A dívida histórica das igrejas evangélicas para com a católica é poucas vezes lembrada. Mas, se puder ser admitida, toda a perspectiva protestante da História da Igreja terá de ser alterada. E se, além disso, a ocorrência de uma Reforma Católica merecer reconhecimento, o instante atual dessa História terá de ser, igualmente, reinterpretado.
De fato, ao serem admitidas, aquela dívida e a Reforma do Catolicismo fazem com que a questão mais importante a se formular, hoje, passe a ser a dos pontos fracos remanescentes na teologia e na posição prática da Igreja Católica. Claro que muitos pontos desse tipo são mencionados, pelos protestantes históricos e pelos pentecostais. Mas, é digno de nota que a Igreja Oriental não compartilha essa opinião protestante. Ela tece muito menos críticas ao Catolicismo do que os protestantes o fazem. E é pueril pensar que uma Igreja tão antiga e com um desenvolvimento teológico tão prolongado esteja simplesmente errada nessa avaliação.
O trato diferenciado das igrejas protestantes e oriental para com o Catolicismo é, em parte, efeito do tempo. Estamos a um milênio do Cisma do Oriente e a 500 anos do Ocidental. Em ambos os casos, as diferenças doutrinárias à origem dos Cismas têm-se enterrado, gradativamente, nas camadas profundas da fé e da cultura comum às igrejas cristãs, porém num deles o afundamento tem ocorrido há um milênio e, no outro, há 500 anos. Talvez por isso, católicos e ortodoxos se sintam mais próximos entre si do que em relação aos protestantes.
Esses diferentes graus de divergência não são reconhecidos apenas por teólogos individualmente considerados, mas nos próprios documentos oficiais da Igreja Católica. Por exemplo, o Decreto Unitatis redintegratio afirma: “As Igrejas do Oriente têm desde a origem um tesouro, do qual a Igreja do Ocidente herdou muitas coisas em liturgia, tradição espiritual e ordenação jurídica [...] Como essas Igrejas, embora separadas, têm verdadeiros sacramentos, principalmente, porém, em virtude da sucessão apostólica, o Sacerdócio e a Eucaristia, ainda se unem mais intimamente conosco [do que as protestantes]” (PAULO VI e os bispos do Concílio Vaticano II. Unitatis redintegratio. Cap. III, nºs 14-15). A respeito do Protestantismo, o mesmo documento assim se manifesta: “Entre estas Igrejas e Comunidades e a Igreja católica há discrepâncias consideráveis, não só de índole histórica, sociológica, psicológica, cultural, mas sobretudo de interpretação da verdade revelada” (idem. nº 19).
Podemos, portanto, tomar os diferentes graus de proximidade e de divergência entre os três maiores ramos da igreja cristã como outro dado de grande valia, que se soma ao débito para com Roma e à Reforma Católica como elementos do quadro da igreja cristã no mundo. Quero crer que esse esboço da situação cristã atual nos autoriza a pensar que as “discrepâncias consideráveis” entre católicos e protestantes, “sobretudo de interpretação da verdade revelada”, tendem a submergir cada vez mais na cultura comum dos dois segmentos, embora em menor medida do que as diferenças entre católicos e ortodoxos. Porém, há um território teológico, no qual a divergência se adensa e que, por isso, é mais fundamental que os demais. Refiro-me à eclesiologia.
Esse é o ponto, em que as águas protestantes mais se separam das católicas e, também, das da Igreja Ortodoxa. Ao defenderem o princípio do livre exame das Escrituras, os reformadores protestantes do décimo-sexto século não estabeleceram uma proposição só dogmática, mas antes de tudo prática. Isso porque divergências doutrinárias outras, como o uso (não culto) de imagens, a posição de Maria abaixo de Deus e acima dos anjos e a oração aos santos remetem a questões bíblicas e teológicas altamente interpretativas e, por isso, sujeitas a diferentes soluções. Não se pode afirmar que uma dessas soluções seja definitivamente superior a outra. Porém, as divergências apontadas não estão destinadas a afetar, necessariamente, o vínculo entre as igrejas cristãs locais ou a continuidade da sua comunhão. Com a questão eclesiológica, algo distinto acontece.
