão fundamental de Gênesis quanto essa teria sido registrada, se houvesse sido cogitada, o fato de não existir registro ou sinal dela, na literatura, parece indicar que a ideia permaneceu desconhecida na Antiguidade. Ou, em outras palavras, que ela permaneceu como um dado do pano de fundo de Gênesis.
A inserção da recriação, no pano de fundo de Gênesis 1, não contradiz as práticas literárias dos séculos antes de Cristo. Métodos esotéricos (permitam-me utilizar a palavra, não no sentido pejorativo, mas no de ensinamento restrito a poucas pessoas) de composição e transmissão de textos eram muito comuns nesse tempo. Há pouca dúvida de que tenham sido empregados também em Israel, como estratégia de defesa contra os mecanismos de controle ideológico concentrados no Templo de Jerusalém.
Para não ser marginalizado ou perseguido, pelas autoridades religiosas, que viam a criação de outro modo, provavelmente, o autor de Gênesis 1 inseriu a recriação no pano de fundo do texto que redigiu, reservando o primeiro plano para a criação original. Esse pano de fundo não foi percebido, pelo compilador ou editor final de Gênesis, nem pelas pessoas que abordaram o capítulo, desde que foi escrito, por terem mentalidade mais próxima da que o versículo de 2º dos Macabeus exprime.
Mas, embora oculta, a presença da idéia de recriação em Gênesis 1 não deve ser negada, como Pember mostrou. Para a mente hebraica, o caos no versículo 1:2 não pode ser entendido à moda da mitologia grega. Ao invés de ser uma consequência de muitos deuses que governam o mundo juntos, ele deve indicar uma mudança radical na condição de trabalho original de Deus. E as palavras que descrevem o trabalho de Deus, no final dos seis dias, também exigem a idéia de recriação, já que não afirmam que Deus realizou toda a sua criação, mas só a concluiu em Gênesis 1: "Assim, os céus, a terra e tudo seu anfitrião se acabaram. E no sétimo dia Deus terminou sua obra que tinha feito "(Gn 2.1-2). Notem que a frase "no sétimo dia Deus terminou sua obra" não significa que ele nada fez nesse dia, mas que fez alguma coisa e terminou.
Portanto, o texto descreve a criação original e mostra indícios da recriação em seu fundo. Uma das melhores maneiras de diferenciar as dimensões da criação e da recriação, em Gênesis 1, é considerar os significados dos verbos usados​​. Em As eras mais primitivas da Terra, G. H. Pember diferenciou as palavras bara e asah, usadas pelo escritor sagrado para descrever os atos criadores de Deus. De acordo com ele, bara significa criar sem matéria preexistente, e asah, criar a partir de um material.
Porém, se adotarmos essa diferença, teremos de concluir que ela vigora no capítulo 1, mas não no capítulo 2, pois as aves foram criadas, em 1:21, e formadas da terra, em 2:19. Semelhantemente, a mulher foi criada, em 1:27, e formada a partir da costela do homem, em 2:21-22.
O fato de a diferenciação entre bara e asah estar enraizada no primeiro, mas não no segundo capítulo de Gênesis confirma que o editor final do livro não a percebeu. Se a tivesse notado, no mínimo, ele teria mantido a distinção, no capítulo 2, o que não aconteceu. Mais provável é que a tivesse divulgado e que a doutrina variante houvesse sido registrada, por outros autores, o que vimos não ter ocorrido, pois a literatura antiga não a menciona.
Essas ideias são reforçadas pela atribuição muito comum dos capítulos iniciais da Bíblia a autores distintos, que viveram em épocas também distintas. A atribuição permite explicar por que o capítulo 1 adota a distinção entre os verbos, enquanto o capítulo 2 não o faz. Na verdade, o primeiro texto foi escrito numa época por certo autor, e o outro, numa outra época, por outro autor. Como a doutrina implícita em Gênesis 1 não foi divulgada, a divergência entre os capítulos não foi corrigida nem debatida.
E. F. Kevan modificou ligeiramente a diferenciação de Pember. Ele afirmou que asah é empregado para atos de criação de seres preexistentes, e bara, para atos de criação de seres totalmente novos. Nas palavras do próprio Kevan: “O principal é sublinhar o significado de bara que apenas supõe a produção dum ser, completamente novo, que antes não existia”.
A observação consta num comentário sucinto do Livro de Gênesis (O Novo Comentário da Bíblia. São Paulo: Vida Nova. Vol. I, p. 83). Não se segue a demonstração de que a diferença apontada se aplica aos diferentes aparições da palavra em Gênesis. Podemos propor uma demonstração, observando que bara é usado apenas para a criação dos seres que recebem a bênção de Deus. É o caso das aves, das grandes baleias e do homem. A criação de todos os demais seres é descrita por outros verbos.
O princípio subjacente à demonstração é de que Deus não consagra, nem atribui sua bênção em vão. No contexto da criação, ele o faz porque o ser consagrado passou à existência naquele momento. E se for realmente assim, a palavra bara estará a indicar os seres que vieram à existência durante os seis dias, e asah (e outros verbos), a recriação de seres que haviam existido antes. Portanto, para o autor original, criar não é apenas gerar, produzir, mas também abençoar, consagrar. A bênção divina é o que introduz cada tipo de ser na existência. Ela inaugura a espécie.
A palavra gênese (em hebraico, toledot), nesse versículo, significa história. Indica, portanto, a história do capítulo 1 ou a do capítulo 2. Como esta não narra a criação dos céus, mas a de um jardim e de Adão, o verso só se pode referir aos sete dias. E as palavras "quando foram criados" só podem indicar que os sete dias contêm as origens, a formação inicial, dos céus, da terra e dos seres neles existentes. De sorte que os dias em que o verbo bara não aparece tratam da recriação, mas recapitulam a criação.
As observações acima permitem-nos identificar duas sequências de atos de criação, que se sobrepõem: uma sequência designada pela palavra asah e outra composta com bara. A sequência de atos indicados por asah inclui a formação do firmamento (v. 7), dos luzeiros (v. 16), dos répteis, dos animais selvagens, dos domésticos (v. 25) e do homem (v. 26). Se quisermos, podemos acrescentar os itens não designados por qualquer dos dois verbos, assim como a luz do primeiro dia, o oceano e as nuvens. Já a sequência de bara, é composta com as aves, as grandes baleias (v. 21) e o homem (v. 27).
Resumindo: deve existir uma diferença entre bara e asah. Do contrário, a cosmogonia de Gênesis não empregaria os dois verbos. No entanto, as diferenciações até hoje propostas, em geral, falharam. A que parece resistir melhor às críticas é a que reconhece que bara refere-se a atos criadores originais, e asah, a atos de recriação. Mas essa exata diferença quebra a sequência de origens no quinto dia, cujos itens foram criados (bara), deslocando-os para o final da série construída com outros verbos. É importante lembrar que a posição dos seres do quinto dia (aves voadoras e grandes baleias) constitui o ponto de maior contraste entre o relato bíblico da criação e a ciência. E que só uma diferença tão assinalada, no texto bíblico, quanto a que se estabelece entre bara e asah, apresenta o potencial de eliminar referido contraste, sem o emprego de artifícios ou passos de interpretação mirabolantes.

