Leonardo Boff brindou-nos ontem com o significativo artigo “A igreja-instituição como casta meretriz”, publicado em seu blog (http://leonardoboff.wordpress.com/2013/02/23/a-igreja-instituicao-com o-casta-meretriz). No texto, Boff relê a história em tal profundidade e debruça-se sobre interpretações de alcance tão vasto, sobre o papel da Igreja Católica, que nos vemos convidados a suspender outros pensamentos, a parar diante do artigo e a meditar sobre cada uma das suas ponderações.
Ele parte das notícias publicadas nos jornais italianos, na semana passada, sobre o relatório de 300 páginas elaborado por três cardeais, a pedido do Papa. Como se tornou conhecido, o longo documento descreve a luta de monsignori pelo poder, no interior do Vaticano, o funcionamento de uma rede de homossexualismo gay a serviço das cúpulas eclesiásticas e desvios de dinheiro do Banco do Vaticano. Isso vem-se somar aos casos de pedofilia envolvendo padres, que foram comprovados em todo o mundo. Como se percebe, é mais que o suficiente para desmoralizar e até para desintegrar instituições bastante sólidas. Mas que dizer, se isso é descoberto no interior da mais antiga de todas as instituições do Ocidente? E que dizer se se constata que o Papa renunciou, pouco após ter lido tal relatório? Nisso reside o interesse pelo texto dos cardeais e a sua conexão com o Papado.
Boff não se limita a mencionar os graves erros que, de novo, perturbam o Vaticano. Percorre, em rápido voo, a História da Igreja de Roma para apontar práticas semelhantes às que o relatório denuncia, em todos os seus períodos. E não vacila ao repropor a antiga interpretação, baseada em Santo Agostinho, de que, em razão desse histórico, a igreja é santa e pecadora. Portanto, que o seu ser santa não impede o seu ser pecadora e vice-versa.
Por si só, essa interpretação chama muito a atenção. Mas o que impressiona ainda mais são os fundamentos em que Boff a escora e o modo específico como a justifica. Em síntese, ele faz o bem conhecido histórico de crimes da Igreja de Roma (o seu lado pecador) repousar no desenho piramidal que ela própria se deu. Portanto, na concentração de poder que ali se verificou e verifica. Afirma que esse desenho foi adotado, a partir da reforma promovida pelo Papa Gregório VII, no século XI, que teve por finalidade combater e, se possível, eliminar aqueles crimes. Com base no historiador eclesiástico Jean-Yves Congar, afirma ainda que a reforma gregoriana separa a Igreja-comunidade, que existiu até o século XI, da Igreja monárquica e absolutista que a substituiu. Assim, Boff divide a história católica em suas duas partes.
Será ainda preciso especificar os crimes históricos da Igreja para tornar compreensível a acusação que Boff e outros formulam em face dela? Para o leitor mais informado (e não são poucos), isso já não é necessário. Porém, para nivelar um pouco o cabedal de saberes dos mais e dos menos informados, ainda é útil dividir aqueles crimes em classes e mencionar um ou dois de cada categoria para formar um quadro, ainda que resumido e pálido, dos grandes erros da Igreja.
Principiemos pelo homicídio. No século IV, dois partidos disputavam o cargo de bispo de Roma. Os relatos existentes mostram que, juntas, essas facções mataram 136 pessoas uma da outra (FO, Jacopo, TOMAT, Sergio e MALUCELLI, Laura. O livro negro do Cristianismo – dois mil anos de crimes em nome de Deus. Rio de Janeiro: Ediouro, 2007. p. 77). Infelizmente, naquela época, o derramamento de sangue pelos cristãos estava apenas no início. Qualquer livro de História informa que, no auge, ele levou à morte de um milhão de pessoas, durante a Primeira Cruzada.
Mas do homicídio, passemos à tortura. A Santa Inquisição introduziu essa prática no interior do Direito, sob uma forma denominada “limpa”, porque os suplícios eram infligidos de maneira a induzir a retratação do acusado. Assim, por exemplo, ao infeliz era feito o anúncio de que tal suplício seria aplicado, porém o castigo era adiado várias vezes para que ele pudesse abjurar o seu erro e denunciar outros criminosos. Também, antes de se iniciar o suplício, os respectivos instrumentos eram exibidos à pessoa (COMPARATO, Fábio Konder. Carta capital. 12/09/2012). A tortura só foi abolida dos tribunais da Inquisição, por uma bula papal de 1816, seis séculos depois de sua adoção.