A eclesiologia tornou-se o ponto nevrálgico da Teologia hoje. Nenhum ponto parece ter maior relevância prática para o futuro da igreja do que este. Não que a igreja seja o tópico de maior importância intrínseca, na Teologia Cristã (a Trindade, por exemplo, é mais importante que ela), mas se tornou, e tenderá a se tornar cada vez mais, a principal condição para que a comunhão entre os cristãos aumente. Se a vida que Cristo trouxe à Terra tem um aspecto individual e outro comunitário, na medida em que as divergências dogmáticas submergem cada vez mais, o problema prático da igreja e sua organização tende a emergir. Ele tende a se tornar o mais decisivo para a existência, o vigor e a amplitude da vida cristã comunitária.
Assim, por exemplo, a divergência católico-protestante quanto às fontes da revelação não pode ser esvaziada de suas implicações eclesiológicas, já que, no fundo, significa: que órgão da igreja há de ser reconhecido como última instância no tocante à interpretação da Bíblia e da Tradição? Sabemos que tanto a Igreja Católica como a Ortodoxa resolvem essa questão por meio de sua autoridade máxima: o Papa, no caso católico, e o Santo Sínodo, no ortodoxo. A Igreja de Roma usa a palavra Magistério para designar o poder da hierarquia de interpretar as fontes da revelação (a Bíblia e a Tradição). Reconhece esse poder ao Papa, que o exerce com ou sem auxílio do episcopado. Já na Igreja Ortodoxa, o Santo Sínodo, composto pelos patriarcas e arcebispos das igrejas denominadas autocéfalas e autônomas, decide questões doutrinárias e de interpretação, sob a liderança honorífica (não governamental) do patriarca de Constantinopla (Istambul). Tal solução do problema hermenêutico alcançou certo êxito na História, pois foi o principal motivo da coesão interna dessas igrejas, que tanto contrasta com o fracionamento do corpo de igrejas protestantes.
Resumidamente, o fundamento bíblico que católicos e ortodoxos invocam, para adotarem essa solução, no caso de Roma, é a investidura de Pedro por Cristo como Papa, em Mateus 16:18, e, no da Igreja Ortodoxa, é o concílio ocorrido em Jerusalém para resolver se a observância da Lei de Moisés é necessária à salvação, como sustentado pelos judaizantes (Atos 15).
A Reforma Protestante tomou posição diferente sobre essa questão, ao optar pela superioridade do livre exame ao Magistério. Embora reconhecessem a competência de órgãos colegiados como o de Atos 15 para tratar de questões doutrinárias, os reformadores sustentaram, ousadamente, que a consciência de cada indivíduo é a última instância em matérias dessa natureza. Cada pessoa tem não somente o direito, mas também o dever de examinar livremente as Escrituras, a fim de determinar o sentido de suas proposições relativas à fé.
Os reformadores fundamentaram essa posição revolucionária nas Escrituras, às quais recorreram como fonte única da revelação. Mas é possível indagar exatamente em quais textos das Escrituras eles a basearam. Embora alguns textos afirmem que as Escrituras são infalíveis (Jo 10:35; 2 Tm 3:16), eles não excluem, de maneira explícita, a possibilidade de outras fontes também o serem. João 10:35, por exemplo, não afirma que “as Escrituras não podem falhar, e as outras fontes da palavra de Deus podem”. Diz apenas que as Escrituras são infalíveis. Sabemos, aliás, que essa era a crença da maior parte dos judeus, no primeiro século.
Porém, há modos mais eficientes de se defender a infalibilidade exclusiva da Bíblia. O primeiro consiste em postular que a intenção de textos como João 10:35 e 2ª a Timóteo 3:16 é, exatamente, afirmar a infalibilidade exclusiva da Bíblia, pois não há evidência de que os judeus do primeiro século considerassem infalível qualquer outro texto ou autoridade religiosa. O próprio Talmude ainda não fora composto. O mesmo pode ser dito das suas duas partes (Mishná e Guemará).