AS SEQUÊNCIAS

Vimos que o verbo bara (criar) é usado só para os seres que Deus formou pela primeira vez. Com esse significado, o termo aparece em Gênesis 2:4: “Esta [a história dos seis dias] é a gênese dos céus e da terra, quando foram criados [bara]”.
Claramente, o versículo se refere aos dias de Gênesis 1 como a criação dos céus e da terra, portanto como o detalhamento do que está afirmado concisamente no verso “No princípio, criou Deus os céus e a terra” (Gn 1:1). Desejo mostrar que esse sentido dos dias da criação, quando comparado aos dados científicos, nos permite realizar um achado verdadeiramente maravilhoso.
No primeiro dia, Deus disse: “Haja luz. E houve luz” (Gn 1:3). A luz do primeiro dia era muito mais fraca que a que surgiu com os luzeiros. Se os dias descrevem a criação original, podemos comparar o primeiro deles ao estado da Terra, logo que foi criada. O físico Fred Hoyle descreve esse estado da seguinte maneira: “É este o quadro correspondente às primeiras centenas de milhões de anos da história da Terra [...] um período de formidável devastação, durante o qual a superfície da Terra foi atingida por uma chuva de objetos que, devido à maior gravidade da Terra, deve ter sido mais destrutiva do que o intenso bombardeamento que simultaneamente produzia a paisagem marcada da Lua” (HOYLE, Fred. O universo inteligente – uma nova perspectiva da criação e da evolução. Lisboa: Presença, 1983. pp. 70-71).
Outro físico, Robert Jastrow, descreve o final do primeiro bilhão de anos da Terra nos seguintes termos: “A terra está com um bilhão de anos de idade. Há uma friagem no ar, pois o sol é um astro jovem e relativamente fraco, irradiando apenas a metade do calor e da luz que irá produzir mais tarde” (JASTROW, Robert. Até que o sol se apague. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1980. p. 29).
Se com um bilhão de anos, a Terra era banhada por metade da luz existente hoje, pois o sol era jovem demais, uma quantidade ainda menor de radiação luminosa existia quando ela se formou. E se o planeta era bombardeado constantemente por corpos celestes, temos de convir que a poeira erguida diminuía ainda mais a luminosidade. Alguém negará que esse cenário é convergente com o da luz tênue de Gênesis 1:3? Se os seis dias registram os atos criadores de Deus, pode-se concluir que o primeiro o faz com admirável precisão.
Avancemos, porém, ao segundo dia, quando Deus fez o firmamento (a atmosfera), entre as águas de baixo (o oceano) e as de cima (as nuvens). É ainda Robert Jastrow quem diz: “Assim que a terra se formou, os átomos radioativos contidos no planeta começaram a desintegrar-se, um a um. Ao liberar suas pequenas cargas de energia, aqueceram as rochas internas [...] setecentos milhões de anos depois [...] lá em cima, nos pontos fracos, a rocha fundida irrompeu pela crosta terrestre, um vulcão entrou em erupção na superfície e uma torrente de lava foi derramada. Surpreendentemente, essa lava foi a fonte da atmosfera e dos oceanos da terra” (idem. pp. 29-30). Um terceiro cientista, Hubert Reeves, assim relata a formação dos mares: “Quando o planeta se reveste de vasta e densa atmosfera, a água se condensa. Chove como nunca mais choverá. Chovem todos os oceanos” (REEVES, Hubert. Um pouco mais de azul – a evolução cósmica. São Paulo: Martins Fontes, 1986. p. 91).
Por essas descrições se vê que a atmosfera e o oceano foram formados, após 700 milhões de anos de existência da Terra a girar pelo espaço. Esse marco corresponde ao início do segundo dia de Gênesis, no qual os mares e a atmosfera foram constituídos. Portanto, mais uma vez, há manifesta coincidência entre o relato bíblico e a sequência de origens penosamente descoberta pela ciência.
O período seguinte ao da formação da atmosfera e do oceano é descrito nos seguintes termos pelo cientista: “Um mar raso cobre a superfície do planeta. Suas águas são estéreis; nelas, a vida brotará mais tarde, embora ainda não tenha surgido” (JASTROW, Robert. Ob. cit. p. 31). Se a terra emergiu das águas, no terceiro dia, é porque havia estado inundada, como o texto citado esclarece. Nessa época, nenhum ser vivente havia sido formado. De novo, a descrição de Gênesis se mostra maravilhosamente compatível com a da ciência.
Jastrow prossegue: “A terra já deixou seu primeiro bilhão de anos para trás; hoje, no segundo dia de vida [metáfora usada por ele para facilitar o entendimento da evolução], o planeta adormecido remexe-se incansavelmente [...] A intensidade do movimento aumenta; logo as profundezas são devastadas por convulsões, e o topo dos primeiros continentes ergue-se acima do nível do mar” (idem. p. 35). Um bilhão de anos nos remete ao período que se seguiu à formação da atmosfera e dos mares. Portanto, ao terceiro dia de Gênesis, quando a terra emergiu das águas. Não estamos, de novo, diante de uma convergência espantosa entre a Bíblia e a ciência?
Poderíamos parar a análise neste ponto, posto que a formação estrutural do planeta, antes do surgimento dos seres vivos, está concluída. Se o fizéssemos, já teríamos o desafio formidável de explicar a concordância do texto analisado com descobertas científicas realizadas milênios depois da sua redação. Claro que o desafio seria insuperável, independentemente do que viéssemos a concluir sobre a formação dos seres vivos.
Porém, prossigamos. Talvez nossos olhos estejam a iludir-nos... Talvez um feitiço, como os de Janes e Jambres, nos tenha paralisado. Ainda no terceiro dia, Gênesis narra a criação dos vegetais terrestres. Os dados científicos mostram que as primeiras plantas terrestres do registro fóssil têm entre 500 e 470 milhões de anos (Revista Nature, 30/11/2000). As primeiras árvores de grande porte, chamadas archaeopteris, são de 370 milhões de anos atrás (Nature, 22/04/1999). Esse período pode perfeitamente corresponder à segunda parte do terceiro dia (yom), se cada dia (yom) for tomado como uma era de duração indefinida.
No quarto dia, é narrada a criação dos luzeiros. Sobre esse ponto, a sempre útil narrativa de Jastrow assevera: “Rochas a mil quilômetros abaixo da superfície do planeta, parcialmente derretidas e transformadas por calor e pressão intensa, começaram a abrir caminho para cima. Material derretido atingiu a superfície; vulcões entraram em erupção [...] Essas mudanças ocorreram, no interior e na superfície da terra, há trezentos e cinqüenta milhões de anos. Durante os cem milhões de anos anteriores àquele período, o interior da terra repousava em calma” (JASTROW, Robert. Ob. cit. p. 40).
O intenso vulcanismo a que o texto se refere surgiu logo depois do aparecimento dos primeiros vegetais e ergueu uma espessa camada de gases, em muitos pontos do planeta. Esses gases impediram que os luzeiros (sol, lua e estrelas) fossem vistos no céu. A obra do quarto dia, portanto, coincidiu com o fim do vulcanismo e o desanuviamento da atmosfera terrestre, há 350 milhões de anos. Desse modo, é de novo mantida a maravilhosa concordância entre os discursos bíblico e científico.
O quinto dia não se aplica à criação original da Terra, pois os itens nele originados foram criados pela primeira vez e abençoados por Deus. Devemos, então, saltar para o sexto dia, quando foram formados os répteis, os animais selvagens e os domésticos. Na Bíblia, répteis são seres rastejantes, sem asas e dotados ou não de patas.
O período seguinte ao da formação da atmosfera e do oceano é descrito nos seguintes termos pelo cientista: “Um mar raso cobre a superfície do planeta. Suas águas são estéreis; nelas, a vida brotará mais tarde, embora ainda não tenha surgido” (JASTROW, Robert. Ob. cit. p. 31). Se a terra emergiu das águas, no terceiro dia, é porque havia estado inundada, como o texto citado esclarece. Nessa época, nenhum ser vivente havia sido formado. De novo, a descrição de Gênesis se mostra maravilhosamente compatível com a da ciência.
Jastrow prossegue: “A terra já deixou seu primeiro bilhão de anos para trás; hoje, no segundo dia de vida [metáfora usada por ele para facilitar o entendimento da evolução], o planeta adormecido remexe-se incansavelmente [...] A intensidade do movimento aumenta; logo as profundezas são devastadas por convulsões, e o topo dos primeiros continentes ergue-se acima do nível do mar” (idem. p. 35). Um bilhão de anos nos remete ao período que se seguiu à formação da atmosfera e dos mares. Portanto, ao terceiro dia de Gênesis, quando a terra emergiu das águas. Não estamos, de novo, diante de uma convergência espantosa entre a Bíblia e a ciência?
Poderíamos parar a análise neste ponto, posto que a formação estrutural do planeta, antes do surgimento dos seres vivos, está concluída. Se o fizéssemos, já teríamos o desafio formidável de explicar a concordância do texto analisado com descobertas científicas realizadas milênios depois da sua redação. Claro que o desafio seria insuperável, independentemente do que viéssemos a concluir sobre a formação dos seres vivos.
Porém, prossigamos. Talvez nossos olhos estejam a iludir-nos... Talvez um feitiço, como os de Janes e Jambres, nos tenha paralisado. Ainda no terceiro dia, Gênesis narra a criação dos vegetais terrestres. Os dados científicos mostram que as primeiras plantas terrestres do registro fóssil têm entre 500 e 470 milhões de anos (Revista Nature, 30/11/2000). As primeiras árvores de grande porte, chamadas archaeopteris, são de 370 milhões de anos atrás (Nature, 22/04/1999). Esse período pode perfeitamente corresponder à segunda parte do terceiro dia (yom), se cada dia (yom) for tomado como uma era de duração indefinida.
No quarto dia, é narrada a criação dos luzeiros. Sobre esse ponto, a sempre útil narrativa de Jastrow assevera: “Rochas a mil quilômetros abaixo da superfície do planeta, parcialmente derretidas e transformadas por calor e pressão intensa, começaram a abrir caminho para cima. Material derretido atingiu a superfície; vulcões entraram em erupção [...] Essas mudanças ocorreram, no interior e na superfície da terra, há trezentos e cinqüenta milhões de anos. Durante os cem milhões de anos anteriores àquele período, o interior da terra repousava em calma” (JASTROW, Robert. Ob. cit. p. 40).
O intenso vulcanismo a que Jastrow se refere coincidiu com a colisão de um meteorito com a Terra, há 360 milhões de anos. A colisão resultou numa gigantesca cratera descoberta em 2013 na bacia de East Warburton, no sul da Austrália, que tem 10 a 20 km de diâmetro. De acordo com Andrew Glikson, professor convidado da Universidade Nacional da Austrália, "o que realmente impressiona é a extensão da zona de impacto, de no mínimo 200 km (de diâmetro), o que torna a terceira maior superfície no mundo impactada por um corpo celeste”. Glikson concluiu que a queda desse asteroide, há 360 milhões de anos, provocou um "impacto regional e mundial" (GLIKSON, Andrew. UOL News. 20/02/2013, 19h32). Não é preciso acrescentar que esse evento cataclísmico ajusta-se com precisão aos fatos do final do terceiro dia da criação. Portanto, a obra do quarto dia consistiu no desanuviamento da atmosfera terrestre, após a colisão do meteorito e o surto de vulcanismo descritos.
O quinto dia não se aplica à criação original da Terra, pois os itens nele originados foram criados pela primeira vez e abençoados por Deus. Devemos, então, saltar para o sexto dia, quando foram formados os répteis, os animais selvagens e os domésticos. Na Bíblia, répteis são seres rastejantes, sem asas e dotados ou não de patas.
Os répteis bíblicos surgiram abundantemente, no registro fóssil, entre 350 e 250 milhões de anos. Portanto, após o fim do vulcanismo do quarto dia. Os primeiros animais quadrúpedes, de nome complicado (tecodontes e terapsidas), datam da mesma época. Sobre eles, a Wikipedia discorre: “Os tecodontes [...] apareceram pela primeira vez no Permiano e floresceram até ao fim do período Triássico”; “Os terapsídeos surgiram no período Permiano”. A enciclopédia situa o Permiano, entre 299 e 251 milhões de anos atrás. Portanto, também os primeiros animais não rastejantes surgiram, no ponto exato da História da Terra em que a sequência bíblica os localiza.
Voltemos, porém, rapidamente, ao quinto dia, em que só temos seres criados, e à parte do sexto dia que trata da origem do homem. Por serem descritos pelo verbo bara, esses períodos sucedem a criação original dos seres associados a asah e a outros verbos. No texto anterior, mostramos que, assim opostos, os verbos de Gênesis 1 mostram sequências de origens consecutivas e que a sequência de asah vem antes da de bara. É importante registrar que, assim como corroboram a primeira sequência, os dados científicos dão apoio também à última. A Paleontologia mostra que as aves voadoras, as baleias e o homem surgiram, após os tecodontes e os terapsidas: as primeiras há 212 milhões de anos (Nature. 27/06/2002. Citada em Folha de S. Paulo. 27/06/2002. p. A 15), as baleias ancestrais (plesiossauros), há 150 milhões (Folha de S. Paulo. 28/02/2008. p. A 18), e o homem atual, há aproximadamente 200 mil.
As linhas acima resumem o resultado da aplicação dos seis dias à criação original. A comparação com as descobertas científicas mostra que os dias reconstituem, de modo maravilhoso, a exata sequência de origens dos itens estruturais e dos seres vivos da Terra. Janes e Jambres não teriam feito melhor, ainda que tivessem lançado mão dos mais bem guardados segredos egípcios.
Ante tamanha convergência, será possível pensar que os sete dias descrevem apenas a recriação e não a criação original de Deus? Mais do que isso: será possível pensar que o capítulo 1 de Gênesis é um simples relato humano e não uma revelação divina? Ou que ele não constitui uma irrefutável evidência da criação?


