segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Evidências da Criação (10): O Jardim do Éden

As características do texto sobre a criação e os acontecimentos do Éden indicam que o seu sentido é alegórico. Não é equivocado afirmar, até mesmo, que a narrativa constitui uma autêntica parábola bíblica.
Porém,mesmo sendo uma parábola,o texto recorda acontecimentos reais. Os símbolos que o compõem, assim como o homem, a mulher e a serpente, representam aqueles acontecimentos e o seu sentido teológico. Portanto, o cuidado primeiro que devemos tomar, ao nos aproximarmos dele, é o de não pensar que os fatos representados são os que a letra aponta, mas os que os símbolos representam.
A interpretação alegórica de Gênesis 2 a 4 está longe de constituir novidade. Ela foi adotada tanto por autores bíblicos como por Fílon, Orígenes, Gregório de Nissa e outros herdeiros da escola de Alexandria. O combate que Santo Agostinho travou contra ela deveu-se, em parte, à segregação linguística que a substituição do grego pelo latim impôs à interpretação alegórica. Por não entenderem o grego, Agostinho e outros pais de língua latina não conheceram profundamente os escritos de Orígenes. Tampouco leram o restante da literatura teológica em grego, na qual os princípios da interpretação alegórica haviam sido lançados. Os três longos livros de Agostinho sobre Gênesis, por exemplo, granjearam a autoridade máxima na Idade Média, mas se calam a respeito de Orígenes. Por isso, quando o Concílio de Constantinopla, reunido em 553, acusou esse pai da igreja cristã de heresia, as condições estavam postas para que o banimento dos livros dele fizesse extinguir-se a luz da escola alegórica, não em razão dos méritos ou deméritos dela, mas em consequência da condenação de outras doutrinas.
Orígenes nunca manifestou maior dúvida sobre a interpretação do texto do Jardim do Éden. Ele encerrou-o no âmbito do pensamento alegórico, que identificou nas Escrituras. Aliás, para Orígenes e seus seguidores, nem os seis dias de Gênesis 1 foram períodos de 24 horas, nem as árvores da vida e do conhecimento do bem e do mal foram literais, nem a serpente falou com Eva, nem todos os tipos de animais do mundo entraram na arca com Noé. Essas são lições importantes que a escola de interpretação alegórica nos legou.
No entanto, há outras lições fundamentais a serem aprendidas de representantes um pouco posteriores da interpretação alegórica. No século IV, Gregório de Nissa escreveu sobre as vestimentas com que Deus cobriu Adão e Eva, após pecarem: “Ouvindo falar do termo pele [de animais], eu compreendo a forma da natureza animal, da qual fomos revestidos quando nos unimos às paixões [...] Aquilo que recebemos da pele dos animais irracionais é representado pela união sexual, pela concepção, pelos partos, pela impureza, pela amamentação, pela nutrição, pela eliminação dos excrementos, pelo crescimento gradual, pela juventude, pela velhice, pelas doenças, pela morte” (NISSA, Gregório de. A alma e a ressurreição. São Paulo: Paulus, 2011. p. 272).
Se, para Gregório, a pele que Adão e Eva receberam era um símbolo da natureza animal, entendida como a união sexual, a concepção, os partos, a impureza, a amamentação etc., só podemos concluir que os animais já possuíam estas coisas antes da queda. Apenas o homem não as possuía. E note-se que a doutrina em causa não é afirmada, por Gregório, como novidade ou algo difícil de entender, mas como interpretação comum de Gênesis.
Como os pais da igreja cristã em geral, Gregório considerava que o mal ou pecado residia na vontade humana. Por isso, escreveu: “Nenhum mal existe em si mesmo fora da vontade” (NISSA, Gregório de. A grande catequese. São Paulo: Paulus, 2011. p. 307). Em outra passagem, diferenciou o mal que está na vontade e é designado pela palavra pathos dos processos de geração e corrupção identificados na natureza: “O que está em relação com a vontade e faz passar da virtude ao vício, é verdadeiramente um pathos; ao contrário, tudo o que se vê, na natureza, em toda a extensão do seu desenvolvimento progressivo, segundo um encadeamento que lhe é próprio, deveria ser chamado mais propriamente um modo de ser do que uma paixão; assim o nascimento, o crescimento, a conservação do sujeito através do processo de absorção e evacuação dos alimentos, a concorrência dos elementos para formar o corpo, e, inversamente, a dissolução do composto e retorno aos elementos” (idem. p. 326).
