As centenas de anos dos descendentes de Adão, em Gênesis 5, costumam ser citadas como evidência de que um livro com informações falsas sobre os primórdios da humanidade não pode ser a palavra de Deus. Como personagem bíblica que viveu mais tempo (969 anos), Matusalém tornou-se um símbolo dessa grave imputação.
Porém, o texto bíblico pode ser visto de outra maneira. Uma das razões para isso é o 1º Livro das Crônicas. É improvável que as listas tão extensas e numerosas de ancestrais dos judeus (que incluem os de Gênesis 5 e 11), nos primeiros capítulos desse livro, tenham sido inventadas. E é impossível que tenham sido trazidas à luz num passe de mágica. Mais verossímil é que tenham sido elaboradas por métodos historicamente plausíveis e compreensíveis.
Cabe, pois, perguntar qual era a função daquelas listas, na Antiguidade, e por que métodos elas foram elaboradas. Nos lugares mais povoados do mundo antigo, nações e outros grupos viviam próximos e tinham de competir por recursos naturais e riquezas. Por isso, não raro uns exerciam dominação sobre outros. Como a riqueza e o poder político transmitiam-se aos primogênitos das principais famílias, para dominar, era preciso saber e mostrar quem eram os primogênitos tanto do próprio grupo familiar quanto das famílias rivais.
Nesse contexto, os clãs poderosos mantinham registros não apenas das suas gerações como das famílias rivais, a fim de melhor as vigiar e prevenir o fortalecimento delas. E as mais poderosas dentre todas as famílias, chamadas famílias reais, chegavam a empregar funcionários (os escribas e cronistas) especializados nessa atividade. Não é sem interesse lembrar que, no texto de Êxodo, a palavra hebraica usada para designar os supervisores do trabalho escravo dos israelitas, no Egito, significa elaboradores de listas. Isso não quer dizer que as listas que eles elaboravam fossem exclusivamente genealógicas, mas o termo hebraico nos recorda o costume arraigado de utilizar escritos esquemáticos, assim como listas, para exercer dominação.
Com o tempo e o aumento da complexidade das cortes, as listas genealógicas evoluíram para registros complexos de alcance maior. Na época de Jesus, os dados sobre descendentes das famílias que tinham exercido o poder real, no território ocupado pelo Império Romano, eram compilados pelas autoridades, durante os recenseamentos. Não que os censos do Império tivessem o único propósito de manter registros sobre as famílias reais destronadas, mas também se prestavam a isso. Um exemplo de tal função é dado, no Evangelho de Lucas, que informa que José e Maria foram a Belém para se registrar, pois José era da Casa de Davi, que tinha exercido o poder real em Israel.
Na Antiguidade remota, listas como as de 1º das Crônicas 1 a 9 e Gênesis 5 e 11 foram a maneira simplificada e por vezes tosca de exercer a mesma espécie de controle que os censos romanos mais tarde propiciaram. Assim, os centros civilizatórios que receberam mais ondas migratórias, a exemplo do Delta do Nilo e das margens do Eufrates, acabaram por acumular uma enorme quantidade de listas.
Quando os judeus mais instruídos foram levados cativos a Babilônia, por Nabucodonosor (Dn 1:3-4), tornou-se inevitável que entrassem em contato primeiramente com histórias sobre essas listas e os nomes mais proeminentes delas e, num segundo momento, com elas próprias, nas bibliotecas ou nos arquivos reais. Da comparação das listas com os relatos judaicos sobre os primeiros adoradores do único Deus, surgiram as histórias de Gênesis 1 a 11 como as conhecemos.
Porém, não é razoável supor que as listas das antigas cidades mesopotâmicas não contivessem lacunas e obscuridades. Ou que os velhos papiros e os pergaminhos em que haviam sido registradas não estivessem mutilados, aqui e ali. De modo que os descobridores judeus das listas tiveram de as decifrar e reconstituir, da melhor maneira que puderam. E a melhor maneira encontrada foi compará-las com as memórias que os judeus tinham preservado sobre o seu passado, principalmente com as mais remotas delas. A comparação era um método coerente, porque várias ou mesmo todas personagens da Pré-História Bíblica tinham vivido na Mesopotâmia e seus arredores.
Um método que os exilados judeus devem ter empregado para comparar as suas tradições com as listas mesopotâmicas foi a fusão de gerações. Encontramos um eco dessa prática em Salmos 61:6: "Dias sobre dias acrescentas ao rei; duram os seus anos gerações após gerações". Do mesmo modo no Salmo 72:1,5: "Concede ao Rei, ó Deus, os teus juízos, e
a tua justiça ao Filho do Rei [...] Ele permanecerá enquanto existir o
sol, e enquanto durar a lua, através das gerações". Nesses versículos, o tempo da vida do rei se confunde com o das gerações que descendem dele. Outro exemplo nos é transmitido na genealogia real de Jesus Cristo, em Mateus, que salta diversos nomes ao traçar as gerações entre Abraão e Jesus, o que significa que as funde sob personagens únicas.
Ao encontrarem os nomes dos patriarcas mesopotâmicos de Gênesis nas listas babilônicas ou o que pensaram ser os nomes deles, os exilados judeus fundiram as gerações dos descendentes daquelas pessoas, gerando uma sequência de clãs que existiram centenas de anos até sucumbirem, provavelmente sob as enchentes que se abateram sobre a Mesopotâmia. Dessas grandes cheias, a maior foi o Dilúvio narrado em Gênesis 6 a 8.
