No tempo de Jeremias, os profetas de Jerusalém orientavam o rei e a nação de Judá de modos tão diferentes que uma grande confusão se instalou. Não que a pluralidade de porta-vozes de Deus fosse em si negativa. Pelo contrário, ela proporcionava um quadro, potencialmente, rico e completo do que Deus desejava comunicar ao povo. Além disso, o fato de um profeta falar determinada palavra, e outro, palavra contrária não era incompatível com a revelação. Se algo nos é ensinado pela estrutura interna da Bíblia, é que esse grau de variação dos oráculos é inerente à palavra de Deus e não a anula.
Porém, onde a diversidade de profecias conduz a resultados contrários aos princípios da revelação, a situação muda completamente. Deuteronômio adverte: “O profeta que presumir de falar alguma palavra em meu nome, que eu lhe não mandei falar, ou o que falar em nome de outros deuses, esse profeta será morto” (Dt 18:20).
Nesse verso, dois casos são abordados: o do profeta que fala algo proveniente da sua própria imaginação como se fosse a palavra de Deus e o do que fala por outros deuses. O último caso é fácil de identificar, pois envolve um profeta idólatra. Da primeira à última página da Bíblia, uma lição invariável é ministrada: Deus condena a idolatria. Portanto, o profeta que serve outros deuses e fala em nome deles deve ser condenado.
Mas, e o outro caso? Que significa um genuíno profeta de Deus falar ao povo algo que não lhe foi transmitido do alto? O texto citado formula essa questão e a responde: “Se disseres no teu coração: Como conhecerei a palavra que o Senhor não falou? Sabe que quando esse profeta falar, em nome do Senhor, e a palavra dele se não cumprir nem suceder como profetizou, esta é a palavra que o Senhor não disse; com soberba a falou o tal profeta; não tenhas temor dele” (Dt 18:21-22).
O critério para se diferenciar a palavra que provém de Deus da que não provém é a realização do que foi profetizado. Porém, um profeta pode prever o futuro ou não o prever explicitamente. Vimos como lidar com a palavra que envolve predição, mas e quando a profecia nada predisser? Como devemos proceder nesse caso?
Deuteronômio 18:22 não admite semelhante hipótese. Quer afirmar, ao contrário, que a palavra de um profeta de Deus é sempre predição do futuro. Isso porque ela não está despojada da característica de mandamento comumente associada à Torá (Pentateuco). Assim como a Torá é um feixe de mandamentos, os oráculos dos profetas também o são. O que os distingue é a condição de mandamentos especiais, válidos para situações históricas específicas e determinadas. E, como mandamentos válidos para tais situações, toda palavra profética inclui previsões do que ocorrerá se ela for ou não for cumprida.
No tempo de Jeremias, por exemplo, os babilônios emergiram como grande poder político e militar. O exército de seu rei, Nabucodonosor II, subjugou diversos povos e ameaçava avançar sobre Judá. Nesse contexto, parte dos profetas de Jerusalém passou a afirmar, em nome de Iahweh, que os judeus deviam enfrentar os babilônios, pois Deus os protegeria, e nada de mal lhes sobreviria. Porém, Jeremias pregou que Nabucodonosor tinha sido levantado pelo próprio Deus e era um instrumento dele para corrigir Judá. Cabia ao povo aceitar a correção divina. Se isso não ocorresse, a resistência a Nabucodonosor desgraçaria o povo e, no limite, colocaria em risco a própria existência da nação. Tanto a palavra de uns como a de outros profetas, portanto, formulavam claras predições.
De acordo com Deuteronômio, a moldagem da situação histórica ao oráculo de um profeta é o que revela, em última análise, que a sua palavra provém de Deus. E, se a palavra de Deus é assim definida, concluímos que não é necessária a intervenção de uma autoridade como a do Magistério da Igreja para decidir qual, dentre as palavras que apontam caminhos diferentes para o povo, provém de Deus.
Um princípio revelado no Antigo Testamento nunca se altera debaixo do Novo. Mudanças podem ocorrer nas circunstâncias históricas, nos ritos, modos, práticas e até nos costumes, porém não num princípio revelado. Sob esse aspecto, a natureza da revelação é como a de Deus. Não está sujeita a mudanças. É a mesma, ontem, hoje e para sempre. A revelação é um conjunto de palavras de Deus sobre uma situação histórica. Mas não é só descrição dessa situação. Ela envolve também uma exortação ou, às vezes, um mandamento a respeito de como os que temem a Deus devem portar-se. Essa é a palavra que, insisto, constitui a natureza íntima e essencial da igreja. Toda outra natureza é segunda em relação a esta.
A palavra de Deus é, por isso, um processo que, para os homens, só se define a posteriori, ou seja, depois que os fatos profetizados acontecem ou não. Necessário é esperar pelos fatos para se conhecer a palavra. E, como os fatos definem o que é a palavra de Deus, eles também estão sujeitos à interpretação. Tanto os oráculos como os fatos em que eles se cumprem necessitam ser interpretados.
Para a Igreja Católica, sobretudo nos últimos dois séculos, essa interpretação principia com os teólogos, mas só é concluída pela hierarquia eclesiástica. Apenas o Magistério, a hierarquia enquanto incumbida do ensino, pode definir qual interpretação é correta ou melhor. Porém, essa é apenas uma maneira de ver a grave e central questão da palavra de Deus.
Em parte nenhuma das Escrituras, vemos a interpretação da palavra necessariamente sujeita a determinados líderes. A começar pelos próprios profetas, que dentre todos os israelitas eram os que tinham relação mais próxima com a palavra. Nem aos profetas cabia decidir, em instância final, que interpretação da palavra de Deus era correta ou melhor.
“Os lábios do sacerdote” também deviam “guardar o conhecimento e da sua boca deviam os homens procurar a instrução, porque ele é mensageiro do Senhor dos Exércitos” (Ml 2:7). Porém, que significa guardar o conhecimento a não ser tomá-lo pronto de alguma parte? E que é ser mensageiro de Deus, senão exercer função semelhante à de profeta? Mas, se o sacerdote se equipara ao profeta, não é mais do que ele. Ou, para dizê-lo mais simplesmente, o sacerdote é também profeta. Por isso, quando Caifás declarou “Não considerais que vos convém que morra um só homem pelo povo, e que não venha a perecer toda a nação? [...] não disse isso de si mesmo; mas, sendo sumo sacerdote naquele ano, profetizou que Jesus estava para morrer pela nação” (Jo 11:50-51).
Do mesmo modo, o rei de Israel, ao se assentar no seu trono, devia "escrever para si um traslado desta lei num livro, do que está diante dos levitas sacerdotes. E o terá consigo, e nele lerá todos os dias da sua vida” (Dt 17:18-19). E ao restante do povo foi dito algo semelhante: “Estas palavras que hoje te ordeno estarão no teu coração; tu as inculcarás a teus filhos, e delas falarás assentado em tua casa, e andando pelo caminho, e ao deitar-te e ao levantar-te” (Dt 6:6-7). Em suma, todos tinham igual acesso à palavra de Deus, igual dever de meditá-la e igual liberdade de a interpretar.
O igual acesso e a igual liberdade de interpretação da palavra são o cerne do que se convencionou chamar sacerdócio universal. Ambos estão presentes no Antigo Testamento. Quando Deus disse ao povo “Vós me sereis reino de sacerdotes” (Êx 19:6), imediatamente à saída do Egito, não só revelou sua intenção primeira e original, mas se comprometeu a nunca abandonar esse princípio, como de fato não o abandonou. O sacerdócio universal não caiu em desuso, não foi perdido, mas adotado e explicado, na lei, por meio dos mandamentos para que os reis, os profetas, os sacerdotes e todo o povo cultivassem as palavras que Deus lhes entregara.
Não houve lacuna na revelação e na prática desse sacerdócio, entre Êxodo 19 e o Novo Testamento, quando Cristo “nos constituiu reino, sacerdotes para o seu Deus e Pai” (Ap 1:6). O sacerdócio universal ou de todos os membros do povo de Deus é um princípio revelado e, como tal, permanece invariável. Mais pessoas foram chamadas a integrá-lo, no Novo Testamento, é verdade. Por isso se diz que Cristo as constituiu sacerdotes. Porém, o princípio, em si mesmo, sempre esteve presente.
As pessoas só têm dificuldade de encontrar o sacerdócio universal, no Antigo Testamento, porque o procuram onde não está. Procuram-no na administração dos ritos, dos sacrifícios, dos atos exteriores do culto. Em nada disso, há o sacerdócio universal. Porém, encontramo-lo inteiro, na questão do trato com a palavra de Deus. E exatamente da mesma maneira e com as mesmas características o achamos, no Novo Testamento.
Mas, ao lado desse sacerdócio, tanto no Antigo como no Novo Testamento, achamos outro, que podemos denominar particular. Coube aos levitas e, dentre eles, de modo especial, à Casa de Arão exercer esse segundo sacerdócio. A atribuição mais importante dos levitas nunca foi oferecer sacrifícios ou cumprir as ordenanças do culto ritual. Deus disse: “Misericórdia quero, e não sacrifício; e o conhecimento de Deus, mais do que holocaustos” (Os 6:6). Porém, ele nunca disse que não se importava se o sacerdote “guardava o conhecimento”. Antes acusou os da época de Malaquias de não o fazerem: “Os lábios do sacerdote devem guardar o conhecimento [...] Mas vós vos tendes desviado do caminho, e, por vossa instrução, tendes feito tropeçar a muitos; violastes a aliança de Levi, diz o Senhor dos Exércitos” (Ml 2:7-8). Isso confirma que o centro do sacerdócio era o cultivo da palavra de Deus, não o culto ritual.
Mas, apesar dos erros cometidos pelos levitas, não podemos afirmar que o seu sacerdócio tenha inibido o exercício do universal. Isso não ocorreu, em Israel. Observamos a decadência generalizada do povo, dos sacerdotes e de parte dos profetas, em relação à prática de cultivar a palavra de Deus, mas não vemos um sacerdócio inibir o outro. O mesmo acontece, em linhas gerais, sob o Novo Testamento. Assim como não é correto pensar que Israel recebeu o sacerdócio universal e o abandonou, quando o dos levítas foi instituído, não é apropriado afirmar que Cristo reintroduziu o sacerdócio universal, porém os cristãos criaram uma réplica do levítico, por meio da qual anularam o primeiro. Nada disso parece exato.
A inibição de um sacerdócio pelo outro só ocorre quando se instala um regime, que podemos denominar hiperclerical. A diferença entre o clericalismo e o hiperclericalismo não é apenas de grau, mas também de natureza. O aumento do grau de distinção clerical importa uma mutação no caráter íntimo do regime. Do papel ordenado por Deus, os clérigos passam a exercer um outro, não ordenado por ele. A principal característica dessa passagem é o assenhoreamento do ministério da palavra por parte dos clérigos.
No Antigo Testamento, a palavra de Deus devia ser conservada pelos sacerdotes da tribo de Levi, mas a parte mais importante do trato com ela cabia aos profetas. As Sagradas Escrituras não são o registro da palavra sacerdotal, mas da que os profetas pronunciaram. Pouquíssimas palavras de sacerdotes foram conservadas na Bíblia. E precisamos reconhecer que os profetas foram os leigos do Antigo Testamento.
Devemos a Lutero a retomada do tema do sacerdócio universal, após séculos de quase esquecimento. As obras em que ele primeiro tratou desse tema são o Discurso à nobreza da nação alemã e O cativeiro babilônico da igreja.
Mas gostaria de transcrever um trecho de outra obra, na qual ele trata
do sacerdócio de todos os cristãos em termos mais práticos. Diz o
reformador:
"Entre cristãos não deve nem pode haver autoridade
alguma, pois cada qual está submisso ao outro, como diz Paulo em Rm 12
[Fp 2.3]: 'Cada qual considere o outro seu superior', e 1 Pe 5.5: 'Sede
todos submissos uns aos outros'. Isso é o que também Cristo quer:
'Quando fores convidado para o casamento, toma o último lugar' - Lc
14.10. Entre os cristãos não há superior a não ser o próprio Cristo"
(LUTERO, Martinho. Da autoridade secular, até que ponto se lhe deve obediência. In Martinho Lutero - obras selecionadas. São Leopoldo: Sinodal/Concórdia, 1996. p. 105).
E continua:
"Que
são, pois, os sacerdotes e bispos? Resposta: Seu regime não é de
autoridade ou poder, mas serviço e função. Pois não são superiores e
melhores que outros cristãos. Por isso não devem impor lei ou mandamento
a outros sem a vontade e consentimento deles. Seu governo não é outra
coisa que pregar a palavra de Deus e com ela conduzir os cristãos a
vencer a heresia. Pois, como já disse, os cristãos não podem ser
governados a não ser com a palavra de Deus" (idem. p. 106).
Não quero, de maneira alguma, afirmar que a parte mais importante do ministério da palavra deva caber exclusivamente aos leigos. Mas, se o exemplo dos profetas constituir um princípio, os clérigos só têm parte nesse núcleo ministerial na medida em que são profetas, portanto leigos. Por tudo isso, a existência de sacerdotes, no Antigo Testamento, e a de clérigos, no tempo atual, não pode ser condenada. É uma situação eclesiástica normal. Porém, a concentração do ministério da palavra nas mãos deles não há de ser admitida.
O primeiro passo para que isso ocorra, nos dias de hoje, é a abolição do livre exame das Escrituras. Por meio desse passo, os líderes confiscam o poder-dever legítimo que todo cristão possui de ser um cultor da palavra de Deus, de a interpretar e propagar. Esse poder-dever está implícito no “Ide” pronunciado por Jesus: “Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo; ensinando-os a guardar todas as cousas que vos tenho ordenado” (Mt 28:19-20).
Se não podem interpretar a palavra, como os cristãos a podem pregar? Devem pregar o que não conhecem, pois não o interpretam? Ou pregar o que outros conhecem por eles? Que estranho mandamento é esse? Se assim se deve realmente entender a grande comissão, Jesus terá dito: “Ide, pregai o que ainda não conheceis, pois a autoridade entre vós ainda não o estabeleceu”. Em que mandamento vazio a grande comissão se transforma, quando entendida dessa maneira!
Muitos reconhecem, no mandamento de evangelizar, a razão de ser da fé cristã, e estão absolutamente certos. No entanto, poucos extraem dele a consequência do sacerdócio universal. No centro da grande comissão, está o discipulado: “ensinando-os a guardar todas as cousas que vos tenho ordenado”. Portanto, ela é muito mais do que uma mensagem sobre a entrada no céu ou no inferno. É toda uma definição do que é o céu, em que ele consiste e como será um dia unido à terra.
Os que levam os outros a guardar todas as coisas que Cristo ensinou estão autorizados a desprezá-las? Podem considerar ignóbil o que ensinam os outros a considerar elevado? Podem ser privados do direito de entender livremente essas coisas? Se não podem, a grande comissão é o trato direto de todos os crentes com “todas as coisas que vos tenho ensinado”. É a busca e o compartilhamento delas, sob a disciplina que a palavra discipulado evoca.
Vemos, assim, que o sacerdócio universal emana do livre exame. Ele não é algo leve, muito menos leviano. Não consiste em ouvir as últimas notícias sobre a vida de quem frequenta as igrejas. É um trato antes de tudo sério e reverencial com os tesouros da palavra de Deus. Todos são sacerdotes, porque têm o poder e o dever de realizar esse trato. De interpretar a palavra e pregá-la. E o interpretar a palavra, publicamente, já é um pregar. Ele está implicado na promessa “Serão todos ensinados por Deus” (Is 54:13; Jo 6:45). “Ensinados por Deus” quer dizer “somente por Deus”. Deus não é tão Deus, quando necessita de subsídios de outros para ensinar. Claro que Jesus também disse aos discípulos: “ensinando-as [vós]”. Porém, isso significa que os apóstolos e demais cristãos seriam instrumentos do ensinar de Deus e nada mais.
No entanto, a ordem de coisas do sacerdócio universal não pode ser tomada como ocasião para o orgulho secreto ou a arrogância aberta. Cada cristão interpretar a palavra que, no tempo de Moisés, foi gravada em pedra não pode ser tomado como motivo de desvanecimento. Paulo não disse que o Espírito de Deus inscreve as palavras de Cristo em tábuas de pedra, mas de carne, ou seja, no coração (2 Co 3:3). Essa carne não é literal, não é carne em sentido objetivo, mas subjetivo. É um sentir-se carne, em oposição ao sentir-se pedra. É um sentir-se frágil e um saber-se transitório, em oposição ao sentir-se forte e ao se entender indestrutível.
E, para que a soberba não tome o coração humano, o próprio Cristo, Senhor, subordinou esse grande ministério a um discipulado. Para ser arauto da palavra de Deus, é preciso se fazer discípulo. Mas que é ser discípulo? Acaso não é ser aprendiz e não mestre? Não é ser ouvinte, mais do que pregador? Possuir a palavra do Mestre, mas querer possuí-la ainda mais do que a possuir efetivamente? Por tudo isso, o primeiro nome pelo qual os cristãos se tornaram conhecidos, na História, foi o de discípulos.
Mas é preciso dizê-lo sem rodeios: ser discípulo não é coisa fácil. “Quem quiser vir após mim a si mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-me” (Mt 16:24). Desde que Jesus ascendeu ao Pai, segui-lo passou a ser o mesmo que seguir sua palavra, como o Espírito a ensina ao coração. Porém, a condição e o preço do discipulado continuam os mesmos: negar-se, tomar a cruz e andar pelas ruas com ela, em direção ao lugar em que o grão de trigo, caindo na terra, dá muito fruto. Essa palavra mostra bem que o adversário principal do discipulado não é o que o homem faz ou sofre exteriormente, mas o seu eu. O que ele faz ou sofre não é suficiente para cegar o seu coração, porém o amor ilimitado a si mesmo o é.
A figura do homem que leva a sua cruz é a de um condenado, não a de um morto. O eu não precisa exatamente morrer. Precisa sentir-se morto. Se morresse, ele não poderia seguir a Cristo, o que esvaziaria o mandamento "Quem quiser vir após mim". Como um morto poderia ir após Cristo? Então, que morramos não é o que Cristo pede. Ele pede que a existência do seu discípulo, nas palavras adotadas pelos filósofos, seja um ser-para-a-morte. Até mesmo o ser-para-a-morte mais consumado e pleno.
É impossível que, nesse discipulado, o livre exame assuma a forma de uma revelação em cada esquina. Se não é um trato leviano com as coisas de Deus, o livre exame não pode resultar numa luta de todos contra todos, a pretexto da interpretação da Bíblia, ou numa grande vala comum em que se depositam, com idêntica honra, as boas e as péssimas interpretações. Esse seria um livre exame sem discipulado. Mas o de Cristo é exatamente um discipulado.
domingo, 28 de abril de 2013
quarta-feira, 24 de abril de 2013
Reforma e Restauração (artigos reunidos)
Coroação do Imperador Otto I pelo Papa João XII |
A PALAVRA DE DEUS E A IGREJA
João XII (955-964) podia ter usado o instrumento da excomunhão, tão comum na sua época, para dar vazão à ira que o possuiu, ao ser destituído do trono papal por seus inimigos, mas escolheu se vingar por outros meios. A um de seus adversários, cortou o nariz, os dedos e a língua; de outro arrancou a pele; decapitou outros 63. E, após espalhar esse horror, João se assentou no exaltado trono que, para ele, não simbolizava absolutamente o sagrado, mas o dinheiro, o prazer e o sexo.
Horror é mesmo a palavra que salta à mente, ao ouvirmos esse relato. E, no incêndio que o sentimento ateia, o juízo chega a paralisar-se. Somos tomados de repugnância tal pelos atos de João que, de repente, se torna irrelevante, para nós, se ele agiu por motivos pessoais, se outros estavam aliados a ele ou mesmo se o comandavam. A violência extrema monopoliza a nossa atenção, e tudo em que conseguimos pensar é na culpa pessoal de João.
Mas, conforme retomamos o juízo sereno, notamos que a matança do século X não teve significado apenas individual. É verdade que João amava os prazeres de modo doentio e era movido pelos piores sentimentos. Porém, como Papa, ele chefiava um grupo, uma corte, toda uma constelação de clérigos, nobres e serviçais que gravitava ao seu redor. Mais do que um ato isolado, a matança comandada por João foi um choque entre esse vasto grupo e aquele constituído por suas vítimas.
Isso se torna ainda mais claro, quando lembramos o artigo de Leonardo Boff a que fiz referência há alguns dias. Com base em Jean-Yves Congar, Boff afirmou que a História da Igreja Católica pode ser dividida em duas partes, entre as quais se situa a reforma de Gregório VII. Tanto Congar quanto Boff consideram comunitária a Igreja que existiu antes daquela reforma e autoritária a que a sucedeu. E o mais interessante é que, com essa divisão, tanto a corte de João XII como a que ele dizimou ficam inseridas na época da Igreja-comunidade, o que reforça o sentido coletivo e até mesmo comunitário do embate das duas facções.
Antes que alguém afirme que essa periodização da História é equivocada e que erros tão graves quanto os da Igreja antes do século X não podem ser atribuídos a comunidades, permitam-me recordar que há comunidades de muitas espécies, assim como instituições de toda índole: boas, más, pérfidas, leais, ingênuas, hediondas. Comunidade não é, em si, uma palavra indicativa de pureza e bondade, assim como não é necessário que o termo instituição designe o invólucro social de algo perverso. Exatamente por isso, é possível considerar que a vingança de João XII não foi somente a explosão da maldade de um indivíduo, mas também um choque de grupos, de comunidades, e uma manifestação da Igreja como instituição.
A História tem essas três dimensões principais: a individual, a comunitária e a institucional. Se nem toda comunidade é pura, podemos acrescentar que nem toda instituição é nociva. Ou, em conclusão, podemos extrair dos fatos que todos os três, indivíduo, comunidade e instituição, podem ser bons ou maus e frequentemente são as duas coisas.
A igreja como tal não é o indivíduo. É a comunidade e a instituição. Nenhum desses seus aspectos é, por si só, negativo. Pelo contrário, a falta de um deles constitui uma perda. Portanto, um mal para a igreja.
Que é uma comunidade? Sem intenção de definir o termo, podemos propor que ele designa um círculo de pessoas em que ocorre a partilha de coisas fundamentais. Partilha de valores, crenças, sentimentos, às vezes também de bens materiais. Daí as boas comunidades. No entanto, outras vezes, a partilha que ocorre, nos grupos comunitários, é a de desvalores, de maus sentimentos e do produto de crimes. Daí as comunidades más.
A instituição, por sua vez, é a organização de pessoas que existe para levar a cabo uma missão. No caso da igreja, suas instituições têm como principais missões a pregação do evangelho e a difusão de comunidades. Duas ou três pessoas podem ser capazes de propagar o evangelho ou um ideal coletivo, apenas vivendo em comunidade. Porém, se se organizarem um pouco mais, elas serão capazes de fazê-lo em maior medida e de modo mais duradouro. Essa é a razão de ser da instituição religiosa, posta de maneira simples.
A dimensão principal da igreja não coincide, portanto, com qualquer dos aspectos citados até aqui. A comunidade, a instituição, o caráter universal, o local, a invisibilidade e a visibilidade são atributos positivos e genuínos, mas não essenciais da igreja. Apenas a presença da palavra de Deus em seu seio é tal atributo essencial. A igreja é um corpo ou conjunto de indivíduos que falam e ouvem a palavra de Deus sinceramente. Não-igreja, ao contrário, é tudo o que não ouve e não fala a palavra sinceramente.
Em todos os aspectos abordados acima, exceto no de assembleia que segura firme o depósito da palavra, a igreja aparece como santa e pecadora. Santo Agostinho não disse que ela tem um lado luminoso e outro tenebroso, por alguma razão teórica, mas com base na sua observação dos fatos. O caráter santo e o pecador da igreja deitam raízes profundas na realidade, mas é preciso acrescentar: na realidade humana, não na palavra de Deus. Sob o prisma dessa palavra, a igreja é a mulher gloriosa vestida do sol, que tem a lua debaixo dos pés, em Apocalipse 12. Não é a meretriz do capítulo 17. Se a lua foi criada por Deus para governar as trevas, tal mulher é capaz de governar a lua.
Essa é a igreja gloriosa. A igreja do futuro, de certo, como Watchman Nee bem escreveu. Porém, não a de um futuro longínquo, inalcançável. Como em gramática, o futuro em que essa mulher existe é o do presente. É o futuro que tudo envolve, abarca e abraça. O futuro do qual o presente é só um anexo.
Por isso também, o motivo mais decisivo da Reforma do décimo-sexto século não foi a venda de indulgências ou as pretensões políticas deste ou daquele príncipe, mas o desaparecimento da palavra de Deus no seio da Igreja. A missa em latim, a raridade da pregação no dialeto do povo e a ignorância quase total da Bíblia pelos padres enterraram tão fundo o evangelho e o restante das Escrituras que, em certo momento, eles desapareceram, e a fé cristã degenerou em superstição.
Demos, porém, um passo atrás, a fim de entender melhor o que a missa em latim, à qual a pregação foi reduzida, significou na Idade Média. Não há como negar que ela significou a alta cultura, até mesmo a única cultura admitida (a romana), já que todas as outras continuavam a ser consideradas bárbaras. Impõe-se, pois, a conclusão de que a Bíblia foi aprisionada na cultura mais elevada da época.
Esse peculiar mecanismo de custódia tem algo a nos dizer sobre a natureza da crise que antecedeu a Reforma da igreja. O depósito essencial da igreja, aquele pelo qual ela se torna o que é - a palavra de Deus, foi removido do alcance dos fieis não por algo de baixo valor, mas pelo que possui valor mais elevado para a humanidade depois das coisas divinas: a cultura, isto é, as letras em que a mais sublime literatura tinha sido composta.
Refiro-me ao corpus da literatura latina. E, se considerarmos que a missa era composta de trechos dos pais dos primeiros séculos, teremos de concluir até mesmo que as Escrituras foram encerradas no que em latim se produzira de mais sublime até então.
Nada disso foi casual, como não foi casual o fato de o Novo Testamento ter sido escrito em grego. Esses dois fatos linguísticos resultaram de um amplo processo cultural, que no caso da Idade Média culminou com o encarceramento da palavra que liberta. E, se a crise que antecedeu a Reforma teve esse caráter, temos de concluir que os alvores dela, o início da restauração da igreja, podem ser identificados com as primeiras reações contra os mecanismos culturais que retiraram a Bíblia de circulação. Uma dessas reações foi a condenação do averroísmo, consequentemente do aristotelismo puro, por Étienne Tempier, em 1277. Outra foi o libelo, ainda mais amplo, de Jean Gerson, no século XIV, contra as soluções filosóficas de problemas teológicos.
Por terem condenado a sobreposição de elementos culturais à Bíblia, esses acontecimentos devem ser considerados os primeiros precedentes da Reforma, na Idade Média Ambos tiveram por finalidade frear os excessos do processo que havia levado Aristóteles e outros filósofos pagãos a reinar em lugar de Cristo. Não se voltavam, por certo, contra toda forma de Filosofia. Menos ainda contra toda a cultura clássica. Mas punham o freio necessário à espécie de sincretismo que tirava de cena o depósito essencial da igreja de Cristo.
Demos, porém, um passo atrás, a fim de entender melhor o que a missa em latim, à qual a pregação foi reduzida, significou na Idade Média. Não há como negar que ela significou a alta cultura, até mesmo a única cultura admitida (a romana), já que todas as outras continuavam a ser consideradas bárbaras. Impõe-se, pois, a conclusão de que a Bíblia foi aprisionada na cultura mais elevada da época.
