Os acontecimentos que envolvem a renúncia do Papa Bento XVI dão-nos um bom exemplo da importância das leis. Uma Igreja como a Católica, com mais de um bilhão de pessoas espalhadas por centenas de países, sob a liderança de um chefe, ao enfrentar a crise de governança que levou esse líder a renunciar, poderia facilmente ser afligida por lutas intestinas que a abalassem, fizessem-na definhar ou deflagrassem cismas. Na verdade, a História da Igreja é o relato de uma sucessão de lutas dessa espécie, ocorridas em razão de problemas semelhantes aos atuais.
Mas, para enfrentar momentos tão desafiadores, a Igreja conta com um aliado particularmente poderoso: a sua antiguidade ou, se preferirmos palavra menos apropriada para justificar paralisias, ela conta com a sua História. A experiência de séculos, de fato, ensinou-a a se proteger de circunstâncias como as que hoje a ameaçam. Mas essa experiência só exerce sua força preservadora e protetora na medida em que se traduz em constituições, leis e outras normas jurídicas. Enfim, num ordenamento jurídico fortemente consolidado.
Ao observarmos a reação da Igreja à crise e à renúncia do Papa, constatamos que é extremamente ordenada e que essa ordem emana da aplicação estrita de um Direito bem conhecido, explicado e acatado. Isso pode parecer pouco celestial e bastante terreno, mas a Igreja faz o mesmo que os países mais adiantados também realizam. Todos mantêm sua ordem interna, basicamente, mediante o império do Direito. Entre outros meios, é claro.
Seria absurdo propor que esse império é, ele próprio, fruto da organização espontânea dos povos. De certo não o é. É antes resultado do poder e do planejamento. Do poder, porque o diálogo de todos supõe que a alguns e somente a alguns caiba proferir as palavras decisivas que desencadeiam a série de constrições e limites à liberdade individual que identificamos com a política. Do planejamento, pois não se admite que o poder profira suas decisões em desconformidade com diretrizes que o antecedem e que foram produzidas com o consentimento geral.
Não foi por outro motivo que economias de mercado altamente desregulamentadas (ou seja, menos tangidas pelo Direito) só existiram, enquanto os povos não se viram assaltados pelo risco de regredir de uma forma muito avançada a outra menos avançada de organização social. Quando esse risco passou a existir, na época da Revolução Industrial, a necessidade da ação planejada fez-se de todo imperiosa. Verdade é que uma longa puberdade ideológica opôs mortalmente o mercado ao planejamento, quando este surgiu no palco da História. Durante muito tempo, o mundo se dividiu entre adeptos do livre mercado e do planejamento. Mas essa situação deixou de existir, conforme as duas instituições se impuseram, ao mesmo tempo, como imperativos da vida social avançada.
Desde então, o desafio lançado em face dos povos deixou de ser a opção entre mercado e planejamento para ser a conciliação deles. De modo nenhum, essa conciliação tem-se revelado fácil. Podemos falar de três principais modelos de conciliação, cujo triunfo a experiência histórica tornou patente: o chinês, o norteamericano e o europeu.
Neste texto, tratarei do modelo chinês, cujo triunfo foi estabelecido pelos fatos e é, em tantos aspectos, inegável. Porém, do ângulo de observação específico da História do Capitalismo, o modelo chinês parece apresentar uma série de problemas semelhantes aos que a Revolução Industrial introduziu no mundo ocidental. Não me refiro a problemas específicos de apenas uma das etapas dessa revolução, mas de todas as etapas consecutivas dela.
A comparação é possível, pois a China alcançou a plenitude produtiva vivida hoje, basicamente, com base na indústria. Alcançou-a, porém, num período curto demais e com base na centralização das principais decisões econômicas nos órgãos estatais de planejamento. Não há dúvida de que, num primeiro momento, essa centralização foi um dos fatores que permitiram a aceleração brutal do crescimento que, em 20 anos, tornou a China a segunda maior economia do globo, com previsão de vir a ultrapassar os Estados Unidos em outros 20. No entanto, a mesma centralização gerou distorções enormes que ameaçam, seriamente, a higidez do desenvolvimento chinês.
Que distorções são essas? A primeira delas, já está implícito, é o desenvolvimento descontrolado da indústria do país. Em janeiro, mesmo sob censura governamental, a imprensa chinesa culpou o governo pelos altíssimos níveis de poluição detectados em mais de 30 cidades. Fotos de algumas dessas cidades mostram veículos a trafegar envoltos em nuvens escuras, que causam a impressão de um ambiente noturno, quando na verdade são formadas por gases poluentes. A Organização Mundial da Saúde (OMS) informou que, nesse mesmo mês, a poluição ultrapassou a casa de 400 microgramas por metro cúbico em vários lugares, quando o nível aceitável é 25. A própria OMS recomenda que, com índices superiores a 300, crianças e idosos não saiam de casa. E o mais espantoso é que funcionários da embaixada dos Estados Unidos, em Pequim, divulgaram medições de até 800 microgramas por metro cúbico.