Vejamos a escravidão. Quando foram expulsos do Brasil, em 1759, os jesuítas possuíam 17 fazendas de açúcar e sete de gado (estas com mais de 100 mil cabeças), todas operadas com base no trabalho escravo (COMPARATO, Fábio Konder. Idem). Os grandes organizadores do tráfico negreiro, na América, haviam sido padres. Estima-se em 20 milhões o total de negros embarcados. A expectativa de vida dessas pessoas, a partir do desembarque em solo cristão, era de meros sete anos (FO, Jacopo, TOMAT, Sergio e MALUCELLI, Laura. Ob. cit. p. 21). Somente em 1888, a Igreja condenou oficialmente a escravidão, na Encíclica In Plurimis, de Leão XIII.
Devassidão. João XII costuma ser citado como um dos Papas mais promíscuos da História e do século negro situado entre Estêvão VI e Gregório V. Sua fama é contada, mas não é incomum o detalhamento dos seus crimes ser saltado por historiadores católicos (FISCHER-WOLLPERT, Rudolph. Os Papas - de Pedro a João Paulo II. 5ª ed., Petrópolis: Vozes, 1999. pp. 63-64). Não raro é preciso recorrer a obras de denúncia para aprender histórias como a de João XII, que "dormiu com as prostitutas de seu pai e chegou ao cúmulo de manter relações com sua própria mãe. João XII também presenteava suas amantes com cálices de ouro, verdadeiras relíquias sagradas da igreja de São Pedro. Ele ainda cegou um cardeal e castrou outro, causando sua morte. Apoderava-se das oferendas feitas pelos peregrinos para apostar em jogos. Nessas seções de jogatina, o próprio papa costumava evocar os deuses pagãos para ter sorte ao arremessar os dados." Destituído por um sínodo, João se vingou brutalmente: "Ao invés da excomunhão, executou e mutilou todos os que fizeram parte do sínodo. Um bispo teve a pele arrancada, um cardeal teve o nariz e dois dedos cortados e a língua arrancada, e 63 membros do clero e da nobreza romana foram decapitados. Na noite de 14 de maio de 964, parece que todas as rezas implorando a morte de João XII foram ouvidas. Segundo a descrição do bispo João Crescêncio de Protus, enquanto estava tendo relações sujas e ilícitas com uma matrona romana, o papa foi surpreendido pelo marido de sua amante em pleno ato. O enfurecido traído esmagou seu crânio com um martelo" (LEWIS, Brenda Ralph. A história secreta dos Papas - vício, assassinato e corrupção no Vaticano. 4ª ed., São Paulo: Europa, 2010. pp. 31-32).
Saques. No século XV, monges cristãos saquearam 18 mil povoados poloneses (FO, Jacopo, TOMAT, Sergio e MALUCELLI, Laura. Ob. cit.). Por sua vez, povoados valdenses foram saqueados, em 1561, por tropas napolitanas fieis ao Papa.
Exploração. No fatídico ano de 1517, a indulgência conhecida como Taxa Camarae foi vendida aos fieis para cancelar os seguintes pecados: a mulher ou o homem adúltero podia pagar 87 libras e três soldos para continuar com essa relação; em caso de incesto com o filho, a essa soma acrescentavam-se seis libras; para a absolvição do homicídio simples, cobravam-se 15 libras, quatro soldos e três denários; o mesmo valor era pago se o homem houvesse matado dois ou mais, desde que tivesse sido no mesmo dia; pela morte do próprio filho por afogamento, pagavam-se 17 libras e 15 soldos; pelo assassinato do irmão, irmã, pai ou mãe, 17 libras e cinco soldos; para o frade se casar, eram cobradas 45 libras mais 19 soldos; e a heresia era taxada com 269 libras (idem. pp. 164-165). “Não havia crime, nem o mais cruel, que não pudesse ser perdoado mediante pagamento”, escrevem Fo, Tomat e Malucelli (idem. p. 166).
Falsificações de documentos. Tiveram quase sempre o propósito de forjar atos solenes para aumentar ou justificar a autoridade do Papa. No século IX, veio à luz a mais bem-sucedida delas: as decretais de Isidoro, que foram utilizadas para a “transformação completa da constituição e do governo da igreja” (JANUS. O Papa e o Concílio. 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 1930. p. 423). Por ordem de Gregório VII (mencionado por Boff), mais tarde, Anselmo de Lucca selecionou falsificações do Pseudo-Isidoro e criou uma série de outras, com o objetivo de centralizar o poder eclesiástico na pessoa do Papa (idem. pp. 420-421). Atribui-se a Lucca a fundação do direito que Graciano, mais tarde, sistematizou. No século XVI, outras 100 decretais foram falsificadas e usadas, com o mesmo propósito.