Mas, se manejarmos esse argumento com grande cuidado, seremos levados a reconhecer que era próprio da mentalidade judaica crer que a verdade a respeito de Deus não pode ser plenamente alcançada por qualquer indivíduo. Isso equivale a estabelecer que a palavra de um homem ou conjunto de homens de um mesmo período é sempre falível. A única exceção é a palavra ditada ou entregue diretamente por Deus, ao homem, como os judeus acreditavam ser o caso da Torá. Tirante esse caso, nunca mais repetido (exceto para os muçulmanos, que creem que o Alcorão foi dado por Deus a Maomé), para que a verdade se revele, é indispensável a intervenção de múltiplas gerações, ou seja, da História.
Pode parecer que esse princípio não se aplica somente à Bíblia, mas a todo livro ou conjunto de livros sobre o Deus único formado pelo mesmo método, assim como a Mishná, a Guemará e a Tradição Católica. E, em reforço dessa posição, é possível alegar ainda que os judeus do primeiro século só reconheceram as Escrituras como inspiradas, porque nenhum outro livro havia sido confeccionado por tal método até então, porém nada impede que a situação se tenha alterado, nos séculos posteriores.
A sugestão é válida, mas Jesus pôs um claro limite a ela, ao criticar os fariseus e escribas que lhe perguntaram: “Por que transgridem os teus discípulos a tradição dos anciãos?” (Mt 15:2). Essa tradição era a lei oral, corporificada nas glosas lançadas nas margens dos manuscritos bíblicos pelos escribas. Jesus lhes respondeu: “Por que transgredis vós também o mandamento de Deus, por causa da vossa tradição? Porque Deus ordenou: ‘Honra a teu pai e a tua mãe’ e ‘Quem maldisser a seu pai ou a sua mãe seja punido de morte’. Mas vós dizeis: se alguém disser a seu pai ou a sua mãe: É oferta ao Senhor aquilo que poderias aproveitar de mim; esse jamais honrará a seu pai ou a sua mãe. E assim invalidastes a palavra de Deus, por causa da vossa tradição” (Mt 15:3-6).
A acumulação de uma Tradição adicional às Escrituras é possível, desde que em conformidade com elas. Esse é o modo de crescimento normal da revelação divina na História. Não é preciso dizer que, em muitos pontos, a Mishná e a Guemará deixam de observar tal princípio, pois surgiram do desenvolvimento das glosas a que Jesus se referiu.
E a Tradição da Igreja Católica: satisfaz as exigências para ser aceita ao lado da Bíblia como inspirada por Deus? Pode-se admitir que, em princípio, a Tradição se mantém em conformidade com as Escrituras. Porém, ela não foi constituída pelo método histórico, mas pelo individual. A Igreja a concebe como um conjunto de obras elaboradas por certos autores. Cada qual desses autores viveu numa época. Portanto, a Tradição não satisfaz a antiga exigência judaica de múltiplas gerações.
Mas não é possível repensar a Tradição? Concebê-la não mais como conjunto de obras de indivíduos, mas como o vetor resultante dessas obras, uma vez eliminadas as contradições inadmissíveis? Esse vetor não emerge espontaneamente das correções de que cada obra carece? E não torna inspirada a Tradição, que se identifica com ele? Ou é impossível se determinar quais correções devem ser realizadas em um corpo doutrinário e devocional tão vasto? Bem, ainda que a Tradição seja mais difícil de se conhecer do que a Bíblia, ela o pode ser em alguma medida. Por isso, nada obsta tomá-la como fonte da palavra de Deus.
Contudo, as dificuldades implícitas no conhecimento da Tradição não recomendam que os conflitos entre ela e a Bíblia sejam desconsiderados ou resolvidos em seu favor. Pelo contrário, é preciso fazer recuar a Tradição, sempre que entra em conflito com as Escrituras. E isso não só pela dificuldade de se determinar o conteúdo da Tradição como corpus corrigível de ensinos, mas também por um segundo motivo. Se admitirmos que tanto as obras da Tradição como a Bíblia dão testemunho de Cristo, para que a sua mensagem mereça crédito, será necessário que parte dela tenha sido composta por pessoas que tiveram contato direto com Jesus ou com quem conviveu com ele. Só o Novo Testamento preenche tal requisito. No entanto, para interpretá-lo corretamente, é indispensável conhecer a mentalidade (judaica) segundo a qual ele foi escrito. E, para tanto, o melhor recurso disponível é o Antigo Testamento. Assim, também a partir da centralidade de Cristo, é possível se concluir que os conflitos entre a Bíblia e as obras da Tradição devem ser resolvidos em favor da primeira.