As estarrecedoras fotografias chinesas quase permitem adivinhar as dimensões da Revolução Industrial por que o país passou em tão pouco tempo. Na sua crueza, elas sugerem que os desequilíbrios do processo de desenvolvimento sem precedentes da China podem ser comparados aos que a Revolução Industrial introduziu, na Inglaterra e outros países da Europa, entre o fim do século XVIII e o início do XIX.
A comparação de processos ocorridos em séculos tão afastados pode parecer estranha, mas tem importantes lições a nos ministrar. A principal é o impacto social e econômico dos acontecimentos na China. É sumamente interessante que, também sob esse ponto de vista, o paralelo com a Revolução Industrial Europeia reserva-nos grandes surpresas.
Essa revolução foi descrita, por Marx, como um processo de aumento maior dos investimentos em máquinas do que em força de trabalho humana, a fim de produzir não somente outras máquinas, mas tudo o que o homem consome. Exatamente por isso, do ponto de vista social, o processo se traduz num brutal empobrecimento da população, cuja força de trabalho é substituída por máquinas. Tudo isso já havia ocorrido durante décadas e continuava a suceder no tempo de Marx.
Mas esse pensador demonstrou outro fato ainda mais importante que o primeiro para desentranhar e explicar o funcionamento econômico da Revolução Industrial. Tal fato é pouco citado e ainda mais raramente compreendido. Refiro-me ao desequilíbrio intrínseco da economia industrial, que faz com que os investimentos crescentes em máquinas gerem uma tendência constante à superprodução de bens de consumo.
A demonstração desse fato e suas principais consequências não cabe no presente texto. Terá de ficar, portanto, para outro momento. Contudo, a reação que provoca, nas sociedades, pode e necessita ser aqui mencionada. Enquanto os lucros continuam em ascensão, no interior da economia industrial, eles tendem a eliminar quase todo o desequilíbrio entre a produção e o consumo. Num país tão centralizado quanto a China não é diferente. Pelo contrário, por deter quase todo o lucro produzido pela economia, o Estado pode usá-lo conscientemente, de modo a eliminar os desequilíbrios quando aparecem.
Pode ser demonstrado, ainda, que, mantidas as condições próprias de uma revolução industrial, um único outro mecanismo além do lucro é capaz de eliminar os desequilíbrios de produção. Trata-se do aumento contínuo da produção de máquinas. Em termos sociais, isso significa que, quando os lucros se tornam limitados, a economia industrial típica tem de aumentar ainda mais o seu grau de mecanização para se reequilibrar e sobreviver.
Mas um mesmo problema afeta esses mecanismos corretivos. Nem o lucro pode aumentar para sempre, em termos reais, nem a produção de máquinas o pode em relação à de outros produtos. Isso significa que uma economia que ingressa na produção industrial, por uma revolução produtiva, tem de ser capaz de sair dela para não entrar em convulsão.
O Ocidente trocou a produção industrial típica por uma que se pode dizer pós-industrial. Essa nova produção inclui a indústria, mas não apresenta as características típicas do período de ascensão mais forte dela. Entrarei nos detalhes do seu funcionamento no texto sobre o futuro do capitalismo. Basta por ora adiantar que, conforme a etapa industrial avança, a difusão das novas técnicas de produção entre as empresas faz aumentar a concorrência, limita os lucros e induz à queda dos preços dos produtos. Tudo ao contrário do que acontece numa sociedade industrial típica.
Nessas novas condições, o aumento contínuo da produção exige que o mercado de consumo seja fomentado. Portanto, que os gastos dos trabalhadores também o sejam. Ao mesmo tempo, ganhos de produtividade precisam ser introduzidos para compensar a queda dos preços dos produtos industrializados. Mas isso só pode ocorrer mediante investimentos maiores na força de trabalho, o que tende a reverter e de fato reverte o empobrecimento da classe trabalhadora.
Acontecimentos assim foram observados, de maneira bastante traumática, no Ocidente. A Grande Depressão foi o evento central da transição. É de questionar como uma passagem semelhante terá lugar, na China, se de algum modo já se iniciou. Até porque as condições dos dois tipos de sociedades, separados por um século, são extremamente distintas. Quando a sociedade pós-industrial emergiu, no século XX, o Ocidente tinha excesso de mercado. A China de hoje tem excesso de planejamento e outras condições econômicas muito distintas. No todo, essa inusitada série de condições deverá impor ao país uma transição ainda mais difícil do que a ocidental foi a seu tempo, já que o excesso de planejamento parece levar a China a mergulhar cada vez mais nas condições industriais de produção, em vez de superá-las. Uma inércia mastodôntica embriaga o país e o leva a se debater, mas não a se livrar dos laços que hoje o enredam. Essa inércia inseriu-se no mecanismo econômico da China, no longo período durante o qual os lucros provenientes do comércio internacional de industrializados permaneceram elevadíssimos, e as autoridades não viram motivo algum para trocar o modelo de produção centrado na indústria por outro. A produção de máquinas foi também ampliada, continuamente, nesse período, contribuindo para mascarar os desequilíbrios do país.