OS RÉPTEIS E O TEMPO


A criação dos répteis é narrada nos versículos 24 e 25 de Gênesis 1 nos seguintes termos: “Disse também Deus: Produza a terra seres viventes, conforme a sua espécie: animais domésticos, répteis e animais selváticos, segundo a sua espécie. E assim se fez. E fez Deus os animais selváticos, conforme a sua espécie, e todos os répteis da terra, conforme a sua espécie. E viu Deus que isso era bom”.
Um dos pontos mais importantes para a compreensão desses versos é o sentido da palavra espécie. Não é incomum ela ser entendida como se tivesse sido empregada no plural, porém, no hebraico, a palavra se encontra no singular. Por isso, cada grupo de seres vivos mencionado no texto constitui uma espécie e não várias.
Isso muda bastante a interpretação, em relação à que nos é sugerida pelo emprego da palavra espécies, no plural. Se estivesse escrito que Deus criou os animais domésticos e selvagens conforme as suas espécies, teríamos de entender que ele criou todas as espécies desses grupos. Mas não é isso que está afirmado e sim que Deus criou os animais domésticos segundo a sua espécie, no singular, os selvagens conforme a sua espécie e os répteis, também, de acordo com a sua única espécie.
O significado disso não pode ser outro, a não ser que os animais domésticos formam uma espécie, no sentido bíblico da palavra, os selvagens, uma espécie, e os répteis também uma espécie. Felizmente, não é difícil estabelecer o sentido de cada uma dessas espécies para os judeus, uma vez que só há uma classificação de animais na Bíblia: a de Levítico 11, repetida em Deuteronômio 14:3-21. Não há informação de que os judeus tenham usado qualquer outra classificação além dessa, até muito tempo depois da redação do Novo Testamento.
Em Levítico 11:2-8, um grupo de quadrúpedes é mencionado, que inclui o camelo, o arganaz, a lebre e o porco. O mesmo grupo aparece em Deuteronômio 14:4-8, porém, além desses quatro animais, vários outros são citados: o boi, a ovelha, a cabra, o veado, a gazela, a corça, a cabra montês, o antílope, a ovelha montês e o gamo. Com exceção do arganaz e da lebre, todos os outros são animais com quatro pernas grandes. Essa é a principal característica anatômica do grupo. A outra é o fato de incluir animais que têm a unha fendida e o casco dividido, além dos não plantígrados (que não andam sobre as plantas dos pés).
Alguns animais desse grupo são domesticáveis, outros não. A cabra montês é descrita como não domesticável em Jó 39:1-4. O veado, a gazela, a corça, o antílope e o gamo podem ser mantidos em cativeiro, mas tampouco são domesticáveis. Esses são animais ditos selvagens. O camelo, o boi e o porco, por sua vez, são domesticáveis. Embora não citados, o cão, o gato e outros animais também estão incluídos nesse grupo. Portanto, os quadrúpedes bíblicos incluem tanto os animais domésticos quanto os selvagens de Gênesis 1.
Saltemos os grupos que não nos interessam diretamente, aqui, por não serem mencionados em Gênesis 1, assim como os peixes e os insetos, claramente definidos em Levítico. As aves mencionadas no quinto dia da criação também aparecem em Levítico como um grupo definido. E os répteis são mencionados nos versos 29-30 e 43-44.
Assim, uma classificação completa dos animais é fornecida em Levítico, incluindo um grupo de quadrúpedes (domésticos e selvagens), um de peixes, um de aves, um de insetos e dois de répteis. A base da classificação é o modo de locomoção dos animais: sobre pernas, sobre o ventre, sobre pés, por meio de nadadeiras ou com asas. E, para não restar dúvida de que cada grupo é tido como definido e estanque, cada qual possui um critério de pureza ritual distinto: para os quadrúpedes, o critério é a ruminação, a posse de unhas fendidas e casco dividido e o fato de não ser plantígrado; para os peixes, são as barbatanas e escamas; para as aves é pertencer a um rol definido de espécies consideradas puras; para os insetos, é ter pernas traseiras mais compridas que as dianteiras.
Os grupos de répteis são dois e não um, por motivos, a meu ver, também claros. O primeiro é o fato de nenhum dos animais dos versos 29 e 30 ser artrópode (miriápode, aracnídeo etc.). Os do versículo 42 (“tudo o que anda sobre o ventre, e tudo o que anda sobre quatro pés ou que tem muitos pés”), ao contrário, são basicamente artrópodes. Portanto, do ponto de vista anatômico, há tão boas razões para diferenciar os animais de 29 e 30 dos do versículo 42 quanto há para distingui-los dos quadrúpedes de 2 a 8.
Além disso, os critérios de pureza dos grupos de 11:29-30 e de 11:42 são diferentes. Todos os integrantes do primeiro grupo têm quatro pés, porém a maioria é considerada pura. Só oito espécies são impuras. No segundo grupo, ao contrário, todos os seres de quatro pés ou que têm muitos pés (miriápodes) são impuros. Por exclusão, só os que têm seis pés (hexápodes) são considerados puros. Esses critérios tão bem diferenciados de pureza confirmam que tratamos de grupos distintos.
Ambos os grupos de répteis são mencionados em Gênesis 8:19, que afirma que “todos os animais, todos os répteis, todas as aves e tudo o que se move sobre a terra” saíram da arca de Noé. O grupo de Levítico 11:29-30 são "todos os répteis" mencionados em Gênesis 8:19; o de Levítico 11:42-43 é o composto por “tudo o que se move sobre a terra”. De sorte que não há dúvida que a Bíblia e Gênesis, em particular, referem-se a dois grupos de répteis e não somente a um.
No entanto, Gênesis 1:25 afirma que Deus fez “todos os répteis da terra, conforme a sua espécie”. O termo espécie, no singular, significa que apenas um dos grupos de répteis de Levítico 11 e de Gênesis 8:19 foi criado no sexto dia. De novo, há pouca dúvida de que o grupo foi aquele do qual os artrópodes estão excluídos, já que, no quarto dia, Deus criou os luzeiros a fim de servirem “para sinais e para estações”. Plantas não se orientam por sinais emitidos por corpos celestes. Portanto, a referência deve ser a algum animal terrestre. Como os marinhos do quinto dia e os terrestres do sexto ainda não tinham sido produzidos, restam os artrópodes, aos quais a referência aos sinais e às estações parece ter sido feita. Portanto, eles já deviam existir no quarto dia.
Por esses motivos, podemos concluir que apenas os seres do grupo dos répteis superiores de Levítico 11:29-30 foram feitos no sexto dia. De todos os pontos da teoria da criação que tenho defendido na presente série, este é um dos mais decisivos, pois alude a um número muito grande de formas de vida ("todos os répteis").
Com base na diferença entre os verbos criar (em hebraico, bara) e fazer (asah), que discutimos em outro texto, sabemos que os seres criados não haviam existido antes, ao passo que os que foram feitos em Gênesis 1, na verdade, foram recriados. Um dos motivos desse entendimento é o fato de Gênesis 1:1-2:4 ter sido escrito com o propósito de contar a história das origens, o que está manifesto não só na narrativa dos sete dias como no versículo final da passagem, que afirma expressamente: “Esta é a gênese dos céus e da terra” (Gn 2:4).
Como a opção do autor sagrado foi narrar as origens por uma sequência de dias, estamos diante de duas e somente duas alternativas: se não admitirmos que houve recriação, mas apenas criação, os dias narrarão uma só sequência de atos divinos; porém, se reconhecermos como válida a interpretação de que houve uma criação original e uma recriação, teremos duas séries de atos originadores e não uma só.  Nesse último caso, os dias serão aplicados em sequência tanto à criação original quanto à recriação, com a única exceção do quinto e da última parte do sexto dias, durante os quais Deus criou seres antes inexistentes.
Assim, a diferença entre criar e fazer é o critério que nos permite compor a sequência em que a criação original se deu. Essa sequência é constituída pelos quatro primeiros dias e pela primeira parte do sexto. Quando a comparamos com a série de origens que a ciência descobriu, temos a seguinte situação:

Texto Bíblico
Origem dos Mesmos Itens Segundo a Ciência
1º dia (origem da luz)
4,5 a 3,9 bilhões de anos atrás
2º dia (origem da atmosfera, das nuvens e do oceano)
3,9 a 3,5 bilhões de anos atrás
3º dia (origem da crosta terrestre, das ervas e árvores frutíferas)
3,5 bilhões a 360 milhões de anos atrás
4º dia (origem dos luzeiros - desanuviamento da atmosfera)
360 milhões de anos atrás
1ª parte do 6º dia (origem dos animais terrestres)
360 milhões a 50 milhões de anos atrás