Crimes como os acima mencionados formam um quadro bastante resumido do que a Igreja perpetrou em nome de Deus, na sua História. A bem da verdade, atos semelhantes foram praticados, por igrejas não associadas a Roma, antes de esta assumir as alucinadas pretensões de poder ilimitado que a distinguiram. Acrescente-se que os ortodoxos e os protestantes, depois dos respectivos cismas, não deixaram de praticar, também eles, coisas similares, porém todos foram nisso superados por Roma.
Boff é taxativo a respeito dos erros católicos. “Costumes políticos palacianos e principescos, de resistência e oposição, impediram ou distorceram todas as tentativas de reforma”. A resistência aludida por ele não é à injustiça, mas à justiça. É resistência à eliminação dos males antes mencionados. O que indica que a oposição às reformas nunca foi difusa, nunca veio de muitos lugares na mesma intensidade, mas se concentrou nos palácios e principados, em torno da Corte Romana.
Por isso, ao invés de eliminar os crimes, a concentração do poder no Papa, que Gregório promoveu e que, em linhas gerais, permanece até hoje, sempre estimulou a multiplicação dos erros e dos escândalos. Um poder ultraconcentrado leva à loucura os que gravitam em torno dele. Leva-os a pensar e a praticar desatinos, sempre com vistas a se aproximar do núcleo duro da estrutura eclesiástica e a participar da autoridade, dos privilégios, da riqueza e de todos os costumes que ali se desenvolvem.
Boff cita o famoso teólogo Hans Urs Balthasar, que se referiu à Igreja como “casta meretriz” (BALTHASAR, Hans Urs. Sponsa verbi. Einsiedeln. 1971. pp. 203-325). Cita também Ratzinger, que em 1969 escreveu que, ao lado de graves pecados, sempre existiu, na Igreja, uma tradição de denúncia profética deles. Para Ratzinger, o Pedro de antes de Pentecoste não pode ser separado do que surgiu depois, como é comum se fazer.
É preciso lembrar que, quando um teólogo romano fala de Pedro de modo assim tão solene, a instituição papal está implicada. No fundo, Ratzinger a vê como indissociável mistura de santidade e pecado. Por isso também, ele nunca deixou de citar Balthasar e a sua doutrina da meretriz casta. E pelo mesmo motivo, ao ler o relatório dos cardeais sobre a Cúria, Bento sentiu confirmar-se a resolução que acariciava havia muito tempo de renunciar ao seu trono. Sentiu, simplesmente, que não era e não é um Gregório para liderar a Igreja no caminho de uma correção sempre almejada e jamais alcançada.
Esse o quadro que a semana nos pôs ante os olhos. Que nos cabe, como não católicos, pensar sobre ele? Muito, sem dúvida. Porém, como membro de uma igreja evangélica, considero que já não nos cabe mais pensar esses velhos problemas da velha maneira, isto é, da maneira condenatória. Não se trata de pronunciar sobre a Igreja o veredito final de incorrigível e, portanto, de não-Igreja ou de apóstata. É tempo de nos lembrarmos, ao contrário, de que as graves condenações dos erros das sete igrejas de Apocalipse foram pronunciadas pelo Filho de Deus, não por homens. Não encontro base ou motivo claro, nas Escrituras, para repassar a sentença condenatória que os protestantes, historicamente, leram sobre os erros de Roma, um tanto como se não estivessem diante de uma complexidade demasiada para eles. Portanto, reconhecer os recorrentes problemas católicos não equivale mais a condená-los superiormente.
A Igreja Católica é uma instituição. O mesmo são a Igreja Ortodoxa e as denominações protestantes. Portanto, é como instituições que as devemos entender, não como idealizações. É de um purismo excessivo e, a meu ver, desvairado a doutrina que prega que tudo o que é institucional é impuro. De modo nenhum, embora as instituições forneçam tantos exemplos de contradição entre aquilo a que se propõem e aquilo que fazem. Instituições existem para transmitir a outras gerações o que indivíduos não podem. Indivíduos nascem e morrem. Instituições continuam para transmitir o que eles não são capazes de pregar e explicar.