Na primeira passagem citada, Gregório afirmou que a união sexual, a concepção, os partos, a impureza e a amamentação estavam presentes no reino animal, antes da queda, embora só tenham sido transmitidos ao homem, quando ele pecou. Já na segunda, ele diferenciou essas coisas do que denominou pathos (paixão pecaminosa). Portanto, para Gregório e muitos cristãos de sua época, os processos de geração e corrupção, inclusive a morte, são ínsitos à natureza. Eles não decorrem da queda.
Podemos extrair desses ensinamentos que a morte e o padecimento já existiam, antes da queda de Adão, embora não para o homem. Não se deve pensar, porém, que o não existir da morte, para o homem, fosse o mesmo que a imortalidade. Na cultura grega, que Gregório absorveu e da qual se tornou um expoente, a imortalidade era atributo dos deuses, não do homem. Como Teófilo de Antioquia escreveu, “se houvesse sido criado imortal desde o início, o homem teria sido criado um deus” (ANTIOQUIA, Téofilo de. Livros a Autólico. Apud GOMES, C. F. Antologia dos santos padres. São Paulo: Paulinas. p. 108).
Qual era, então, o estado do homem no Éden? Para os melhores autores patrísticos, esse estado era, ao mesmo tempo, de vida e de morte, como representado pelas árvores da vida e do conhecimento, no centro do Jardim do Éden. Não era, contudo, um estado de indefinição entre a vida e a morte ou entre a árvore da vida e a da morte. A idade de ouro do Éden não consistiu nessa indefinição, embora tenha sido de certo modo ambivalente.
Aqui, é preciso acrescer algo à doutrina encontrada nos pais. O estado de vida e de morte, no Éden, pouco nos diz sobre o corpo do homem. A lição da parábola de Gênesis 2 e 3 não é física, mas espiritual. Verdade é que os símbolos contidos nela são físicos: um jardim, quatro rios, árvores, um homem, uma mulher, o trabalho agrícola, uma serpente. Mas a lição que a parábola ensina não o é. Ela pouco ou nada nos diz sobre o corpo de Adão e Eva. Diz-nos que o homem podia ter vida ou morte espirituais. E como as podia ter? Ele podia ter vida, conhecendo Deus, e morte, conhecendo o bem e o mal por si só. Esta, a lição da parábola.
Mas, se Gênesis 2 e 3 nada ministram a respeito do corpo de Adão, que devemos concluir sobre ele? Devemos concluir o que sabemos do corpo de todos os seres vivos, ou seja, que ele era mortal. Ali onde a Bíblia não tece afirmações, estamos autorizados a seguir a evidência comum dos sentidos.
Nem os fariseus, nem Josefo, nem o judaísmo palestinense, nem os autores patrísticos parecem ter reconhecido esse dado das Escrituras. É o que se conclui da seguinte afirmação de Gregório: “Estou plenamente convencido de que a condição mortal, antes reservada à natureza irracional, tenha sido infligida aos homens [por ocasião da queda]” (NISSA, Gregório de. A grande catequese. São Paulo: Paulus, 2011. p. 309).
Mas não devemos concluir que o homem foi criado mortal apenas por razões naturais ou filosóficas. A Bíblia nos oferece boa base para afirmarmos o mesmo fato. Em Romanos 5, Paulo escreveu: “Por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte [...] pela ofensa de um só, morreram muitos [...] somente um pecou, porque o julgamento decorreu de uma só ofensa [...] pela ofensa de um e por meio de um só reinou a morte [...] por uma só ofensa, veio o juízo sobre todos os homens [...] Porque o salário do pecado é a morte” (Rm 5:12,15,16,17,18; 6:23).
