A geografia dos primeiros capítulos de Gênesis está envolta em mistério, em grande parte, porque o próprio texto bíblico não a esclarece. Porém, o mistério se agrava, em razão do hábito do leitor atual de projetar a disposição física da Palestina ou a visão contemporânea do espaço na época pré-diluviana. Nada disso vigorava, quando o texto foi composto, e não parece ter sido sob semelhantes pontos de vista que Gênesis 2 a 4 foram escritos.
Comecemos por considerar três versículos desses capítulos. Gênesis 2:8 afirma: “E plantou o Senhor Deus um jardim no Éden, da banda do oriente”. Algumas linhas depois, 3:23-24 afirmam que Deus expulsou o homem desse mesmo horto, “a fim de lavrar a terra de que fora tomado, [...] e colocou querubins ao oriente do jardim do Éden [...] para guardar o caminho da árvore da vida”. Por fim, depois de se ter retirado da presença do Senhor, é registrado que Caim “habitou na terra de Node”, ao oriente do Éden” (Gn 4:16).
Tanto quanto a alusão aos rios Tigre e Eufrates (Gn 2:14), esses versículos contribuem para situarmos as localidades dos primeiros capítulos da Bíblia. Se considerarmos que, para o editor de Gênesis, oriente era o oriente da Terra Santa, onde ele e os leitores a quem se dirigia habitavam, entenderemos que o Éden ficava a leste da Palestina. Entenderemos também que o jardim que Deus plantou ficava dentro do Éden (era parte dele), que os querubins foram postos ao oriente desse jardim e que Caim foi o primeiro a sair propriamente do território chamado Éden, talvez em direção à Índia.
Por essas informações, vê-se que Adão não foi expulso do Éden, mas do Jardim do Éden. E que o lugar onde ele foi morar, ao deixar o paraíso, era o mesmo “de que fora tomado”, portanto a localidade da criação de Gênesis 2:7. Todos esses fatos transcorreram na terra chamada Éden, da qual Caim se apartou.
O quadro geográfico acima permite entender não só que a criação de Adão ocorreu, num local circunscrito, mas que a história da sua vida passou-se nesse território. Quando Deus disse a ele “Enchei a terra e sujeitai-a” (Gn 1:28), a terra aludida era esse local. O povo da Bíblia e seus escritores só conheciam parte ínfima do globo terrestre. Por isso, quando diziam terra, referiam-se a essa porção exígua do planeta ou a outra ainda menor e mais específica. Não foi diferente com o mandamento de povoar a terra, que também tinha em vista o Éden.
Portanto, a criação de Adão foi a de um povo, entre muitos outros da Antiguidade, que habitou um território também entre muitos outros. A mulher de Caim e a cidade que ele construiu não são citadas com tanta naturalidade à toa, em Gênesis 4: o autor sagrado claramente admite que a população da qual a primeira proveio e para a qual a outra foi construída surgiu antes e à parte dos fatos narrados por ele.
O que justifica a afirmação bíblica de que a humanidade descende de Adão (At 17:26) não é a ideia de que ele foi o primeiro de todos os seres humanos, em sentido absoluto, mas o fato de os filhos de Noé terem ocupado boa parte do mundo conhecido na época. E nem essa ocupação, nem a história da criação constituem afirmações geográficas ou históricas absolutas.
Por tudo isso, o que temos, em Gênesis 2 é a criação de um povo bastante remoto, que adorou e serviu um único Deus e depois decaiu de tal condição. Esse povo, habitante da terra na qual o Senhor Deus não fizera chover (Gn 2:5), isto é, de um deserto, refugiou-se num jardim, no interior do Éden. Embora desértico, o Éden possuía um rio, que se dividia em quatro braços. Os dois primeiros (Pisom e Giom) devem ter sido temporários. Mas os outros dois braços do rio do Éden eram permanentes, pois foram identificados com o Tigre e o Eufrates (Gn 2:14).
Curioso é os quatro afluentes receberem nomes, mas não o rio principal. Isso pode dever-se a ele não mais existir, na época em o texto foi escrito. Talvez a neblina que subiu do solo para regar a terra (Gn 2:6) e o restante da ação de Deus, ao formar o jardim, o tenham eliminado. Sabemos que o delta do Tigre e do Eufrates passou por transformações radicais, em épocas bem recuadas, e que as distâncias dos mesmos pontos ao mar mudaram diversas vezes. Uma dessas transformações (talvez a mais importante) deve ter consistido no avanço do mar sobre o único rio que se repartia, de maneira a restarem apenas os seus afluentes.
Em Gênesis 2, tanto Deus como Adão são descritos como agricultores. Diz-se que Deus plantou um jardim no Éden (Gn 2:8), no qual colocou Adão para que o cultivasse (Gn 2:15). Esses são traços de uma história mais antiga e com muito mais pressupostos materialistas que a do capítulo 1. Todos os seres criados nessa história são retirados de um material. Assim é com o homem, formado do pó da terra, com as aves e os animais do campo (Gn 2:19), plasmados do solo, e com a mulher, formada a partir da costela de Adão.
Como a dieta vegetariana é afirmada, no capítulo 1 (Gn 1:29), a prática agrícola é justificada como dom de Deus a Adão, no segundo texto. Não surpreende que, dentre as práticas adotadas ou iniciadas pelos descendentes de Caim, no capítulo 4, não se conte a agricultura. Mais do que o pastoreio, o cultivo da terra está relacionado à sedentarização. Portanto, à civilização, que não é apresentada como corolário da queda, mas como dádiva direta de Deus.
Exaltação tão manifesta da agricultura, em comparação com o pastoreio e o nomadismo, não são naturais num povo como Israel, cuja sobrevivência dependia igualmente das duas primeiras e cuja origem era nômade. Por isso, não deve ter sido concebida, na época do reino dividido. Muito menos no período de Abraão, Isaque e Jacó. Sua elaboração original fica melhor localizada, num tempo em que a atividade agrária havia sido recém-descoberta e tivera desenvolvimento excepcional, o que não corresponde a período algum da história dos hebreus, mas a uma época áurea da agricultura no delta do Tigre e do Eufrates. Dessa época e desse delta, é que a memória dos fatos de Gênesis 2 parecem provir.