Como mostrei detalhadamente em A hipótese de Darwin, a tabela acima recorda que, de acordo com os dados científicos disponíveis, os itens da criação original surgiram na exata sequência dos dias de Gênesis 1. Claro que essa interpretação depende de entendermos os quatro dias e meio como eras, mas essa é uma das traduções possíveis da palavra hebraica yom (dia), o que também demonstrei no meu livro.
É importante recordar, ainda, que a origem dos corpos celestes mencionada na tabela consistiu no desanuviamento da atmosfera, após a colisão de um meteorito com a Terra, há 360 milhões de anos. A colisão foi com-provada pela descoberta, em 2013, de uma gigantesca cratera na bacia de East Warburton, no sul da Austrália, com nada menos que 10 a 20 km de diâmetro. O cientista Andrew Glikson, da Universidade Nacional da Austrália, declarou que a queda desse asteroide provocou um "impacto regional e mundial" (GLIKSON, Andrew. UOL News. 20/02/2013, 19h32)
Esse evento cataclísmico marca o momento em que a obra do quarto dia ocorreu. O período dos répteis começou não muito depois, do ponto de vista da escala geológica de tempo. Assim, além dos itens cuja origem está mencionada na tabela (luz, atmosfera etc.), temos de situar a criação de "todos os répteis" entre 360 milhões e 50 milhões.
Felizmente, a época da origem desse grande número de formas de vida pode ser obtida na Wikipedia. De 123 famílias de animais com as características dos répteis de Gênesis 1:24-25 e Levítico 11:29-30 que pude pesquisar nessa fonte, 92 se originaram entre 360 e 50 milhões de anos atrás, somente cinco surgiram depois, nenhuma antes. Sobre 26 famílias não são fornecidas informações.
Isso significa que temos 92 outras localizações corretas de grupos de seres vivos, além das compreendidas na tabela. Para formarmos uma noção, ainda que grosseira, do que isso significa, basta considerarmos quantas combinações desses 92 itens com os demais mencionados nos quatro dias e meio são possíveis. O link http://matematica2.no.sapo.pt/ 12ano/Matemilhoes2.htm nos ajuda a estimar esse número, pois calcula quantas combinações de apostas a partir dos 49 números da loteria conhecida como Totoloto são possíveis. A resposta é 13.983.816.
O cálculo é simples. Para ganhar no Totoloto, um apostador precisa acertar a combinação de seis dos 49 números incluídos no sorteio. Não é necessário acrescentar que a chance de alguém acertar a combinação “certa” é quase zero, pois, do contrário, a loteria não existiria por absoluta falta de meios para pagar os prêmios.
Que dizer das /92 famílias de seres vivos localizadas corretamente em Gênesis 1? Na realidade, a escolha dos grupos de seres vivos que compõem a sequência bíblica é muito mais improvável do que a dos números da loteria, já que 92 não é o número de opções das quais devemos escolher as que integrarão a sequência de seres vivos. As 92 famílias de répteis estão para a sequência bíblica como os seis números sorteados estão para a Totoloto. Portanto, o número de opções das quais devemos retirar as 92 famílias é muito maior. Ele é igual ao número total de famílias de seres vivos que o homem antigo conhecia. Portanto, além das 92 famílias de répteis, precisamos considerar as de plantas, de árvores, de peixes, de artrópodes etc. que eram do conhecimento do homem antigo.
O número de famílias desses outros grupos é muito maior que o de répteis, o que aumenta a dificuldade de acertar a sequência correta de itens. Se a sequência correta contém 92 itens (na verdade, tem mais de 100, pois inclui também os seres inanimados), o universo do qual elas foram retiradas é muito maior. Certamente, inclui milhares de combinações diferentes de famílias de seres vivos que podiam ter sido mencionadas em lugar da que encontramos no texto bíblico. 
Quantas formas de peixes diferentes, quantos insetos, quantos artrópodes os antigos conheciam? A verdade é que não sabemos. Porém sabemos que eram muitíssimas. Quantos peixes, insetos e outros artrópodes conhecia Aristóteles, que escreveu uma História dos animais com centenas de páginas, em que se refere um sem-número de seres vivos? Quando menciona “todos os répteis” e outros grupos de animais, a Bíblia não parte de um conhecimento muito inferior ao de Aristóteles, por um motivo simples: a necessidade de separar animais limpos de impuros foi levada a tal ponto, em Israel, que os judeus foram constrangidos a criar uma classificação extremamente abrangente e rigorosa dos animais para os padrões da Antiguidade.
Esse é um ponto importantíssimo. Sabemos por incontáveis testemunhos históricos que a necessidade de separar animais puros de impuros deixou de ser apenas religiosa para se tornar uma das bases da convivência social em Israel. Por isso, os judeus criaram a ampla classificação de animais puros e impuros que encontramos em Levítico e Deuteronômio e que é repetida, com certa rigidez, ao longo de toda a Bíblia. É fundamental perceber que o único modo de um judeu decidir se um animal era puro ou impuro era criar uma classificação abrangente como eles fizeram. Por isso, por volta da época do Exílio babilônico, quando os judeus foram expostos a uma alimentação diferente daquela a que estavam habituados, deixou de ser concebível que a tábua de seres vivos da sua Lei não incluísse, ao menos, alguns milhares de animais. 
Assim, somos forçados concluir que, quando Gênesis 1 se refere aos grandes grupos de seres vivos, tais como ervas, árvores, aves e quadrúpedes, sem a palavra todos(as), a origem dos próprios grupos é mencionada. Porém, quando o versículo 25 alude a todos os répteis, algo diferente é implicado. A alusão não é ao grupo geral dos répteis, ou seja, à primeira espécie dele que veio a existir, mas a todas as espécies de seres compreendidas no grupo. Isso faz uma grande diferença, pois adiciona centenas e não apenas uma forma de vida à sequência bíblica.
Por tudo isso, o mais importante para entendermos as chances de menção da sequência correta de origens não é o número de seres vivos citados, efetivamente, em Gênesis 1, mas o número de seres conhecidos pelos antigos judeus. Só esse número permite termos uma ideia realista do grau de dificuldade envolvido em compor as sequências da criação e da recriação. É espantoso que esse número não seja 49, nem 92, mas milhares! E que desse número tenhamos de retirar não apenas um que foi colocado na posição correta da sequência de origens, mas 92!
Não é fácil entender corretamente o paralelo entre a sequência de origens de Gênesis e o Totoloto. Como a estrutura da sequência não é composta só pelos répteis do sexto dia, mas por todos os itens que se originaram nos outros dias, colocar um grupo de répteis no lugar correto dessa se-quência corresponde a acertar a Totoloto uma vez. Logo, colocar os 92 grupos nos lugares certos equivale a acertar 92 vezes consecutivas. Sem esquecer, é claro, que a Totoloto sorteia 6 números dentre 49, ao passo que os 92 grupos de répteis foram escolhidos dentre centenas ou mesmo milhares.
Sentemos e arrazoemos com toda calma: quantas combinações de centenas ou milhares de números inteiros são possíveis? Podemos até calcular, mas será debalde: não temos a menor noção da diferença entre um simples milhão e esse número desafiadoramente elevado. As ordens de grande-za envolvidas são tais que não somos capazes de compreender qual é, exatamente, a magnitude do acerto na escolha sequência de origens em Gênesis 1.
Terminamos? Ainda não. Temos de considerar ainda outras coisas que fazem aumentar o número de combi-nações possíveis de itens criados e feitos. Os resultados dos sorteios da Totoloto ou da Megasena são considerados apenas enquanto conjuntos de números. A tarefa de escolher a sequência certa de origens é muito mais complexa. Na verdade, é infinitamente mais complexa, pois, além de escolher os itens certos dentre milhares de outros, é preciso localizá-los numa estrutura de tempo, já que os seres vivos não foram criados em uma semana, nem em um mês. Não será de proveito algum colocarmos a sequência certa nos lugares errados da linha do tempo. Somente a sequência certa nos lugares certos será de proveito.
Dirão que a sequência bíblica não é datada. Que a Bíblia se limita a colocar os itens criados uns após os outros, sem localizá-los aqui ou ali no tempo. Acrescentarão que só a sequência científica é datada. Concordarei em parte. A sequência científica é realmente datada, mas em lugar ne-nhum de Gênesis está escrito que a bíblica é atemporal. Mais do que isso: a implicação é de que ela se ajusta à linha do tempo de uma só maneira dentre infinitas possíveis.
Quero dizer que a mesma sequência pode ser vista diferentemente, conforme a estiquemos mais ou menos na linha do tempo. De quantas maneiras distintas podemos enxergá-la? Sob quantas variações cronológicas podemos concebê-la? De infinitas maneiras e sob infinitas variações, já que o tempo e os números são infinitos. No entanto, a pretensão do texto bíblico não é afirmar que qualquer uma das infinitas maneiras e das infinitas variações da sequência no tempo é a verdadeira. A pretensão é afirmar que uma só maneira e uma só variação é a correta.
Isso implica que, à medida que um único fato (por exemplo, a origem dos oceanos) for identificado com um acontecimento específico na linha do tempo, a localização de cada um dos outros ficará fixada, necessariamente, antes ou depois dele. Esse método não nos leva a qualquer distribuição da sequência bíblica no tempo. Leva-nos a uma localização específica. Assim, quanto mais identificarmos os enunciados de Gênesis com fatos da História Cósmica, mais rígida a sequência ficará, no tocante ao seu significado crono-lógico. Como o tempo é infinito, a escolha da sequência certa de origens tende, desse modo, a se identificar com um número dentre infinitos outros.
Essa me parece a maneira mais correta de ex-trair o significado da sequência de origens de Gênesis. Façamos, porém, uma concessão a mais ao ceticismo. Digamos não estar claro se a sequência correta de origens foi sacada dentre infinitas outras possíveis, mas que essa é apenas uma hipótese. Ficamos, assim, com duas maneiras de estimar a dimensão do acerto da sequência correta. Uma maneira consiste em considerar que ela dispõe uma centena de itens dentre milhares de outros que poderiam ter sido citados, já que os judeus conheciam milhares de grupos de seres vivos. O número de combinações de milhares de itens é altíssimo, porém finito. Por outro lado, podemos considerar que a intenção de colocar cada ato de criação em paralelo com um evento cósmico permite entender que, ao realizar os paralelos corretamente, a sequência distribui os itens numa seção cada vez mais restrita do tempo infinito. Com isso, a chance de composição da sequência correta por acaso deve ser avaliada como um sobre um número infinito.
Que diferença faz, para uma ciência não alienada da práxis, um número entre milhões de milhões de outros e um número entre infinitos outros? As chances de escolha casual dos dois números não são iguais para todos os fins relevantes à existência do homem na Terra? E o uso que aqui fizemos da empiria aliada à matemática, para demonstrar as duas probabilidades, não é um método válido de demonstração científica? Por que não poderíamos chegar, por esse método, a estabelecer um fato?
Que é um fato? A criação é um fato? E a evolução? Em A hipótese de Darwin, admiti que ela o é e que a criação foi considerada por Darwin uma hipótese. Não é o caso de considerarmos que a hipótese foi confirmada?
No século IV d. C, Hilário de Poitiers expressou a diferença não apenas lógica, mas existencial que existe entre acreditar que o mundo é obra do acaso e que ele foi criado por Deus: "Não seria digno de Deus fazer participar do conselho e da prudência [isto é, atribuir dotes racionais], nesta vida, o homem [...] de tal sorte que aquele que não existia apenas seria trazido a este mundo para deixar de existir. Pelo contrário, deve entender-se que a única razão de ser de nossa criação está em que o que não era começasse a ser, e não em que o que começou a ser deixasse de existir (POITIERS, Hilário de. Tratado sobre a Santíssima Trindade. São Paulo: Paulus, 2005. p. 31).
É possível ignorar tão grande diferença? Ignorar que a descrença produz o incôngruo de um ser que aspira à imortalidade pelos seus dotes racionais existir apenas para deixar de existir? Não é mais racional pensar, com Hilário, que fomos amorosamente criados por Deus para que por ele tenhamos acesso à imortalidade?