Mas, pelo menos da crise de 2008 até hoje, o cenário da economia reequilibrada por lucros altíssimos não parou de se alterar drasticamente. A produção industrial chinesa bateu no teto e começou a dar sinais de esgotamento, sem que o Estado começasse a desconcentrar os investimentos do setor industrial. Pelo contrário, a reação estatal à crise parece refletir, simplesmente, a lógica do “mais do mesmo”. Se o incrível aumento da poluição, na China, indica alguma coisa, parece ser que, de 2008 até hoje, não houve alteração substancial no foco da economia do país. No máximo, houve alguns sinais fracos de mudança de discurso.
Os grandes problemas da economia chinesa podem ser expostos, portanto, como a permanência anacrônica da segunda maior economia do planeta, num estágio industrial de desenvolvimento, quando todas as outras economias avançadas já o deixaram. Esse problema desencadeia uma série de outros que afligem a grande nação.
A China é um caso de industrialização renitente, que persiste contra a tendência do tempo. O Japão, a Coreia do Sul, Taiwan não podem ser invocados como casos semelhantes de desenvolvimento industrial intensivo em curto espaço de tempo. Nenhum desses países viveu uma industrialização capaz de persistir contra o ambiente de negócios nacional e internacional. Ao contrário da China, o Brasil dá passos nítidos, embora primeiros e vacilantes, na direção de uma desindustrialização que, corretamente entendida, é uma das regras do desenvolvimento avançado.
A industrialização renitente da China não se deve à falta de clarividência de seus líderes. Não se trata de ver ou não ver o lodaçal em que o país se encontra, a despeito das elevadíssimas taxas de crescimento que lá continuam a existir. Não se trata de querer ou não querer sair do lodaçal. Certamente, os líderes e muitos cidadãos chineses veem onde estão e querem sair dali. Mas a inércia mastodôntica criada pela estrutura industrial do país, a economia planificada e a necessidade de produzir resultados econômicos muito expressivos a curto prazo, para assegurar o regime, impedem ação mais consistente.
Claro que os fatores econômicos mencionados acima têm sido contidos, com relativo sucesso, não tanto pelo planejamento econômico centralizado do governo chinês quanto pelo controle político centralizado em Pequim. O peso desse último fato tem sido extraordinário. O controle da Internet é apenas uma das ferramentas que têm sido utilizadas com maior sucesso em prol da concentração do poder e da preservação da ordem na China. Um número incontável de dispositivos semelhantes tem sido empregado, com considerável sucesso, pelo governo para controlar as pressões e os problemas desencadeados pelo processo de industrialização. Mas é difícil admitir que o controle terá sucesso para sempre.
Cabe indagar se o império do direito estatal e, no caso da China, em ainda maior medida, as ferramentas de intervenção direta do Estado na situação política, como o controle da Internet (censura), serão capazes de conter as pressões econômicas apontadas acima. Certamente o serão, em medida bastante ampla. É próprio do ser humano alardear e exagerar a importância do que é novo, assim como a capacidade desestabilizadora das mídias sociais. Não estou a negar, é claro, que essa capacidade exista. Apenas pondero que a escalada tecnológica que a torna possível não ocorre apenas nos lares, escritórios e toda sorte de pequenos empreendimentos, mas se dá, ao mesmo tempo, e até mais intensamente nas malhas da máquina pública. Portanto, o Estado dispõe de meios quase infinitos, inclusive a brutal arrecadação de impostos de que serve, para exercer seu trabalho de contrainformação, desinformação e censura em prol da manutenção do seu poder e da ordem. Isso poderá desviar, em parte, o vagalhão do processo de industrialização chinês e retardar as consequências políticas dele. Mas, de novo, não concebemos que o possa impedir indefinidamente.
Nossa Dilma não conclamou o empresariado nacional a libertar seu espírito selvagem, quando os investimentos públicos se revelaram insuficientes? Há mais problemas nisso do que apenas um exorcismo capitalista. Há riscos de atribuirmos responsabilidades demais à intervenção estatal e a exortações do empresariado. Mas temos um empresariado que não está de joelhos para conclamar. Do outro lado do mundo, a situação é diversa. O Estado chinês não tem um empresariado livre ao qual clamar. Só lhe resta bradar a si mesmo que saia do velho modelo produtivo industrial.
Embora com tantos aspectos negativos, o modelo chinês de simbiose mercado-planejamento não nos deixa sem boas lições. Planejar é tão indispensável quanto ter um ordenamento jurídico hígido e tão almejável quanto viver sob o império do Direito. Mas impõe meditar mais profundamente sobre o que o desenvolvimento econômico significa no mundo atual. Meditação insuficiente sobre esse ponto pode induzir ao desenvolvimentismo vicioso. E olhem que não estamos longe disso no Brasil.