A diferença entre uma lista de gerações e outra familiar ou de clãs precisa ser claramente entendida. Na Antiguidade, uma geração se estendia por 30 ou 40 anos. Um clã ou família podia durar centenas de anos. Uma coisa, portanto, era escrever uma lista de gerações; outra era elaborar um rol de clãs.
As idades elevadas dos patriarcas de Gênesis 5 e 11 indicam que cada um deles é um clã ou um povo. Os anos da vida de cada um são a soma das parcelas de tempo que as suas gerações viveram, porque cada pessoa é o cabeça de um clã ou de um povo. Assim, por exemplo, o clã ou o povo de Matusalém subsistiu 969 anos, antes de se extinguir ou, pelo menos, de desaparecer das listas que os exilados judeus reconstituíram.
Vimos anteriormente que Adão, o primeiro nome da lista de Gênesis 5, foi de fato um povo e não apenas um indivíduo. Quando lemos Números 24:17, verificamos que o mesmo acontece com Sete, filho de Adão. Os “filhos de Sete” mencionados nesse versículo nada mais são que o povo de Sete, assim como os filhos de Israel são o povo hebreu. Aplicadas a personagens tão antigas quanto Sete e Israel, as expressões não podem ter outros significados. Portanto, a segunda geração das listas de Gênesis (Sete), assim como a primeira (Adão), representa um povo. E se ambas o fazem, é natural supor que as outras da mesma lista também.
Por isso, os nomes da lista de Gênesis 11 são apresentados como nações no capítulo 10. Esse é um dado inegável. Gênesis 10 tornou-se conhecido como Rol das Nações. E se isso ocorreu, por que os nomes da lista do capítulo 5, que é tão parecida com a do 11, não podem ser de famílias ou povos?
Alguém objetará que as listas de Gênesis 5 e 11 não podem ser de coletividades, pois foram compostas com frases como “Sete viveu tantos anos e gerou Enos”; “depois que gerou Enos, viveu outros tantos anos e teve filhos e filhas”. Mas, se essas expressões descrevem a vida de um indivíduo, também servem para representar a de um clã. Como um grupo familiar se origina, a não ser de outro grupo? E como podemos expressar isso, de maneira sintética, a não ser afirmando que um grupo gerou o outro?
Como já vimos, na Antiguidade, a transmissão das riquezas e do poder se fazia mediante a instituição da primogenitura. O primogênito herdava porção dobrada ou todos os bens do pai: como exprimir melhor a formação de um novo núcleo patrimonial e de poder do que afirmando que um chefe patriarcal gerou o seu primogênito, que formou outro clã?
Essa afirmação pressupõe a identidade entre o clã e seu chefe. Mas a identidade é um fato histórico bem conhecido; mais do que isso, ela sempre foi muito vigorosa. Em não poucos povos, a identidade foi afirmada com tanta ênfase que o fundador do clã chegou a ser cultuado, e cada membro, identificado misticamente com ele. Diante disso, por que não dizer que os fundadores dos povos henoteístas ou monoteístas de Gênesis 5 e 11 geraram os seus primogênitos, e estes constituíram outros povos?
Tanto a genealogia do capítulo 5 como a do 11 têm estrutura formal rígida. De cada nome se diz que viveu tantos anos, gerou um primogênito, viveu outros tantos anos e gerou filhos e filhas. Mas uma diferença notável se manifesta entre as listas: a primeira contém a frase adicional “e morreu”. Por que a contém? E por que a do capítulo 11 não a contém? Porque, para o editor de Gênesis, os clãs do capítulo 5 não sobreviveram ao Dilúvio, enquanto os do décimo-primeiro capítulo se transformaram em nações. Os primeiros morreram, os últimos não. Claro que, se interpretarmos os nomes das genealogias como indivíduos, a omissão da morte dos do capítulo 11 parecerá imotivada.
Essa exegese das genealogias pode parecer casuística. Mas, além de exigida pela evidência interna de Gênesis, como acabo de demonstrar, ela é confirmada, também, pelo tratamento que o 1º Livro de Crônicas dispensa às listas genealógicas. Com efeito, ao relacionar as gerações de Gênesis 5 e 11, o autor de Crônicas entremeou-as com numerosas alusões explícitas a clãs, famílias e povos. Por exemplo, os descendentes de Canaã foram descritos como "os jebuseus, os amorreus, os girgaseus, os heveus, os arqueus, os sineus, os arvadeus, os zemares e os hamateus" (1 Cr 1:14-16). E os descendentes de Quiriate-Jearim e dos escribas de Jabez são chamados "famílias" (clãs, na Bíblia de Jerusalém): "As famílias de Quiriate-Jearim foram: os itritas, os puteus, os sumateus e os misraeus [...] As famílias dos escribas que habitavam em Jabez foram os tiratitas, os simeatitas e os sucatitas: são estes os queneus, que vieram de Hamate" (1 Cr 2:53,55). Todas essas gerações genealógicas são povos.
Explicações como essas podem parecer desnecessárias a quem não se preocupa com a verdade histórica das Escrituras. Mas como é possível a alguém viver a fé cristã, no tempo de hoje, sem explicar fatos como as idades dos patriarcas? Como fazê-lo sem se isolar num gueto mental ou num mosteiro criado pela imaginação em pleno deserto? A fé que exclui a razão, em pontos que chamam tanto a atenção, será melhor que a razão sem a fé? E os que combatem a razão alienada da fé podem, com coerência, pregar uma fé alienada da razão? Há alguma diferença entre A estar alienado de B, ou B, de A?