A ORIGEM DE ADÃO

A geografia dos primeiros capítulos de Gênesis está envolta em mistério, em grande parte, porque o próprio texto bíblico não a esclarece. Porém, o mistério se agrava, em razão do hábito do leitor atual de projetar a disposição física da Palestina ou a visão contemporânea do espaço na época pré-diluviana. Nada disso vigorava, quando o texto foi composto, e não parece ter sido sob semelhantes pontos de vista que Gênesis 2 a 4 foram escritos.
Comecemos por considerar três versículos desses capítulos. Gênesis 2:8 afirma: “E plantou o Senhor Deus um jardim no Éden, da banda do oriente”. Algumas linhas depois, 3:23-24 afirmam que Deus expulsou o homem desse mesmo horto, “a fim de lavrar a terra de que fora tomado, [...] e colocou querubins ao oriente do jardim do Éden [...] para guardar o caminho da árvore da vida”. Por fim, depois de se ter retirado da presença do Senhor, é registrado que Caim “habitou na terra de Node”, ao oriente do Éden” (Gn 4:16).
Tanto quanto a alusão aos rios Tigre e Eufrates (Gn 2:14), esses versículos contribuem para situarmos as localidades dos primeiros capítulos da Bíblia. Se considerarmos que, para o editor de Gênesis, oriente era o oriente da Terra Santa, onde ele e os leitores a quem se dirigia habitavam, entenderemos que o Éden ficava a leste da Palestina. Entenderemos também que o jardim que Deus plantou ficava dentro do Éden (era parte dele), que os querubins foram postos ao oriente desse jardim e que Caim foi o primeiro a sair propriamente do território chamado Éden, talvez em direção à Índia.
Por essas informações, vê-se que Adão não foi expulso do Éden, mas do Jardim do Éden. E que o lugar onde ele foi morar, ao deixar o paraíso, era o mesmo “de que fora tomado”, portanto a localidade da criação de Gênesis 2:7. Todos esses fatos transcorreram na terra chamada Éden, da qual Caim se apartou.
O quadro geográfico acima permite entender não só que a criação de Adão ocorreu, num local circunscrito, mas que a história da sua vida passou-se nesse território. Quando Deus disse a ele “Enchei a terra e sujeitai-a” (Gn 1:28), a terra aludida era esse local. O povo da Bíblia e seus escritores só conheciam parte ínfima do globo terrestre. Por isso, quando diziam terra, referiam-se a essa porção exígua do planeta ou a outra ainda menor e mais específica. Não foi diferente com o mandamento de povoar a terra, que também tinha em vista o Éden.
Portanto, a criação de Adão foi a de um povo, entre muitos outros da Antiguidade, que habitou um território também entre muitos outros. A mulher de Caim e a cidade que ele construiu não são citadas com tanta naturalidade à toa, em Gênesis 4: o autor sagrado claramente admite que a população da qual a primeira proveio e para a qual a outra foi construída surgiu antes e à parte dos fatos narrados por ele.
O que justifica a afirmação bíblica de que a humanidade descende de Adão (At 17:26) não é a ideia de que ele foi o primeiro de todos os seres humanos, em sentido absoluto, mas o fato de os filhos de Noé terem ocupado boa parte do mundo conhecido na época. E nem essa ocupação, nem a história da criação constituem afirmações geográficas ou históricas absolutas.
Por tudo isso, o que temos, em Gênesis 2 é a criação de um povo bastante remoto, que adorou e serviu um único Deus e depois decaiu de tal condição. Esse povo, habitante da terra na qual o Senhor Deus não fizera chover (Gn 2:5), isto é, de um deserto, refugiou-se num jardim, no interior do Éden. Embora desértico, o Éden possuía um rio, que se dividia em quatro braços. Os dois primeiros (Pisom e Giom) devem ter sido temporários. Mas os outros dois braços do rio do Éden eram permanentes, pois foram identificados com o Tigre e o Eufrates (Gn 2:14).
Curioso é os quatro afluentes receberem nomes, mas não o rio principal. Isso pode dever-se a ele não mais existir, na época em o texto foi escrito. Talvez a neblina que subiu do solo para regar a terra (Gn 2:6) e o restante da ação de Deus, ao formar o jardim, o tenham eliminado. Sabemos que o delta do Tigre e do Eufrates passou por transformações radicais, em épocas bem recuadas, e que as distâncias dos mesmos pontos ao mar mudaram diversas vezes. Uma dessas transformações (talvez a mais importante) deve ter consistido no avanço do mar sobre o único rio que se repartia, de maneira a restarem apenas os seus afluentes.
Em Gênesis 2, tanto Deus como Adão são descritos como agricultores. Diz-se que Deus plantou um jardim no Éden (Gn 2:8), no qual colocou Adão para que o cultivasse (Gn 2:15). Esses são traços de uma história mais antiga e com muito mais pressupostos materialistas que a do capítulo 1. Todos os seres criados nessa história são retirados de um material. Assim é com o homem, formado do pó da terra, com as aves e os animais do campo (Gn 2:19), plasmados do solo, e com a mulher, formada a partir da costela de Adão.
Como a dieta vegetariana é afirmada, no capítulo 1 (Gn 1:29), a prática agrícola é justificada como dom de Deus a Adão, no segundo texto. Não surpreende que, dentre as práticas adotadas ou iniciadas pelos descendentes de Caim, no capítulo 4, não se conte a agricultura. Mais do que o pastoreio, o cultivo da terra está relacionado à sedentarização. Portanto, à civilização, que não é apresentada como corolário da queda, mas como dádiva direta de Deus.
Exaltação tão manifesta da agricultura, em comparação com o pastoreio e o nomadismo, não são naturais num povo como Israel, cuja sobrevivência dependia igualmente das duas primeiras e cuja origem era nômade. Por isso, não deve ter sido concebida, na época do reino dividido. Muito menos no período de Abraão, Isaque e Jacó. Sua elaboração original fica melhor localizada, num tempo em que a atividade agrária havia sido recém-descoberta e tivera desenvolvimento excepcional, o que não corresponde a período algum da história dos hebreus, mas a uma época áurea da agricultura no delta do Tigre e do Eufrates. Dessa época e desse delta, é que a memória dos fatos de Gênesis 2 parecem provir.
A IDADE DE ADÃO

A concepção de que a humanidade existe há 6.000 anos foi construída a partir de cinco versículos bíblicos: “Este é o livro das gerações de Adão. No dia em que Deus criou o homem, à semelhança de Deus o fez. Homem e mulher os criou; e os abençoou, e os chamou pelo nome de Adão, no dia em que foram criados. Adão viveu cento e trinta anos, e gerou um filho à sua semelhança, conforme a sua imagem, e pôs-lhe o nome de Sete. E foram os dias de Adão, depois que gerou a Sete, oitocentos anos; e gerou filhos e filhas. Todos os dias que Adão viveu foram novecentos e trinta anos; e morreu” (Gn 5:1-5).
A interpretação literal desses versos é tão antiga quanto Gênesis. Até mesmo intérpretes atentos e sofisticados, como Agostinho, a adotaram, como se nota na passagem em que ele criticou aqueles que, "não reparando nas lacunas da Escritura, julgaram que Caim teve relação sexual com a mãe, nascendo assima prole ali mencionada. Pensaram que os filhos de Adão não tiveram irmãs, visto que a Escritura silencia aquela passagem, mas depois, recapitulando, apresenta o que omitira, dizendo que Adão gerou filhos e filhas (Gm 5,4).Mas não revela o tempo de seu nascimento nem o número nem seus nomes" (HIPONA, Agostinho de. A natureza e a graça. 3ª ed., São Paulo: Paulus, 2007. p. 154).
Fora da tradição cristã, encontramos constestações das genealogias, como as de Celso (século II) e Porfírio (século III). Porém, o primeiro foi cabalmente refutado por Orígenes de Alexandria, e o último, por Eusébio de Cesareia. Com essas refutações, praticamente encerraram-se as discussões e até mesmo a crítica à verdade histórica da Bíblia, no século IV. O mundo romano inteiro aceitou o Cristianismo não só como religião, mas também como história.
Contudo, aqui e ali, uma crítica interna à interpretação literal continuou a ser produzida pelos próprios cristãos. No final do século IV, Santo Agostinho observou que "a Escritura não registrou expressamente o tempo que transcorrreu entre os dois fatos [a criação da mulher e a transgressão] e o nascimento de Caim" (HIPONA, Agostinho de. Comentário literal ao Gênesis. In Comentário ao Gênesis. São Paulo: Paulus, 2008. p. 318). Isso abre uma cunha no tempo registrado nas genealogias das Escrituras. Cria uma lacuna no seu interior, cuja extensão permanece desconhecida. E a principal consequência dela é não podermos determinar quando Adão foi criado.
Precisamos, porém, encontrar um modo de compatibilizar a interpretação de Agostinho com os cinco versículos transcritos acima. Um modo de se produzir tal compatibilização consiste em partir da observação de que Gênesis está dividido em seções iniciadas com as palavras “São estas as gerações de” ou “Esta é a história de”. Hoje, admite-se que tais seções derivam de tradições independentes, que o autor reuniu para compor o primeiro livro bíblico. As expressões citadas foram, simplesmente, a argamassa que ele utilizou para juntá-las.
As seções em que os onze primeiros capítulos de Gênesis se dividem quase sempre começam com um recuo cronológico. A título de exemplo, após o relato dos seis dias da criação, a Escritura afirma: “Havendo Deus completado no dia sétimo a obra que tinha feito, descansou nesse dia de toda a obra que fizera”. Em seguida, inicia-se a história do Éden, mediante um recuo ao “dia em que o Senhor Deus fez a terra e os céus” (Gn 2:4).
Semelhantemente, o capítulo 5 traz uma nova história: “Este é o livro das gerações [isto é, dos descendentes] de Adão”. E imediatamente recua até “o dia em que Deus criou o homem” (Gn 5:1). Não citarei os recuos seguintes a esses para não me tornar cansativo, porém é certo que as tradições dos primeiros capítulos de Gênesis foram coladas umas nas outras mediante a técnica do recuo cronológico ou recapitulação.
Assim entendidos, os cinco versículos que parecem afirmar a idade recente de Adão (Gn 5:1-5) começam com um recuo, como todos os que foram usados para grudar as seções de Gênesis 1 a 11 umas nas outras. Mas se é um recuo, a passagem em questão não afirma que o que se encontra nos versículos 3 a 32 (a genealogia de Adão) se inicia com o que está nos versos 1 e 2 (a criação desse patriarca). O autor bíblico recuou à criação, para recapitulá-la, antes de transmitir a genealogia, como fez, de resto, em todas as outras histórias que narrou.
Não é diferente no caso de Gênesis 1 e 2, cujo autor pretendeu transmitir as histórias que o livro contém, não os recuos usados para conectá-las. Ou alguém acredita que o recuo à época “em que o Senhor Deus fez a terra e os céus”, em Gênesis 2:4, significa que a história do Éden ocorreu nesse tempo? Só há duas maneiras de entender esse recuo: ou a época em que Deus “criou os céus e a terra” é a do primeiro versículo bíblico (Gn 1:1), ou ela indica o terceiro e o quarto dias da criação, quando os continentes (a terra) e os luzeiros (o céu) foram feitos. Em qualquer das duas hipóteses, estamos diante de um recuo cronológico, maior ou menor. E, em nenhum dos dois períodos, o Jardim do Éden existia. Isso mostra que o recuo de Gênesis 2:4 não deve ser interpretado literalmente, ou seja, que o Jardim do Éden não foi plantado por Deus no mesmo dia em que os céus e a terra foram criados. O mesmo ocorre com todos os outros recuos de Gênesis.
E, se considerarmos Gênesis 5:1-2 um recuo com função conectiva, a genealogia de Adão não começará com a sua criação, e ele não terá 6.000 anos. Mas, se não reconhecermos a existência do recuo citado, Adão permanecerá com a sua clássica idade literal. Nesse caso, como sabemos, a fé só poderá ser exercida por uma teimosa obstinação contra fatos científicos sedimentados.