Esse peculiar mecanismo de custódia tem algo a nos dizer sobre a natureza da crise que antecedeu a Reforma da igreja. O depósito essencial da igreja, aquele pelo qual ela se torna o que é - a palavra de Deus, foi removido do alcance dos fieis não por algo de baixo valor, mas pelo que possui valor mais elevado para a humanidade depois das coisas divinas: a cultura, isto é, as letras em que a mais sublime literatura tinha sido composta.
Refiro-me ao corpus da literatura latina. E, se considerarmos que a missa era composta de trechos dos pais dos primeiros séculos, teremos de concluir até mesmo que as Escrituras foram encerradas no que em latim se produzira de mais sublime até então.
Nada disso foi casual, como não foi casual o fato de o Novo Testamento ter sido escrito em grego. Esses dois fatos linguísticos resultaram de um amplo processo cultural, que no caso da Idade Média culminou com o encarceramento da palavra que liberta. E, se a crise que antecedeu a Reforma teve esse caráter, temos de concluir que os alvores dela, o início da restauração da igreja, podem ser identificados com as primeiras reações contra os mecanismos culturais que retiraram a Bíblia de circulação. Uma dessas reações foi a condenação do averroísmo, consequentemente do aristotelismo puro, por Étienne Tempier, em 1277. Outra foi o libelo, ainda mais amplo, de Jean Gerson, no século XIV, contra as soluções filosóficas de problemas teológicos.
Por terem condenado a sobreposição de elementos culturais à Bíblia, esses acontecimentos devem ser considerados os primeiros precedentes da Reforma, na Idade Média Ambos tiveram por finalidade frear os excessos do processo que havia levado Aristóteles e outros filósofos pagãos a reinar em lugar de Cristo. Não se voltavam, por certo, contra toda forma de Filosofia. Menos ainda contra toda a cultura clássica. Mas punham o freio necessário à espécie de sincretismo que tirava de cena o depósito essencial da igreja de Cristo.
Não surpreende que, num contexto assim corrompido, os reformadores tenham-se erguido para proclamar que o que constitui a igreja de Cristo é a palavra de Deus. Para Lutero, Calvino e seus seguidores, a igreja só pode existir onde a palavra está. Esse último escreveu: “Se virmos a palavra de Deus sinceramente pregada e ouvida e se virmos os sacramentos administrados de acordo com a instituição de Cristo, não poderemos duvidar de que ali existe a Igreja de Deus” (CALVINO, Jean. The Institutes of Christian religion. In Great books of the western world. Chicago: Encylopaedia Britannica, 1993. Book Fourth, Chapter I, 9. Vol. 20, p. 331). Como, para Calvino e Lutero, os sacramentos sem a palavra eram ritos mortos, da declaração acima se extrai que a igreja só existe onde a palavra de Deus está presente.
AS IGREJAS E O TEMPO
Não poucos seguidores de Cristo consideram que as regras do passado bíblico devem impor-se ao presente e ao futuro, não importa quanto tempo transcorra. Seja em matéria de fé, seja em questões de conduta, essas pessoas consideram que as práticas da igreja primitiva são as únicas corretas, as únicas que não importam desobediência a Deus. É como se o eterno presente, em que Deus existe e que Santo Agostinho descreveu com propriedade e verve, uma vez projetado no mundo, se transformasse no eterno passado dos crentes.
Desconfio que essa resolução dos dilemas do tempo seja responsável por dois grandes males. O primeiro é a vontade furiosa de retorno ao século I que ela gera no mundo cristão; o outro é a admissão de que as instituições primitivas podem e devem ser superadas, desde que os princípios da igreja apostólica sejam mantidos. Essa segunda posição pode parecer perfeita, mas geralmente abre caminho para uma adesão tão forte a instituições de outras épocas quanto a que o primeiro grupo devota às do século I. Claro que me refiro à atitude das Igrejas históricas (Luterana, Anglicana, Presbiteriana, Metodista, Batista, entre outras), que adotam os princípios bíblicos e consideram normativos os ensinamentos de seus fundadores.
O modo como as igrejas pensam o tempo é demonstrado, de modo particularmente significativo, pela sua atitude para com os ofícios mencionados em Efésios 4:11. Esse versículo afirma: “Ele mesmo [Cristo] concedeu uns para apóstolos, outros para profetas, outros para evangelistas, e outros para pastores e mestres” (Ef 4:11). Embora as cinco tarefas citadas permaneçam essencialmente as mesmas, ao longo do tempo, o contexto em que se executam, hoje, é muito distinto do da igreja primitiva. Devemos reconhecer que essa mudança de circunstância impõe a necessidade de uma adaptação dos papeis de apóstolo, profeta, evangelista, pastor e mestre.
Assim, por exemplo, no primeiro século, a função dos apóstolos era promover a superação de barreiras geográficas à distribuição dos dons de Cristo à igreja. Comunidades entre si distantes não podiam se comunicar. Por isso, os apóstolos viajavam para levar até elas o que, de melhor, as outras igrejas possuíam em termos de alimento espiritual. Hoje, porém, as barreiras geográficas e de comunicação deixaram de ter a mesma relevância do primeiro século. Por isso, o apostolado passou por uma transformação, uma adaptação às novas circunstâncias. Hoje, ele consiste mais em comunicar o evangelho, à distância (intencionalmente, isto é, com o consentimento de quem o recebe), do que em viajar de lugar a lugar.
Transformações análogas se exigem nas operações de profetizar, pregar o evangelho, apascentar e ensinar. Aliás, tantas foram as mudanças que o tempo impôs às igrejas que, na maior parte delas, as próprias palavras apóstolo e profeta deixaram de ser empregadas para designar pessoas vivas, mulheres e homens da nossa época. Está isso errado? Não o creio. Cada época tem o seu léxico, e é sempre ajuizado respeitá-lo. As circunstâncias históricas tornaram e ainda tornam a omissão dos apóstolos e profetas necessária ou pelo menos útil. E tudo o que é necessário, assim como parte do que é útil permanece fora da seara pútrida do pecado.
Os termos evangelistas, pastores e mestres não caíram tanto em desuso quanto os de apóstolo e profeta, porque as funções a que se referem, ao contrário das destes, permanecem objetivamente definidas. Evangelista é quem anuncia o evangelho. Sabemos o que é o evangelho; logo, sabemos quem é evangelista. Pastor, no sentido moderno, é o líder ordenado de uma igreja evangélica: o clérigo protestante, que se distingue por exercer e centralizar o ministério da palavra. Já o mestre é o professor, o que dá aulas nos meios de comunicação e em instituições como seminários e escolas dominicais.
Não convém nos levantarmos contra as concepções atuais dos ofícios de Efésios 4:11, apenas porque se afastam do que era praticado no primeiro século. Melhor é respeitarmos as respostas que as comunidades desenvolvem às circunstâncias cambiantes da História. Se não podemos revogar ou sair da História, devemos aceitar as suas construções.
Ridículo é pretendermos que as funções de apóstolo, profeta, evangelista, pastor e mestre tenham de continuar a ser hoje o que eram no primeiro século, se a Bíblia é a primeira a atribuir sentidos cambiantes aos mandamentos e instituições que nos apresenta. Ou Moisés não ordenou, com veemência, que o violador do sábado e a mulher pega em adultério fossem mortos (Nm 15:32-36; Lv 20:10)? No entanto, ao descobrir a gravidez de Maria, sem saber, a princípio, que havia sido produzida pelo Espírito Santo, José não a expulsou, antes se retirou, ele próprio, de casa. O surpreendente para quem foi cultivado em concepções tradicionais é que a Escritura não afirma que o pai de Jesus o fez porque era injusto (descumpridor da lei), mas porque “era justo e não a queria infamar” (Mt 1:18-19). Semelhantemente, Jesus observou a lei judaica, mas não mandou matar seus discípulos por terem colhido espigas no sábado (Mt 12:1-8), nem a mulher pega em adultério (Jo 8:3-11).
Assim, se por nostalgia alguém quiser manter o antigo apóstolo, o profeta arcaico etc., deverá também restaurar a submissão da mulher ao homem e suspirar pelo retorno da escravidão, pois Paulo ordenou que ambas fossem observadas. Ou elas não estão na palavra de Deus? Enquanto não reintroduzem o antigo escravo e a servidão da mulher ao homem, porém, permitam-me lembrar que os restauradores do apóstolo e do profeta primitivos não possuem o crédito de que necessitam para que o seu ensinamento seja seguido.
Por falta de espaço, não multiplicarei os exemplos de superação de costumes e instituições bíblicos, na própria Bíblia, mas devo lembrar que as Escrituras sempre mostram a evolução de ambos. Aliás, a própria Bíblia muda. De maneira quase unânime, os judeus consideravam traduções do Antigo Testamento, a exemplo da Septuaginta, não como subordinadas ao original, mas como trabalhos do próprio Deus que, uma vez consumados (e aceitos pelo seu povo), adquiriam independência do texto hebraico. Não foi por outro motivo que os autores do Novo Testamento citaram passagens da Septuaginta por vezes divergentes, por vezes inconciliáveis com o hebraico. E foi pelo mesmo motivo que as variações entre as traduções, entre estas e o original e entre os próprios manuscritos originais eram todas tidas como divinamente inspiradas.
Quando o autor de Timóteo afirmou que “toda Escritura é inspirada por Deus” (2 Tm 3: 16), ao que tudo indica, era essa grande gama de textos variantes que ele tinha em mente. Creio, portanto, na inspiração literal da Bíblia, mas sob essa concepção bíblica. O que significa que a obediência às Escrituras não implica, nunca implicou, nem implicará no futuro a adoção cega das suas práticas e instituições, mas a adaptação delas às circunstâncias históricas cambiantes.
Os ofícios de Efésios 4:11 não escapam a essa regra. Por meio deles, Deus quis estabelecer um princípio imutável, assim como as Igrejas históricas reconhecem. A esse princípio, é que a fé se dirige, não às circunstâncias do primeiro século ou ao modelo antigo de apóstolo, profeta, evangelista, pastor e mestre. E penso que o princípio por trás de Efésios 4:11 é a destinação do trabalho de apóstolo, profeta, evangelista, pastor e mestre ao aperfeiçoamento dos santos, pois “ele mesmo concedeu uns para apóstolos [etc...] com vistas ao aperfeiçoamento dos santos para o desempenho do seu serviço, para a edificação do corpo de Cristo” (Ef 4:11-12).
Efésios subordina, claramente, os ofícios espirituais ao aperfeiçoamento dos santos, não à edificação da igreja. Isso significa que os ofícios têm finalidade individual, não coletiva. Os apóstolos do primeiro século, para nos atermos de novo a eles, não edificavam diretamente a igreja, mas aperfeiçoavam os santos para que o fizessem. Até porque o apóstolo viajava, e a edificação da igreja exigia a permanência das pessoas umas com as outras. A julgar pelos discursos diários de Paulo na escola de Tirano, pelo espaço de dois anos (At 19:9-10), ou pela fala na residência de Trôade, que se alongou até a alvorada (At 20:7,11), os apóstolos enquanto tais ministravam, muito mais do que recebiam o ministrar de outros, como acontece numa experiência de mutualidade.
Em flagrante contraste com o exemplo apostólico, porém, o que vemos os líderes cristãos realizarem, hoje, é muitas vezes moldar, conformar os indivíduos não a Jesus Cristo, mas às tradições, às práticas e às doutrinas sejam do primeiro século, sejam posteriores. E, ainda mais do que tudo isso, vemo-los enfiar as pessoas a todo custo nos moldes do pensamento homogêneo que tanto caracteriza o rebanho cristão, as igrejas e os ministérios. Ou enfiar os moldes nas pessoas, conforme o caso. Ou ainda as duas coisas ao mesmo tempo, dirão os mais severos críticos, entre os quais espero não me incluir.
O que há de mal nesses fatos não é o afastamento das instituições atuais em relação às que vemos representadas na Bíblia, como tanto e com tanto furor se denuncia. O mal é o líder cristão ter-se especializado em conformar o indivíduo à massa, o individual ao coletivo, o peculiar ao genérico. Essa atividade não apenas dos líderes, mas das instituições cristãs não deixa de produzir a demolição do indivíduo como tal e a exaltação da coletividade no espaço que o cortejo fúnebre dele inaugura solenemente.
Não há como não se reconhecer, na adesão deliberada a essa prática, uma forma de pecado. E que a Bíblia é reduzida por ela a uma jazida de matérias-primas de interpretações literais que, por definição, só podem enxergar no presente a traição do passado. Nessa visão míope, a violação do passado “no tempo que se chama hoje” é alegada, representada, denunciada como pecado, e a alegação, e a representação, e a denúncia servem de timbre do caráter celeste dos ministérios.
Há não muito tempo, um autor chamado Frank Viola lançou um livro de denúncias de praticamente todas as igrejas cristãs, por se terem apartado das práticas e instituições bíblicas. Não duvido da veracidade de boa parte do repertório de informações históricas que o livro traz ou da importância da pesquisa do passado para que a fé cristã se mantenha como verdade presente. Mas o problema simples da vociferante denúncia de Viola é esquecer-se de que não podemos achar no presente a não ser ele próprio. Jamais o passado. Isso é inescapável para o homem. É próprio da condição humana. É um traço que Deus descreveu na areia do tempo para não ser ultrapassado, já que arredar um milímetro da condição humana é flertar com o pecado e conversar com a serpente.
A RESTAURAÇÃO PREFIGURADA
O apóstolo Paulo sugeriu que a saída do povo de Israel do Egito e a sua peregrinação no deserto retratam, simbolicamente, a experiência muito posterior dos cristãos. De acordo com ele, “todos [os israelitas] foram batizados em Moisés, na nuvem e no mar, e todos comeram de uma mesma comida espiritual, e beberam todos de uma mesma bebida espiritual” (1 Co 10:2-4). Porém, “estas coisas foram-nos feitas em figura” (1 Co 10:6). No pensamento de Paulo, o Êxodo prefigurava algo mais, algo diferente dele próprio, a saber: o desenvolvimento da salvação trazida por Cristo.
Essa afirmativa de Paulo estabelece um importante princípio de interpretação. Para o apóstolo, a História de Israel prefigurava a da Igreja. Portanto, não apenas a saída do Egito, a passagem pelo mar, a permanência sob a nuvem, a alimentação do maná e o jorro de água da rocha tinham esse sentido, mas os acontecimentos posteriores também.
A ideia de que a igreja cristã experimentou uma degradação seguida de restauração decorre da possibilidade de se ver a História recente na antiga, da maneira claramente pretendida por Paulo. O Cativeiro de Israel em Babilônia representa um período, no qual o cerne da nova aliança, representado simbolicamente pelo Templo e pelo culto, foi destruído ou suspenso. Porém, à destruição seguiu-se a plena restauração daqueles elementos.
Não foi por outra razão que Lutero escreveu uma célebre obra sobre o Cativeiro Babilônico da igreja. Ele estendeu o princípio da prefiguração afirmado por Paulo ao período de derrota e desolação, durante o qual o culto divino permaneceu suspenso em Israel. Para ele, do século IX ao XVI, o Papado reproduziu as principais características daquela particular prefiguração, pois aprisionou os cristãos num regime supersticioso estranho ao Novo Testamento.
Ao projetar o Cativeiro Babilônico de Israel em sua própria época, Lutero foi consequente. Ele fez simplesmente o mesmo que o apóstolo Paulo na 1ª Epístola aos Coríntios. Esse trabalho de projeção descortina uma ampla visão da História, no centro da qual se percebe um processo de degradação seguido da restauração da igreja cristã. Sondar os princípios e os detalhes dessa visão é o objetivo do presente texto.
O contraste entre a adoração de Israel a Deus, em Canaã, por cerca de 900 anos, e a degradação desse culto, durante o Cativeiro, salta aos olhos. Ele indica que a História da Igreja Cristã até o Cativeiro pode ser claramente dividida em um período de normalidade geral e outro de anormalidade. Assim como, no Antigo Testamento, o período que antecedeu a degradação do culto foi de normalidade, apesar das constantes oscilações, a vida da igreja transcorreu sob uma normalidade abençoada e divina, durante séculos. Isso não significa que não existiram problemas. Pelo contrário, eles foram abundantes. Porém, aos olhos de Deus, o contorno geral do longo período inicial de existência da igreja, no mundo, foi a sua normalidade espiritual. Como Israel havia sido chamado para fora do Egito, a fim de adorar a Deus em Canaã e fez isso durante 900 anos, embora com altos e baixos, a igreja viveu uma situação regular, aos olhos de Deus, ao longo de séculos. Só o Cativeiro Babilônico, a que Lutero se referiu, pôs fim a tal situação.
Esse modo de ver a História da Igreja sugere que não devemos considerá-la uma sucessão de fracassos só contrastados pela fidelidade de uns poucos cristãos a Deus. A maioria dos pregadores e adeptos da ideia de restauração considera que cada período histórico é marcado pela infidelidade da maior parte e pela fidelidade de uns poucos cristãos à aliança com Deus. Em cada época, predomina a degradação, porém Deus escolhe um remanescente para sustentar o seu testemunho.
Essa concepção revela-se equivocada, quando é examinada pelo prisma dos acontecimentos do Antigo Testamento. Sob esse ponto de vista, o fracasso só se disseminou, só afundou raízes, na História da Igreja, com o nefasto acontecimento que Lutero denominou Cativeiro Babilônico da igreja. Tudo o que veio antes, por mais que estivesse misturado a erros, não deve ser visto como fracasso geral. Essa é a visão da História, sobre a qual a visão mais restrita da restauração deve ser estabelecida. A restauração não é a reação de uma minoria a erros acumulados, pelos filhos de Deus, durante eras sem fim. Tampouco é um processo contínuo, como uma corrida de revezamento, em que cada atleta passa o bastão a outro. A restauração é um acontecimento que se dá num período relativamente curto, em resposta a uma degradação também concentrada no tempo.
Para ser ainda mais claro: se antes do Cativeiro Babilônico do Antigo Testamento houve um longo período de normalidade no culto a Deus, quando nos transportamos à era atual, a adoração católica da Antiguidade e de parte da Idade Média não deve ser considerada anormal, por mais que estivesse misturada a orações aos santos, à veneração de objetos materiais e a certas superstições. Ao mesmo tempo em que se considera esses erros, há de se levar em conta, e ainda mais, que a situação da igreja, em qualquer época, não se determina pelos seus erros em sentido amplo, mas pelo trato que desenvolve com a palavra de Deus. Sob esse ponto de vista, a degradação da vida da igreja, isto é, a virtual suspensão do culto normal a Deus, só ocorreu bem mais tarde, quando o ministério da palavra cessou.
Quando a palavra de Deus é ministrada, pregada, ensinada, há normalidade no culto a Deus; quando ela não o é, a anormalidade se instaura. Refiro-me principalmente à palavra sujeita ao livre exame, e só secundariamente às interpretações compulsórias dela. Os dados históricos são claros, ao apontar que o ministério da palavra baseado no livre exame cessou, quando o latim se tornou língua morta, e nada foi feito, a princípio, para que a palavra da Bíblia pudesse chegar ao povo e este pudesse lê-la livremente.
Quando os povos da Europa e do mundo deixaram de falar e de compreender o latim, e a missa continuou a ser proferida naquele idioma, o canal mais privilegiado de acesso à palavra de Deus foi obstruído. Como quase toda a população da época era analfabeta, e a literatura estava enclausurada nas ordens religiosas e nas igrejas, a Bíblia e os livros do que a própria Igreja reverencia como sua Tradição deixaram de ser lidos, pregados e ouvidos. O latim e os claustros tornaram-se o seu sepulcro.
Repercutindo essa maneira de ser da Igreja medieval, a maior parte dos cargos hierárquicos surgidos na Baixa Idade Média perdeu parte fundamental de sua relação com o ministério da palavra. Nas Institutas, Calvino registrou que a função de várias dignidades eclesiásticas da sua época era cantar, recitar orações ou realizar outras tarefas sem relação alguma com a Bíblia (CALVINO, Jean. The Institutes of Christian religion. In Great books of the western world. 2a. ed., Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1993. Book Fourth, Chapter V, 10. p. 366). E, embora a Tradição eclesiástica também conhenha a palavra de Deus, a Bíblia não pode ser substituída por ela, até porque os conflitos interpretativos das duas devem ser resolvidos à luz das Escrituras. Por isso se pode afirmar que o desaparecimento da Bíblia desnaturou o ministério da palavra, na igreja, a partir de determinado momento histórico.
A Reforma foi responsável pela devolução da Bíblia ao povo, mediante a tradução para a linguagem comum, que permitiu o triunfo do livre exame e a recolocação do ministério da palavra no centro do culto público. E isso não só no meio protestante, mas, cada vez em maior medida, nos séculos seguintes, também no católico.
No Novo Testamento, é extremamente claro que os primeiros cristãos entenderam a ordem espiritual instituída por Cristo como uma substituição do culto material baseado no Templo de Jerusalém pelo culto baseado na palavra de Deus. A destruição do Templo, no ano 70, foi apenas o sinal visível da substituição. O Templo se foi, porque a palavra já havia sido colocada no seu lugar. Porque tudo o que era material e visível, na antiga ordem, tornou-se verbal, portanto invisível, debaixo da nova. Por isso, a degradação da igreja se deu com a corrupção do ministério da palavra, e a sua restauração, com a retomada dele, na época da Reforma Protestante e Católica.
A RESTAURAÇÃO PROFETIZADA
A restauração e a reforma da igreja, após o seu cativeiro babilônico, podem ser vistas como acontecimentos, ao mesmo tempo, católicos e protestantes. Elas foram provocadas, sem dúvida, por iniciativa de homens como Martinho Lutero, mas tiveram prosseguimento, simultaneamente, no campo protestante e também no católico. Em não poucos aspectos, o movimento reformador e a restauração foram até mesmo mais longe no campo católico do que no protestante.
É preciso lembrar, porém, que o cerne da restauração da igreja é a palavra de Deus. Por isso, embora apresente desdobramentos em vários terrenos, a Restauração se abrange em dois pontos principais: a devolução da palavra de Deus ao povo e a prática do livre exame. Esses pontos são principais, pois por eles se desenvolve o trabalho mais intenso do Espírito de Deus na humanidade.
Todos sabemos que a devolução da palavra ao povo se deu, no século XVI, por meio das traduções protestantes da Bíblia e sua ampla utilização no culto e na vida privada. No meio católico, a mesma realização ocorreu, gradualmente, entre os séculos XVI e XX (no qual o Concílio Vaticano II aboliu a missa em latim).
Porém, a situação é muito distinta em relação ao outro ponto, já que os reformadores protestantes do século XVI deram impulso à prática do livre exame, mas o movimento foi descontinuado nos séculos seguintes. De fato, o que se viu, nos meios luterano, reformado e, mais tarde, também no pentecostal, foi instituições eclesiásticas imporem interpretações da Bíblia por rígidos códigos de disciplina, inculcação doutrinária e intolerância para com interpretações divergentes. Na prática, isso resultou na padronização da interpretação da Bíblia, no seio de cada igreja.
No meio católico, porém, deu-se o contrário. Nos séculos que se seguiram à Reforma, o livre exame permaneceu interditado, pois o horror às ideias protestantes continuou a chocar os católicos. Porém, pouco a pouco, a Igreja de Roma se abriu a algo semelhante à livre interpretação não apenas da Bíblia como da doutrina de modo geral. Numa famosa encíclica sobre a liberdade humana, o Papa Leão XIII ensinou: “Se se trata de matérias livres, que Deus deixou entregues às discussões dos homens, a todos é permitido emitir sobre elas a sua opinião e exprimi-la livremente” (LEÃO XIII. Libertas. nº 31). Para que não se pense que as "matérias livres" mencionadas pelo Papa são poucas, ouça-se ainda: “Há imenso campo aberto em que a atividade humana pode dilatar-se e exercer-se livremente a razão: referimo-nos às matérias que não têm uma conexão necessária com a doutrina da fé e dos costumes cristãos, ou sobre as quais a Igreja, não usando da sua autoridade, deixa aos sábios a liberdade de suas opiniões” (idem. nº 36).
Pode-se afirmar, com certa segurança, que essas matérias livres são tudo o que não está abrangido na “verdade natural e na sobrenatural”. A encíclica de Leão esclarece que aquela são “os princípios da natureza e as conclusões próximas que deles deduz a razão” (idem. nº 33). Já a verdade sobrenatural são os “pontos principais de doutrina [cristã], por exemplo: há uma revelação divina; o Filho único de Deus fez-se homem para dar testemunho da verdade; por Ele foi fundada uma sociedade perfeita, isto é, a Igreja, de que Ele mesmo é o Chefe e com a qual prometeu estar até a consumação dos séculos” (idem. nº 33). Nesses pontos, a Igreja não admite, até hoje, a livre interpretação. Porém, em todos os demais, ela a consente.
Os maiores problemas dessa interdição limitada do livre exame localizam-se no campo da eclesiologia. Eles se manifestam, particularmente, no trecho de Libertas em que Leão XIII afirma que a Igreja (Católica) é uma sociedade perfeita. Não devemos, aqui, entender a palavra perfeita no sentido comum, mas no filosófico, que traduz o estado de um ser que se perfez, isto é, que desenvolveu as tendências de sua natureza. Nesse sentido, perfeito não significa carente de nada, pois o ser que desenvolveu a sua natureza continua destituído do que pertence à natureza de outros seres, mas não à sua.
Porém, mesmo que se entenda a doutrina da "sociedade perfeita" dessa maneira, considerar que a Igreja Católica desenvolveu totalmente a sua natureza é lá um exagero. Se fosse realmente perfeita, a Igreja de Roma teria manifestado essa perfeição em todas as épocas, pois existiu desde o primeiro século. Mas é especialmente difícil admitir a presença de tal perfeição entre os séculos IX e XVI, quando a Igreja viveu sua fase mais corrupta, e o uso das Escrituras chegou a ser abolido. Não pode ser perfeita uma igreja que não utiliza a Escritura, nem a comunica ao povo.
A eclesiologia católica só estaria correta, se a igreja não fosse passível de corrupção aos olhos de Deus. Mas ela o é. Em Apocalipse 1:12,20, as igrejas locais são representadas como candeeiros e, no capítulo 2, a de Éfeso é ameaçada de ter o seu candeeiro removido do lugar (Ef 2:5). Esse lugar, digamos, é o alto, já que "não se acende uma candeia para colocá-la debaixo do alqueire" (Mt 5:15). Portanto, a remoção do lugar é a passagem do alto para baixo, o que não equivale a apagar o candeeiro, mas a diminuir a intensidade da sua luz. Essa diminuição não é o fim da igreja em Éfeso, mas uma regressão no processo por meio do qual a igreja desenvolve a sua natureza.
Deus pode ver a igreja pelo ângulo de Efésios 5:27. Pode vê-la como “igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga nem cousa semelhante, porém santa e sem defeito”, mas também a pode ver pelo ângulo da diminuição do seu brilho. É o que acontece, de modo significativo, em 1ª a Timóteo 4:1-3. Diz esse texto: “Ora, o Espírito afirma expressamente que, nos últimos tempos, alguns apostatarão da fé, por obedecerem a espíritos enganadores e a ensinos de demônios, pela hipocrisia dos que falam mentiras, e que têm cauterizada a própria consciência, que proíbem o casamento, exigem abstinência de alimentos, que Deus criou para serem recebidos, com ações de graças, pelos fieis e por quantos conhecem plenamente a verdade”.
Essas palavras tornam, a meu ver, necessária a ideia de restauração da igreja, na medida em que a apresentam profundamente degradada. Notem, portanto, que somente a eclesiologia da reforma ou restauração se opõe realmente à católica. Todas as outras doutrinas da igreja se reduzem à católica, pois admitem que, mesmo quando cai num abismo como o de 1ª a Timóteo 4, a igreja permanece perfeita. Está claro, porém, que, se a igreja é assim sempre perfeita, devemos perguntar-nos o que estamos a fazer fora da Igreja Católica, já que ela nunca se corrompeu e foi sempre sem mácula.