Peço desculpas por citar esse texto com várias interrupções, mas elas realçam os paralelos entre as frases. No quadro constituído por esses paralelos, o apóstolo emprega as palavras morte, julgamento e juízo com o mesmo significado. Para ele, a morte que entrou no mundo por meio de Adão foi um julgamento e um juízo, não a morte física. Temos aqui uma primeira evidência de que a morte sofrida por Adão foi espiritual e não física.
Mas se alguém exige prova ainda mais cabal, pode encontrá-la em 1ª aos Coríntios 15: “O que semeias não nasce, se primeiro não morrer [...] Pois assim também é a ressureição dos mortos. Semeia-se o corpo na corrupção, ressuscita na incorrupção. Semeia-se em desonra, ressuscita em glória. Semeia-se em fraqueza, ressuscita em poder. Semeia-se corpo natural, ressuscita corpo espiritual. Se há corpo natural, há também corpo espiritual. Pois assim está escrito: O primeiro homem, Adão, foi feito alma vivente. O último Adão, porém, é espírito vivificante” (1 Co 15:36,42-46).
Se acompanharmos cuidadosamente o raciocínio de Paulo, veremos que espírito vivificante, no verso 45, corresponde a corpo espiritual, no 44, e alma vivente corresponde a corpo natural. Concluiremos também que Adão foi citado como exemplo de corpo natural, como indicado pela palavra “pois” no seguinte trecho: “Se há corpo natural, há também corpo espiritual. Pois assim está escrito: O primeiro homem, Adão, foi feito alma vivente. O último Adão, porém, é espírito vivificante”. Claramente se diz que Adão tinha um corpo natural, enquanto Cristo é um espírito vivificante.
E se retrocedermos um pouco mais, veremos que Adão é citado também como prova de que há corrupção, desonra e fraqueza. Note-se que a passagem não se refere a Adão após a queda, mas à “semeadura”, isto é, à criação dele por Deus: “O homem [Adão] tornou-se alma vivente”. Estava, pois, na mente de Paulo que o homem criado por Deus possuía um corpo corruptível.
Com esses esclarecimentos, podemos reconsiderar a pergunta a respeito da queda. Podemos estabelecer que esse fato não significou o início da morte física, para os animais ou para o homem, o início do envelhecimento, das dores, das doenças ou da corrupção. Significou antes o início do pecado, das blasfêmias, da violência, da maldição, da separação de Deus, da escravidão, da depravação, das trevas espessas e da morte espiritual.
A morte física não é e nunca foi um castigo pela desobediência de Adão. É consequência da criação de Deus. Deus criou o homem mortal. Por isso, Romanos 8:38-39 não chamam a morte castigo, mas criatura: "Porque eu estou bem certo que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as cousas do presente, nem do porvir, nem os poderes, nem a altura, nem a profundidade, nem qualquer outra criatura". Se a altura e a profundidade, citadas antes das palavras "nem qualquer outra criatura" são, por essa razão, criaturas, o que é citado antes delas também o é. Portanto, a morte é uma criatura e, como tal, foi introduzida no mundo pela criação de Deus.
A lição de Gênesis 3 é totalmente espiritual. Ela retrata o calabouço, em que o homem ingressou por causa dos movimentos do seu livre arbítrio. Alguém bradará: “Tu és pó, e ao pó tornarás!” (Gn 3:19), como quem sugere que Adão começou a morrer fisicamente, a partir dessa frase. Porém, Deus mostrou o seu sentimento não humano, isto é, o seu sentimento grandioso e não retributivo, por meio dessa declaração. Só poderíamos situar a morte física a partir da queda, se entendêssemos que a declaração, ao contrário, demonstra o sentimento humano de Deus, o seu sentimento de retribuição imediata e implacável, a paga febril do mal com o mal, mas Deus não é homem para derramar instantaneamente a sua ira em lavas.
Como entregou à mulher a promessa de que o seu descendente feriria a cabeça da serpente (Gn 3:15), Deus lembrou a Adão que tornaria ao pó não por causa da queda, mas porque fora tirado do pó, ou seja, por causa da criação. Deus lhe deu a promessa de que seu corpo se extinguiria, mas seu espírito seria liberto do calabouço da corrupção.