O JARDIM DO ÉDEN

As características do texto sobre a criação e os acontecimentos do Éden indicam que o seu sentido é alegórico. Não é equivocado afirmar, até mesmo, que a narrativa constitui uma autêntica parábola bíblica.
Porém, mesmo sendo uma parábola, o texto recorda acontecimentos reais. Os símbolos que o compõem, assim como o homem, a mulher e a serpente, representam aqueles acontecimentos e o seu sentido teológico. Portanto, o cuidado primeiro que devemos tomar, ao nos aproximarmos dele, é o de não pensar que os fatos representados são os que a letra aponta, mas os que os símbolos representam.
A interpretação alegórica de Gênesis 2 a 4 está longe de constituir novidade. Ela foi adotada tanto por autores bíblicos como por Fílon, Orígenes, Gregório de Nissa e outros herdeiros da escola de Alexandria. O combate que Santo Agostinho travou contra ela deveu-se, em parte, à segregação linguística que a substituição do grego pelo latim impôs à interpretação alegórica. Por não entenderem o grego, Agostinho e outros pais de língua latina não conheceram profundamente os escritos de Orígenes. Tampouco leram o restante da literatura teológica em grego, na qual os princípios da interpretação alegórica haviam sido lançados. Os três longos livros de Agostinho sobre Gênesis, por exemplo, granjearam a autoridade máxima na Idade Média, mas se calam a respeito de Orígenes. Por isso, quando o Segundo Concílio de Constantinopla, reunido em 553, acusou esse pai da igreja cristã de heresia, as condições estavam postas para que o banimento dos livros dele fizesse extinguir-se a luz da escola alegórica, não em razão dos méritos ou deméritos dela, mas em consequência da condenação de outras doutrinas.
Orígenes nunca manifestou maior dúvida sobre a interpretação do texto do Jardim do Éden. Ele encerrou-o no âmbito do pensamento alegórico, que identificou nas Escrituras. Aliás, para Orígenes e seus seguidores, nem os seis dias de Gênesis 1 foram períodos de 24 horas, nem as árvores da vida e do conhecimento do bem e do mal foram literais, nem a serpente falou com Eva, nem todos os tipos de animais do mundo entraram na arca com Noé. Essas são lições importantes que a escola de interpretação alegórica nos legou.
No entanto, há outras lições a serem aprendidas de representantes um pouco posteriores da interpretação alegórica. No século IV, Gregório de Nissa escreveu sobre as vestimentas com que Deus cobriu Adão e Eva, após pecarem: “Ouvindo falar do termo pele [de animais], eu compreendo a forma da natureza animal, da qual fomos revestidos quando nos unimos às paixões [...] Aquilo que recebemos da pele dos animais irracionais é representado pela união sexual, pela concepção, pelos partos, pela impureza, pela amamentação, pela nutrição, pela eliminação dos excrementos, pelo crescimento gradual, pela juventude, pela velhice, pelas doenças, pela morte” (NISSA, Gregório de. A alma e a ressurreição. São Paulo: Paulus, 2011. p. 272).
Se, para Gregório, a pele que Adão e Eva receberam era um símbolo da natureza animal, entendida como a união sexual, a concepção, os partos, a impureza, a amamentação etc., só podemos concluir que os animais já possuíam estas coisas antes da queda. Apenas o homem não as possuía. E note-se que a doutrina em causa não é afirmada, por Gregório, como novidade ou algo difícil de entender, mas como interpretação comum de Gênesis.
Contudo, se era essa a concepção comum, alguns autores desenvolvem conjecturas ainda mais ousadas. Vejamos o que Santo Agostinho escreveu: "Embora se fale que eles [Adão e Eva] se uniram e geraram tão-só depois de expulsos do paraíso, não vejo razão que possa proibir a crença de que ainda no paraíso houvesse núpcias honrosas e leito conjugal sem mancha" (HIPONA, Agostinho de. Comentário literal ao Gênesis. In Comentário ao Gênesis. São Paulo: Paulus, 2005. p. 317). Essa conclusão está, a meu ver, inegavelmente implícita na declaração de Deus à mulher após o pecado: "Multiplicarei as dores da tua concepção" (Gn 3:16). Só o que já existia (antes da queda) pode ter sido multiplicado. E o fato de Adão ter chamado Eva mãe (de todos os viventes), também após a queda (Gn 3:20), também indica que ele já conhecia a reprodução.
Consequência desse modo de ver é que, assim como "entre os animais, as fêmeas parem filhotes com dor, e esta dor é neles antes uma condição de sua mortalidade que castigo de pecado, portanto pode acontecer que nas mulheres seja esta a condição dos corpos mortais" (Do Gênesis contra os maniqueus. In ob. cit. p. 573). E, como e não bastasse, Agostinho afirma que "Adão foi dotado de corpo animal não somente antes do paraíso, mas também quando estabelecido no paraíso" (Comentário literal ao Gênesis. In ob.cit. p. 236).
Mas retornemos a Gregório de Nissa. Como os pais da igreja cristã de modo geral, ele considerava que o mal ou pecado residia na vontade humana. Por isso, escreveu: “Nenhum mal existe em si mesmo fora da vontade” (NISSA, Gregório de. A grande catequese. São Paulo: Paulus, 2011. p. 307). Em outra passagem, diferenciou o mal que está na vontade e é designado pela palavra pathos dos processos de geração e corrupção identificados na natureza: “O que está em relação com a vontade e faz passar da virtude ao vício, é verdadeiramente um pathos; ao contrário, tudo o que se vê, na natureza, em toda a extensão do seu desenvolvimento progressivo, segundo um encadeamento que lhe é próprio, deveria ser chamado mais propriamente um modo de ser do que uma paixão; assim o nascimento, o crescimento, a conservação do sujeito através do processo de absorção e evacuação dos alimentos, a concorrência dos elementos para formar o corpo, e, inversamente, a dissolução do composto e retorno aos elementos” (idem. p. 326).
Na primeira passagem citada, Gregório afirmou que a união sexual, a concepção, os partos, a impureza e a amamentação estavam presentes no reino animal, antes da queda, embora só tenham sido transmitidos ao homem, quando ele pecou. Já na segunda, ele diferenciou essas coisas do que denominou pathos (paixão pecaminosa). Portanto, para Gregório e muitos cristãos de sua época, os processos de geração e corrupção, inclusive a morte, são ínsitos à natureza. Eles não decorrem da queda.
Podemos extrair desses ensinamentos que a morte e o padecimento já existiam, antes da queda de Adão, embora não para o homem. Não se deve pensar, porém, que o não existir da morte, para o homem, fosse o mesmo que a imortalidade. Na cultura grega, que Gregório absorveu e da qual se tornou um expoente, a imortalidade era atributo dos deuses, não do homem. Como Teófilo de Antioquia escreveu, “se houvesse sido criado imortal desde o início, o homem teria sido criado um deus” (ANTIOQUIA, Téofilo de. Livros a Autólico. Apud GOMES, C. F. Antologia dos santos padres. São Paulo: Paulinas. p. 108).
Qual era, então, o estado do homem no Éden? Para os melhores autores patrísticos, esse estado era, ao mesmo tempo, de vida e de morte, como representado pelas árvores da vida e do conhecimento, no centro do Jardim do Éden. Não era, contudo, um estado de indefinição entre a vida e a morte ou entre a árvore da vida e a da morte. A idade de ouro do Éden não consistiu nessa indefinição, embora tenha sido de certo modo ambivalente.
Aqui, é preciso acrescer algo à doutrina encontrada nos pais que adotaram a interpretação alegórica. O estado de vida e de morte, no Éden, pouco nos diz sobre o corpo do homem. A lição da parábola de Gênesis 2 e 3 não é física, mas espiritual. Verdade é que os símbolos contidos nela são físicos: um jardim, quatro rios, árvores, um homem, uma mulher, o trabalho agrícola, uma serpente. Mas a lição que a parábola ensina não o é. Ela pouco ou nada nos diz sobre o corpo de Adão e Eva. Diz-nos que o homem podia ter vida ou morte espirituais. E como as podia ter? Ele podia ter vida, conhecendo Deus, e morte, conhecendo o bem e o mal por si só. Esta, a lição da parábola.
Mas, se Gênesis 2 e 3 nada ministram a respeito do corpo de Adão, que devemos concluir sobre ele? Devemos concluir o que sabemos do corpo de todos os seres vivos, ou seja, que ele era mortal. Ali onde a Bíblia não tece afirmações, estamos autorizados a seguir a evidência comum dos sentidos.
Nem os fariseus, nem Josefo, nem o judaísmo palestinense, nem os autores patrísticos parecem ter reconhecido esse dado das Escrituras. É o que se conclui da seguinte afirmação de Gregório: “Estou plenamente convencido de que a condição mortal, antes reservada à natureza irracional, tenha sido infligida aos homens [por ocasião da queda]” (NISSA, Gregório de. A grande catequese. São Paulo: Paulus, 2011. p. 309).
Mas não devemos concluir que o homem foi criado mortal apenas por razões naturais ou filosóficas. A Bíblia nos oferece boa base para afirmarmos o mesmo fato. Em Romanos 5, Paulo escreveu: “Por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte [...] pela ofensa de um só, morreram muitos [...] somente um pecou, porque o julgamento decorreu de uma só ofensa [...] pela ofensa de um e por meio de um só reinou a morte [...] por uma só ofensa, veio o juízo sobre todos os homens [...] Porque o salário do pecado é a morte” (Rm 5:12,15,16,17,18; 6:23).
Peço desculpas por citar esse texto com várias interrupções, mas elas realçam os paralelos entre as frases. No quadro constituído por esses paralelos, o apóstolo emprega as palavras morte, julgamento e juízo com o mesmo significado. Para ele, a morte que entrou no mundo por meio de Adão foi um julgamento e um juízo, não a morte física. Temos aqui uma primeira evidência de que a morte sofrida por Adão foi espiritual e não física.
Mas se alguém exige prova ainda mais cabal, pode encontrá-la em 1ª aos Coríntios 15: “O que semeias não nasce, se primeiro não morrer [...] Pois assim também é a ressureição dos mortos. Semeia-se o corpo na corrupção, ressuscita na incorrupção. Semeia-se em desonra, ressuscita em glória. Semeia-se em fraqueza, ressuscita em poder. Semeia-se corpo natural, ressuscita corpo espiritual. Se há corpo natural, há também corpo espiritual. Pois assim está escrito: O primeiro homem, Adão, foi feito alma vivente. O último Adão, porém, é espírito vivificante” (1 Co 15:36,42-46).
Se acompanharmos cuidadosamente o raciocínio de Paulo, veremos que espírito vivificante, no verso 45, corresponde a corpo espiritual, no 44, e alma vivente corresponde a corpo natural. Concluiremos também que Adão foi citado como exemplo de corpo natural, como indicado pela palavra “pois” no seguinte trecho: “Se há corpo natural, há também corpo espiritual. Pois assim está escrito: O primeiro homem, Adão, foi feito alma vivente. O último Adão, porém, é espírito vivificante”. Claramente se diz que Adão tinha um corpo natural, enquanto Cristo é um espírito vivificante.
E se retrocedermos um pouco mais, veremos que Adão é citado também como prova de que há corrupção, desonra e fraqueza. Note-se que a passagem não se refere a Adão após a queda, mas à “semeadura”, isto é, à criação dele por Deus: “O homem [Adão] tornou-se alma vivente”. Estava, pois, na mente de Paulo que o homem criado por Deus possuía um corpo corruptível.
Com esses esclarecimentos, podemos reconsiderar a pergunta a respeito da queda. Podemos estabelecer que esse fato não significou o início da morte física, para os animais ou para o homem, o início do envelhecimento, das dores, das doenças ou da corrupção. Significou antes o início do pecado, das blasfêmias, da violência, da maldição, da separação de Deus, da escravidão, da depravação, das trevas espessas e da morte espiritual.
A morte física não é e nunca foi um castigo pela desobediência de Adão. É consequência da criação de Deus. Deus criou o homem mortal. Por isso, Romanos 8:38-39 não chamam a morte castigo, mas criatura: "Porque eu estou bem certo que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as cousas do presente, nem do porvir, nem os poderes, nem a altura, nem a profundidade, nem qualquer outra criatura". Se a altura e a profundidade, citadas antes das palavras "nem qualquer outra criatura" são, por essa razão, criaturas, o que é citado antes delas também o é. Portanto, a morte é uma criatura e, como tal, foi introduzida no mundo pela criação de Deus.