Vejamos, porém, em maiores detalhes, como as Epístolas a Timóteo descrevem o abismo da grande apostasia. No capítulo 4 da primeira delas, as palavras “O Espírito afirma expressamente” são o equivalente neotestamentário da expressão "Assim diz o Senhor", empregada pelos profetas do Antigo Testamento. Estamos, portanto, claramente diante de um oráculo e de uma predição do futuro.
A apostasia mencionada em 1ª a Timóteo 4:1-3 pressupõe ainda um estado anterior de bênção. Os apóstolos nunca afirmaram que os gentios do mundo romano eram apóstatas, pois haviam nascido no politeísmo. Pelo contrário, eles declararam, diversas vezes, que os gentios viviam apartados de Deus e mergulhados na ignorância (At 14:16; 17:30; Rm 1:21-22; Ef 2:2-3,11-12; 4:17-19). Essa separação e ignorância totais não estão implicadas na apostasia da Epístola a Timóteo, que pressupõe um estado anterior de bênção, perdido pelo movimento apóstata.
Mais do que isso, 1ª a Timóteo 4:1-3 se segue a outro texto, em que o mistério da piedade é apresentado, e a igreja é denominada coluna e baluarte da verdade (1 Tm 3:15-16). O autor não poderia ter escolhido palavras mais fortes e positivas para exprimir a relação da igreja com a verdade. Note-se que ele não afirmou que a igreja é sustentada pela verdade, mas que ela a sustenta: é a sua coluna e baluarte. E em seguida afirmou que alguns apostatariam da fé. Quem são esses alguns? São pessoas do número dos que receberam o mistério da piedade e se fizeram coluna e baluarte da verdade.
A interpretação mais comum da apostasia de 1ª a Timóteo 4 liga-a à heresia gnóstica, sobre a qual Ireneu, bispo de Lião, escreveu no segundo século: “Afirmam eles [os gnósticos Saturnino, Menandro e seus seguidores] [...] que casar e procriar é diabólico e muitos dos seus discípulos se abstêm de comer carnes” (LIÃO, Ireneu de. Contra as heresias. 2ª ed., São Paulo: Paulus, 1995. I Livro, 24,2, p. 102). E novamente: “Os [gnósticos] que se chamam encratitas, que se inspiram em Saturnino e Marcião, proclamam a abstenção do casamento, condenando a primitiva instituição divina e acusando falsamente Aquele que fez o homem e a mulher ordenados à procriação. Introduziram o celibato dos chamados espirituais [...] Taciano [...] como os discípulos de Valentim, conta a história dos Eões invisíveis e, como Marcião e Saturnino, tacha o casamento de corrupção e fornicação, e no que lhe é próprio nega a salvação de Adão. Outros ainda, baseando-se em Basílides e Carpócrates, introduzem o amor livre e a poligamia” (idem. nº 28, p. 111).
Não se pode negar que a apostasia predita em Timóteo coincide com as crenças dos gnósticos mencionadas por Ireneu. Porém, apesar das coincidências, o cumprimento do desvio apóstata naquela seita (na realidade, foram incontáveis seitas) apresenta vários problemas. O primeiro deles é que, dos gnósticos, não se pode afirmar que viveram num estado de bênção do qual decaíram. Eles sempre foram hereges. Sempre viveram apartados da comunhão da igreja. Por isso, o termo apostasia não lhes cai bem. Teria sido muito fácil e melhor o autor sagrado ter utilizado outro termo, se pretendesse referir-se a pessoas como os gnósticos.
O segundo problema da interpretação é que dispomos de provas da existência de ascetas gnósticos, como os mencionados em Timóteo, na segunda metade do século I d. C. (Cl 2:4,8,16,23). Tudo indica que as Epístolas a Timóteo foram escritas no final dessa época. Portanto, é estranho a primeira delas afirmar que a apostasia estava por vir, se se tratasse do gnosticismo, que já estava presente no mundo.
Por fim, o terceiro problema da interpretação comum da grande apostasia é o fato de esse movimento de degeneração ser expressamente associado a Anticristo, em 2ª aos Tessalonicenses 2:2-3: “Não vos demovais da vossa mente [...] supondo tenha chegado o dia do Senhor. Ninguém de nenhum modo vos engane, porque isto não acontecerá sem que primeiro venha a apostasia, e seja revelado o homem da iniquidade, o filho da perdição [Anticristo]”.
Os gnósticos não antecederam imediatamente a vinda de Anticristo. Eles foram uma terrível heresia, mas não “a apostasia” mencionada por Paulo. Claro que sempre há a possibilidade de Tessalonicenses referir-se a uma apostasia, e Timóteo a outra, mas não parece ser esse o caso. A palavra apostasia é forte demais para designar movimentos diferentes, na mesma época. E não podemos descurar que as duas epístolas expressam o mesmo pensamento geral (o de Paulo), no qual a apostasia antecede a vinda de Anticristo.
É hora de o dizermos, pois, abertamente: a apostasia prevista ajusta-se melhor ao grande movimento de corrupção, que se iniciou na Igreja por volta do nono século e durou até a Reforma do décimo-sexto. Esse período de sete séculos foi o mais negro de toda a História da Igreja, o que justifica o denominarmos “a apostasia”. Ele também se verificou no seio de uma genuína igreja cristã, que vivera em estado de bênção especial, a saber: a Igreja Católica do início da Idade Média.
Embora a promiscuidade sexual tenha grassado em Roma, durante aquele período, a observância do celibato era exigida dos clérigos no mundo todo. O mesmo pode ser dito da abstenção de alimentos nos dias santos, que era obrigatória e não facultativa. 1ª a Timóteo 4:3 refere-se ao erro dos que “exigem” (é o termo empregado) “abstinência de alimentos”. Exatamente isso foi praticado pela Igreja Católica no período em questão.
Calcula-se que, em “todas as Ordens, criadas no tronco da Santa Madre Igreja, mandavam observar o mais estrito jejum em certos dias. Ora vejamos: 52 sextas-feiras; a Quaresma e a Páscoa; o dia do Santo patrono da Igreja e da cidade… ao todo, sem errar contas, digamos que se fazia jejum, na Idade Média, cerca de 120 dias por ano” (disponível em www.cadernosdahistoria.weebly.com/uma-capelinha-branca-nas-serras-ndash-aquilino-ribeiro-e-o-coratildeo.html). Uma das consequências dessa prática disseminada do jejum foi o famoso surto de anorexia da Idade Média.
2ª a Timóteo 3:1-2 desenvolvem ainda mais o tema em análise: “Nos últimos dias sobrevirão tempos difíceis; pois os homens serão egoístas, avarentos”. Segue-se uma longa série de vícios, bem ao estilo paulino. Não há motivos para crer que o desvio implicado por essas palavras seja distinto da apostasia do capítulo 4 da primeira epístola. O mesmo é verdade da referência aos que se “cercarão de mestres, segundo as suas próprias cobiças, como que sentindo coceira nos ouvidos; e se recusarão a dar ouvidos à verdade, entregando-se às fábulas” (2 Tm 4:4).
Fábulas como as desse versículo foram peculiarmente abundantes, nos séculos XIII a XVI. Em 1484, o Papa Inocêncio VIII fez publicar uma bula em que se lê: “Chegou a nossos ouvidos, não sem nos afligir com a mais amarga pena, a notícia de que em algumas partes da Alemanha setentrional [...] muitas pessoas de um e de outro sexo se abandonaram a demônios, íncubos e súcubos, e em seus encantamentos, feitiçarias [...] mataram crianças que estavam no útero materno e também o fizeram com as crias do gado; arruinaram os produtos da terra, as uvas da videira, os frutos das árvores e, mais ainda, a homens e mulheres, animais de carga, rebanhos e animais de outras classes, vinhedos, hortas, pradarias, campos de pastagens, trigais, cevadas e todos outros cereais” (INOCÊNCIO VIII. Citado em LEWIS, Brenda Ralph. A história secreta dos Papas – vício, assassinato e corrupção no Vaticano. São Paulo: Europa, 2009. p. 108).
Acreditava-se que as mulheres a que a bula se refere eram bruxas, e os homens eram lobisomens! Não é preciso mais para mostrar como toda a concepção de mundo daquela época era fruto de uma mentalidade fabulosa muito semelhante à que 2ª a Timóteo 4:4 prevê. O realismo com que as pessoas viveram delírios insanos inspira arrepios. No processo contra Desle la Mansenée, acusada de bruxaria, foi ouvida uma testemunha de nome Antoine Godin, que declarou que, 30 anos antes, o filho de Desle lhe tinha contado que sua mãe era bruxa e ele a vira “voando em um pedaço de salgueiro” (idem. p. 117). Só em 1623, o Papa Gregório mandou reduzir ou abandonar os castigos sádicos aplicados às bruxas, na ordenação Omnipotentis Dei (idem. p. 119).
Temos, pois, bons motivos para entender a grande apostasia de Timóteo como a corrupção da igreja cristã, a partir do século IX. E, se a corrupção está ali predita, temos de concluir que a restauração é uma consequência necessária dela. Por isso, somente uma teologia da restauração se opõe, realmente, à eclesiologia católica de uma igreja sempre perfeita e impassível.
A ideia de restauração ou reforma da igreja é consequência direta da crença em que Deus não pode permitir que o seu povo permaneça no estado a que a mentalidade supersticiosa da Idade Média o levou. Se firmou aliança com a descendência de Noé, quando a de Adão corrompeu seu caminho, se chamou Abraão, quando os filhos de Noé passaram a adorar outros deuses, se retirou os israelitas do Egito, apesar das tendências idólatras deles, e os trouxe de volta de Babilônia, por que misteriosos desígnios Deus não restauraria a igreja em que se congregam os que foram comprados com o sangue de Cristo?
A HORA DO ABISMO
Há algum tempo, Leonardo Boff publicou em seu blog o significativo artigo “A igreja-instituição como casta meretriz” (http://leonardoboff.wordpress.com/2013/02/23/a-igreja-instituicao-como-casta-meretriz). No texto, Boff relê a história em tal profundidade e debruça-se sobre interpretações de alcance tão vasto, sobre o papel da Igreja Católica, que nos vemos convidados a suspender outros pensamentos, a parar diante do artigo e a meditar sobre cada uma das suas ponderações.
Ele parte das notícias publicadas nos jornais italianos, em janeiro de 2013, sobre o relatório de 300 páginas elaborado por três cardeais, a pedido do Papa. Como se tornou conhecido, o longo documento descreve a luta de monsignori pelo poder, no interior do Vaticano, o funcionamento de uma rede de homossexualismo gay a serviço das cúpulas eclesiásticas e desvios de dinheiro do Banco do Vaticano. Isso vem-se somar aos casos de pedofilia envolvendo padres, que foram comprovados em todo o mundo. Como se percebe, é mais que o suficiente para desmoralizar e até para desintegrar instituições bastante sólidas. Mas que dizer, se isso é descoberto no interior da mais antiga de todas as instituições do Ocidente? E que dizer se se constata que o Papa renunciou, pouco após ter lido tal relatório?
Boff não se limita a mencionar os graves erros que, de novo, perturbam o Vaticano. Percorre, em rápido voo, a História da Igreja de Roma para apontar práticas semelhantes às que o relatório denuncia, em todos os seus períodos. E não vacila ao repropor a antiga interpretação, baseada em Santo Agostinho, de que, em razão desse histórico, a igreja é santa e pecadora. Portanto, que o seu ser santa não impede o seu ser pecadora e vice-versa.
O voo histórico ao período mais negro da Igreja Católica, situado entre os séculos IX e XVI, revela-nos precisamente o que se pode denominar cativeiro babilônico da igreja. Para Boff, o histórico de crimes da Igreja de Roma (seu lado pecador) repousa no desenho piramidal que ela própria se deu. Portanto, na concentração de poder que ali se verificou e verifica. Afirma que esse desenho foi adotado, a partir da reforma promovida pelo Papa Gregório VII, no século XI, que teve por finalidade combater e, se possível, eliminar aqueles crimes. Com base no historiador eclesiástico Jean-Yves Congar, afirma ainda que a reforma gregoriana separa a Igreja-comunidade, que existiu até o século XI, da Igreja monárquica e absolutista que a substituiu. Assim, Boff divide a história católica em suas duas partes.
Será ainda preciso especificar os crimes históricos da Igreja para tornar compreensível a acusação que Boff e outros formulam em face dela? Para o leitor mais informado (e não são poucos), isso já não é necessário. Porém, para nivelar um pouco o cabedal de saberes dos mais e dos menos informados, ainda é útil dividir aqueles crimes em classes e mencionar um ou dois de cada categoria para formar um quadro, ainda que resumido e pálido, dos grandes erros da Igreja.
Principiemos pelo homicídio. No século IV, dois partidos disputavam o cargo de bispo de Roma. Os relatos existentes mostram que, juntas, essas facções mataram 136 pessoas uma da outra (FO, Jacopo, TOMAT, Sergio e MALUCELLI, Laura. O livro negro do Cristianismo – dois mil anos de crimes em nome de Deus. Rio de Janeiro: Ediouro, 2007. p. 77). Infelizmente, naquela época, o derramamento de sangue pelos cristãos estava apenas no início. Qualquer livro de História informa que, no auge, ele levou à morte de um milhão de pessoas, durante a Primeira Cruzada.
Mas do homicídio, passemos à tortura. A Santa Inquisição introduziu essa prática no interior do Direito, sob uma forma denominada “limpa”, porque os suplícios eram infligidos de maneira a induzir a retratação do acusado. Assim, por exemplo, ao infeliz era feito o anúncio de que tal suplício seria aplicado, porém o castigo era adiado várias vezes para que ele pudesse abjurar o seu erro e denunciar outros criminosos. Também, antes de se iniciar o suplício, os respectivos instrumentos eram exibidos à pessoa (COMPARATO, Fábio Konder. Carta capital. 12/09/2012). A tortura só foi abolida dos tribunais da Inquisição, por uma bula papal de 1816, seis séculos depois de sua adoção.
Vejamos a escravidão. Quando foram expulsos do Brasil, em 1759, os jesuítas possuíam 17 fazendas de açúcar e sete de gado (estas com mais de 100 mil cabeças), todas operadas com base no trabalho escravo (COMPARATO, Fábio Konder. Idem). Os grandes organizadores do tráfico negreiro, na América, haviam sido padres. Estima-se em 20 milhões o total de negros embarcados. A expectativa de vida dessas pessoas, a partir do desembarque em solo cristão, era de meros sete anos (FO, Jacopo, TOMAT, Sergio e MALUCELLI, Laura. Ob. cit. p. 21). Somente em 1888, a Igreja condenou oficialmente a escravidão, na Encíclica In Plurimis, de Leão XIII.
Devassidão. João XII costuma ser citado como um dos Papas mais promíscuos da História e do século negro situado entre Estêvão VI e Gregório V. Sua fama é contada, mas não é incomum o detalhamento dos seus crimes ser saltado por historiadores católicos (FISCHER-WOLLPERT, Rudolph. Os Papas - de Pedro a João Paulo II. 5ª ed., Petrópolis: Vozes, 1999). Não raro é preciso recorrer a obras de denúncia para aprender histórias como a de João XII, que "dormiu com as prostitutas de seu pai e chegou ao cúmulo de manter relações com sua própria mãe. João XII também presenteava suas amantes com cálices de ouro, verdadeiras relíquias sagradas da igreja de São Pedro. Ele ainda cegou um cardeal e castrou outro, causando sua morte. Apoderava-se das oferendas feitas pelos peregrinos para apostar em jogos. Nessas seções de jogatina, o próprio papa costumava evocar os deuses pagãos para ter sorte ao arremessar os dados." Destituído por um sínodo, João se vingou brutalmente: "Executou e mutilou todos os que fizeram parte do sínodo [...] Na noite de 14 de maio de 964, parece que todas as rezas implorando a morte de João XII foram ouvidas. Segundo a descrição do bispo João Crescêncio de Protus, enquanto estava tendo relações sujas e ilícitas com uma matrona romana, o papa foi surpreendido pelo marido de sua amante em pleno ato. O enfurecido traído esmagou seu crânio com um martelo" (LEWIS, Brenda Ralph. A história secreta dos Papas - vício, assassinato e corrupção no Vaticano. 4ª ed., São Paulo: Europa, 2010. pp. 31-32).
Saques. No século XV, monges cristãos saquearam 18 mil povoados poloneses (FO, Jacopo, TOMAT, Sergio e MALUCELLI, Laura. Ob. cit.). Povoados valdenses também foram saqueados, em 1561, por tropas napolitanas fieis ao Papa.
Exploração. No fatídico ano de 1517, a indulgência conhecida como Taxa Camarae foi vendida aos fieis para cancelar os seguintes pecados: a mulher ou o homem adúltero podia pagar 87 libras e três soldos para continuar com essa relação; em caso de incesto com o filho, a essa soma acrescentavam-se seis libras; para a absolvição do homicídio simples, cobravam-se 15 libras, quatro soldos e três denários; o mesmo valor era pago se o homem houvesse matado dois ou mais, desde que tivesse sido no mesmo dia; pela morte do próprio filho por afogamento, pagavam-se 17 libras e 15 soldos; pelo assassinato do irmão, irmã, pai ou mãe, 17 libras e cinco soldos; para o frade se casar, eram cobradas 45 libras mais 19 soldos; e a heresia era taxada com 269 libras (idem. pp. 164-165). “Não havia crime, nem o mais cruel, que não pudesse ser perdoado mediante pagamento”, escrevem Fo, Tomat e Malucelli (idem. p. 166).
Falsificações de documentos. Tiveram quase sempre o propósito de forjar atos solenes para aumentar ou justificar a autoridade do Papa. No século IX, veio à luz a mais bem-sucedida delas: as decretais de Isidoro, que foram utilizadas para a “transformação completa da constituição e do governo da igreja” (JANUS. O Papa e o Concílio. 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 1930. p. 423). Por ordem de Gregório VII (mencionado por Boff), mais tarde, Anselmo de Lucca selecionou falsificações do Pseudo-Isidoro e criou uma série de outras, com o objetivo de centralizar o poder eclesiástico na pessoa do Papa (idem. pp. 420-421). Atribui-se a Lucca a fundação do direito que Graciano, mais tarde, sistematizou. No século XVI, outras 100 decretais foram falsificadas e usadas, com o mesmo propósito.
Crimes como os acima mencionados formam um quadro bastante resumido do que a Igreja perpetrou em nome de Deus, na sua História. A bem da verdade, atos semelhantes foram praticados, por igrejas não associadas a Roma, antes de esta assumir as alucinadas pretensões de poder ilimitado que a distinguiram. Acrescente-se que os ortodoxos e os protestantes, depois dos respectivos cismas, não deixaram de praticar, também eles, coisas similares, porém todos foram nisso superados por Roma.
Boff é taxativo a respeito dos erros católicos. “Costumes políticos palacianos e principescos, de resistência e oposição, impediram ou distorceram todas as tentativas de reforma”. A resistência aludida por ele não é à injustiça, mas à justiça. É resistência à eliminação dos males antes mencionados. O que indica que a oposição às reformas nunca foi difusa, nunca veio de muitos lugares na mesma intensidade, mas se concentrou nos palácios e principados, em torno da Corte Romana.
Por isso, ao invés de eliminar os crimes, a concentração do poder no Papa, que Gregório promoveu e que, em linhas gerais, permanece até hoje, sempre estimulou a multiplicação dos erros e dos escândalos. Um poder ultraconcentrado leva à loucura os que gravitam em torno dele. Leva-os a pensar e a praticar desatinos, sempre com vistas a se aproximar do núcleo duro da estrutura eclesiástica e a participar da autoridade, dos privilégios, da riqueza e de todos os costumes que ali se desenvolvem.
Boff cita o famoso teólogo Hans Urs Balthasar, que se referiu à Igreja como casta meretriz (BALTHASAR, Hans Urs. Sponsa verbi. Einsiedeln. 1971. pp. 203-325). Cita também Ratzinger, que em 1969 escreveu que, ao lado de graves pecados, sempre existiu, na Igreja, uma tradição de denúncia profética deles. Para Ratzinger, o Pedro de antes de Pentecoste não pode ser separado do que surgiu depois, como é comum se fazer.
É preciso lembrar que, quando um teólogo romano fala de Pedro de modo assim tão solene, a instituição papal está implicada. No fundo, Ratzinger a vê como indissociável mistura de santidade e pecado. Por isso também, ele nunca deixou de citar Balthasar e a sua doutrina da meretriz casta. E pelo mesmo motivo, ao ler o relatório dos cardeais sobre a Cúria, Bento sentiu confirmar-se a resolução que acariciava havia muito tempo de renunciar ao seu trono. Sentiu, simplesmente, que não era e não é um Gregório para liderar a Igreja no caminho de uma correção sempre almejada e jamais alcançada.
Esse o quadro que a História nos põe ante os olhos. Que nos cabe, como não católicos, pensar sobre ele? Muito, sem dúvida. Porém, como membro de uma igreja evangélica, considero que já não nos cabe mais pensar esses velhos problemas da velha maneira, isto é, da maneira condenatória. Não se trata de pronunciar sobre a Igreja o veredito final de incorrigível e, portanto, de não-Igreja ou de apóstata. É tempo de nos lembrarmos, ao contrário, de que as graves condenações dos erros das sete igrejas de Apocalipse foram pronunciadas pelo Filho de Deus, não por homens. Não encontro base ou motivo claro, nas Escrituras, para repassar a sentença condenatória que os protestantes, historicamente, leram sobre os erros de Roma, um tanto como se não estivessem diante de uma complexidade demasiada para eles. Portanto, reconhecer os recorrentes problemas católicos não equivale mais a condená-los superiormente.
A Igreja Católica é uma instituição. O mesmo são a Igreja Ortodoxa e as denominações protestantes. Portanto, é como instituições que as devemos entender, não como idealizações. É de um purismo excessivo e, a meu ver, desvairado a doutrina que prega que tudo o que é institucional é impuro. De modo nenhum, embora as instituições forneçam tantos exemplos de contradição entre aquilo a que se propõem e aquilo que fazem. Instituições existem para transmitir a outras gerações o que indivíduos não podem. Indivíduos nascem e morrem. Instituições continuam para transmitir o que eles não são capazes de pregar e explicar.
Uma instituição é boa quando faz isso bem; má, quando o faz mal. Ela nunca é boa em si mesma ou por ser instituição. Que rematado absurdo é afirmar: tal autoridade deve ser seguida, porque é de tal instituição! A Igreja não é santa ou pecadora por ser a Igreja. Ela é boa por fazer coisas boas, e má, por fazer coisas más.
Devemos, pois, perguntar: historicamente, a Igreja Católica fez coisas boas? Sim, muitíssimas. Mas darei dois exemplos, cuja transcendental importância porventura nos bastará como razão. O primeiro é o da preservação da Bíblia. Se hoje abrimos os Evangelhos e os lemos, é unicamente porque pessoas os copiaram e transmitiram, de geração em geração. Esse é um primeiro e forte motivo para não perdermos o respeito para com os católicos e lhes dizermos com ar superior: vocês proibiram a leitura da Bíblia! Sim, eles o fizeram, por muito tempo, e nisso erraram gravemente. Mas o erro não foi suficiente para apagar a sequência de boas obras, que permitiu que a Bíblia chegasse até nós e que, por meio da palavra de Deus, pudéssemos nos fazer cristãos hoje.
Tampouco digamos que é impossível determinar se a Bíblia chegaria ou não até nós, sem os copistas católicos medievais. Não estamos aqui para discutir o que nossos pais fariam, se a América não tivesse sido descoberta. Nem para fechar o balanço da História da Igreja Católica. Sabemos que a América foi descoberta e que devemos o que somos às coisas boas que de lá para cá foram feitas aqui. Do mesmo modo, sabemos que a fé cristã nos foi transmitida por intermédio dessa Igreja, apesar de todos os erros cometidos no processo.
Não estamos aqui para escrever a Bíblia a partir do nada. Estamos aqui porque a recebemos e para recebê-la como é. Essas duas coisas são extremamente diferentes. No entanto, hoje mesmo, o mundo está cheio de enfatuados pais da Bíblia, que se dizem cristãos a despeito de tudo, de todos e de todas as instituições. É como se não lessem a Bíblia que essas instituições nos transmitiram e exatamente como elas nos transmitiram. É como se nunca tivessem parado para pensar o quanto a Bíblia mudou nesse tempo e que, se hoje ela nos toca, é porque outros foram instrumentos dessa mudança vertiginosa. Porque Moisés jamais se sentou e escreveu o Pentateuco. A história da formação da Bíblia é muito diferente disso e guarda a mais íntima relação com instituições judaicas e cristãs históricas.
Sempre há e sempre haverá pessoas insatisfeitas com o fato de serem herdeiras de instituições. Mas, por não estarem contentes, não lhes assiste o direito de tomar a Bíblia como se tivesse caído do céu, diretamente no colo delas ou como o meteorito na Rússia. Como se ninguém a tivesse copiado, estudado, erguido orações a Deus para que o iluminasse ao fazê-lo. Como se ninguém tivesse derramado lágrimas nesse odre de pergaminho! Como se eles fossem os primeiros a lerem-na. E, após a lerem, a missão lhes fosse inapelavelmente entregue de catequizar o mundo.
O outro exemplo das grandes realizações católicas é o do socorro aos pobres que, por muitos séculos, coube à Igreja prover e foi por ela provido no mundo ocidental. Quando o Estado ainda não oferecia serviços de previdência e assistência social, esse papel coube à Igreja, que bem ou mal o executou, e quase sozinha. Enfim, nada nos autoriza a considerar a Igreja Católica, por sua história, uma simples abominação, como de certa forma ainda está no ar no meio protestante.
Isso lá faz dessa Igreja uma instituição gloriosa? Sim, na medida em que ela própria entende suas boas obras como dons divinos. Essa consideração constitui a glória de um católico tanto quanto a de um ortodoxo ou a de um protestante. Deus é Deus de todos e para todos. E se aquele que se gloria no Senhor é um católico, um ortodoxo, um protestante ou um silvícola, a glória do Senhor é também para ele. Ou ela tem um partido?
Já não vivemos a ferrenha, a insolúvel oposição católico-ortodoxa do tempo de Fócio ou a divisão católico-protestante do da Reforma para nos alegrarmos ou nos espantarmos demais com os males que saem da caixa de Pandora do Vaticano. Se a Igreja é santa e meretriz, todas as nossas instituições o são. E se as nossas instituições o são, nós o somos. Instituições nada mais são que reflexos das prostituições e das glórias dos indivíduos. Ninguém vive fora delas. Ninguém é melhor ou pior que elas. Somos a nossa própria miséria e a glória de Deus.
A REFORMA CATÓLICA
Numa entrevista publicada em abril de 2013, o Presidente reeleito da Assembleia de Deus no Brasil, José Wellington Bezerra da Costa, declarou que sua Igreja está alinhada com a Católica, no tocante aos temas políticos e sociais do momento. E, quando perguntado se o uso da gestão empresarial pelo Vaticano não agravará os escândalos naquela Igreja, afirmou que o modelo empresarial é utilizado da mesma forma no meio católico e no protestante (Folha de S. Paulo. 13/04/13. p. A 12). Deu a entender, enfim, que a racionalidade econômica própria das empresas é uma exigência do tempo para as instituições eclesiásticas de maior porte.
Essas e outras posições de líderes evangélicos mostram quanto o fosso entre os mundos católico e protestante estreitou-se, nas últimas décadas. Por trás do estreitamento, está o fato de que a Igreja Católica permanece uma realidade fundamental, para si, para o mundo e até para o maior movimento de ruptura jamais ocorrido nas suas fileiras: a Reforma Protestante.