No capítulo 23 de Jeremias, Deus admoesta “os pastores que apascentam o povo”, nos seguintes termos: “Vós dispersastes as minhas ovelhas, e as afugentastes, e delas não cuidastes” (Jr 23:2). Diz também dos falsos profetas e dos sacerdotes: “Estão contaminados, assim o profeta como o sacerdote; até na minha casa achei a sua maldade, diz o Senhor [...] Nos profetas de Samaria bem vi eu loucura: profetizavam da parte de Baal, e faziam errar o meu povo Israel. Mas nos profetas de Jerusalém vejo cousa horrenda: cometem adultérios, andam com falsidade, e fortalecem as mãos dos malfeitores [...] Não mandei esses profetas, todavia eles foram correndo; não lhes falei a eles, contudo profetizaram. Mas se tivessem estado no meu conselho, então teriam feito ouvir as minhas palavras ao meu povo, e o teriam feito voltar do seu mau caminho e da maldade das suas ações” (Jr 23:11, 13-14, 21-22).
Por que os falsos profetas correm? Porque não estão dispostos a esperar a longa destilação da palavra de Deus na História. São como os que creem receber palavras ditas instantaneamente por Deus a eles. Nem uns, nem outros são capazes de ingressar no conselho de Deus, nem estão dispostos a seguir a admoestação: “O profeta que tem sonho conte-o como apenas sonho; mas aquele em quem está a minha palavra, fale a minha palavra com verdade” (Jr 23:28).
No Antigo Testamento, os sonhos eram o início de quase toda revelação. Precisavam, por isso, ser contados para serem coletivamente interpretados. Mas, por serem o início da revelação, não eram o seu final. A revelação requeria ainda interpretação. Necessário era esperar o inteiro processo descritivo e interpretativo transcorrer, não raro por gerações, para possuir a revelação, que Jeremias descreve como o estar da palavra de Deus no coração.
Verdade é que os apóstolos e os presbíteros da igreja em Jerusalém se reuniram para decidir sobre a necessidade ou não da observância da Torá para a salvação. É verdade, também, que essa reunião se aproxima, em princípio, do que os católicos denominam Magistério. Porém, esse é um fato narrado no capítulo 15 de Atos, não uma norma. Na Bíblia, fatos são fatos, normas são normas. Não podemos tomar fatos como se fossem normas, o que significa que não estamos obrigados a resolver desavenças doutrinárias pelo método de Atos 15.
E, em nenhuma outra passagem bíblica, vemos o procedimento do Magistério ordenado como norma. Que temos em Jeremias? Temos o falar do sonho e o debater da interpretação. E temos razões para crer que essa não é uma peculiaridade daquele livro. É antes uma defesa da atividade profética em geral, da atividade que gerou boa parte dos oráculos de Isaías a Malaquias. Ou, que outra coisa pode significar “Cri, por isso falei” (Sl 116:10; 2 Co 4:13), a não ser que o falar vem do crer e de mais nada? Atentemos para o modo como Paulo citou essa frase tão densa. Olhemos para a pretensão com que ele a mencionou. Paulo não a fez um paradigma? E o falar aludido na frase não inclui o ensinar?
"Crer, portanto falar" é um princípio de todo inseparável do livre exame. E permitam-me dizê-lo: como Paulo o utilizou, não é o princípio do Magistério, embora não devamos ser rápidos como os falsos profetas para negar todo valor a este. O Magistério é, sim, uma contribuição positiva da Igreja Católica. Podemos até responder a pergunta do título desta postagem com a frase: “Magistério e livre exame”. Aliás, essa é a melhor resposta. Só não podemos colocar o Magistério acima do livre exame.