queda do homem

A lição de Gênesis 3 é totalmente espiritual. Ela retrata o calabouço, em que o homem ingressou por causa dos movimentos do seu livre arbítrio. Alguém bradará: “Tu és pó, e ao pó tornarás!” (Gn 3:19), como quem sugere que Adão começou a morrer fisicamente, a partir dessa frase. Porém, Deus mostrou o seu sentimento não humano, isto é, o seu sentimento grandioso e não retributivo, por meio dessa declaração. Só poderíamos situar a morte física a partir da queda, se entendêssemos que a declaração, ao contrário, demonstra o sentimento humano de Deus, o seu sentimento de retribuição imediata e implacável, a paga febril do mal com o mal, mas Deus não é homem para derramar instantaneamente a sua ira em lavas.
Como entregou à mulher a promessa de que o seu descendente feriria a cabeça da serpente (Gn 3:15), Deus lembrou a Adão que tornaria ao pó não por causa da queda, mas porque fora tirado do pó, ou seja, por causa da criação. Deus lhe deu a promessa de que seu corpo se extinguiria, mas seu espírito seria liberto do calabouço da corrupção.

A QUEDA

O pecado de Adão, em Gênesis 3, e o de Caim, no capítulo seguinte, são apresentados em rigoroso paralelismo, como indicado por uma série de circunstâncias. A transgressão de Adão foi antecedida pelo mandamento de não comer do fruto da árvore do conhecimento e consistiu na transgressão dele (Gn 2:17); Caim recebeu o mandamento de dominar o seu ímpeto para o pecado e também o transgrediu (Gn 4:7). Adão foi arguido por Deus, após ter pecado (Gn 3:11-12); Caim também (Gn 4:10-15). A terra foi amaldiçoada pelo pecado de Adão (Gn 3:17-19); o mesmo ocorreu em consequência da transgressão de Caim (Gn 4:12). Adão foi expulso do Jardim do Éden por ter pecado (Gn 3:23); Caim foi expulso da terra em que habitava (Gn 4:14,16). Apesar de ter arcado com as consequências do seu ato, Adão foi tratado de modo relativamente brando por Deus, depois de pecar (Gn 3:17), assim como Caim (Gn 4:15). Deus matou animais para vestir Adão e Eva (Gn 3:21) e permitiu o derramamento de sangue humano por Caim, quando ele transgrediu (Gn 4:15).
Tão meticuloso paralelo não há de ser casual. É, antes, deliberado. Podemos até afirmar que nenhum outro par de transgressões, em toda a Bíblia, é descrito em termos tão simétricos, o que indica a intenção do autor de Gênesis de identificar os pecados de Adão e Caim. Claro que eles constituíram duas violações, mas tiveram um só princípio. Por isso, o propósito da história de Caim é interpretar e continuar a de Adão. A natureza do pecado adâmico permanece encoberta, enquanto a procuramos no relato da queda, que não consistiu em comer o fruto de uma árvore e sim num ato que permanece desconhecido. Porém, na história de Caim e Abel, ela é elucidada.
O propósito de todos os relatos de Gênesis 1 a 11 é transmitir lições históricas. No capítulo 1, essa lição é a criação do planeta, no 7 e no 8 é o Dilúvio e assim por diante. Isso é manifesto, no texto, e foi reconhecido por intérpretes de todas as eras. Todavia, ao lermos Gênesis 1, 7 e 8, percebemos facilmente quais são os fatos que o texto transmite. O mesmo não ocorre, ao lermos Gênesis 3. Percebemos que o texto quer transmitir o pecado de Adão, mas não em que consistiu tal pecado. Sabemos que não consistiu em ingerir o fruto proibido, mas não conseguimos entender qual pecado Adão cometeu.
Ora, o propósito de uma parábola como a de Gênesis 2 e 3 é frustrado se não se compreende o que ela quer ministrar. Podemos pensar que o objetivo do texto é ensinar que é preciso obedecer a Deus. Mas que é obedecer? Se Deus quer que cumpramos os seus mandamentos, precisamos saber o que ele manda. Se não manda comer determinados frutos e se abster de outros, se esse mandamento é apenas um símbolo de certas condutas, quais atos são permitidos e quais, proibidos?
Gênesis 3 não o esclarece. Podemos dizer, por isso, que o propósito do texto é frustrado, enquanto tentamos descobri-lo no interior dele próprio. Contudo, ao lermos a história de Caim e Abel, a natureza do pecado de Adão se torna tão evidente quanto que a Terra foi criada, no capítulo 1, e um Dilúvio ocorreu, no 7 e no 8. Pelo paralelo entre os pecados de Adão e Caim, compreendemos que o primeiro consistiu no derramamento de sangue humano, exatamente como o último. Assim, a natureza do ato de Adão se elucida.
Essa conclusão não se extrai somente do capítulo 4. Está implícita também nas histórias anteriores. Após ter criado o homem e a mulher, em Gênesis 1:29, Deus lhes deu um mandamento dietético: “Eis que vos tenho dado todas as ervas que dão semente e se acham na superfície de toda a terra, e todas as árvores em que há fruto que dê semente: isso vos será para mantimento”. Devemos considerar com a devida atenção a semelhança entre esse mandamento e o de Gênesis 2:16: “De toda árvore do jardim comerás livremente”.
Gênesis 1:29 e 2:16 são um e o mesmo mandamento. São o mandamento dietético de Deus a Adão e sua esposa. Porém, o sentido da ordem transmitida a Adão e Eva é simbólico. O propósito de Deus não é permitir-lhes comer literalmente isso e não comer aquilo, mas que praticassem algo e não o contrário. Que coisa Deus quer que o homem pratique e que outra o proíbe de praticar? A resposta é que ele quer que o homem se alimente, assim como deseja que cresça e se multiplique, sem derramar sangue de outros seres vivos. Esse é o sentido do preceito de se alimentar exclusivamente de vegetais. Interpretado a contrario sensu, esse preceito implica a proibição de matar.
A árvore dita do conhecimento do bem e do mal não indica coisa diversa do que o seu nome manifesta. Que eram o bem e o mal para Adão e Eva, a não ser cumprir e não cumprir o mandamento dietético? E que era cumpri-lo, a não ser alimentar-se de vegetais, sem derramar sangue?
Essa conclusão torna o pecado de Adão ainda mais semelhante ao de Caim. Adão ter comido do fruto proibido significa que passou a matar. Não só a matar animais para se alimentar, o que também lhe era vedado, mas a matar outros seres humanos por ódio e ressentimento, como Caim matou Abel.
Por todos esses motivos, o pecado original, o pecado de Gênesis 3, deve ter sido o derramamento de sangue humano. Nada tão leve quanto comer um fruto, ou menos leve, embora grave, como matar um animal, justificaria erigir a transgressão de Adão em princípio de toda a maldade humana, como as Escrituras manifestamente fazem. Só uma transgressão intrinsecamente grave como o homicídio o justificaria.

E MATUSALÉM?