Infelizmente, a posição da Assembleia e da própria Igreja Católica ainda não é a regra, no meio protestante brasileiro, que permanece mais disposto a ressaltar suas diferenças em relação aos católicos do que a construir pontes sobre o fosso da divisão histórica. Sem mencionar os setores mais histéricos do Protestantismo, que não se contentam em ser diferentes e querem ser superdiferentes ou, simplesmente, super.
O maior aliado da reaproximação entre católicos e protestantes é a História, o passado comum, que transmitiu aos dois setores da Cristandade uma identidade única. Essa identidade pode ser descrita como a centralidade de Cristo, cuja força considerável, tanto no campo católico como no protestante, autoriza-nos a concluir que as diferenças eclesiológicas entre eles poderão vir a ser neutralizadas pela união profunda entre católicos e protestantes. Desses dados e somente deles, deriva o significado básico da presente era.
Não há como desenvolvermos uma demonstração exaustiva dos vínculos entre as igrejas cristãs do Ocidente (ou entre elas e as do Oriente), em poucas palavras. Porém, negar-me a demonstrar, de algum modo, esses vínculos seria pedir ao leitor que aceitasse uma premissa sem a entender. Farei, pois, referência a duas dobras do laço que mantém os segmentos católico e protestante ligados, num nível profundo. São essas dobras: a transmissão da mensagem evangélica e a posse da Bíblia. De fato, se o Protestantismo é evangélico, não poderia existir sem o evangelho e os livros que o prepararam (o Antigo Testamento). Mas o Protestantismo deve esses bens, por inteiro, à Igreja Católica. Daí sua ligação visceral com ela.
Partamos, pois, da verdade evidente do débito dos protestantes para com a Igreja Católica, ao indagarmos o estado atual do “vínculo da paz” (Ef 4:3) entre os dois segmentos. E aceitemos ainda outra verdade, tão evidente quanto a primeira: a de que católicos e protestantes podem convergir em questões políticas e sociais, mas continuam pouco dispostos a negociar os pontos doutrinários que cada um não aceita no outro.
Ante esse quadro, não há modo de se evitar as perguntas: como a convergência decorrente da identidade comum de católicos e protestantes se expressa, no nosso tempo? Que forças a ameaçam? Podemos desenvolvê-la além do grau já alcançado? Tais perguntas só poderão ser respondidas, se os limites do inaceitável, em cada um dos campos da controvérsia, puderem ser removidos, alterados daqui para ali. Enfim, se os limites de fé católicos e protestantes puderem ser flexibilizados.
Comecemos por avaliar essa possibilidade, em relação ao princípio sola Scriptura (somente a Escritura), abraçado como fundamental pelos evangélicos. A posição protestante assim enunciada reage contra a igual importância que os católicos atribuem à Bíblia e à Tradição. A Constituição Dei Verbum é explícita, ao reafirmar tal igualdade. De acordo com ela, a palavra de Deus é composta pela Bíblia e pela Tradição (Dei Verbum. Cap. II, nº 8).
Um dos argumentos mais fortes, manejados por Calvino (e por Lutero, antes dele), contra essa pretensão, é o das contradições entre os textos pelos quais a Tradição se manifesta. Os reformadores concentraram-se em criticar, sobretudo, as contradições entre documentos oficiais da Igreja. Deram, com isso, por incontroverso que as contradições dos teólogos são tão evidentes que nem precisam ser demonstradas.
Ao criticar a convocação do Concílio Vaticano I para discutir a infalibilidade do Papa, no século XIX, Janus nos forneceu outro rol de contradições da mesma espécie das que Lutero e Calvino haviam apontado antes. É, pois, um complemento precioso e uma atualização importante da lista dos reformadores. No rol de Janus, podem ser encontrados documentos escritos por papas, bispos e por papas e bispos conjuntamente, como os dos Concílios Ecumênicos.
Porém, o argumento baseado nas contradições é insuficiente para refutar a igualdade entre a Bíblia e a Tradição, por vários motivos: primeiro, porque contradições existem até entre os manuscritos dos livros bíblicos; em segundo lugar, porque a contradição dialética está presente na realidade e não raro se resolve em algum plano dela; por último, o argumento de que as contradições anulam a inspiração divina da Tradição não se sustenta, pois, para os católicos, o Magistério (ensino solene do Papa, sozinho ou assistido pelo episcopado) é capaz de resolver as discordâncias entre os vários elos da Tradição. Por exemplo: se dois doutores da Igreja divergem, a contradição entre eles pode ser resolvida pelo Papa, com ou sem a ajuda dos bispos.
Assim, as contradições em que os protestantes veem uma prova cabal da falibilidade da Tradição são tomadas, pelos católicos, como dado estrutural da sociabilidade do homem. Portanto, como algo que Deus avaliza. Aliás, não apenas as contradições humanas, mas também as que se notam no plano da natureza, assim como a competição entre os animais, desde Darwin, deixaram de ser vistas como consequência da queda de Adão e passaram a ser interpretadas como inerentes à criação.
A própria Bíblia foi escrita por certos instrumentos humanos (Moisés, Esdras, os profetas) e oficialmente reconhecida como palavra de Deus por outros. Os primeiros são os autores bíblicos. Os outros fazem parte da Tradição. Portanto, a Bíblia e a Tradição não são estanques, nem podem ser, sempre, nitidamente diferenciadas.
Sabemos que sempre houve múltiplos manuscritos dos textos bíblicos. Ao definirem o cânon das Escrituras, os integrantes da Tradição não criaram, porém, uma lista de manuscritos, mas de livros que consideraram inspirados. Eles não discriminaram entre este e aquele manuscrito, mas entre este e aquele livro. Com isso, manuscritos divergentes em diversos pontos foram tidos como sagrados, em conformidade com a declaração de 2ª a Timóteo 3:16 de que “toda Escritura [manuscrito] é inspirada por Deus”. E notem que essa declaração, como todos os outros textos bíblicos, não ingressou sozinha no cânon, mas foi nele inserida pela Tradição. De sorte que crer na Bíblia é crer na escolha da Tradição.
Sempre houve, também, dois cânons bíblicos: sete ou oito séculos antes de Cristo, um conjunto de livros sagrados foi usado no Reino do Norte (Israel), outro no Reino do Sul (Judá); no Período Helenístico, um cânon foi adotado na Palestina, outro pelos judeus da Diáspora; os próprios fariseus, saduceus e samaritanos tiveram coleções diferenciadas de livros que consideraram sagrados; nos primeiros séculos da era cristã, também houve um cânon da Igreja Latina (ocidental) e outro da Igreja Grega (oriental); por fim, a Reforma fez surgir o cânon protestante, em oposição ao católico. O ponto a ser destacado é que todas essas coleções diferenciadas, em todas as épocas, foram reconhecidas como inspiradas por pessoas distintas dos autores delas. Portanto, o princípio de que a escolha do cânon coube à Tradição não operou uma única vez, mas inúmeras, o que fez com que as marcas da Tradição se inserissem bem fundo, no tecido da Bíblia.
Não estou a afirmar que a posição católica sobre a palavra de Deus seja superior à protestante, mas que a solução mais adequada da divergência a respeito desse tema não é do tipo tudo-ou-nada. Nem a posição católica é inteiramente correta, nem a protestante. Um meio-termo há de ser encontrado. Talvez possamos expressar esse meio-termo, ao declarar que tanto a Bíblia quanto a Tradição são a palavra de Deus, mas os conflitos entre elas devem ser resolvidos em favor da primeira. Essa é uma síntese perfeitamente cabível da controvérsia católico-protestante sobre o cânon bíblico.
A Bíblia e a Tradição apresentam-nos Cristo. E, se assim é, a instância final de resolução das contradições entre elas não pode ser senão os testemunhos de primeira mão sobre o que Jesus fez e falou. Ou alguém preferirá resolver as controvérsias mais básicas sobre a pessoa e a obra de Jesus por impressões vagas de cidadãos que viveram muito tempo depois dele? Que sucederia concretamente à fé cristã, se essa espécie de solução de controvérsias fosse aplicada como regra?
Mas os testemunhos de primeira mão também têm obscuridades. Vimos que os próprios manuscritos em que eles foram registrados divergem entre si, em múltiplos pontos. Isso significa que não basta definir quais livros são inspirados. É preciso, ainda, interpretá-los, o que nos remete à questão de como se deve enfrentar e resolver os problemas de exegese dos Evangelhos.
Podemos exprimir essa questão por outra mais incisiva: devemos resolver os conflitos de interpretação sobre a pessoa, as palavras e a obra de Jesus com base na mentalidade dos homens que escreveram os testemunhos diretos sobre ele ou no modo de pensar de homens posteriores? E, se as testemunhas diretas de Jesus foram os autores do Novo Testamento ou as fontes que eles consultaram, de onde se podem extrair lições sobre a mentalidade deles, a não ser do Antigo Testamento? Por isso, também a interpretação definitiva do evangelho deve ser realizada, com base no Antigo e no Novo Testamentos.
Na sua época mais negra, o Catolicismo cometeu equívocos que ainda se refletem no mundo atual. Porém, muita coisa mudou, daquele tempo até hoje. O uso da Bíblia vulgarizou-se, entre os católicos, embora menos que no meio protestante. A Igreja passou a contar com exímios escrituristas (peritos nas Escrituras) e órgãos dedicados ao estudo e à difusão da Bíblia. A missa na língua do povo e a Renovação Carismática Católica também contribuem para que a Bíblia seja pregada e crida. Essas mudanças estão no âmago do que se pode denominar uma autêntica Reforma Católica.
A herança comum dos dois ramos cristãos, a Bíblia e o evangelho, perdeu-se na Idade Média, é verdade. Teve de ser recuperada mais tarde. Uma Reforma reinstaurou-a no mundo protestante. As igrejas evangélicas referem-se a essa Reforma insistentemente. Têm-na por bons motivos como a sua razão de ser. Porém, uma Reforma sob certos aspectos ainda mais importante (a Católica) também ocorreu.
"A criação de Adão", obra de Michelângelo, ornamenta o teto da Capela Sistina
Ao retomarmos consciência da Reforma Católica, então, será justo afirmarmos que ela foi parcial, e a Protestante, completa? Que ela foi imperfeita, e a evangélica, perfeita? E os erros protestantes? E a falta de perspectiva histórica das nossas igrejas: não foram responsáveis pela transformação da grande abertura da Reforma do século XVI no fechamento do Protestantismo atual? O Protestantismo não se transformou numa longa (e enfadonha) sequência de fechamentos à Filosofia, à revelação dinâmica e dialética, às manifestações artísticas, ao tempo presente em benefício do passado (ah, o primeiro século!), ao Catolicismo que ele tanto demonizou? Não escrevo para fustigar os protestantes, mas para perguntar: nós, que incorremos em tudo isso, podemos afirmar que a Reforma Católica foi insuficiente? Podemos colocar em dúvida a sua existência?
Para o bem ou para o mal, a Igreja Católica reformou-se. Reinstaurou a palavra em seu seio, como Davi introduziu a arca em Jerusalém. Isso mudou a História. Atualizou a situação católica. Desatualizou o Protestantismo, não como igreja baseada na palavra, mas como grito e revolução. Porém, como a repudiada que não pode tornar ao marido, sem que a terra toda se contamine (Jr 3:1), como a mulher que vê nisso a mais triste verdade, cada uma das partes da igreja dividida suspira calada em seu próprio canto. E em cada uma se ouve o apelo: “Volta para mim!”
Adélia Prado deu forma verbal a um suspiro: “Porque acima e abaixo e ao redor do que existe permaneces” E: “O mar é tão pequenino diante do que eu choraria/ se não fosses meu Pai” (PRADO, Adélia. "O homem humano"). Como essa lágrima do coração, essa teofania em versos, tornou-se possível? Não requereu, de algum modo, a fé cristã? Sim, mas exatamente qual das vertentes dessa fé? As duas, dirão com motivos. Mas muito mais a católica, será preciso completar. Invalidaríamos, pois, a vertente católica e, com ela, o poema, o suspiro, a lágrima, a teofania?
EDIFICAÇÃO COM A PALAVRA
A edificação e a restauração da igreja constituem tarefas coletivas. No entanto, as Escrituras sempre fundam o coletivo no individual, não o contrário. Efésios 4:16 afirma que a edificação do corpo de Cristo ocorre “segundo a justa cooperação de cada parte”. 1ª de Pedro 2:5, por sua vez, acrescenta que “como pedras vivas” é que “somos edificados casa espiritual”. Tanto a justa cooperação de cada um como a condição de pedra viva são pessoais, o que indica que não há edificação com desrespeito à constituição individual do ser humano.
A parábola do homem que construiu sua casa sobre a rocha ensina como se dá essa edificação: “Todo aquele que vem a mim e ouve as minhas palavras e as pratica, eu vos mostrarei a quem é semelhante. É semelhante a um homem prudente que, edificando uma casa, cavou, abriu profunda vala e lançou o alicerce sobre a rocha; e, vindo a enchente, arrojou-se o rio contra aquela casa e não a pôde abalar, por ter sido bem construída. Mas o que ouve e não pratica é semelhante a um homem que edificou uma casa sobre a terra sem alicerces, e arrojando-se o rio contra ela, logo desabou; e aconteceu que foi grande a ruína daquela casa” (Lc 6:47-49).
Pouco antes de Jesus nascer, Herodes, o Grande, deflagrou o maior surto de construções da História da Palestina até então. A enorme quantidade de edifícios públicos erguida por aquele rei produziu um aumento nunca antes visto do fluxo de riquezas para a Palestina e fez crescer consideravelmente o número de pessoas abastadas na população. Esse fluxo levou à edificação de construções particulares ainda mais numerosas, pelos trabalhadores envolvidos nos empreendimentos públicos, até a grande catástrofe do ano 70, causada pelas pretensões desmedidas da classe rica em expansão, como Josefo bem esclarece.
Nesse contexto, construções sólidas e defeituosas encheram a paisagem da Terra Santa. Não foram poucos os desabamentos de residências e pequenas construções causados pelo mau emprego da arte da edificação. Por ter sido um tekton (carpinteiro ou pedreiro em grego), Jesus deve ter-se engajado pessoalmente no surto de construções da época e adquirido um conhecimento bastante especializado sobre ele. Esse conhecimento foi resumido na afirmação dos resultados opostos das técnicas de construção com e sem fundamento.
O problema do segundo edificador da parábola não consiste em ter edificado a sua casa sobre a terra, mas em não ter usado alicerces. Isso indica que, se a rocha é a palavra de Cristo, a terra também o é. Ou passando do símbolo à realidade, o insensato não ouve a palavra do homem ou da serpente; tampouco fracassa por usar materiais errados, como o crente que se utiliza de madeira, feno e palha em 1ª aos Coríntios 3:10-11. Ele malogra, por causa do modo como constroi no lugar certo e com os materiais adequados, isto é, por usar a técnica de edificação errada.
Essa técnica representa o modo como tomamos a palavra de Cristo. As traduções do Novo Testamento que conhecemos dão a impressão imperfeita de que o dilema que a parábola enfoca se estabelece entre praticar e não praticar as palavras de Cristo. No entanto, o que o texto apresenta é antes a oposição entre dois modos de se tomar aquelas palavras.
O verbo traduzido praticar, em Mateus e Lucas, é poiéo, que é considerado sinônimo de prassó. Porém, em autores sofisticados, como Paulo, pode acontecer de as duas palavras aparecerem na mesma frase, com sentidos levemente contrastantes (Rm 1:32; 7:15). Em Efésios 2:10, o termo traduzido feitura (“pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras”) é a forma substantiva de poiéo e se presta a indicar um ato criador de Deus. Rienecker-Rogers informam que, nesse caso, poíema "pode ter a conotação de obra de arte, especialmente um produto poético" (RIENECKER, Fritz e ROGERS, Cleon. Chave linguística do Novo Testamento grego. São Paulo: Vida Nova, 1988. p. 389).
É provável que uma atividade criadora semelhante esteja implicada em Lucas 6:48. A intenção de Jesus não foi que reproduzíssemos ou refletíssemos as suas palavras no nosso comportamento, assim como o espelho reflete a luz. Isso seria imitação. Jesus e Paulo jamais nos exortaram a desempenhar uma repetição mecânica dos comportamentos recomendados pelo Novo Testamento. Eles nos concitaram, ao contrário, a criar experiências de vida inéditas com a matéria das palavras de Cristo.
Essa novidade grandiosa é representada pelo “novo nome” inscrito na pedrinha branca, que o vencedor da igreja em Pérgamo recebe do próprio Cristo. Ninguém conhece esse nome, a não ser aquele a quem Jesus o concede (Ap 2:17). A pequena pedra é o crente individual, que cria novas experiências com as palavras de Cristo. Esse ato do homem crente não é o fazer criador de Gênesis 1, mas o novo fazer criador de Deus por meio do homem.
Essa é a genuína preparação das pedras para a construção do edifício de Deus, longe do lugar em que será erguido: "Edificava-se a casa com pedras já preparadas nas pedreiras, de maneira que nem martelo, nem machado, nem instrumento algum de ferro se ouviu na casa quando a edificavam" (1 Rs 6:7). Podemos indagar como as pedras puderam ser cortadas e trabalhadas, nas pedreiras, no formato necessário para se encaixar umas nas outras depois. Tudo indica que uma argamassa tenha sido utilizada para encaixá-las, ao serem utilizadas na edificação propriamente dita. Portanto, a edificação não envolve a modelação do individual ao coletivo, mas a sua preservação. Edificar não é modelar o individual ao coletivo, nem o coletivo ao individual. É levar essas duas dimensões do templo de Deus a uma harmonia superior e máxima.
APERFEIÇOAMENTO PARA A EDIFICAÇÃO
Após o fracasso da maior parte das tentativas de restaurar a igreja num nível mais profundo que aquele em que foi possível fazê-lo durante a Reforma, ainda é sensato se crer numa restauração progressiva, que começa mas não termina no décimo-sexto século? A pergunta tem ressoado ao longo dos últimos séculos. Tentei oferecer uma resposta bíblica a ela, no texto Um sonho de comunhão (www.lobaomorais.blogspot.com.br, novembro/2011),
Na ocasião, sustentei que as Epístolas Pastorais (sobretudo 1ª e 2ª a Timóteo e Tito) e outros textos do Novo Testamento predizem uma apostasia ou desvio espiritual, que devastaria a igreja cristã e o mundo após a era apostólica e que a restauração é o retorno à condição básica ou aos princípios vigentes antes dessa apostasia, que não e confunde com a rejeição de Jesus pelos judeus, ocorrida por volta do ano 30 d. C., nem com as fábulas mencionadas em Tito 1:14 e 1ª a Timóteo 1:4. Ao contrário desses antigos fatos, a apostasia era um evento futuro em relação à época em que as Pastorais foram escritas.
No entanto, após termos considerado a prefiguração, a profecia e o seu cumprimento, na Idade Média, cumpre-nos examinar a ideia neotestamentária de edificação. Efésios 4:7-8,11-13 afirma: “E a graça foi concedida a cada um de nós segundo a proporção do dom de Cristo. Por isso diz: Quando ele subiu às alturas, levou cativo o cativeiro, e concedeu dons aos homens [...] E ele mesmo concedeu uns para apóstolos, outros para profetas, outros para evangelistas, e outros para pastores e mestres, com vistas ao aperfeiçoamento dos santos para o desempenho do seu serviço, para a edificação do corpo de Cristo [...] para que não mais sejamos como meninos, agitados de um lado para outro, e levados ao redor por todo vento de doutrina, pela artimanha dos homens, pela astúcia com que induzem ao erro. Mas, seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo naquele que é o cabeça, Cristo, de quem todo o corpo, bem ajustado e consolidado, pelo auxílio de toda junta, segundo a justa cooperação de cada parte, efetua o seu próprio aumento para a edificação de si mesmo em amor”.
O texto citado fala de uma edificação em duas etapas. A primeira é marcada pelo aperfeiçoamento dos santos; a outra, pela edificação propriamente dita. O aperfeiçoamento ocorre por meio dos dons que Cristo concedeu à igreja, que são os apóstolos, profetas, evangelistas, pastores e mestres. Deus reparte a sua graça entre os membros do corpo, por meio desses homens-dons. Já a edificação, é executada por todos os membros da igreja, sem distinção alguma.
Uma imagem do Antigo Testamento ajuda a esclarecer a separação temporal entre o aperfeiçoamento e a edificação. Aprendemos em 1º dos Reis 6:7 que “edificava-se a casa [de Deus] com pedras já preparadas nas pedreiras, de maneira que nem martelo, nem machado, nem instrumento algum de ferro se ouviu na casa quando a edificavam”. A preparação das pedras nos locais em que foram extraídas corresponde ao aperfeiçoamento dos santos, por meio dos homens-dons; já a edificação da casa, prefigura a da igreja por aqueles que creem.
A edificação não é possível sem que cada pedra, cada pessoa, seja preparada individualmente. E a preparação, como é óbvio, não tem a finalidade de que os indivíduos “sejam felizes”, mas que sejam edificados com outros. Não é uma busca da felicidade, mas de comunhão. Sem que o indivíduo seja adequadamente preparado, trabalhado por Deus, “nas pedreiras”, com os instrumentos representados pelos apóstolos, profetas, evangelistas, pastores e mestres, não há edificação coletiva. Portanto, o ministério dos homens-dons visa mais a essa preparação individual do que à edificação coletiva.
Efésios relaciona a edificação que sucede o aperfeiçoamento dos santos à unidade da fé, ao pleno conhecimento do Filho de Deus e à estatura máxima da igreja como varão perfeito (Ef 4:13). Esses três pontos remetem-nos ao futuro. Nem a unidade da fé, nem o pleno conhecimento de Cristo, nem a estatura máxima da igreja são realidades presentes hoje. Menos ainda eles podem ser alcançados, na Terra, por todos os crentes ao mesmo tempo. Portanto, a maior parte da edificação da igreja não se dá na Terra.
Verdade é que Efésios 2:20-22 declara que os gentios já estão edificados sobre o fundamento, que é Cristo. Porém, essa edificação é mais ideal que presente, mais precária que definitiva. Afirmações ideais são comuns em Efésios e não devem ser tomadas como realidades consumadas. É o caso da afirmação de que os gentios estão assentados nos lugares celestiais (Ef 2:6). Cristo nos ensinou a orar: “Faça-se a tua vontade, assim na terra como no céu” (Mt 6:10). Se a vontade de Deus já fosse feita aqui como lá, não precisaríamos pedi-lo. O céu já estaria refletido na Terra. Então, se o pedimos, é porque a manifestação do reino de Deus aqui ainda é muito imperfeita.
Nem toda fé deve-nos impedir de reconhecer que o reflexo das situações ideais na realidade presente é sempre bastante pálido. Em 1ª aos Coríntios 3, Paulo definiu seu alcance, ao afirmar claramente que a edificação em andamento, nos nossos dias, pode ou não ser bem-sucedida. Sobre o fundamento, que é Cristo, é possível se edificar com ouro, prata, pedras preciosas, madeira, feno ou palha. Nos três primeiros casos, a obra de edificação permanecerá; nos últimos três, ela será destruída (1 Co 3:12-15). Isso confirma que a edificação em desenvolvimento, hoje, é limitada e precária.
Outras passagens do Novo Testamento também deixam espaço para o entendimento de que a maior parte da edificação da igreja ocorrerá no futuro. Jesus afirmou: “sobre essa rocha edificarei a minha igreja” (Mt 16:18). O tempo futuro empregado no verso indica que a edificação não estava em andamento, quando Cristo se referiu a ela. É comum se afirmar que ela começou com o derramamento do Espírito Santo, em Atos 2. Porém, essa conclusão não se extrai da declaração de Jesus. Pelo contrário, após declarar que edificaria a sua igreja, ele proclamou que as portas do hades não prevaleceriam contra ela. A declaração identifica o hades e suas portas como os mais sérios obstáculos à edificação. Se ambos representam a morte do corpo, como de fato representam, devemos concluir que a edificação se dá, principalmente, após a morte. Esse e somente esse é o tempo, em que a igreja chegará à unidade da fé, ao pleno conhecimento de Cristo e à sua estatura máxima.
A destruição que antecede a restauração pode, portanto, incidir tanto na obra de aperfeiçoamento dos santos, prefigurada pela preparação das pedras longe do lugar do Templo, como na edificação precária, representada pela montagem final do santuário em Jerusalém. O que não ocorre, num e no outro caso, é a edificação definitiva, imperfectível que muitos apregoam. Tal qual o Templo foi destruído pelos neobabilônios, reedificado, destruído de novo e um dia será reconstruído, toda edificação defeituosa da igreja terá de passar por um ou mais processos de restauração.
Onde estamos, nesse fazer e refazer infinitos? Aonde é preciso chegar na restauração? Que deve ser restaurado? Essas foram as perguntas enfrentadas em Um sonho de comunhão. A resposta que encontrei para elas à época foi: tudo o que Deus mandou e um dia existiu, na igreja, deve ser restaurado. Não tudo ao mesmo tempo, por certo. Porém, tudo e nada menos que tudo.
Se em Atos 2 a 6 houve comunhão pura, desinteressada e sem mediação do poder, nada menos que isso deve ser restaurado na igreja. Mas é possível, sim, é perfeitamente possível que as circunstâncias históricas não nos permitam encontrar tal comunhão no nosso tempo de vida. Nesse caso, cumpre-nos continuar a almejar a comunhão da época dos primeiros apóstolos. Fazê-lo não significará de modo algum saudosismo ou nostalgia. Significará viver para a restauração e orar voltado para Jerusalém.
Atos 2 a 6 é o limite da experiência temporal da restauração. Cristo não morreu para que o povo de Deus dos séculos provasse menos que isso na Terra. E não se assentou no céu para não comer conosco, um dia, o banquete perfeito e definitivo. Porém, a transição de um para o outro desses estágios de edificação não se dá facilmente, num único momento histórico, ainda que seja o de um avivamento. Aprouve a Deus encerrar num contexto muito mais amplo a experiência que o salmista expressou: "A minha alma suspira e desfalece pelos átrios do Senhor; o meu coração e a minha carne exultam pelo Deus vivo! O pardal encontrou casa, e a andorinha, ninho para si [...] eu, os teus altares, Senhor dos Exércitos" (Sl 84:2-3).
IGREJA LOCAL E LIVRE EXAME
Temos visto que a restauração da igreja se dá pelo restabelecimento do ministério da palavra e o livre exame das Escrituras. Essas experiências foram alcançadas, em boa medida, no décimo-sexto século, nas igrejas originárias da Reforma. A primeira delas o foi, aliás, também no meio católico. Pode-se, pois, perguntar se a restauração se completou naquela época. Porém, embora o ministério da palavra e o livre exame tenham sido implantados, no século XVI, esse último voltou a declinar em seguida, e uma outra etapa da restauração teve de ocorrer, a fim de restaurá-lo, mais tarde. Sobre ela, discorrerei neste texto.
As duas obras de reconstrução da igreja foram, de algum modo, antecipadas no Antigo Testamento. O trabalho dos reformadores do décimo-sexto século é prefigurado pela reconstrução do Templo e o restabelecimento do culto. Já a segunda e última parte da restauração pode ser vista no símbolo da recuperação da liberdade política de Israel, durante o Período Macabeu. Embora muitos judeus tenham retornado de Babilônia, reedificado o Templo e restaurado o culto a Deus, no século VI a. C., o país continuou a ser governado por povos estrangeiros, por mais 350 anos. A independência política só foi alcançada, após a insurreição liderada pelos macabeus, no século II a. C. Somente a partir desse ponto, Israel deixou de sofrer pressões para adotar práticas cultuais estranhas.