Uma instituição é boa quando faz isso bem; má, quando o faz mal. Ela nunca é boa em si mesma ou por ser instituição. Que rematado absurdo é afirmar: tal autoridade deve ser seguida, porque é de tal instituição! A Igreja não é santa ou pecadora por ser a Igreja. Ela é boa por fazer coisas boas, e má, por fazer coisas más.
Devemos, pois, perguntar: historicamente, a Igreja Católica fez coisas boas? Sim, muitíssimas. Mas darei dois exemplos, cuja transcendental importância porventura nos bastará como razão. O primeiro é o da preservação da Bíblia. Se hoje abrimos os Evangelhos e os lemos, é unicamente porque pessoas os copiaram e transmitiram, de geração em geração. Esse é um primeiro e forte motivo para não perdermos o respeito para com os católicos e lhes dizermos com ar superior: vocês proibiram a leitura da Bíblia! Sim, eles o fizeram, por muito tempo, e nisso erraram gravemente. Mas o erro não foi suficiente para apagar a sequência de boas obras, que permitiu que a Bíblia chegasse até nós e que, por meio da palavra de Deus, pudéssemos nos fazer cristãos hoje.
Tampouco digamos que é impossível determinar se a Bíblia chegaria ou não até nós, sem os copistas católicos medievais. Não estamos aqui para discutir o que nossos pais fariam, se a América não tivesse sido descoberta. Nem para fechar o balanço da História da Igreja Católica. Sabemos que a América foi descoberta e que devemos o que somos às coisas boas que de lá para cá foram feitas aqui. Do mesmo modo, sabemos que a fé cristã nos foi transmitida por intermédio dessa Igreja, apesar de todos os erros cometidos no processo.
Não estamos aqui para escrever a Bíblia a partir do nada. Estamos aqui porque a recebemos e para recebê-la como é. Essas duas coisas são extremamente diferentes. No entanto, hoje mesmo, o mundo está cheio de enfatuados pais da Bíblia, que se dizem cristãos a despeito de tudo, de todos e de todas as instituições. É como se não lessem a Bíblia que essas instituições nos transmitiram e exatamente como elas nos transmitiram. É como se nunca tivessem parado para pensar o quanto a Bíblia mudou nesse tempo e que, se hoje ela nos toca, é porque outros foram instrumentos dessa mudança vertiginosa. Porque Moisés jamais se sentou e escreveu o Pentateuco. A história da formação da Bíblia é muito diferente disso e guarda a mais íntima relação com instituições judaicas e cristãs históricas.
Sempre há e sempre haverá pessoas insatisfeitas com o fato de serem herdeiras de instituições. Mas, por não estarem contentes, não lhes assiste o direito de tomar a Bíblia como se tivesse caído do céu, diretamente no colo delas ou como o meteorito na Rússia. Como se ninguém a tivesse copiado, estudado, erguido orações a Deus para que o iluminasse ao fazê-lo. Como se ninguém tivesse derramado lágrimas nesse odre de pergaminho! Como se eles fossem os primeiros a lerem-na. E, após a lerem, a missão lhes fosse inapelavelmente entregue de catequizar o mundo.
O outro exemplo das grandes realizações católicas é o do socorro aos pobres que, por muitos séculos, coube à Igreja prover e foi por ela provido no mundo ocidental. Quando o Estado ainda não oferecia serviços de previdência e assistência social, esse papel coube à Igreja, que bem ou mal o executou, e quase sozinha. Enfim, nada nos autoriza a considerar a Igreja Católica, por sua história, uma simples abominação, como de certa forma ainda está no ar no meio protestante.
Isso lá faz dessa Igreja uma instituição gloriosa? Sim, na medida em que ela própria entende suas boas obras como dons divinos. Essa consideração constitui a glória de um católico tanto quanto a de um ortodoxo ou a de um protestante. Deus é Deus de todos e para todos. E se aquele que se gloria no Senhor é um católico, um ortodoxo, um protestante ou um silvícola, a glória do Senhor é também para ele. Ou ela tem um partido?
Já não vivemos a ferrenha, a insolúvel oposição católico-ortodoxa do tempo de Fócio ou a divisão católico-protestante do da Reforma para nos alegrarmos ou nos espantarmos demais com os males que saem da caixa de Pandora do Vaticano. Se a Igreja é santa e meretriz, todas as nossas instituições o são. E se as nossas instituições o são, nós o somos. Instituições nada mais são que reflexos das prostituições e das glórias dos indivíduos. Ninguém vive fora delas. Ninguém é melhor ou pior que elas. Somos a nossa própria miséria e a glória de Deus.