As centenas de anos dos descendentes de Adão, em Gênesis 5, costumam ser citadas como evidência de que um livro com informações falsas sobre os primórdios da humanidade não pode ser a palavra de Deus. Como personagem bíblica que viveu mais tempo (969 anos), Matusalém tornou-se um símbolo dessa grave imputação.
Porém, o texto bíblico pode ser visto de outra maneira. Uma das razões para isso é o 1º Livro das Crônicas. É improvável que as listas tão extensas e numerosas de ancestrais dos judeus (que incluem os de Gênesis 5 e 11), nos primeiros capítulos desse livro, tenham sido inventadas. E é impossível que tenham sido trazidas à luz num passe de mágica. Mais verossímil é que tenham sido elaboradas por métodos historicamente plausíveis e compreensíveis.
Cabe, pois, perguntar qual era a função daquelas listas, na Antiguidade, e por que métodos elas foram elaboradas. Nos lugares mais povoados do mundo antigo, nações e outros grupos viviam próximos e tinham de competir por recursos naturais e riquezas. Por isso, não raro uns exerciam dominação sobre outros. Como a riqueza e o poder político transmitiam-se aos primogênitos das principais famílias, para dominar, era preciso saber e mostrar quem eram os primogênitos tanto do próprio grupo familiar quanto das famílias rivais.
Nesse contexto, os clãs poderosos mantinham registros não apenas das suas gerações como das famílias rivais, a fim de melhor as vigiar e prevenir o fortalecimento delas. E as mais poderosas dentre todas as famílias, chamadas famílias reais, chegavam a empregar funcionários (os escribas e cronistas) especializados nessa atividade. Não é sem interesse lembrar que, no texto de Êxodo, a palavra hebraica usada para designar os supervisores do trabalho escravo dos israelitas, no Egito, significa elaboradores de listas. Isso não quer dizer que as listas que eles elaboravam fossem exclusivamente genealógicas, mas o termo hebraico nos recorda o costume arraigado de utilizar escritos esquemáticos, assim como listas, para exercer dominação.

Com o tempo e o aumento da complexidade das cortes, as listas genealógicas evoluíram para registros complexos de alcance maior. Na época de Jesus, os dados sobre descendentes das famílias que tinham exercido o poder real, no território ocupado pelo Império Romano, eram compilados pelas autoridades, durante os recenseamentos. Não que os censos do Império tivessem o único propósito de manter registros sobre as famílias reais destronadas, mas também se prestavam a isso. Um exemplo de tal função é dado, no Evangelho de Lucas, que informa que José e Maria foram a Belém para se registrar, pois José era da Casa de Davi, que tinha exercido o poder real em Israel.
Na Antiguidade remota, listas como as de 1º das Crônicas 1 a 9 e Gênesis 5 e 11 foram a maneira simplificada e por vezes tosca de exercer a mesma espécie de controle que os censos romanos mais tarde propiciaram. Assim, os centros civilizatórios que receberam mais ondas migratórias, a exemplo do Delta do Nilo e das margens do Eufrates, acabaram por acumular uma enorme quantidade de listas.
Quando os judeus mais instruídos foram levados cativos a Babilônia, por Nabucodonosor (Dn 1:3-4), tornou-se inevitável que entrassem em contato primeiramente com histórias sobre essas listas e os nomes mais proeminentes delas e, num segundo momento, com elas próprias, nas bibliotecas ou nos arquivos reais. Da comparação das listas com os relatos judaicos sobre os primeiros adoradores do único Deus, surgiram as histórias de Gênesis 1 a 11 como as conhecemos.
Porém, não é razoável supor que as listas das antigas cidades mesopotâmicas não contivessem lacunas e obscuridades. Ou que os velhos papiros e os pergaminhos em que haviam sido registradas não estivessem mutilados, aqui e ali. De modo que os descobridores judeus das listas tiveram de as decifrar e reconstituir, da melhor maneira que puderam. E a melhor maneira encontrada foi compará-las com as memórias que os judeus tinham preservado sobre o seu passado, principalmente com as mais remotas delas. A comparação era um método coerente, porque várias ou mesmo todas personagens da Pré-História Bíblica tinham vivido na Mesopotâmia e seus arredores.
Um método que os exilados judeus devem ter empregado para comparar as suas tradições com as listas mesopotâmicas foi a fusão de gerações. Encontramos um eco dessa prática em Salmos 61:6: "Dias sobre dias acrescentas ao rei; duram os seus anos gerações após gerações". No Salmo 72:1,5, também lemos: "Concede ao Rei, ó Deus, os teus juízos, e a tua justiça ao Filho do Rei [...] Ele permanecerá enquanto existir o sol, e enquanto durar a lua, através das gerações". Nesses versículos, o tempo da vida do rei se confunde com o das gerações que descendem dele. Outro exemplo nos é transmitido na genealogia real de Jesus Cristo, em Mateus, que salta diversos nomes ao traçar as gerações entre Abraão e Jesus, o que significa que as funde sob personagens únicas.
Ao encontrarem os nomes dos patriarcas mesopotâmicos de Gênesis nas listas babilônicas ou o que pensaram ser os nomes deles, os exilados judeus fundiram as gerações dos descendentes daquelas pessoas, gerando uma sequência de clãs que existiram centenas de anos até sucumbirem, provavelmente sob as enchentes que se abateram sobre a Mesopotâmia. Dessas grandes cheias, a maior foi o Dilúvio narrado em Gênesis 6 a 8.
A diferença entre uma lista de gerações e outra familiar ou de clãs precisa ser claramente entendida. Na Antiguidade, uma geração se estendia por 30 ou 40 anos. Um clã ou família podia durar centenas de anos. Uma coisa, portanto, era escrever uma lista de gerações; outra era elaborar um rol de clãs.
As idades elevadas dos patriarcas de Gênesis 5 e 11 indicam que cada um deles é um clã ou um povo. Os anos da vida de cada um são a soma das parcelas de tempo que as suas gerações viveram, porque cada pessoa é o cabeça de um clã ou de um povo. Assim, por exemplo, o clã ou o povo de Matusalém subsistiu 969 anos, antes de se extinguir ou, pelo menos, de desaparecer das listas que os exilados judeus reconstituíram.
Vimos anteriormente que Adão, o primeiro nome da lista de Gênesis 5, foi de fato um povo e não apenas um indivíduo. Quando lemos Números 24:17, verificamos que o mesmo acontece com Sete, filho de Adão. Os “filhos de Sete” mencionados nesse versículo nada mais são que o povo de Sete, assim como os filhos de Israel são o povo hebreu. Aplicadas a personagens tão antigas quanto Sete e Israel, as expressões não podem ter outros significados. Portanto, a segunda geração das listas de Gênesis (Sete), assim como a primeira (Adão), representa um povo. E se ambas o fazem, é natural supor que as outras da mesma lista também.
Por isso, os nomes da lista de Gênesis 11 são apresentados como nações no capítulo 10. Esse é um dado inegável. Gênesis 10 tornou-se conhecido como Rol das Nações. E se isso ocorreu, por que os nomes da lista do capítulo 5, que é tão parecida com a do 11, não podem ser de famílias ou povos?
Alguém objetará que as listas de Gênesis 5 e 11 não podem ser de coletividades, pois foram compostas com frases como “Sete viveu tantos anos e gerou Enos”; “depois que gerou Enos, viveu outros tantos anos e teve filhos e filhas”. Mas, se essas expressões descrevem a vida de um indivíduo, também servem para representar a de um clã. Como um grupo familiar se origina, a não ser de outro grupo? E como podemos expressar isso, de maneira sintética, a não ser afirmando que um grupo gerou o outro?
Como já vimos, na Antiguidade, a transmissão das riquezas e do poder se fazia mediante a instituição da primogenitura. O primogênito herdava porção dobrada ou todos os bens do pai: como exprimir melhor a formação de um novo núcleo patrimonial e de poder do que afirmando que um chefe patriarcal gerou o seu primogênito, que formou outro clã?
Essa afirmação pressupõe a identidade entre o clã e seu chefe. Mas a identidade é um fato histórico bem conhecido; mais do que isso, ela sempre foi muito vigorosa. Em não poucos povos, a identidade foi afirmada com tanta ênfase que o fundador do clã chegou a ser cultuado, e cada membro, identificado misticamente com ele. Diante disso, por que não dizer que os fundadores dos povos henoteístas ou monoteístas de Gênesis 5 e 11 geraram os seus primogênitos, e estes constituíram outros povos?
Tanto a genealogia do capítulo 5 como a do 11 têm estrutura formal rígida. De cada nome se diz que viveu tantos anos, gerou um primogênito, viveu outros tantos anos e gerou filhos e filhas. Mas uma diferença notável se manifesta entre as listas: a primeira contém a frase adicional “e morreu”. Por que a contém? E por que a do capítulo 11 não a contém? Porque, para o editor de Gênesis, os clãs do capítulo 5 não sobreviveram ao Dilúvio, enquanto os do décimo-primeiro capítulo se transformaram em nações. Os primeiros morreram, os últimos não. Claro que, se interpretarmos os nomes das genealogias como indivíduos, a omissão da morte dos do capítulo 11 parecerá imotivada.
Essa exegese das genealogias pode parecer casuística. Mas, além de exigida pela evidência interna de Gênesis, como acabo de demonstrar, ela é confirmada, também, pelo tratamento que o 1º Livro de Crônicas dispensa às listas genealógicas. Com efeito, ao relacionar as gerações de Gênesis 5 e 11, o autor de Crônicas entremeou-as com numerosas alusões explícitas a clãs, famílias e povos. Por exemplo, os descendentes de Canaã foram descritos como "os jebuseus, os amorreus, os girgaseus, os heveus, os arqueus, os sineus, os arvadeus, os zemares e os hamateus" (1 Cr 1:14-16). E os descendentes de Quiriate-Jearim e dos escribas de Jabez são chamados "famílias" (clãs, na Bíblia de Jerusalém): "As famílias de Quiriate-Jearim foram: os itritas, os puteus, os sumateus e os misraeus [...] As famílias dos escribas que habitavam em Jabez foram os tiratitas, os simeatitas e os sucatitas: são estes os queneus, que vieram de Hamate" (1 Cr 2:53,55). Todas essas gerações genealógicas são povos.
Explicações como essas podem parecer desnecessárias a quem não se preocupa com a verdade histórica das Escrituras. Mas como é possível a alguém viver a fé cristã, no tempo de hoje, sem explicar fatos como as idades dos patriarcas? Como fazê-lo sem se isolar num gueto mental ou num mosteiro criado pela imaginação em pleno deserto? A fé que exclui a razão, em pontos que chamam tanto a atenção, será melhor que a razão sem a fé? E os que combatem a razão alienada da fé podem, com coerência, pregar uma fé alienada da razão? Há alguma diferença entre A estar alienado de B, ou B, de A?