Do ponto de vista da interpretação alegórica, o poder exercido por potências estrangeiras sobre Israel, entre as duas etapas da restauração, representa as forças que impedem o pleno funcionamento da aliança com Deus. No Antigo Testamento, a aliança centrava-se no Templo e no sistema de sacrifícios, sobre os quais a influência estrangeira foi exercida; na era atual, a aliança com Deus se baseia na palavra examinada livremente por cada consciência. Num primeiro momento histórico, as potências que tentaram sufocar a palavra desenvolveram-se no seio da Igreja Católica, porém mais tarde elas estenderam os seus tentáculos a outras organizações, que passaram a impedir ou dificultar o livre exame, por meio das interpretações obrigatórias da Bíblia que preconizam.
Tudo isso indica, a meu ver claramente, que há uma segunda etapa da restauração da igreja, após a Reforma do décimo-sexto século. Se é possível se situar a primeira fase da restauração na época de Lutero, a etapa mais adiantada pode ser vislumbrada quando um acontecimento de importância espiritual tão grande quanto a Reforma Protestante teve lugar. Esse acontecimento foi a rejeição dos poderes eclesiásticos e do próprio clericalismo, por cristãos ingleses e de outros países, no século XIX. Esses cristãos ficaram conhecidos, na História, pelo epíteto de Irmãos Unidos.
Um dos princípios com base nos quais os Irmãos estabeleceram as suas assembleias e que os diferenciou do restante do cristianismo foi a simplicidade da igreja local. Para eles, essa simplicidade se traduzia numa radical autonomia em relação a todo poder supralocal (chame-se ele comunhão, ministério, organização de igrejas ou receba qualquer outro nome).
A simplicidade da assembleia local, como os Irmãos a entenderam, não é um fim em si mesma, mas um instrumento para a preservação da palavra de Deus e do seu livre exame. Para que o trato com as Escrituras seja realmente livre, é preciso que a assembleia local da igreja também o seja. Daí a posição assumida pelos Irmãos. Desconheço qualquer movimento ou grupo de pessoas, que tenha exigido que a assembleia cristã local fosse livre de toda e qualquer potência eclesiástica, antes dos Irmãos Unidos.
Os Irmãos foram criticados pelo seu zelo doutrinário. Provavelmente, muitos deles exageraram nesse tocante. É um fato bem conhecido que os Irmãos acabaram por se dividir em dois ramos, por causa de divergências doutrinárias. Porém, não há notícia de que eles tenham, depois, se dividido em quatro, oito ou dezesseis pedaços, como muitos críticos deles fizeram. Além disso, o profundo senso de responsabilidade pessoal, que os Irmãos desenvolveram para com Deus, no que tange ao exame da Bíblia, justifica boa parte do zelo doutrinário deles.
Para que o elemento central da nova aliança (a palavra de Deus) possa ser livremente examinado por todos os cristãos, é indispensável que a igreja local seja, ela própria, livre de toda e qualquer instituição, seja eclesiástica, seja ministerial, seja secular. A liberdade prática da igreja deve ser radical, assim como o livre exame. O fato de terem praticado a vida da igreja dessa nova maneira foi, a meu ver, o “tiro certeiro” dos Irmãos. Tão certeiro que pode ser considerado um passo decisivo, na restauração da igreja, após o seu Cativeiro Babilônico e a retomada do ministério da palavra no século XVI.
Como Lutero, Calvino e a Reforma Católica foram fundamentais para que o ministério da palavra fosse instaurado no devido lugar e a Bíblia fosse levada a todas as pessoas, a atitude dos Irmãos Unidos de separar as suas congregações, de fato e não retoricamente, de todo poder instituído foi igualmente fundamental. Na época de Lutero, os cristãos deixaram Babilônia, mas continuaram a ser oprimidos pelo poder estrangeiro; com os Irmãos, eles começaram a se libertar do poder estrangeiro, ou seja, de todo poder contrário ao livre exame da Bíblia.
Só uma atitude forte como a dos Irmãos Unidos pode permitir aos cristãos não apenas reverter os efeitos da destruição que o poder estrangeiro realizou na igreja, mas confrontar e vencer esse poder, em sua essência, eliminando toda possibilidade de uma interpretação obrigatória da Bíblia se sobrepor ao livre exame. Por esse motivo, o exemplo dos Irmãos Unidos deve ser cuidadosamente levado em conta e seguido.
Não faz sentido um número de cristãos colocar-se no campo novo desbravado pelos Irmãos para seguir uma doutrina ou uma linha ministerial obrigatória, seja qual for. Seguir uma doutrina ou um ministério único significa adotar uma maneira específica de interpretar a Bíblia. Isso é contrário ao livre exame das Escrituras. É contrário ao princípio da nova restauração alcançada pelos Irmãos. Ou temos a doutrina obrigatória, ou o livre exame. Ou seguimos um líder, ou a consciência diante de Deus. Se o que queremos é uma pessoa ou um modo de pensamento exaltados, devemos optar pela doutrina ou o ministério obrigatório. Porém, se desejamos que a palavra de Deus atue maximamente, não precisamos disso e sim do livre exame.
O reconhecimento do papel dos Irmãos Unidos, na restauração, é importante por várias razões. Primeiramente, porque eles permanecem muito pouco conhecidos no meio cristão. A penetração das ideias dos Irmãos não se compara à dos reformadores do século XVI. Em segundo lugar, o conhecimento do que os Irmãos realizaram é importante, para que possamos manter o que eles alcançaram. Cada conquista, na história da restauração é decisiva para os cristãos. Por isso, é indispensável que eles a mantenham intrepidamente.
MAGISTÉRIO OU LIVRE EXAME?
A dívida histórica das igrejas evangélicas para com a católica é poucas vezes lembrada. Mas, se puder ser admitida, toda a perspectiva protestante da História da Igreja terá de ser alterada. E se, além disso, a ocorrência de uma Reforma Católica merecer reconhecimento, o instante atual dessa História terá de ser, igualmente, reinterpretado.
De fato, ao serem admitidas, aquela dívida e a Reforma do Catolicismo fazem com que a questão mais importante a se formular, hoje, passe a ser a dos pontos fracos remanescentes na teologia e na posição prática da Igreja Católica. Claro que muitos pontos desse tipo são mencionados, pelos protestantes históricos e pelos pentecostais. Mas, é digno de nota que a Igreja Oriental não compartilha essa opinião protestante. Ela tece muito menos críticas ao Catolicismo do que os protestantes o fazem. E é pueril pensar que uma Igreja tão antiga e com um desenvolvimento teológico tão prolongado esteja simplesmente errada nessa avaliação.
O trato diferenciado das igrejas protestantes e oriental para com o Catolicismo é, em parte, efeito do tempo. Estamos a um milênio do Cisma do Oriente e a 500 anos do Ocidental. Em ambos os casos, as diferenças doutrinárias à origem dos Cismas têm-se enterrado, gradativamente, nas camadas profundas da fé e da cultura comum às igrejas cristãs, porém num deles o afundamento tem ocorrido há um milênio e, no outro, há 500 anos. Talvez por isso, católicos e ortodoxos se sintam mais próximos entre si do que em relação aos protestantes.
Esses diferentes graus de divergência não são reconhecidos apenas por teólogos individualmente considerados, mas nos próprios documentos oficiais da Igreja Católica. Por exemplo, o Decreto Unitatis redintegratio afirma: “As Igrejas do Oriente têm desde a origem um tesouro, do qual a Igreja do Ocidente herdou muitas coisas em liturgia, tradição espiritual e ordenação jurídica [...] Como essas Igrejas, embora separadas, têm verdadeiros sacramentos, principalmente, porém, em virtude da sucessão apostólica, o Sacerdócio e a Eucaristia, ainda se unem mais intimamente conosco [do que as protestantes]” (PAULO VI e os bispos do Concílio Vaticano II. Unitatis redintegratio. Cap. III, nºs 14-15). A respeito do Protestantismo, o mesmo documento assim se manifesta: “Entre estas Igrejas e Comunidades e a Igreja católica há discrepâncias consideráveis, não só de índole histórica, sociológica, psicológica, cultural, mas sobretudo de interpretação da verdade revelada” (idem. nº 19).
Podemos, portanto, tomar os diferentes graus de proximidade e de divergência entre os três maiores ramos da igreja cristã como outro dado de grande valia, que se soma ao débito para com Roma e à Reforma Católica como elementos do quadro da igreja cristã no mundo. Quero crer que esse esboço da situação cristã atual nos autoriza a pensar que as “discrepâncias consideráveis” entre católicos e protestantes, “sobretudo de interpretação da verdade revelada”, tendem a submergir cada vez mais na cultura comum dos dois segmentos, embora em menor medida do que as diferenças entre católicos e ortodoxos. Porém, há um território teológico, no qual a divergência se adensa e que, por isso, é mais fundamental que os demais. Refiro-me à eclesiologia.
Esse é o ponto, em que as águas protestantes mais se separam das católicas e, também, das da Igreja Ortodoxa. Ao defenderem o princípio do livre exame das Escrituras, os reformadores protestantes do décimo-sexto século não estabeleceram uma proposição só dogmática, mas antes de tudo prática. Isso porque divergências doutrinárias outras, como o uso (não culto) de imagens, a posição de Maria abaixo de Deus e acima dos anjos e a oração aos santos remetem a questões bíblicas e teológicas altamente interpretativas e, por isso, sujeitas a diferentes soluções. Não se pode afirmar que uma dessas soluções seja definitivamente superior a outra. Porém, as divergências apontadas não estão destinadas a afetar, necessariamente, o vínculo entre as igrejas cristãs locais ou a continuidade da sua comunhão. Com a questão eclesiológica, algo distinto acontece.
A eclesiologia tornou-se o ponto nevrálgico da Teologia hoje. Nenhum ponto parece ter maior relevância prática para o futuro da igreja do que este. Não que a igreja seja o tópico de maior importância intrínseca, na Teologia Cristã (a Trindade, por exemplo, é mais importante que ela), mas se tornou, e tenderá a se tornar cada vez mais, a principal condição para que a comunhão entre os cristãos aumente. Se a vida que Cristo trouxe à Terra tem um aspecto individual e outro comunitário, na medida em que as divergências dogmáticas submergem cada vez mais, o problema prático da igreja e sua organização tende a emergir. Ele tende a se tornar o mais decisivo para a existência, o vigor e a amplitude da vida cristã comunitária.
Assim, por exemplo, a divergência católico-protestante quanto às fontes da revelação não pode ser esvaziada de suas implicações eclesiológicas, já que, no fundo, significa: que órgão da igreja há de ser reconhecido como última instância no tocante à interpretação da Bíblia e da Tradição? Sabemos que tanto a Igreja Católica como a Ortodoxa resolvem essa questão por meio de sua autoridade máxima: o Papa, no caso católico, e o Santo Sínodo, no ortodoxo. A Igreja de Roma usa a palavra Magistério para designar o poder da hierarquia de interpretar as fontes da revelação (a Bíblia e a Tradição). Reconhece esse poder ao Papa, que o exerce com ou sem auxílio do episcopado. Já na Igreja Ortodoxa, o Santo Sínodo, composto pelos patriarcas e arcebispos das igrejas denominadas autocéfalas e autônomas, decide questões doutrinárias e de interpretação, sob a liderança honorífica (não governamental) do patriarca de Constantinopla (Istambul). Tal solução do problema hermenêutico alcançou certo êxito na História, pois foi o principal motivo da coesão interna dessas igrejas, que tanto contrasta com o fracionamento do corpo de igrejas protestantes.
Resumidamente, o fundamento bíblico que católicos e ortodoxos invocam, para adotarem essa solução, no caso de Roma, é a investidura de Pedro por Cristo como Papa, em Mateus 16:18, e, no da Igreja Ortodoxa, é o concílio ocorrido em Jerusalém para resolver se a observância da Lei de Moisés é necessária à salvação, como sustentado pelos judaizantes (Atos 15).
A Reforma Protestante tomou posição diferente sobre essa questão, ao optar pela superioridade do livre exame ao Magistério. Embora reconhecessem a competência de órgãos colegiados como o de Atos 15 para tratar de questões doutrinárias, os reformadores sustentaram, ousadamente, que a consciência de cada indivíduo é a última instância em matérias dessa natureza. Cada pessoa tem não somente o direito, mas também o dever de examinar livremente as Escrituras, a fim de determinar o sentido de suas proposições relativas à fé.
Os reformadores fundamentaram essa posição revolucionária nas Escrituras, às quais recorreram como fonte única da revelação. Mas é possível indagar exatamente em quais textos das Escrituras eles a basearam. Embora alguns textos afirmem que as Escrituras são infalíveis (Jo 10:35; 2 Tm 3:16), eles não excluem, de maneira explícita, a possibilidade de outras fontes também o serem. João 10:35, por exemplo, não afirma que “as Escrituras não podem falhar, e as outras fontes da palavra de Deus podem”. Diz apenas que as Escrituras são infalíveis. Sabemos, aliás, que essa era a crença da maior parte dos judeus, no primeiro século.
Porém, há modos mais eficientes de se defender a infalibilidade exclusiva da Bíblia. O primeiro consiste em postular que a intenção de textos como João 10:35 e 2ª a Timóteo 3:16 é, exatamente, afirmar a infalibilidade exclusiva da Bíblia, pois não há evidência de que os judeus do primeiro século considerassem infalível qualquer outro texto ou autoridade religiosa. O próprio Talmude ainda não fora composto. O mesmo pode ser dito das suas duas partes (Mishná e Guemará).
Mas, se manejarmos esse argumento com grande cuidado, seremos levados a reconhecer que era próprio da mentalidade judaica crer que a verdade a respeito de Deus não pode ser plenamente alcançada por qualquer indivíduo. Isso equivale a estabelecer que a palavra de um homem ou conjunto de homens de um mesmo período é sempre falível. A única exceção é a palavra ditada ou entregue diretamente por Deus, ao homem, como os judeus acreditavam ser o caso da Torá. Tirante esse caso, nunca mais repetido (exceto para os muçulmanos, que creem que o Alcorão foi dado por Deus a Maomé), para que a verdade se revele, é indispensável a intervenção de múltiplas gerações, ou seja, da História.
Pode parecer que esse princípio não se aplica somente à Bíblia, mas a todo livro ou conjunto de livros sobre o Deus único formado pelo mesmo método, assim como a Mishná, a Guemará e a Tradição Católica. E, em reforço dessa posição, é possível alegar ainda que os judeus do primeiro século só reconheceram as Escrituras como inspiradas, porque nenhum outro livro havia sido confeccionado por tal método até então, porém nada impede que a situação se tenha alterado, nos séculos posteriores.
A sugestão é válida, mas Jesus pôs um claro limite a ela, ao criticar os fariseus e escribas que lhe perguntaram: “Por que transgridem os teus discípulos a tradição dos anciãos?” (Mt 15:2). Essa tradição era a lei oral, corporificada nas glosas lançadas nas margens dos manuscritos bíblicos pelos escribas. Jesus lhes respondeu: “Por que transgredis vós também o mandamento de Deus, por causa da vossa tradição? Porque Deus ordenou: ‘Honra a teu pai e a tua mãe’ e ‘Quem maldisser a seu pai ou a sua mãe seja punido de morte’. Mas vós dizeis: se alguém disser a seu pai ou a sua mãe: É oferta ao Senhor aquilo que poderias aproveitar de mim; esse jamais honrará a seu pai ou a sua mãe. E assim invalidastes a palavra de Deus, por causa da vossa tradição” (Mt 15:3-6).
A acumulação de uma Tradição adicional às Escrituras é possível, desde que em conformidade com elas. Esse é o modo de crescimento normal da revelação divina na História. Não é preciso dizer que, em muitos pontos, a Mishná e a Guemará deixam de observar tal princípio, pois surgiram do desenvolvimento das glosas a que Jesus se referiu.
E a Tradição da Igreja Católica: satisfaz as exigências para ser aceita ao lado da Bíblia como inspirada por Deus? Pode-se admitir que, em princípio, a Tradição se mantém em conformidade com as Escrituras. Porém, ela não foi constituída pelo método histórico, mas pelo individual. A Igreja a concebe como um conjunto de obras elaboradas por certos autores. Cada qual desses autores viveu numa época. Portanto, a Tradição não satisfaz a antiga exigência judaica de múltiplas gerações.
Mas não é possível repensar a Tradição? Concebê-la não mais como conjunto de obras de indivíduos, mas como o vetor resultante dessas obras, uma vez eliminadas as contradições inadmissíveis? Esse vetor não emerge espontaneamente das correções de que cada obra carece? E não torna inspirada a Tradição, que se identifica com ele? Ou é impossível se determinar quais correções devem ser realizadas em um corpo doutrinário e devocional tão vasto? Bem, ainda que a Tradição seja mais difícil de se conhecer do que a Bíblia, ela o pode ser em alguma medida. Por isso, nada obsta tomá-la como fonte da palavra de Deus.
Contudo, as dificuldades implícitas no conhecimento da Tradição não recomendam que os conflitos entre ela e a Bíblia sejam desconsiderados ou resolvidos em seu favor. Pelo contrário, é preciso fazer recuar a Tradição, sempre que entra em conflito com as Escrituras. E isso não só pela dificuldade de se determinar o conteúdo da Tradição como corpus corrigível de ensinos, mas também por um segundo motivo. Se admitirmos que tanto as obras da Tradição como a Bíblia dão testemunho de Cristo, para que a sua mensagem mereça crédito, será necessário que parte dela tenha sido composta por pessoas que tiveram contato direto com Jesus ou com quem conviveu com ele. Só o Novo Testamento preenche tal requisito. No entanto, para interpretá-lo corretamente, é indispensável conhecer a mentalidade (judaica) segundo a qual ele foi escrito. E, para tanto, o melhor recurso disponível é o Antigo Testamento. Assim, também a partir da centralidade de Cristo, é possível se concluir que os conflitos entre a Bíblia e as obras da Tradição devem ser resolvidos em favor da primeira.
No capítulo 23 de Jeremias, Deus admoesta “os pastores que apascentam o povo”, nos seguintes termos: “Vós dispersastes as minhas ovelhas, e as afugentastes, e delas não cuidastes” (Jr 23:2). Diz também dos falsos profetas e dos sacerdotes: “Estão contaminados, assim o profeta como o sacerdote; até na minha casa achei a sua maldade, diz o Senhor [...] Nos profetas de Samaria bem vi eu loucura: profetizavam da parte de Baal, e faziam errar o meu povo Israel. Mas nos profetas de Jerusalém vejo cousa horrenda: cometem adultérios, andam com falsidade, e fortalecem as mãos dos malfeitores [...] Não mandei esses profetas, todavia eles foram correndo; não lhes falei a eles, contudo profetizaram. Mas se tivessem estado no meu conselho, então teriam feito ouvir as minhas palavras ao meu povo, e o teriam feito voltar do seu mau caminho e da maldade das suas ações” (Jr 23:11, 13-14, 21-22).
Por que os falsos profetas correm? Porque não estão dispostos a esperar a longa destilação da palavra de Deus na História. São como os que creem receber palavras ditas instantaneamente por Deus a eles. Nem uns, nem outros, porém, são capazes de ingressar no conselho de Deus, nem estão dispostos a seguir a admoestação: “O profeta que tem sonho conte-o como apenas sonho; mas aquele em quem está a minha palavra, fale a minha palavra com verdade” (Jr 23:28).
Verdade é que os apóstolos e os presbíteros da igreja em Jerusalém se reuniram para decidir sobre a necessidade ou não da observância da Torá para a salvação. É verdade, também, que essa reunião se aproxima, em princípio, do que os católicos denominam Magistério. Porém, esse é um fato narrado no capítulo 15 de Atos, não uma norma. Na Bíblia, fatos são fatos, normas são normas. Não podemos tomar fatos como se fossem normas, o que significa que não estamos obrigados a resolver desavenças doutrinárias pelo método de Atos 15.
E, em nenhuma outra passagem bíblica, vemos o procedimento do Magistério ordenado como norma. Que temos em Jeremias? Temos o falar do sonho e o debater da interpretação. E temos razões para crer que essa não é uma peculiaridade daquele livro. É antes uma defesa da atividade profética em geral, da atividade que gerou boa parte dos oráculos de Isaías a Malaquias. Ou, que outra coisa pode significar “Cri, por isso falei” (Sl 116:10; 2 Co 4:13), a não ser que o falar vem do crer e de mais nada? Atentemos para o modo como Paulo citou essa frase tão densa. Olhemos para a pretensão com que ele a mencionou. Paulo não a fez um paradigma? E o falar aludido na frase não inclui o ensinar?
"Crer, portanto falar" é um princípio de todo inseparável do livre exame. E permitam-me dizê-lo: como Paulo o utilizou, não é o princípio do Magistério, embora não devamos ser rápidos como os falsos profetas para negar todo valor a este. O Magistério é, sim, uma contribuição positiva da Igreja Católica. Podemos até responder a pergunta do título desta seção com a frase: “Magistério e livre exame”. Aliás, essa é a melhor resposta. Só não podemos colocar o Magistério acima do livre exame.
O ESTREITAMENTO DA VERDADE
A dívida histórica das igrejas evangélicas para com a católica é poucas vezes lembrada. Mas, se puder ser admitida, toda a perspectiva protestante da História da Igreja terá de ser alterada. E se, além disso, a ocorrência de uma Reforma Católica merecer reconhecimento, o instante atual dessa História terá de ser, igualmente, reinterpretado.
De fato, ao serem admitidas, aquela dívida e a Reforma do Catolicismo fazem com que a questão mais importante a se formular, hoje, passe a ser a dos pontos fracos remanescentes na teologia e na posição prática da Igreja Católica. Claro que muitos pontos desse tipo são mencionados, pelos protestantes históricos e pelos pentecostais. Mas, é digno de nota que a Igreja Oriental não compartilha essa opinião protestante. Ela tece muito menos críticas ao Catolicismo do que os protestantes o fazem. E é pueril pensar que uma Igreja tão antiga e com um desenvolvimento teológico tão prolongado esteja simplesmente errada nessa avaliação.
O trato diferenciado das igrejas protestantes e oriental para com o Catolicismo é, em parte, efeito do tempo. Estamos a um milênio do Cisma do Oriente e a 500 anos do Ocidental. Em ambos os casos, as diferenças doutrinárias à origem dos Cismas têm-se enterrado, gradativamente, nas camadas profundas da fé e da cultura comum às igrejas cristãs, porém num deles o afundamento tem ocorrido há um milênio e, no outro, há 500 anos. Talvez por isso, católicos e ortodoxos se sintam mais próximos entre si do que em relação aos protestantes.
Esses diferentes graus de divergência não são reconhecidos apenas por teólogos individualmente considerados, mas nos próprios documentos oficiais da Igreja Católica. Por exemplo, o Decreto Unitatis redintegratio afirma: “As Igrejas do Oriente têm desde a origem um tesouro, do qual a Igreja do Ocidente herdou muitas coisas em liturgia, tradição espiritual e ordenação jurídica [...] Como essas Igrejas, embora separadas, têm verdadeiros sacramentos, principalmente, porém, em virtude da sucessão apostólica, o Sacerdócio e a Eucaristia, ainda se unem mais intimamente conosco [do que as protestantes]” (PAULO VI e os bispos do Concílio Vaticano II. Unitatis redintegratio. Cap. III, nºs 14-15). A respeito do Protestantismo, o mesmo documento assim se manifesta: “Entre estas Igrejas e Comunidades e a Igreja católica há discrepâncias consideráveis, não só de índole histórica, sociológica, psicológica, cultural, mas sobretudo de interpretação da verdade revelada” (idem. nº 19).
Podemos, portanto, tomar os diferentes graus de proximidade e de divergência entre os três maiores ramos da igreja cristã como outro dado de grande valia, que se soma ao débito para com Roma e à Reforma Católica como elementos do quadro da igreja cristã no mundo. Quero crer que esse esboço da situação cristã atual nos autoriza a pensar que as “discrepâncias consideráveis” entre católicos e protestantes, “sobretudo de interpretação da verdade revelada”, tendem a submergir cada vez mais na cultura comum dos dois segmentos, embora em menor medida do que as diferenças entre católicos e ortodoxos. Porém, há um território teológico, no qual a divergência se adensa e que, por isso, é mais fundamental que os demais. Refiro-me à eclesiologia.
Esse é o ponto, em que as águas protestantes mais se separam das católicas e, também, das da Igreja Ortodoxa. Ao defenderem o princípio do livre exame das Escrituras, os reformadores protestantes do décimo-sexto século não estabeleceram uma proposição só dogmática, mas antes de tudo prática. Isso porque divergências doutrinárias outras, como o uso (não culto) de imagens, a posição de Maria abaixo de Deus e acima dos anjos e a oração aos santos remetem a questões bíblicas e teológicas altamente interpretativas e, por isso, sujeitas a diferentes soluções. Não se pode afirmar que uma dessas soluções seja definitivamente superior a outra. Porém, as divergências apontadas não estão destinadas a afetar, necessariamente, o vínculo entre as igrejas cristãs locais ou a continuidade da sua comunhão. Com a questão eclesiológica, algo distinto acontece.
A eclesiologia tornou-se o ponto nevrálgico da Teologia hoje. Nenhum ponto parece ter maior relevância prática para o futuro da igreja do que este. Não que a igreja seja o tópico de maior importância intrínseca, na Teologia Cristã (a Trindade, por exemplo, é mais importante que ela), mas se tornou, e tenderá a se tornar cada vez mais, a principal condição para que a comunhão entre os cristãos aumente. Se a vida que Cristo trouxe à Terra tem um aspecto individual e outro comunitário, na medida em que as divergências dogmáticas submergem cada vez mais, o problema prático da igreja e sua organização tende a emergir. Ele tende a se tornar o mais decisivo para a existência, o vigor e a amplitude da vida cristã comunitária.
Assim, por exemplo, a divergência católico-protestante quanto às fontes da revelação não pode ser esvaziada de suas implicações eclesiológicas, já que, no fundo, significa: que órgão da igreja há de ser reconhecido como última instância no tocante à interpretação da Bíblia e da Tradição? Sabemos que tanto a Igreja Católica como a Ortodoxa resolvem essa questão por meio de sua autoridade máxima: o Papa, no caso católico, e o Santo Sínodo, no ortodoxo. A Igreja de Roma usa a palavra Magistério para designar o poder da hierarquia de interpretar as fontes da revelação (a Bíblia e a Tradição). Reconhece esse poder ao Papa, que o exerce com ou sem auxílio do episcopado. Já na Igreja Ortodoxa, o Santo Sínodo, composto pelos patriarcas e arcebispos das igrejas denominadas autocéfalas e autônomas, decide questões doutrinárias e de interpretação, sob a liderança honorífica (não governamental) do patriarca de Constantinopla (Istambul). Tal solução do problema hermenêutico alcançou certo êxito na História, pois foi o principal motivo da coesão interna dessas igrejas, que tanto contrasta com o fracionamento do corpo de igrejas protestantes.
Resumidamente, o fundamento bíblico que católicos e ortodoxos invocam, para adotarem essa solução, no caso de Roma, é a investidura de Pedro por Cristo como Papa, em Mateus 16:18, e, no da Igreja Ortodoxa, é o concílio ocorrido em Jerusalém para resolver se a observância da Lei de Moisés é necessária à salvação, como sustentado pelos judaizantes (Atos 15).
A Reforma Protestante tomou posição diferente sobre essa questão, ao optar pela superioridade do livre exame ao Magistério. Embora reconhecessem a competência de órgãos colegiados como o de Atos 15 para tratar de questões doutrinárias, os reformadores sustentaram, ousadamente, que a consciência de cada indivíduo é a última instância em matérias dessa natureza. Cada pessoa tem não somente o direito, mas também o dever de examinar livremente as Escrituras, a fim de determinar o sentido de suas proposições relativas à fé.
Os reformadores fundamentaram essa posição revolucionária nas Escrituras, às quais recorreram como fonte única da revelação. Mas é possível indagar exatamente em quais textos das Escrituras eles a basearam. Embora alguns textos afirmem que as Escrituras são infalíveis (Jo 10:35; 2 Tm 3:16), eles não excluem, de maneira explícita, a possibilidade de outras fontes também o serem. João 10:35, por exemplo, não afirma que “as Escrituras não podem falhar, e as outras fontes da palavra de Deus podem”. Diz apenas que as Escrituras são infalíveis. Sabemos, aliás, que essa era a crença da maior parte dos judeus, no primeiro século.
Porém, há modos mais eficientes de se defender a infalibilidade exclusiva da Bíblia. O primeiro consiste em postular que a intenção de textos como João 10:35 e 2ª a Timóteo 3:16 é, exatamente, afirmar a infalibilidade exclusiva da Bíblia, pois não há evidência de que os judeus do primeiro século considerassem infalível qualquer outro texto ou autoridade religiosa. O próprio Talmude ainda não fora composto. O mesmo pode ser dito das suas duas partes (Mishná e Guemará).
Mas, se manejarmos esse argumento com grande cuidado, seremos levados a reconhecer que era próprio da mentalidade judaica crer que a verdade a respeito de Deus não pode ser plenamente alcançada por qualquer indivíduo. Isso equivale a estabelecer que a palavra de um homem ou conjunto de homens de um mesmo período é sempre falível. A única exceção é a palavra ditada ou entregue diretamente por Deus, ao homem, como os judeus acreditavam ser o caso da Torá. Tirante esse caso, nunca mais repetido (exceto para os muçulmanos, que creem que o Alcorão foi dado por Deus a Maomé), para que a verdade se revele, é indispensável a intervenção de múltiplas gerações, ou seja, da História.
Pode parecer que esse princípio não se aplica somente à Bíblia, mas a todo livro ou conjunto de livros sobre o Deus único formado pelo mesmo método, assim como a Mishná, a Guemará e a Tradição Católica. E, em reforço dessa posição, é possível alegar ainda que os judeus do primeiro século só reconheceram as Escrituras como inspiradas, porque nenhum outro livro havia sido confeccionado por tal método até então, porém nada impede que a situação se tenha alterado, nos séculos posteriores.
A sugestão é válida, mas Jesus pôs um claro limite a ela, ao criticar os fariseus e escribas que lhe perguntaram: “Por que transgridem os teus discípulos a tradição dos anciãos?” (Mt 15:2). Essa tradição era a lei oral, corporificada nas glosas lançadas nas margens dos manuscritos bíblicos pelos escribas. Jesus lhes respondeu: “Por que transgredis vós também o mandamento de Deus, por causa da vossa tradição? Porque Deus ordenou: ‘Honra a teu pai e a tua mãe’ e ‘Quem maldisser a seu pai ou a sua mãe seja punido de morte’. Mas vós dizeis: se alguém disser a seu pai ou a sua mãe: É oferta ao Senhor aquilo que poderias aproveitar de mim; esse jamais honrará a seu pai ou a sua mãe. E assim invalidastes a palavra de Deus, por causa da vossa tradição” (Mt 15:3-6).
A acumulação de uma Tradição adicional às Escrituras é possível, desde que em conformidade com elas. Esse é o modo de crescimento normal da revelação divina na História. Não é preciso dizer que, em muitos pontos, a Mishná e a Guemará deixam de observar tal princípio, pois surgiram do desenvolvimento das glosas a que Jesus se referiu.
E a Tradição da Igreja Católica: satisfaz as exigências para ser aceita ao lado da Bíblia como inspirada por Deus? Pode-se admitir que, em princípio, a Tradição se mantém em conformidade com as Escrituras. Porém, ela não foi constituída pelo método histórico, mas pelo individual. A Igreja a concebe como um conjunto de obras elaboradas por certos autores. Cada qual desses autores viveu numa época. Portanto, a Tradição não satisfaz a antiga exigência judaica de múltiplas gerações.
Mas não é possível repensar a Tradição? Concebê-la não mais como conjunto de obras de indivíduos, mas como o vetor resultante dessas obras, uma vez eliminadas as contradições inadmissíveis? Esse vetor não emerge espontaneamente das correções de que cada obra carece? E não torna inspirada a Tradição, que se identifica com ele? Ou é impossível se determinar quais correções devem ser realizadas em um corpo doutrinário e devocional tão vasto? Bem, ainda que a Tradição seja mais difícil de se conhecer do que a Bíblia, ela o pode ser em alguma medida. Por isso, nada obsta tomá-la como fonte da palavra de Deus.
Contudo, as dificuldades implícitas no conhecimento da Tradição não recomendam que os conflitos entre ela e a Bíblia sejam desconsiderados ou resolvidos em seu favor. Pelo contrário, é preciso fazer recuar a Tradição, sempre que entra em conflito com as Escrituras. E isso não só pela dificuldade de se determinar o conteúdo da Tradição como corpus corrigível de ensinos, mas também por um segundo motivo. Se admitirmos que tanto as obras da Tradição como a Bíblia dão testemunho de Cristo, para que a sua mensagem mereça crédito, será necessário que parte dela tenha sido composta por pessoas que tiveram contato direto com Jesus ou com quem conviveu com ele. Só o Novo Testamento preenche tal requisito. No entanto, para interpretá-lo corretamente, é indispensável conhecer a mentalidade (judaica) segundo a qual ele foi escrito. E, para tanto, o melhor recurso disponível é o Antigo Testamento. Assim, também a partir da centralidade de Cristo, é possível se concluir que os conflitos entre a Bíblia e as obras da Tradição devem ser resolvidos em favor da primeira.
No capítulo 23 de Jeremias, Deus admoesta “os pastores que apascentam o povo”, nos seguintes termos: “Vós dispersastes as minhas ovelhas, e as afugentastes, e delas não cuidastes” (Jr 23:2). Diz também dos falsos profetas e dos sacerdotes: “Estão contaminados, assim o profeta como o sacerdote; até na minha casa achei a sua maldade, diz o Senhor [...] Nos profetas de Samaria bem vi eu loucura: profetizavam da parte de Baal, e faziam errar o meu povo Israel. Mas nos profetas de Jerusalém vejo cousa horrenda: cometem adultérios, andam com falsidade, e fortalecem as mãos dos malfeitores [...] Não mandei esses profetas, todavia eles foram correndo; não lhes falei a eles, contudo profetizaram. Mas se tivessem estado no meu conselho, então teriam feito ouvir as minhas palavras ao meu povo, e o teriam feito voltar do seu mau caminho e da maldade das suas ações” (Jr 23:11, 13-14, 21-22).
Por que os falsos profetas correm? Porque não estão dispostos a esperar a longa destilação da palavra de Deus na História. São como os que creem receber palavras ditas instantaneamente por Deus a eles. Nem uns, nem outros, porém, são capazes de ingressar no conselho de Deus, nem estão dispostos a seguir a admoestação: “O profeta que tem sonho conte-o como apenas sonho; mas aquele em quem está a minha palavra, fale a minha palavra com verdade” (Jr 23:28).
Não são poucos
os oráculos do Antigo Testamento contra os falsos profetas, porque não eram
poucos os falsos profetas. Miqueias diz a respeito deles: “Se houver alguém que, seguindo
o vento da falsidade, mentindo, diga: Eu te profetizarei do vinho e da bebida
forte; será este tal o profeta deste povo” (Mq 2:11). E novamente: “Assim diz o
Senhor acerca dos profetas que fazem errar o meu povo, que clamam: Paz! Quando têm
o que mastigar, mas apregoam guerra santa contra aqueles que nada lhes metem na
boca” (Mq 3:5). Embora o anseio de receber paga para comer fosse plenamente
justificável, Miqueias descreve abusos do direito dos profetas de receber
bens materiais: “Os seus cabeças dão sentenças por
suborno, os seus sacerdotes ensinam por interesse, e os seus profetas adivinham
por dinheiro; e ainda se encostam ao Senhor, dizendo: Não está o Senhor no
meio de nós? Nenhum mal nos sobrevirá” (Mq 3:11).
No Antigo Testamento, os sonhos eram o início de quase toda revelação. Precisavam, por isso, ser contados para serem coletivamente interpretados. Mas, por serem o início da revelação, não eram o seu final. A revelação requeria ainda interpretação. Necessário era esperar o inteiro processo descritivo e interpretativo transcorrer, não raro por gerações, para possuir a revelação, que Jeremias descreve como o estar da palavra de Deus no coração.Verdade é que os apóstolos e os presbíteros da igreja em Jerusalém se reuniram para decidir sobre a necessidade ou não da observância da Torá para a salvação. É verdade, também, que essa reunião se aproxima, em princípio, do que os católicos denominam Magistério. Porém, esse é um fato narrado no capítulo 15 de Atos, não uma norma. Na Bíblia, fatos são fatos, normas são normas. Não podemos tomar fatos como se fossem normas, o que significa que não estamos obrigados a resolver desavenças doutrinárias pelo método de Atos 15.
E, em nenhuma outra passagem bíblica, vemos o procedimento do Magistério ordenado como norma. Que temos em Jeremias? Temos o falar do sonho e o debater da interpretação. E temos razões para crer que essa não é uma peculiaridade daquele livro. É antes uma defesa da atividade profética em geral, da atividade que gerou boa parte dos oráculos de Isaías a Malaquias. Ou, que outra coisa pode significar “Cri, por isso falei” (Sl 116:10; 2 Co 4:13), a não ser que o falar vem do crer e de mais nada? Atentemos para o modo como Paulo citou essa frase tão densa. Olhemos para a pretensão com que ele a mencionou. Paulo não a fez um paradigma? E o falar aludido na frase não inclui o ensinar?
"Crer, portanto falar" é um princípio de todo inseparável do livre exame. E permitam-me dizê-lo: como Paulo o utilizou, não é o princípio do Magistério, embora não devamos ser rápidos como os falsos profetas para negar todo valor a este. O Magistério é, sim, uma contribuição positiva da Igreja Católica. Podemos até responder a pergunta do título desta seção com a frase: “Magistério e livre exame”. Aliás, essa é a melhor resposta. Só não podemos colocar o Magistério acima do livre exame.
O ESTREITAMENTO DA VERDADE
Se o Antigo Testamento é atravessado por um tema negativo, que sempre retorna, é sem dúvida a idolatria. De Gênesis a Malaquias, uma luta sem quartel contra os ídolos se desenrola, durante a qual a figura de Iahweh, o Deus único, assoma gradativamente ao primeiro plano da vida de Israel.
Porém, ao chegarmos no Novo Testamento, o pano cai, descerra-se novamente, e outro cenário se descortina. Quando o mundo gentio é abordado, não é atribuída a mesma importância à idolatria, que passa a ser tratada quase como uma realidade desvanecente. A exceção que confirma a regra é o capítulo 1 de Romanos.
O motivo do desvanecimento da idolatria se encontra em passagens como o capítulo 6 de Baruc: “Como uma moça apaixonada por enfeites, eles tomam ouro e fabricam coroas para as cabeças de seus deuses. Acontece, porém, que os sacerdotes roubam de seus deuses o ouro e a prata para suas despesas particulares, e com essas riquezas presenteiam até as prostitutas do terraço. Eles ataviam com vestidos, como se fossem seres humanos, esses deuses de prata, ouro e madeira, os quais não se salvam a si próprios nem da ferrugem nem dos vermes. Tendo-os revestido de um manto de púrpura, devem espanar seus rostos por causa do pó do recinto, que se acumula sobre eles [...] Por isso é manifesto que não são deuses” (Br 6:8-11,14).
Nessa passagem, o culto aos ídolos é desmoralizado como mentira e fruto da ignorância. A ela se seguem um trecho tão trovejante quanto o primeiro e a mesma conclusão revestida de necessidade lógica: “De tudo isso concluireis que não são deuses: portanto, não os temais” (Br 6:22). E o texto prossegue, martelando argumentos contrários à idolatria pela terceira, a quarta até a nona vez. A cada novo argumento, segue-se a conclusão em estilo lógico de que os ídolos não devem ser temidos.
Essa insistência argumentativa nos lembra de que, em determinado momento histórico, a inexistência dos deuses de ouro, prata, madeira etc. tornou-se uma verdade lógica cristalina. Pode-se dizer até mesmo uma verdade científica equivalente ao que o heliocentrismo de Galileu, as leis de Newton e outras descobertas vieram a ser mais tarde. De Israel, a verdade a respeito dos ídolos se disseminou pelo mundo romano.
O progresso da fé cristã, entre os séculos I e IV, foi o resultado lógico do impressionante eclipse dos deuses ocorrido, sob influência da Diáspora hebraica. Foi o lado positivo dele: os deuses foram desmascarados como mentira e impostura, o Deus cristão foi crido como verdade. Pode-se, pois, concluir que a evangelização do mundo romano foi a afirmação da verdade sobre Deus.
Tudo isso se deu, enquanto a igreja cristã se firmava no mundo. No contexto desse amplo movimento, práticas hoje ligadas à idolatria, como a oração aos santos, o uso de imagens no culto e a veneração de relíquias, não foram consideradas reaparições daquele pecado. É possível entender por quê. Seu sentido era outro. Era impensável que a igreja, instrumento do triunfo de Deus sobre os ídolos, recaísse na idolatria após a ter combatido com tanto denodo. De sorte que a veneração de relíquias e outras práticas tiveram mais o sentido de superstições que o de idolatria.
Parte importante da decadência da igreja, nos séculos seguintes, deveu-se à substituição da palavra de Deus não exatamente por ídolos, mas por superstições. Calvino expôs muito bem o resultado a que essa situação conduziu: “No dia atual, a dissimulação dos [católicos] romanistas é a mesma que foi utilizada pelos judeus, quando os profetas do Senhor os acusaram de cegueira, impiedade e idolatria. Pois, assim como os judeus se vangloriavam do templo, das cerimônias e do sacerdócio, por meio dos quais pensavam que a Igreja era reconhecida, os romanistas [...] fazem de conta que Deus está tão associado a pessoas, lugares e observâncias exteriores [superstições] que permanece com aqueles que apenas trazem o seu nome e a aparência de Igreja” (CALVINO, Jean. Institutes of the Christian religion. In Great books of the western world. Vol. 20, Book Fourth, Chapter II, 3. p. 342).
Embora Calvino tenha usado a palavra idolatria para definir o problema que descreveu, se reconhecermos a diferença existente entre idolatria e superstição, verificaremos que ele se referiu à última. Com o desaparecimento da palavra de Deus do cotidiano das pessoas e do culto da Igreja, na Idade Média, Deus foi de fato substituído por superstições. A advertência de Jeremias cumpriu-se: “Não confieis em palavras falsas, dizendo: Templo do Senhor, templo do Senhor, templo do Senhor é este” (Jr 7:4). Com essas palavras, o profeta não deplorou o culto a ídolos, mas o apego supersticioso a coisas divinas, como o Templo de Jerusalém. Não é preciso acrescentar que a superstição da Igreja medieval cumpriu suas palavras.
Essa crise sem precedentes, na História da Igreja, encontrou na Reforma do décimo-sexto século uma reação contundente. E porque a crise foi sem precedentes, a Reforma então iniciada veio a constituir o momento áureo, a maior revolução da História da Igreja, comparada à qual o Cisma do século XI parece quase sem consequências. Não é exagero afirmar que a Reforma, enquanto movimento protestante e também católico, sobrepujou em glória a própria igreja dos primeiros quatro séculos, como o profeta Ageu sugeriu ao dizer que “a glória desta última casa será maior do que a da primeira, diz o Senhor dos Exércitos” (Ag 2:9).
Calvino chegou ao ponto de considerar que a Igreja medieval foi destituída de Cristo, e o Papa se tornou Anticristo. A julgar pela época em que isso foi afirmado, ele não estava longe da verdade, pois a Igreja realmente se havia corrompido. Muitos católicos não pactuavam com os erros então vicejantes e se esforçavam para manter-se à parte deles, mas não podemos julgar a Igreja pelas pessoas que pertenciam a ela. Só a podemos julgar pelo que ela era: uma instituição em estado deplorável.
A verdade sobre Deus é o reverso da idolatria e da superstição que produziram a corrupção de Israel e da igreja. É o lado esplendoroso da revelação, ao qual se opõe a face sombria daqueles pecados. Nos tempos do Antigo Testamento, a idolatria prevaleceu no mundo. Entre os séculos IX e XVI, a superstição campeou. A Reforma da igreja existe para fazer triunfar a verdade.
Porém, assim como a luta contra a idolatria e a superstição teve os seus desafios, a propagação da verdade de Deus apresenta os seus próprios. E não são pouco formidáveis. O principal parece ser o estreitamento da verdade. Hoje, a idolatria e a superstição recuaram. Porém, a verdade de Deus estreitou-se em razão do purismo e do literalismo bíblico, principalmente no meio protestante.
Jesus disse: “A tua palavra é a verdade” (Jo 17:17). Com o passar do tempo, entendi que a verdade que ele mencionou não resulta de uma redução, como a que o Protestantismo produziu. A verdade se expande na História. Por isso, para obtê-la, é preciso estar aberto à sua expansão.
A igreja é depositária da expansão da verdade, pela multiplicação das linguagens que a exprimem. Por linguagem, não quero dizer somente idiomas, mas modos de pensamento e expressão. Uma das linguagens mais importantes em que a revelação se traduziu, ao longo da História, foi a da Filosofia. A tal ponto adiantou-se a tradução das verdades cristãs nessa particular linguagem que algumas se tornaram quase inseparáveis das categorias filosóficas utilizadas para exprimi-las. É o caso da doutrina bíblica da Trindade, segundo a qual o Pai, o Filho e o Espírito são três pessoas com uma só substância.
A tradução filosófica da verdade de Deus começa a se descortinar nas Epístolas de Paulo, que pressupõem fortemente as evidências da existência de Deus defendidas por filósofos como os platônicos. De fato, a convicção com que Paulo escreve não indica que possuísse uma fé cega em Deus, mas uma compreensão racional senão de todas as coisas divinas, ao menos da sua existência. A essa compreensão a fé do apóstolo estava indissoluvelmente associada.
É verdade que Paulo não se aprofunda nas evidências da existência de Deus, ao mencionar o conhecimento que os gentios tinham dele, em Romanos 1, mas não o faz exatamente por considerá-las assentadas e inquestionáveis. Para que gastar tempo com algo tão bem estabelecido? Mesmo assim, o apóstolo usa e supõe, todo o tempo, aquelas evidências. Quando diz, por exemplo, que as coisas invisíveis de Deus são “vistas no entendimento” (nóumena katorátai), recorre a uma ideia filosófica muito conhecida. Portanto, ou inventa tal ideia ou a toma emprestada da Filosofia. Parece-me que a toma, sim, emprestada.
Esse é um exemplo de ideia filosófica no Novo Testamento. Há tantos outros que a tarefa de separar a doutrina cristã de uma orientação filosófica se afigura impossível. Embora uma parte dos primeiros teólogos cristãos aceitasse a Filosofia grega e outra parte não, os que a rejeitavam de maneira mais radical também empregavam ideias filosóficas. É o caso de Tertuliano, que combateu ferozmente a recepção da Filosofia grega pelo cristianismo, mas adotou e defendeu longamente ideias estoicas como a materialidade da alma (TERTULIANO. La penitencia. III, 3. Madrid, Ciudad Nueva, 2011. p. 99).
Não há como entender posturas quais a de Tertuliano, sem admitir a influência grega que refletem. Por isso, o combate que aquele autor ofereceu à Filosofia grega não era, de maneira alguma, uma forma de obscurantismo ou de antirracionalismo, pois, para ele, “Deus, Criador de tudo, não previu, dispôs ou ordenou coisa alguma sem a razão. Quis, ao contrário, que nada fosse tratado e entendido sem ela. Por conseguinte, é inevitável que os que ignoram a Deus ignorem também a razão” (idem. I, 3, p. 83).
Assim, a Teologia cristã se delineou e continuou a delinear-se, nos séculos posteriores a Tertuliano. Em todas as suas etapas, ela manteve estreita relação com o pensamento filosófico, que lhe serviu de linguagem. Em certo momento, a própria divisão dos teólogos e doutores da igreja num partido que aceitava a Filosofia e outro que não a aceitava deixou de existir. Um consenso universal a substituiu pela aliança da Teologia com a Filosofia.
A doutrina católica, como a conhecemos hoje, formou-se sob essa aliança. Depende, pois, claramente, da Filosofia. E, embora não se refira a uma aliança com ela, a encíclica de João Paulo II, Fides et ratio, adota essa ideia implicitamente,ao afirmar a existência de “conhecimentos filosóficos cuja presença é constante na história do pensamento. Pense-se, só como exemplo, nos princípios de não-contradição, finalidade, causalidade, e ainda na concepção da pessoa como sujeito livre e inteligente” (JOÃO PAULO II. Fides et ratio. 7ª ed., São Paulo: Loyola, 1999. nº 4. p. 7). Em recente encíclica, o Papa Francisco reafirmou essa posição tradicional de Roma, ao escrever que "a Igreja Católica está aberta ao diálogo com o pensamento filosófico, o que lhe permite produzir várias sínteses entre fé e razão" (FRANCISCO. Laudato si. Cap. II, nº 1. Disponível em www.m.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents).
Esse modo de fazer Teologia prende-se ao significado original da palavra. Nos primeiros séculos, “a designação mesma de teologia e a sua concepção como discurso racional sobre Deus ainda estavam ligadas à sua origem grega. Na filosofia aristotélica, por exemplo, o termo designava a parte mais nobre e o verdadeiro apogeu do discurso filosófico” (idem. nº 39, p. 31). Era impossível usar a palavra Teologia nesse sentido e não desenvolver a disciplina que ela designava em conexão com a Filosofia.
Só o Protestantismo apartou-se desse modo de fazer Teologia. Só ele abandonou a Filosofia, quase sempre com a desculpa de que é impura ou inútil. Como soa revolucionária e atraente essa acusação! Como soa inteligente e sobranceira! Mas como é fácil e vazia! Na verdade, a Filosofia é tão impura quanto a língua portuguesa ou o inglês. Portanto, a posição protestante a respeito dela, o desprezo que lhe votou, não passa de lamentável exagero, engano, falsificação doutrinária e pretensão.
Ao separar a Teologia da Filosofia e de todos os outros saberes, o Protestantismo acabou por perder-se na ideia de que a revelação é um processo de redução à Bíblia interpretada de modo cada vez mais literal. A trajetória das Igrejas Protestantes, na História, o mostram de modo inequívoco. Da Bíblia como fonte única da verdade (sola Scriptura), os protestantes passaram rapidamente à interpretação literal dela. A verdade não poderia ser mais contrária a essa particular trajetória, já que a revelação, como a Bíblia nos apresenta, é o oposto de uma redução: é a expansão da palavra de Deus ao longo dos séculos.
Portanto, se a missão da igreja é proclamar a revelação ao mundo, necessário se torna corrigirmos o erro consistente no estreitamento da verdade. Embora os reformadores interpretassem a Bíblia, com base nela própria, o desenvolvimento da Teologia sem intercâmbio com outros saberes lhes é totalmente estranho. Nem Lutero, nem Melanchton, nem Calvino, nem qualquer outro grande teólogo da Reforma, no século XVI, entenderam o sola Scriptura da maneira absurda e reducionista de hoje. Por que insistiremos nela? Por que continuaremos a recolher os frutos mortíferos desse estreitamento?
O SACERDÓCIO UNIVERSAL
No tempo de Jeremias, os profetas de Jerusalém orientavam o rei e a nação de Judá de modos tão diferentes que uma grande confusão se instalou. Não que a pluralidade de porta-vozes de Deus fosse em si negativa. Pelo contrário, ela proporcionava um quadro, potencialmente, rico e completo do que Deus desejava comunicar ao povo. Além disso, o fato de um profeta falar determinada palavra, e outro, palavra contrária não era incompatível com a revelação. Se algo nos é ensinado pela estrutura interna da Bíblia, é que esse grau de variação dos oráculos é inerente à palavra de Deus e não a anula.
Porém, onde a diversidade de profecias conduz a resultados contrários aos princípios da revelação, a situação muda completamente. Deuteronômio adverte: “O profeta que presumir de falar alguma palavra em meu nome, que eu lhe não mandei falar, ou o que falar em nome de outros deuses, esse profeta será morto” (Dt 18:20).
Nesse verso, dois casos são abordados: o do profeta que fala algo proveniente da sua própria imaginação como se fosse a palavra de Deus e o do que fala por outros deuses. O último caso é fácil de identificar, pois envolve um profeta idólatra. Da primeira à última página da Bíblia, uma lição invariável é ministrada: Deus condena a idolatria. Portanto, o profeta que serve outros deuses e fala em nome deles deve ser condenado.
Mas, e o outro caso? Que significa um genuíno profeta de Deus falar ao povo algo que não lhe foi transmitido do alto? O texto citado formula essa questão e a responde: “Se disseres no teu coração: Como conhecerei a palavra que o Senhor não falou? Sabe que quando esse profeta falar, em nome do Senhor, e a palavra dele se não cumprir nem suceder como profetizou, esta é a palavra que o Senhor não disse; com soberba a falou o tal profeta; não tenhas temor dele” (Dt 18:21-22).
O critério para se diferenciar a palavra que provém de Deus da que não provém é a realização do que foi profetizado. Porém, um profeta pode prever o futuro ou não o prever explicitamente. Vimos como lidar com a palavra que envolve predição, mas e quando a profecia nada predisser? Como devemos proceder nesse caso?
Deuteronômio 18:22 não admite semelhante hipótese. Quer afirmar, ao contrário, que a palavra de um profeta de Deus é sempre predição do futuro. Isso porque ela não está despojada da característica de mandamento comumente associada à Torá (Pentateuco). Assim como a Torá é um feixe de mandamentos, os oráculos dos profetas também o são. O que os distingue é a condição de mandamentos especiais, válidos para situações históricas específicas e determinadas. E, como mandamentos válidos para tais situações, toda palavra profética inclui previsões do que ocorrerá se ela for ou não for cumprida.
No tempo de Jeremias, por exemplo, os babilônios emergiram como grande poder político e militar. O exército de seu rei, Nabucodonosor II, subjugou diversos povos e ameaçava avançar sobre Judá. Nesse contexto, parte dos profetas de Jerusalém passou a afirmar, em nome de Iahweh, que os judeus deviam enfrentar os babilônios, pois Deus os protegeria, e nada de mal lhes sobreviria. Porém, Jeremias pregou que Nabucodonosor tinha sido levantado pelo próprio Deus e era um instrumento dele para corrigir Judá. Cabia ao povo aceitar a correção divina. Se isso não ocorresse, a resistência a Nabucodonosor desgraçaria o povo e, no limite, colocaria em risco a própria existência da nação. Tanto a palavra de uns como a de outros profetas, portanto, formulavam claras predições.
De acordo com Deuteronômio, a moldagem da situação histórica ao oráculo de um profeta é o que revela, em última análise, que a sua palavra provém de Deus. E, se a palavra de Deus é assim definida, concluímos que não é necessária a intervenção de uma autoridade como a do Magistério da Igreja para decidir qual, dentre as palavras que apontam caminhos diferentes para o povo, provém de Deus.
Um princípio revelado no Antigo Testamento nunca se altera debaixo do Novo. Mudanças podem ocorrer nas circunstâncias históricas, nos ritos, modos, práticas e até nos costumes, porém não num princípio revelado. Sob esse aspecto, a natureza da revelação é como a de Deus. Não está sujeita a mudanças. É a mesma, ontem, hoje e para sempre. A revelação é um conjunto de palavras de Deus sobre uma situação histórica. Mas não é só descrição dessa situação. Ela envolve também uma exortação ou, às vezes, um mandamento a respeito de como os que temem a Deus devem portar-se. Essa é a palavra que, insisto, constitui a natureza íntima e essencial da igreja. Toda outra natureza é segunda em relação a esta.
A palavra de Deus é, por isso, um processo que, para os homens, só se define a posteriori, ou seja, depois que os fatos profetizados acontecem ou não. Necessário é esperar pelos fatos para se conhecer a palavra. E, como os fatos definem o que é a palavra de Deus, eles também estão sujeitos à interpretação. Tanto os oráculos como os fatos em que eles se cumprem necessitam ser interpretados.
Para a Igreja Católica, sobretudo nos últimos dois séculos, essa interpretação principia com os teólogos, mas só é concluída pela hierarquia eclesiástica. Apenas o Magistério, a hierarquia enquanto incumbida do ensino, pode definir qual interpretação é correta ou melhor. Porém, essa é apenas uma maneira de ver a grave e central questão da palavra de Deus.
Em parte nenhuma das Escrituras, vemos a interpretação da palavra necessariamente sujeita a determinados líderes. A começar pelos próprios profetas, que dentre todos os israelitas eram os que tinham relação mais próxima com a palavra. Nem aos profetas cabia decidir, em instância final, que interpretação da palavra de Deus era correta ou melhor.
“Os lábios do sacerdote” também deviam “guardar o conhecimento e da sua boca deviam os homens procurar a instrução, porque ele é mensageiro do Senhor dos Exércitos” (Ml 2:7). Porém, que significa guardar o conhecimento a não ser tomá-lo pronto de alguma parte? E que é ser mensageiro de Deus, senão exercer função semelhante à de profeta? Mas, se o sacerdote se equipara ao profeta, não é mais do que ele. Ou, para dizê-lo mais simplesmente, o sacerdote é também profeta. Por isso, quando Caifás declarou “Não considerais que vos convém que morra um só homem pelo povo, e que não venha a perecer toda a nação? [...] não disse isso de si mesmo; mas, sendo sumo sacerdote naquele ano, profetizou que Jesus estava para morrer pela nação” (Jo 11:50-51).
Do mesmo modo, o rei de Israel, ao se assentar no seu trono, devia "escrever para si um traslado desta lei num livro, do que está diante dos levitas sacerdotes. E o terá consigo, e nele lerá todos os dias da sua vida” (Dt 17:18-19). E ao restante do povo foi dito algo semelhante: “Estas palavras que hoje te ordeno estarão no teu coração; tu as inculcarás a teus filhos, e delas falarás assentado em tua casa, e andando pelo caminho, e ao deitar-te e ao levantar-te” (Dt 6:6-7). Em suma, todos tinham igual acesso à palavra de Deus, igual dever de meditá-la e igual liberdade de a interpretar.
O igual acesso e a igual liberdade de interpretação da palavra são o cerne do que se entende por sacerdócio universal. Ambos estão presentes no Antigo Testamento. Quando Deus disse ao povo “Vós me sereis reino de sacerdotes” (Êx 19:6), imediatamente à saída do Egito, não só revelou sua intenção primeira e original, mas se comprometeu a nunca abandonar esse princípio, como de fato não o abandonou. O sacerdócio universal não caiu em desuso, não foi perdido, mas adotado e explicado, na lei, por meio dos mandamentos para que os reis, os profetas, os sacerdotes e todo o povo cultivassem as palavras que Deus lhes entregara.
Não houve lacuna na revelação e na prática desse sacerdócio, entre Êxodo 19 e o Novo Testamento, quando Cristo “nos constituiu reino, sacerdotes para o seu Deus e Pai” (Ap 1:6). O sacerdócio universal ou de todos os membros do povo de Deus é um princípio revelado e, como tal, permanece invariável. Mais pessoas foram chamadas a integrá-lo, no Novo Testamento, é verdade. Por isso se diz que Cristo as constituiu sacerdotes. Porém, o princípio, em si mesmo, sempre esteve presente.
As pessoas só têm dificuldade de encontrar o sacerdócio universal, no Antigo Testamento, porque o procuram onde não está. Procuram-no na administração dos ritos, dos sacrifícios, dos atos exteriores do culto. Em nada disso, há o sacerdócio universal. Porém, encontramo-lo inteiro, na questão do trato com a palavra de Deus. E exatamente da mesma maneira e com as mesmas características o achamos, no Novo Testamento.
Mas, ao lado desse sacerdócio, tanto no Antigo como no Novo Testamento, achamos outro ministério, que podemos denominar particular. Coube aos levitas e, dentre eles, de modo especial, à Casa de Arão exercer esse segundo sacerdócio. A atribuição mais importante dos levitas nunca foi oferecer sacrifícios ou cumprir as ordenanças do culto ritual. Deus disse: “Misericórdia quero, e não sacrifício; e o conhecimento de Deus, mais do que holocaustos” (Os 6:6). Porém, ele nunca disse que não se importava se o sacerdote “guardava o conhecimento”. Antes acusou os da época de Malaquias de não o fazerem: “Os lábios do sacerdote devem guardar o conhecimento [...] Mas vós vos tendes desviado do caminho, e, por vossa instrução, tendes feito tropeçar a muitos; violastes a aliança de Levi, diz o Senhor dos Exércitos” (Ml 2:7-8). Isso confirma que o centro do sacerdócio era o cultivo da palavra de Deus, não o culto ritual.
Mas, apesar dos erros cometidos pelos levitas, não podemos afirmar que o seu sacerdócio tenha inibido o exercício do universal. Isso não ocorreu, em Israel. Observamos a decadência generalizada do povo, dos sacerdotes e de parte dos profetas, em relação à prática de cultivar a palavra de Deus, mas não vemos um sacerdócio inibir o outro. O mesmo acontece, em linhas gerais, sob o Novo Testamento. Assim como não é correto pensar que Israel recebeu o sacerdócio universal e o abandonou, quando o dos levítas foi instituído, não é apropriado afirmar que Cristo reintroduziu o sacerdócio universal, porém os cristãos criaram uma réplica do levítico, por meio da qual anularam o primeiro. Nada disso parece exato.
A inibição de um sacerdócio pelo outro só ocorre quando se instala um regime, que podemos denominar hiperclerical. A diferença entre o clericalismo e o hiperclericalismo não é apenas de grau, mas também de natureza. O aumento do grau de distinção clerical importa uma mutação no caráter íntimo do regime. Do papel ordenado por Deus, os clérigos passam a exercer um outro, não ordenado por ele. A principal característica dessa passagem é o assenhoreamento do ministério da palavra por parte dos clérigos.
No Antigo Testamento, a palavra de Deus devia ser conservada pelos sacerdotes da tribo de Levi, mas a parte mais importante do trato com ela cabia aos profetas. As Sagradas Escrituras não são o registro da palavra sacerdotal, mas da que os profetas pronunciaram. Pouquíssimas palavras de sacerdotes foram conservadas na Bíblia. E precisamos reconhecer que os profetas foram os leigos do Antigo Testamento.
Devemos a Lutero a retomada do tema do sacerdócio universal, após séculos de quase esquecimento. As obras em que ele primeiro tratou desse tema são o Discurso à nobreza da nação alemã e O cativeiro babilônico da igreja. Mas gostaria de transcrever um trecho de outra obra, na qual ele trata do sacerdócio de todos os cristãos em termos mais práticos. Diz o reformador:
"Entre cristãos não deve nem pode haver autoridade alguma, pois cada qual está submisso ao outro, como diz Paulo em Rm 12 [Fp 2.3]: 'Cada qual considere o outro seu superior', e 1 Pe 5.5: 'Sede todos submissos uns aos outros'. Isso é o que também Cristo quer: 'Quando fores convidado para o casamento, toma o último lugar' - Lc 14.10. Entre os cristãos não há superior a não ser o próprio Cristo" (LUTERO, Martinho. Da autoridade secular, até que ponto se lhe deve obediência. In Martinho Lutero - obras selecionadas. São Leopoldo: Sinodal/Concórdia, 1996. p. 105).
E continua:
"Que são, pois, os sacerdotes e bispos? Resposta: Seu regime não é de autoridade ou poder, mas serviço e função. Pois não são superiores e melhores que outros cristãos. Por isso não devem impor lei ou mandamento a outros sem a vontade e consentimento deles. Seu governo não é outra coisa que pregar a palavra de Deus e com ela conduzir os cristãos a vencer a heresia. Pois, como já disse, os cristãos não podem ser governados a não ser com a palavra de Deus" (idem. p. 106).
Não quero, de maneira alguma, afirmar que a parte mais importante do ministério da palavra deva caber exclusivamente aos leigos. Mas, se o exemplo dos profetas constituir um princípio, os clérigos só têm parte nesse núcleo ministerial na medida em que são profetas, portanto leigos. Por tudo isso, a existência de sacerdotes, no Antigo Testamento, e a de clérigos, no tempo atual, não pode ser condenada. É uma situação eclesiástica normal. Porém, a concentração do ministério da palavra nas mãos deles não há de ser admitida.
O primeiro passo para que isso ocorra, nos dias de hoje, é a abolição do livre exame das Escrituras. Por meio desse passo, os líderes confiscam o poder-dever legítimo que todo cristão possui de ser um cultor da palavra de Deus, de a interpretar e propagar. Esse poder-dever está implícito no “Ide” pronunciado por Jesus: “Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo; ensinando-os a guardar todas as cousas que vos tenho ordenado” (Mt 28:19-20).
Se não podem interpretar a palavra, como os cristãos a podem pregar? Devem pregar o que não conhecem, pois não o interpretam? Ou pregar o que outros conhecem por eles? Que estranho mandamento é esse? Se assim se deve realmente entender a grande comissão, Jesus terá dito: “Ide, pregai o que ainda não conheceis, pois a autoridade entre vós ainda não o estabeleceu”. Em que mandamento vazio a grande comissão se transforma, quando entendida dessa maneira!
Muitos reconhecem, no mandamento de evangelizar, a razão de ser da fé cristã, e estão absolutamente certos. No entanto, poucos extraem dele a consequência do sacerdócio universal. No centro da grande comissão, está o discipulado: “ensinando-os a guardar todas as cousas que vos tenho ordenado”. Portanto, ela é muito mais do que uma mensagem sobre a entrada no céu ou no inferno. É toda uma definição do que é o céu, em que ele consiste e como será um dia unido à terra.
Os que levam os outros a guardar todas as coisas que Cristo ensinou estão autorizados a desprezá-las? Podem considerar ignóbil o que ensinam os outros a considerar elevado? Podem ser privados do direito de entender livremente essas coisas? Se não podem, a grande comissão é o trato direto de todos os crentes com “todas as coisas que vos tenho ensinado”. É a busca e o compartilhamento delas, sob a disciplina que a palavra discipulado evoca.
Vemos que o sacerdócio universal emana do livre exame. Ele não é algo leve, muito menos leviano. Não consiste em ouvir as últimas notícias sobre a vida de quem frequenta as igrejas. É um trato antes de tudo sério e reverencial com os tesouros da palavra de Deus. Todos são sacerdotes, porque têm o poder e o dever de realizar esse trato. De interpretar a palavra e pregá-la. E o interpretar a palavra, publicamente, já é um pregar. Ele está implicado na promessa “Serão todos ensinados por Deus” (Is 54:13; Jo 6:45). “Ensinados por Deus” quer dizer “somente por Deus”. Deus não é tão Deus, quando necessita de subsídios de outros para ensinar. Claro que Jesus também disse aos discípulos: “ensinando-as [vós]”. Porém, isso significa que os apóstolos e demais cristãos seriam instrumentos do ensinar de Deus e nada mais.
No entanto, a ordem de coisas do sacerdócio universal não pode ser tomada como ocasião para o orgulho secreto ou a arrogância aberta. Cada cristão interpretar a palavra que, no tempo de Moisés, foi gravada em pedra não pode ser tomado como motivo de desvanecimento. Paulo não disse que o Espírito de Deus inscreve as palavras de Cristo em tábuas de pedra, mas de carne, ou seja, no coração (2 Co 3:3). Essa carne não é literal, não é carne em sentido objetivo, mas subjetivo. É um sentir-se carne, em oposição ao sentir-se pedra. É um sentir-se frágil e um saber-se transitório, em oposição ao sentir-se forte e ao se entender indestrutível.
E, para que a soberba não tome o coração humano, o próprio Cristo, Senhor, subordinou esse grande ministério a um discipulado. Para ser arauto da palavra de Deus, é preciso se fazer discípulo. Mas que é ser discípulo? Acaso não é ser aprendiz e não mestre? Não é ser ouvinte, mais do que pregador? Possuir a palavra do Mestre, mas querer possuí-la ainda mais do que a possuir efetivamente? Por tudo isso, o primeiro nome pelo qual os cristãos se tornaram conhecidos, na História, foi o de discípulos.
Mas é preciso dizê-lo sem rodeios: ser discípulo não é coisa fácil. “Quem quiser vir após mim a si mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-me” (Mt 16:24). Desde que Jesus ascendeu ao Pai, segui-lo passou a ser o mesmo que seguir sua palavra, como o Espírito a ensina ao coração. Porém, a condição e o preço do discipulado continuam os mesmos: negar-se, tomar a cruz e andar pelas ruas com ela, em direção ao lugar em que o grão de trigo, caindo na terra, dá muito fruto. Essa palavra mostra bem que o adversário principal do discipulado não é o que o homem faz ou sofre exteriormente, mas o seu eu. O que ele faz ou sofre não é suficiente para cegar o seu coração, porém o amor ilimitado a si mesmo o é.
A figura do homem que leva a sua cruz é a de um condenado, não a de um morto. O eu não precisa exatamente morrer. Precisa sentir-se morto. Se morresse, ele não poderia seguir a Cristo, o que esvaziaria o mandamento "Quem quiser vir após mim". Como um morto poderia ir após Cristo? Então, que morramos não é o que Cristo pede. Ele pede que a existência do seu discípulo, nas palavras adotadas pelos filósofos, seja um ser-para-a-morte. Até mesmo o ser-para-a-morte mais consumado e pleno.
É impossível que, nesse discipulado, o livre exame assuma a forma de uma revelação em cada esquina. Se não é um trato leviano com as coisas de Deus, o livre exame não pode resultar numa luta de todos contra todos, a pretexto da interpretação da Bíblia, ou numa grande vala comum em que se depositam, com idêntica honra, as boas e as péssimas interpretações. Esse seria um livre exame sem discipulado. Mas o de Cristo é exatamente um discipulado.
O SACERDÓCIO INTEGRAL
Por muitos séculos, a discussão sobre quem é consagrado ao ministério e quem não o é tem dado motivo a muita desarmonia e a divisões. Quando se leva em conta que, em Êxodo 19, Deus afirmou que cada israelita devia ser um sacerdote, o problema se agrava, pois a diferença tradicional entre clérigo e leigo parece perder todo sentido. Porém, como o estado de solteiro se define em oposição ao de casado, o de sacerdote deve-se opor a outro. E, se o povo de Deus inteiro é formado por sacerdotes, quem hão de ser os leigos? A resposta a esse intrigante questionamento parece ser as pessoas situadas fora do povo de Deus.
O propósito de Deus revelado em Êxodo 19 não incluía apenas os israelitas, mas outras nações, em favor das quais eles deviam ministrar como sacerdotes. É um erro pensar que Deus separou os israelitas, de modo a cortar todo vínculo entre eles e as nações. O chamamento de Israel foi, sim, uma separação. Porém, apenas na medida em que Deus o investiu num estado que o restante dos povos não possuía, a saber: o sacerdotal. A investidura, contudo, não envolveu uma separação total, pois o estado de sacerdote devia ser exercido em prol das nações.
Tudo isso está implícito em Êxodo 19. Se Deus fez de Israel um reino de sacerdotes, outros povos deviam receber o seu ministério. Isso corresponde muito de perto à evangelização mundial e à implantação da igreja no mundo. Pode-se até afirmar que, reveladas em Êxodo, a evangelização e a implantação se materializaram no Novo Testamento, pelo amplo desenvolvimento do sacerdócio universal.
O estado sacerdotal e o laico podem ser, pois, entendidos como regimes de vida. As pessoas inseridas no primeiro têm obrigações práticas muito bem definidas em relação a Deus. Vivem para ele, tanto por lhe terem sido consagradas como por força das atividades cotidianas que desempenham. Já o estado laico também se define em relação a Deus, pois os leigos recebem as dispensações divinas que os sacerdotes lhes administram. No entanto, o regime de vida e o cotidiano deles são totalmente outros, pois se desenvolvem em contextos seculares, por meio de tarefas comuns.
O mesmo livro bíblico (Êxodo) que introduz o sacerdócio universal institui, porém, outro denominado levítico. Nesse segundo sacerdócio, somente a tribo de Levi toma parte. Ele tampouco se exerce em favor das nações, mas do restante das tribos de Israel. Por esses motivos, podemos denominá-lo ministério particular.
E, assim como observamos o sacerdócio universal realizado nas páginas do Novo Testamento, vemos também o ministério particular. O estado espiritual de uma minoria que ministra pela maior parte do povo de Deus também está no Novo Testamento. Quem vive nesse estado? Principalmente os presbíteros e os diáconos. Da maneira como os levitas receberam a incumbência de cuidar do culto a Deus, em Jerusalém, aos presbíteros e diáconos cabe o cuidado do culto, onde quer que uma igreja se reúna continuamente. E tal qual os levitas tiravam seu sustento das doações do restante do povo, os presbíteros que presidem bem são dignos de receber honorários. É o que nos diz 1ª a Timóteo 5:17: “Devem ser considerados merecedores de dobrados honorários os presbíteros que presidem bem, com especialidade os que se afadigam na palavra e no ensino”.
O termo traduzido honorários também significa honra. Porém, o verso seguinte mostra que o sentido correto do texto é o de remuneração material. 1ª a Timóteo 5:18 afirma: “Pois a Escritura declara: Não amordaces o boi, quando pisa o grão. E ainda: O trabalhador é digno do seu salário”. A palavra pois indica que o que se segue está relacionado ao que antes foi dito. É a justificativa e o fundamento do versículo anterior. Portanto, em conjunto, os dois versos nos comunicam que os presbíteros devem receber honorários, como o boi recebe alimento, e o trabalhador, salário.
O boi não se alimenta de honra, e o trabalhador não é pago com palavras. Do mesmo modo, o presbítero recebe honorários, além de honra.Verdade é que o boi não deve receber comida a ponto de engordar, pois isso diminuirá sua capacidade de trabalho. O obreiro tampouco necessita de um salário que o enriqueça ou o presbítero, de honorários muito elevados. Nos três casos, os proventos devem bastar para o sustento digno.
Já dos diáconos não se diz o mesmo. A impressão que se tem é de que não eram ou, ao menos, não eram sempre remunerados. Mas não há uma proibição de que isso aconteça. Tudo deve depender da quantidade de trabalho envolvida e, é claro, da livre vontade da igreja ede seus trabalhadores.
Não nos podemos esquecer de que, embora constituídas por gentios e judeus, as igrejas do primeiro século haviam saído da sinagoga judaica. Por isso, não raro, imitavam-lhe as práticas. O ensino mencionado no versículo 17, por exemplo, é comparável ao que era ministrado sobre as Escrituras, aos sábados, nas sinagogas (Mc 6:2). E a “palavra” era o equivalente das pregações (discursos) com objetivo de exortação que se faziam no mesmo local (At 13:15). Portanto, os presbíteros podem bem equivaler aos presidentes, e os diáconos, aos assistentes das sinagogas.
Os presbíteros e diáconos são líderes e autoridades na igreja? Sim, mas estritamente nas tarefas que exercem. O presbítero preside, com autoridade, as reuniões públicas da igreja, e os diáconos possuem autoridade para auxiliá-los em tudo o que for necessário a esse mister. Porém, não devem exercer ascendência em outros assuntos. Eles não possuem autoridade judiciária, administrativa ou mesmo espiritual sobre as famílias cristãs. Sua ascendência sobre as finanças e assuntos administrativos da igreja também depende de delegação dela. É o que se depreende do Novo Testamento. Quando repreendeu os coríntios por litigarem nas cortes romanas, por exemplo, Paulo lhes disse: “Não há, porventura, nem ao menos um sábio entre vós, que possa julgar no meio da irmandade?” (1 Co 6:5). Não disse “um presbítero”, mas “um sábio”. E, quando julgou o praticante de incesto da mesma cidade, o apóstolo decidiu “que o autor de tal infâmia seja, em nome do Senhor Jesus, reunidos vós e o meu espírito, com o poder de Jesus, nosso Senhor, entregue a Satanás para a destruição da carne” (1 Co 5:3-5). Não disse “reunidos os presbíteros e o meu espírito”, mas “vós [a igreja] e o meu espírito”. Jesus tampouco ordenou que, após termos advertido o pecador impenitente, o disséssemos a um ou dois presbíteros, mas a “uma ou duas pessoas” e depois “à igreja” (Mt 18:16-17). Tudo indica que a autoridade de julgar e a de exercer autoridade em outros assuntos não estava investida nos presbíteros, mas apenas a de presidir o culto (no sentido amplo do termo).
Graças ao cuidado de Lucas, somos capazes de entender, com certa precisão, as relações entre a sinagoga e a igreja cristã. Aquela possuía seus chefes ou principais, que presidiam as atividades ali desenvolvidas. É o que Lucas 8:41 nos informa: “Veio [a Jesus] um homem chamado Jairo, que era chefe da sinagoga” (Lc 8:41). Atos 13:15 confirma: “Depois da leitura da lei e dos profetas, os chefes da sinagoga mandaram dizer-lhes: Irmãos, se tendes alguma palavra de exortação para o povo, dizei-a”. Esses chefes, por sua vez, possuíam assistentes, como se vê na passagem em que Jesus ministra em Nazaré: “Tendo fechado o livro, devolveu-o ao assistente e sentou-se; e todos na sinagoga tinham os olhos fitos nele” (Lc 4:20).
Ou os presbíteros e os diáconos da igreja primitiva assumiram funções semelhantes às dos chefes e seus auxiliares, na sinagoga, por pura coincidência, ou a sua constituição inspirou-se no que ocorria entre os judeus. Claro que as funções judaicas foram modificadas, ao serem utilizadas pelos cristãos. O nome presbítero já o demonstra. Ao adotá-lo, os cristãos evitaram reforçar a proeminência exterior que os chefes das sinagogas possuíam. Preferiram assentar a liderança dos presbíteros na experiência de vida. Por isso os denominaram anciãos. Como anciãos, os presbíteros presidiam o culto da igreja, com base na sua capacidade de aconselhar e orientar os mais novos. No entanto, os paralelos entre a sinagoga e a igreja permanecem inegáveis.
Em resumo, os primeiros cristãos não se limitaram a atribuir o ministério particular aos presbíteros e diáconos. Com ênfase ainda maior, atribuíram também o universal a todos os membros da igreja. E, como no Antigo Testamento, os profetas tinham sido os representantes principais desse último sacerdócio, na igreja primitiva vemos um Pedro, um João, um Paulo, um Tiago desempenharem exatamente a mesma função. Os apóstolos foram profetas especiais, que receberam a palavra direta do Filho de Deus encarnado, por um longo tempo, e a proclamaram. Por isso, a palavra procedente deles, embora conservada por outros e apenas depois escrita, tem a mesma autoridade do restante das Sagradas Escrituras.
A própria Bíblia, aliás, é um produto do sacerdócio universal, muito mais que do ministério particular. Nela, há poucas palavras de sacerdotes levitas. Quase tudo o que foi registrado é ou decorre da palavra profética. Vale lembrar o testemunho de Flávio Josefo de que os judeus continuaram a registrar os seus acontecimentos, depois do período narrado no Antigo Testamento, isto é, “de Artaxerxes [século IV a. C.] até os nossos dias [século I d. C.], mas como não se teve, como antes, uma sequência de profetas não se lhes dá o mesmo crédito” (JOSEFO, Flávio. Resposta de Flávio Josefo a Ápio. Livro Primeiro, Cap. 2. In História dos Hebreus – obra completa. 5ª ed., Rio de Janeiro, 1999. p. 712). Faltando profetas, faltam as próprias Escrituras.
Não pode ser diferente, em princípio, no tempo atual. A presidência do culto cristão compete aos presbíteros, aos quais os diáconos prestam apoio. Assim se desempenha o ministério particular. Já o ministério da palavra, em sentido amplo, tanto no culto como fora dele, é exercido mediante o sacerdócio universal, pelos profetas e por todo o povo.
Não podemos esquecer as palavras de Moisés a Josué, quando este lhe disse para proibir que Eldade e Medade profetizassem: “Tens tu ciúme por mim? Oxalá todo o povo do Senhor fosse profeta, que o Senhor lhes desse o seu Espírito!” (Nm 11:26-29). Séculos depois, Joel afirmou que isso não continuaria a ser apenas um desejo: “Acontecerá que derramarei o meu Espírito sobre toda a carne; vossos filhos e vossas filhas profetizarão, vossos velhos sonharão, e vossos jovens terão visões” (Jl 2:28).
Tudo isso ocorreu, como bem temos conhecimento. O povo de Deus se tornou profeta, quando o Espírito de Cristo foi derramado sobre ele, no grande dia de Pentecoste. Mesmo assim, continuam a existir profetas fortes e fracos, muito experimentados e menos experientes. Os fortes devem corresponder aos filhos, e os fracos, às filhas a que Joel se referiu. Os experientes talvez sejam os velhos, e os inexperientes, os jovens da profecia. O que bem mostra que continuam a existir nuanças no ministério profético, como em todos os tempos.
Vemos que os dois sacerdócios estão tão presentes no tempo atual quanto no Antigo Testamento. E, então, que lugar resta aos leigos? Na igreja, nenhum. Nela, só há sacerdotes universais. Lutero negou, a meu ver com todo direito, que os presbíteros e diáconos do Novo Testamento sejam sacerdotes no sentido bíblico.
Para encontrar verdadeiros leigos, será preciso transpor os limites da igreja. Verdade é que há cristãos que não receberam as ordens (clericais). Mas não os podemos denominar leigos, pois isso viola o princípio de que todos, na igreja, receberam o depósito da palavra e têm a incumbência de proclamá-la.
Para encontrar verdadeiros leigos, será preciso transpor os limites da igreja. Verdade é que há cristãos que não receberam as ordens (clericais). Mas não os podemos denominar leigos, pois isso viola o princípio de que todos, na igreja, receberam o depósito da palavra e têm a incumbência de proclamá-la.
Jesus referiu-se a isso, na parábola dos talentos. Disse que um senhor deu cinco talentos a um servo, a outro deu dois e a outro, um. Em seguida, partiu para um lugar distante. O servo que recebeu cinco foi logo negociar e ganhou outros cinco. O que recebeu dois fez o mesmo e obteve outros dois. Porém, o que tinha só um talento escondeu-o numa cova. Quando o senhor voltou, os dois primeiros servos foram recompensados pelo seu procedimento. O que tinha um talento, então, o desenterrou e disse ao senhor: “Aqui tens o que é teu”. Mas o senhor mandou que o talento desse homem fosse dado ao que tinha dez.
Talentos são medidas da palavra de Deus, que Cristo nos concedeu. Todos somos sacerdotes, porém uns de nós multiplicam o depósito que lhes foi confiado, outros não. Todos somos sacerdotes, mas uns exercem a sua função convenientemente, outros não. O modo de ser fiel é multiplicar a palavra, é fazer avançar a revelação, por meio dela própria. É multiplicar os talentos.
Sob forte impressão desse ensino, há mais de vinte anos, apontei a importância de desenvolvermos (e não apenas possuirmos) o sacerdócio universal. Escrevi: “Sacerdócio universal é aquele em que cada cristão é um ministro, portanto exerce o seu ministério em alguma medida. Sacerdócio integral é aquele no qual cada um exerce o seu ministério sem entraves e de maneira plena” (Um sonho de comunhão. Cap. 2, item 4. www.lobaomorais.blogspot.com.br, novembro/2011). Seria o mesmo ter dito que o sacerdócio integral é aquele em que os talentos são multiplicados. A palavra de Deus não é estanque. Ela se expande incessantemente e o faz por nosso intermédio.
É um erro esperar que a parte maior da expansão da palavra virá do ministério particular dos presbíteros e dos diáconos. Não haverá de ser assim. Do modo como, no Antigo Testamento, a palavra de Deus que veio a compor as Escrituras não procedeu dos levitas, nem dos maiorais das sinagogas, mas dos profetas, no tempo atual a multiplicação dos talentos cabe a cada um de nós. Ela será levada a efeito pelos que mais a buscarem.
No entanto, aos levitas eram atribuídos os dízimos, não aos profetas. Que cabia a estes como sustento? E aos profetas de hoje? De que parte hão de extrair a sua subsistência, se ministram a palavra de Deus e não recebem dízimos? O vento a trará? O vento do Espírito, sim. Porém, Paulo acrescenta, e é significativo que o faça aos presbíteros de Éfeso: “De ninguém cobicei prata, nem ouro, nem vestes; vós mesmos sabeis que estas mãos serviram para o que me era necessário a mim e aos que estavam comigo” (At 20:33-34).
Essa é a base econômica do estado do sacerdócio universal. “Sabeis também vós, ó filipenses, que no início do evangelho, quando parti da Macedônia, nenhuma igreja se associou comigo, no tocante a dar e receber, senão unicamente vós outros; porque até para Tessalônica mandates não somente uma vez, mas duas, o bastante para as minhas necessidades. Não que eu procure o donativo, mas o que me interessa é o fruto que aumente o vosso crédito. Recebi tudo, e tenho abundância; estou suprido, desde que Epafrodito me passou às mãos o que me veio de vossa parte, como aroma suave, como sacrifício aceitável e aprazível a Deus” (Fp 4:15-18).
É quase inacreditável que um homem sobre a Terra, após ter levado o mais rico tesouro ao mundo, em seu tempo, com todos os riscos pensáveis, haja pronunciado essas palavras e vivido esse desprendimento. A declaração de Paulo nos faz pensar se a Deus aprouve retirar meios materiais aos ministros que mais têm talentos, para que mourejem dobrado a fim de ganhar uns e outros. A fim de que a honra e não só o honorário seja, ao final, merecida por não sei quanto labor!
APÓSTOLOS E OUTROS LÍDERES
Em João 13:16, Jesus afirmou: “Em verdade, em verdade vos digo que o servo não é maior do que seu senhor, nem o enviado maior do que aquele que o enviou”. No texto original, “o enviado” é apóstolos, palavra empregada para indicar qualquer emissário ou pessoa comissionada para tratar assuntos com outrem. É comum o apóstolo ser mencionado ao lado do profeta, em outras passagens bíblicas (Ef 2:20; 3:5; 1 Co 12:28-29). A comparação entre eles parece indicar que o primeiro leva às pessoas uma palavra já proclamada anteriormente, enquanto o profeta leva uma palavra nova.
No Novo Testamento, o papel dos primeiros apóstolos é enfatizado não apenas por terem ensinado doutrinas espirituais, mas por se terem tornado depositários das maiores revelações de Deus ao homem, a saber: as que foram dadas por intermédio de Jesus Cristo. A escolha da palavra apóstolos, em vez de profetas (termo muito mais utilizado na época), deve-se ao fato de eles não terem sido o instrumento ou canal primário da revelação que anunciaram, como no caso dos profetas. Pelo contrário, os apóstolos foram enviados do porta-voz primário, pelo qual a revelação veio ao mundo.
Hebreus 1:1-2 esclarecem quem foi esse porta-voz primário de Deus do qual os apóstolos se tornaram enviados: “Havendo Deus, outrora, falado muitas vezes, e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, nestes últimos dias nos falou pelo Filho” (Hb 1:1-2). De um lado, estão todos os profetas; de outro, apenas o Filho de Deus. Coube aos apóstolos transmitir e explicar as palavras do Filho Unigênito ao mundo.
Flávio Josefo esclarece que o Antigo Testamento foi constituído por meio dos profetas: “Temos somente vinte e dois livros [os nossos 39 compactados em 22] que compreendem tudo o que se passou [...] até o reinado de Artaxerxes, filho de Xerxes, rei dos persas [...] Escreveu-se também tudo o que se passou desde Artaxerxes até os nossos dias, mas como não se teve, como antes, uma sequência de profetas não se lhes dá o mesmo crédito” (JOSEFO, Flávio. Resposta de Flávio Josefo a Ápio. Livro Primeiro, Cap. 2. In História dos Hebreus – obra completa. 5ª ed., Rio de Janeiro, 1999. p. 712).
De acordo com o historiador, a formação das Escrituras sempre dependeu da sucessão dos profetas, ou seja, da recepção das palavras de antigos servos de Deus por outros posteriores, e da adição de novos oráculos a elas, de modo a compor uma mensagem orgânica. Não é preciso acrescentar que essa mensagem são as Sagradas Escrituras.
Mas se a função dos antigos profetas foi constituir a sucessão pela qual as Escrituras foram compostas, a dos profetas de hoje não pode consistir em romper essa sucessão ou em substituir as Escrituras por novas palavras. Nenhum profeta está proibido de trazer novas palavras de Deus, mas é preciso que o faça em conformidade com as Escrituras: “Se alguém fala, fale de acordo com os oráculos de Deus” (1 Pe 4:11). Portanto, o trabalho do profeta atual consiste em completar a interpretação da Bíblia, muito mais do que em apresentar revelações novas. Da mesma forma, o trabalho do apóstolo é levar as palavras de Cristo às pessoas de hoje.
Em A vida normal da igreja cristã (disponível em www.tochrist.org), Watchman Nee recorda que os apóstolos podem ser agrupados em duas categorias: os que foram constituídos diretamente por Cristo e os que foram designados pelo Espírito Santo. Entre os últimos, contam-se Barnabé e Saulo, como Atos 13:1-2 claramente mostra: “Havia na igreja de Antioquia profetas e mestres [...] Disse o Espírito Santo [a eles]: Separai-me, agora, a Barnabé e a Saulo, para a obra a que os tenho chamado”.
Nee enfatiza que Barnabé e Saulo foram separados pelos profetas e mestres de Antioquia. Isso é obviamente correto. Porém, gostaria de chamar a atenção para a frase do versículo 2: “Disse o Espírito Santo”. Ela corresponde à expressão “Assim diz o Senhor”, muito comum no Antigo Testamento. Ambas introduzem oráculos proféticos. Portanto, devemos concluir que aquilo que o Espírito Santo disse foi uma palavra profética e que a designação dos apóstolos se deu por meio do ofício deles (profetas) e não pelo dos mestres. Pelo menos é o que me parece expresso na passagem de Atos.
Os versículos citados subordinam o ofício apostólico ao profético não apenas no tocante ao conteúdo (a entrega de uma revelação), mas também quanto à gênese. O apostolado origina-se do ofício profético, com uma peculiaridade: ele tem a função de completar a palavra formada durante a sucessão de profetas. O texto original de Colossenses 1:25 afirma que Paulo se tornou “ministro de acordo com a dispensação da parte de Deus, que me foi confiada a vosso favor, para completar [plerosai] a palavra de Deus”. Por ter a incumbência de completar a palavra divina, o apóstolo é um tipo especial de profeta, que não traz revelação nova, mas consuma a que já existe.
No Novo Testamento, o preenchimento dos ofícios da igreja ocorre por inspiração de Deus, que elege os apóstolos, presbíteros, diáconos e todos os outros líderes. Porém, a escolha de Deus manifesta-se por meio da intervenção humana. Em Atos 6:3,6, os apóstolos disseram: “Irmãos, escolhei dentre vós sete homens de boa reputação, cheios do Espírito Santo e de sabedoria, aos quais encarregaremos deste serviço [...] Apresentaram-nos perante os apóstolos, e estes, orando, lhes impuseram as mãos”. Vê-se que os instrumentos humanos da designação dos primeiros diáconos foram a assembleia de crentes e os apóstolos. Atos 14:23 deve ser interpretado no mesmo sentido.
Importam-nos os princípios, mais do que a forma seguida nessas designações. Todo princípio bíblico constitui-se, quando vários exemplos apontam para o mesmo fato, sem contradições ou oposições. Portanto, o princípio é a densificação de uma revelação, por reafirmações que a tornam aplicável a um grande número de situações. Como a designação de líderes locais sempre ocorre por meio dos titulares de ofícios supralocais, temos aí um princípio. E ao princípio bíblico deve-se obediência, embora não à forma de que se reveste, como a investidura por imposição de mãos.
Generalizando um pouco mais, o preenchimento dos ofícios bíblicos obedece a dois princípios: Deus sempre escolhe as pessoas que o irão exercer por meio da intervenção humana, e esta consiste em manifestações da comunidade ou de líderes. Quando os ofícios a serem preenchidos são locais, os líderes que realizam a designação são apóstolos. Quando os ofícios são supralocais, a designação ora é feita por outros líderes supralocais, como Níger, Lúcio e Manaém no caso de Atos 13:1-2, ora se realiza sem intervenção de pessoa alguma. Porém, em ambos os casos, a escolha ou a aceitação dos líderes pelas igrejas é indispensável para que a designação se complete.
Nas passagens do Novo Testamento que mostram a designação de um líder supralocal por outro, como Saulo e Barnabé por Níger, Lúcio e Manaém, ou Timóteo por Paulo, o ato pode criar um vínculo permanente de subordinação entre o designado e quem o designa. É o que Watchman Nee mostra, com muitos exemplos, no controvertido livro Autoridade e submissão (São Paulo: Árvore da Vida, 1991) e também em Autoridade espiritual (São Paulo: Vida, 1987). Embora as afirmações dessas obras sejam, aqui e ali, moderadas por frases complementares com sentido levemente contrário, o significado geral dos textos é de que os ofícios bíblicos conferem autoridade a quem os exerce, o que importa a necessidade de submissão dos demais a eles. Por esse motivo, embora diferencie a submissão da obediência, é certo que Nee amplia excessivamente o alcance da autoridade delegada.
Darei alguns exemplos dessa hipertrofia. Ninguém duvidará de que as palavras dos profetas interessam a todos os cristãos do mundo e que, por isso, eles são líderes supralocais. O mesmo se aplica aos evangelistas e aos mestres, além dos apóstolos. Na época do Novo Testamento, a função de mestre pressupunha discípulos, como hoje a de professor pressupõe alunos. No entanto, o Novo Testamento retira todo destaque da relação discípulo-mestre, no interior da igreja. Ele quase não menciona discípulos de mestres cristãos. Tiago chega a dissuadir os crentes da ideia de se tornarem mestres (Tg 3:1). É como se a ordem do atual Testamento desse realização integral àquele verso de Isaías: "Todos os teus filhos serão ensinados do Senhor" (Is 54:13). Numa tradução mais literal, o texto afirma que todos "serão discípulos de Iahweh".
Não se acende uma lâmpada em praça pública, ao meio-dia. Depois de Jesus ter ensinado, o brilho da sua doutrina ofusca o de todos os outros mestres. Por isso, a relação discípulo-mestre continua a existir, mas é enfraquecida na igreja. Cabe, pois, a pergunta: onde se encontra a radical autoridade do mestre cristão no quadro do Novo Testamento? Se a doutrina da autoridade delegada de Nee está certa, o mestre deve ter ampla ascendência sobre seus discípulos. Estes devem submeter-se a ele, de modo absoluto. No entanto, os mestres citados no Novo Testamento não concentram muita autoridade, pelo contrário. E se um ofício bíblico não comporta radicalização de autoridade, os outros tampouco o podem fazer.
Sabemos que, além de mestre, Jesus também foi apóstolo, profeta, evangelista e pastor. Diante do seu desempenho dessas funções, onde vai parar o nosso? Pensemos a fundo nessa pergunta e esvaziemo-nos de toda pretensão desmedida, risível. No Novo Testamento, os líderes supralocais designados por outros devem submissão e obediência voluntárias, não obrigatórias, a eles. Une-os algo semelhante a um voto, a uma deliberação que se toma livremente, mas que se pode também não tomar.
Nesse sentido, Lucas afirma que ele e seus companheiros foram para Assôs, “onde devíamos receber a Paulo, porque assim nos fora determinado” (At 20:13), e o autor da Epístola a Tito declara: “deixei-te em Creta para que pusesses em ordem as cousas restantes, bem como, em cada cidade, constituísses presbíteros, conforme te prescrevi” (Tt 1:5). Paulo ordenava essas coisas, pois os seus cooperadores submetiam-se voluntariamente a ele.
Assim era com os líderes designados por outros líderes. Porém, na maioria das vezes, as dignidades supralocais, como apóstolos e profetas, sequer eram designadas por outras pessoas. Os Doze foram escolhidos por Cristo e por mais ninguém. Paulo “não consultou carne e sangue”, quando aprouve a Deus revelar seu Filho nele (Gl 1:16). Quanto aos demais apóstolos, profetas, evangelistas e mestres, simplesmente não há informação, no Novo Testamento, de que tenham sido designados por intervenção humana. Não podemos presumir que o foram, apenas para fechar o arcabouço de um sistema de autoridade que nos interesse ou favoreça igrejas e ministérios já implantados.
A igreja é, sem dúvida, um exército, mas um exército de voluntários. Nela, há apóstolos e profetas até o dia de hoje, por uma bastante razão: porque necessitamos deles, e Deus não deixa essa necessidade desatendida. Não importa se os denominamos apóstolos e profetas ou missionários e pregadores. Se a igreja não possuísse pessoas como essas, de que outro modo os cristãos seriam ajudados, quando as pessoas ao seu redor não lhes pudessem estender a mão ou os membros da sua comunidade local não lhes comunicasem ajuda? Deixaria Deus essas necessidades sem suprimento? Penso que não. Porém, nada disso importa a investidura de autoridade radical em alguém.
“Não sereis chamados mestres, porque um só é vosso Mestre, e vós todos sois irmãos. A ninguém sobre a terra chameis vosso pai; porque só um é vosso Pai, aquele que está no céu. Nem sereis chamados guias, porque um só é vosso Guia, o Cristo. Mas o maior dentre vós será vosso servo” (Mt 23:8-11). A consequência dessas palavras não falha: “quem a si mesmo se exaltar, será humilhado; e quem a si mesmo se humilhar será exaltado” (Mt 23:12).
LIBERDADE E SERVIDÃO
Ernst Troeltsch defendeu a ideia de que Lutero foi um homem da Idade Média. E, em vários assuntos, ele de fato o foi. Ninguém muda um tempo em todos os seus aspectos relevantes, nem se engaja de modo integral no que é novo. Pensar o contrário é alimentar ilusões e exigir das personagens revolucionárias um vanguardismo sobre-humano.
Mas, apesar de seu manifesto interesse pela Teologia, Troeltsch talvez a tenha visto pelo reduzido ângulo de observação em que o nosso tempo a contempla, pois não restam dúvidas de que, no aspecto central da sua obra (o teológico), Lutero pertence à Modernidade e pode ser arrolado como um dos seus fundadores. Para isso não ser verdade, seria necessário que Lutero não houvesse sido decisivo para revolução teológica alguma, o que certamente não é o caso. Às vezes, embaça a vista o fato de o Protestantismo que o seguiu ter negado ensinos fundamentais de seu fundador, como o livre exame e o sacerdócio universal, mas a responsabilidade pela negação deve ser debitada aos seus pósteros e aos herdeiros de Lutero, muito mais do que a ele próprio.
Em suma, numa visão afoita, pode parecer que, desde o princípio, o Protestantismo foi autoritário e fundamentalista, porém, com maior sobriedade, é possível separar Lutero (Melanchton, Zuínglio, Calvino e outros) e seus continuadores. Claro que, em questões como a Revolta Camponesa, Lutero adotou posições autoritárias, o que se debita à sua herança medieval, embora não seja fácil discernir se o fez por um ranço arcaico ou por entrever, nas arruaças dos revoltosos, práticas incompatíveis com a estabilidade não apenas da ordem posta, mas de toda a sociedade da época, o que seria diferente e tornaria a sua posição mais compreensível.
O que está claro é que Lutero foi, antes de tudo, um libertário, um apaixonado pela liberdade, cuja vida não coube no status quo religioso. A esse amor ele aliou um traço de intrepidez incomum, no homem médio, de ontem e de hoje, o que por si só explica boa parte dos acontecimentos que o envolveram. Claro que sempre haverá quem discorde disso. Estamos no território movediço das interpretações. Mas, quando olhamos Lutero de dentro para fora e não apenas a partir de fora, seu amor à liberdade e intrepidez ganham grande relevo e explicam, sim, boa parte dos fatos em que se envolveu.
Como todos os racionais, libertários também sabem em quantas ocasiões precisam contemporizar e fazer ceder seu amor à liberdade. Sabem que não são onipotentes e precisam recuar, aqui e ali. Mas não peçam a um libertário que acomode o pescoço ao jugo. Ele preferirá morrer a fazê-lo.
Esse tipo foi Lutero. Ele entendeu que uma libra era diferente demais de uma liberdade. Por isso, ao perceber que o preço cobrado por Tetzel, o vendedor de indulgências à sua região, não se calculava em libras, mas em liberdades, revoltou-se. Na ocasião, ceder pareceu-lhe o mesmo que depositar docilmente o pescoço num jugo, o que se pede e obtém de muitos, não porém de um libertário. O resto já o sabemos. Sabemos o que sucedeu em seguida. Mas tendemos a perder de vista que tudo teve relação com o sentimento indômito de liberdade de Lutero.
A liberdade é, quase sempre, aguda nos poetas. Pergunto-me se o próprio verso não é uma forma criada e escolhida para permitir a vazão desse sentimento e dos outros, cujos grilhões ele rompe. E se o desacorrentamento do amor, da amizade, do protesto, da contestação, do repúdio, da ira, da generosidade etc. não é obra da liberdade. Desconfio que sim e que, se a forma perfeita para isso, não é o verso, é por certo a poesia. A liberdade que não se ajusta ao verso assimila-se à poesia. Nela e somente nela, esse sentimento desacorrenta os demais, seus irmãos. Liberta o amor, o descontentamento, o arrebatamento, a sublimação, entre tantos. Em verso ou em prosa, toda poesia é de fato libertária, e só uma inversão muito grande pode pô-la a serviço de uma dominação.
Claro que a liberdade encontra temperamentos tíbios e destemidos. É por ambos servida, mas muito melhor pelos últimos. A conjugação da liberdade com a intrepidez, mais que as ideias que elas servem juntas, é quase sempre o que deflagra as genuínas revoluções. Foi assim também na Reforma e, exemplarmente, no caso de Martinho Lutero, que foi um genuíno poeta da Teologia. Da conjugação de sentimentos reunidos em Lutero, não explodiu uma obra típica da Idade Média, mas algo nunca antes visto.
Afirmar que as ideias teológicas foram a causa da Reforma é errar grosseiramente. Os sentimentos o foram, liderados pela liberdade, que foi indômita o bastante para não ser esmagada e conduzir a uma autêntica emancipação. No entanto, embora costume reger outros sentimentos, a liberdade liga-se mais umbilicalmente a alguns que a fazem ser liberdade disso ou daquilo. Por exemplo, liberdade de tomar parte numa decisão, de se locomover, de plantar, de colher, de comprar, de vender, de acumular, de fazer e de se abster de fazer, de se associar e se desassociar, de falar e calar. Liberdade de crer, de pensar, de amar e de detestar. Todas essas liberdades emanam da especial associação a outros valores.
A liberdade que moveu Lutero, de modo primordial, não foi a de crer, mas a de amar. Amar a verdade cristã, e só por isso crer nela. Se tiver sido o poeta que penso que foi, o artista que escreveu em prosa, mas também compôs versos, Lutero terá sido um poeta lírico. Quando exaltado, o sentimento de liberdade que move um poeta de tal estirpe tende à iconoclastia. Com abalo, ele sente que nenhum ídolo é a verdade da coisa que retrata, mas a sua aparência. É um simulacro que, amado, escraviza e impede o espírito de alcançar aquele objeto. Ao impor a perda da verdade, portanto, o ídolo agride o sentimento de liberdade do poeta e desperta a iconoclastia. Que dizer do poeta teológico!
Elias não foi movido por outro sentimento, ao combater o culto a Baal. Nem João Batista, ao renunciar ao sacerdócio hereditário para vociferar no deserto contra os pecados do povo. Embora o primeiro tenha subvertido um culto pagão, o último alterou uma instituição considerada santa. No fundo, os dois removeram simulacros. Lutero também rachou um ídolo que, como o de João, tinha aparência santa, mas não real santidade: as obras do esforço humano. E o fez porque elas anulam a suficiência da fé para a salvação. Como a fé pode ser suficiente para garantir a graça de Deus, se as obras são consideradas necessárias para a salvação? Se por meio da indulgência o indivíduo pode ser salvo do purgatório ou mesmo do inferno?
O sola fide nunca significou que o indivíduo é salvo pela fé, mas só pela fé. Na época de Lutero, significou, especialmente, que ele era salvo sem indulgências, esmolas, sem a aparência de que o sacramento se reveste e sem a própria Igreja hierárquica.
O sola fide é, pois, um grito de liberdade, um ato iconoclasta. Só deixa de o ser quando o apelo à fé, que é comoção com a verdade, passa a ser um apelo à sua aparência (ao consentimento a um credo ou a uma disciplina). Isso ocorreu, muitas vezes, na esteira da Reforma Protestante.
Na encíclica Libertas, o Papa Leão XIII exprimiu o conceito católico de liberdade, em conexão com a lei natural entendida como expressão da razão. Nas suas palavras: “Todo ser é o que lhe convém segundo a natureza. Por isso quando se move segundo a razão, é por um movimento próprio que ele se move, e opera por si mesmo, o que é a essência da liberdade; mas, quando peca, procede contra a razão, e então é como se fosse posto em movimento por um outro e sujeito a uma dominação estranha. É por isto que “aquele que comete pecado é escravo do pecado” (LEÃO XIII. Libertas. Disponível em www.vatican.org).
A Reforma, enquanto movimento desenvolvido até o meado do século XVI, aproximadamente, sempre foi incompatível com essa ideia católica de liberdade, derivada da Suma teológica de São Tomás de Aquino. No claustro de um mosteiro agostiniano que seguia a filosofia de Ockham e não a de Tomás, é que ela foi concebida. Por isso, foi, desde o início, uma mescla de ideias de Ockham e de Agostinho. Do primeiro, extraiu o conceito de um Deus que se move por uma vontade soberana, não pela razão. Por exemplo, para Guilherme de Ockham, Deus não criou o Universo em conformidade com uma razão necessária, mas de acordo com a sua vontade. Tampouco o criou com base na lei eterna ou na natural.
O sola fide não deixa de ser expressão dessa concepção geral de Deus. Por que Deus salva por fé e não por obras? Porque assim deliberou fazer. E por que a salvação é efeito de uma predestinação? Porque não se atém ao mérito da pessoa ou mesmo à sua fé, mas ao decreto soberano de Deus. Esse decreto é expressão da vontade divina, não da sua razão. Claro que tal doutrina não surge, em Lutero ou nos outros reformadores, diretamente de Ockham, sem mediação de Santo Agostinho. Realização peculiar da Reforma foi, exatamente, essa mediação, que nem Lutero, nem Calvino, nem outros receberam pronta.
O mais importante, na doutrina assim concebida, é a ideia de liberdade que lhe subjaz e que deu vazão ordenada ao sentimento indômito já mencionado. Essa ideia surgiu da forja do occkhamismo medieval. Por isso, em todos os passos decisivos, não se reportou a uma razão natural ou abstrata, mas à vontade soberana de Deus.
Como a Reforma a concebeu, tal vontade não é o que costumamos chamar arbítrio, antes resulta da natureza divina, que é amor e não tem na razão sua fonte, mas uma forma de expressão. O próprio decreto de predestinação de Deus, como Efésios 1:5 nos diz, não se originou da razão, mas do bom-prazer ou beneplácito de Deus. Ou acaso esse verso afirma que Deus “nos predestinou para ele, para a adoção de filhos, por meio de Jesus Cristo, segundo a sua reta razão?" Não diz, antes, “segundo o seu beneplácito”?
Se admitirmos que a compreensão da graça, por Santo Agostinho, nada mais é que a afirmação da doutrina bíblica da salvação ou a que mais se aproxima dela, não será difícil percebermos a alta inspiração por trás de sua associação ao occkhamismo, forjada por alguns reformadores. A fundação do cristianismo na liberdade ligada à razão é, ao contrário, um forte motivo para tornar a fé acessória. Que tem a fé de racional? Alguma coisa, por certo, mas não muito. Do contrário, não seria fé. E, se não tem muito de racional, a fé não se pode calcar na razão de Deus, mas na sua vontade, desígnio e predestinação.
A doutrina católica da liberdade, porém, tem na razão seu parâmetro. Mas que é a razão, para os católicos, a não ser o ensinamento da Igreja a respeito dela? Para serem conhecidas, a razão e a lei natural têm de ser decretadas, sob pena de os homens não serem capazes de as descobrir ou de concordar a respeito delas. O que está na natureza do homem, quando muito, é uma razão abstrata, que não tem conteúdo concreto, nem aplicação prática. O que passa disso tem de ser decretado para se tornar universal. No caso da lei natural e da razão em que se baseia, como não estão esclarecidas na Bíblia, quem as decreta é a Igreja.
Pode ser que, do alto de sua inspiração, Leão não tenha pretendido retirar da sua doutrina da liberdade essa consequência extrema. Talvez tenha sido sua intenção manter o conhecimento da lei natural difuso nos órgãos da Igreja, porém, na prática, as coisas jamais funcionaram assim. Para serem conhecidas, a razão e a lei natural têm de ser decretadas, sob pena de os homens não serem capazes de as descobrir ou de concordar a respeito delas. O que está na natureza do homem, quando muito, é uma razão abstrata, que não tem conteúdo concreto, nem aplicação prática. O que passa disso tem de ser decretado para se tornar universal. O problema é que, ao ser assim centralizada, a doutrina católica tende a se converter, simplesmente, em servidão à Igreja.
Não é diferente no meio protestante atual, em que, a despeito do discurso sobre o livre exame, a doutrina sempre converge para os Credos oficiais. Que seria do pobre crente, na sua denominação, se dissesse como Aristóteles: “Amicus Plato, sed magis amica veritas” (“Platão é amigo; mas amiga maior é a verdade”)? Se dissesse que “o Credo é amigo, mas maior amiga é a Bíblia”, com o objetivo de seguir uma interpretação contrária ao Credo? Não seria ele constrangido, pelos mais diferentes métodos, a conformar-se à profissão de fé da sua Igreja? Não seria, essa prática, uma nova forma do primado da razão conformadora? E não haveria, em tal caso, servidão ao Credo?
O problema é que essas duas concepções de liberdade, a católica e a protestante tardia, que se seguiu aos reformadores, não correspondem à liberdade bíblica. Ambas estão ancoradas na razão ditada por uma Igreja. No caso dos católicos, a situação é menos grave, pois eles creem na inspiração divina da Tradição e da Bíblia. Não há, pois, contradição entre a sua crença e a afirmação eclesiástica da recta ratio e da lei natural. Mas os protestantes não admitem tais coisas. Caem, pois, em contradição quando elevam as interpretações de suas Igrejas ao patamar da própria Bíblia.
Perguntamos, enfim, se a liberdade cristã, como vivida hoje, é de fato liberdade ou servidão. Achamos nesse um dilema formidável, que explica a contrarrevolução atual dos não crentes, que não enxergam liberdade no que é tão uniforme, tão padronizado, nas nossas Igrejas. E não conseguem, consequentemente, aceitar um evangelho que produza esse resultado. Por um lado, não chegam a ver a liberdade bíblica, por outro não aceitam a sua contrafação. E a nós, não nos cabe perguntar se trocamos a liberdade revelada por uma imitação?
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