sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Planejamento (1): A Próxima Geração

Winston Churchill declarou certa vez que o político sempre pensa nas próximas eleições, e o planejador, nas próximas gerações. Embora a frase seja frequentemente citada em tom depreciativo, o imediatismo político que desnuda tem tanto de humano! O modelo do homem é o agricultor, já que ele tudo faz em função da colheita próxima. Sua visão de futuro é fortemente circunscrita por esse horizonte acanhado. A só peculiaridade do homem político é que, para ele, a colheita é a eleição.
Quem ousaria dizer ao político para não agir de tal modo, se a eleição é um pilar da democracia, e esta, o melhor (ou o menos repugnante) dos mundos sociais conhecidos? Embora grávida de uma ironia que Churchill difundia como poucos, a frase citada recorda que, no regime democrático, o ato de governar e o de representar o povo com o olho na eleição são inevitáveis. Ainda quando não houvesse corrupção, uso de recursos públicos para fins privados, desvio de finalidade, leitura ideológica da realidade e o mais que conspurca a política, na melhor das hipóteses, haveria o pensamento imediatista e interessado que a frase de Churchill sugere. É o inexorável. É o próprio da condição humana, embora afete populações inteiras.
O problema é que quanto mais o homem age como agricultor, quanto mais ele amanha a terra, mais a necessidade de planejar suas ações se faz premente para ele. O que diferencia o tempo atual de todos os outros é que essa necessidade nunca foi tão maiúscula nem tão urgente. Para continuarmos a viver sobre a Terra, não nos basta mais pensar apenas como o agricultor ou o político. Necessário é pensarmos, também, como o planejador.
Ocorre que o planejamento não se deve limitar ao setor privado. Deve estender-se também e principalmente ao Estado. A intervenção estatal deve ter por modelo e por norte a ideia de planejamento. E para tratarmos do planejamento, nesta série de artigos, nada melhor do que começarmos por conceituá-lo a partir da analogia do lavrador. Planejar, para o homem público, deve ser o mesmo que pensar em termos das próximas gerações, não das próximas eleições.
A questão ambiental escancara a verdade dessa proposição. O uso irracional dos recursos naturais é um bumerangue lançado ao ar pelo agir não planejado. Mas a lição é tão óbvia (e o mundo tão repleto de militância verde) que deixou de ser urgente repeti-la. Por outro lado, os perigos da ação espontânea e imediatista não cessam de se multiplicar na seara econômica, o que justifica o direcionamento de especial atenção a eles. Este texto e esta série pretendem ser um fio de reflexão sobre tais problemas.
O confronto de impérios na 1ª Guerra Mundial, a Revolução Russa de 1917, a ascensão de regimes fascistas na década de 1930, a violência e a convulsão sem precedentes da 2ª Guerra, a Revolução Chinesa de 1949, a formação do bloco de nações socialistas liderado pela União Soviética, a Guerra Fria, a queda do Muro de Berlim, a liquidação violenta de regimes socialistas fizeram do “curto século XX” (1914-1989) o período mais pródigo em experimentação política da História da humanidade. Porém, é inegável que a vasta redistribuição de poder que nele se verificou teve funda motivação econômica.
Ou se vai esquecer que os imperialismos que entraram em conflito na 1ª Guerra disputavam privilégios comerciais que o regime colonial lhes proporcionava? Que a Revolução Soviética foi consequência da miserabilidade da população, agravada pelo envolvimento do país na 1ª Guerra Mundial? Que o desemprego e a proletarização causados pela Grande Depressão (1929-1942) favoreceram a ascensão dos regimes fascistas que desencadearam a 2ª Guerra? E que a própria Depressão iniciou-se com o crash da Bolsa de Nova York? Não estão esses fatos a indicar e até mesmo a gritar que as imensas mudanças políticas do século XX tiveram fortes motivações econômicas?
Mas, se tudo isso se deu no século passado, que se deve esperar da crise financeira de 2008, a não ser mudanças também profundas? Deve-se acaso considerar que o século atual não será afetado por ela, como o anterior o foi pela Grande Depressão? Ou que a recente crise foi um acontecimento fugaz e sem consequências de longo prazo? Os fatos não parecem apoiar tais conclusões.
Se olharmos para os principais acontecimentos dos últimos anos, assim como a recessão europeia e a derrubada de regimes autoritários, no mundo islâmico, descobriremos uma relação muito próxima com a crise de 2008. Devido às condições de vida muito melhores da população europeia, os problemas econômicos daquele continente não se transmitiram à seara política na mesma intensidade com que seus reflexos no mundo islâmico o fizeram. Porém, mesmo lá, as dificuldades de consenso sobre o futuro da União Europeia e o sucesso eleitoral de partidos e coalizões de direita, na Itália, na França e em outros países, mostram que os reflexos da crise econômica em outros campos não foram nulos. Foram e são, antes, o equivalente atual das transformações que sacudiram o século XX.
E não é diferente no mundo islâmico. Há pouco tempo, o Mali era citado como exemplo de regime estável, até o norte do país ser devastado por uma seca, e a revolta contra o governo explodir. As praças não floriram ali, como na Tunísia ou no Egito, é verdade. O país entrou em guerra civil imediatamente, e a situação se tornou tão grave que tropas francesas intervieram para impedir um golpe de Estado fundamentalista. Que xadrez geopolítico e que oculto jogador econômico!
As populações islâmicas são tão sensíveis a rigores econômicos que se torna impossível pensar que as revoltas e os conflitos da própria Primavera Árabe seguiram uma lógica distinta da que presidiu os acontecimentos no Mali. A verdade parece ser que fatores econômicos existiram e foram determinantes tanto para as mudanças no Mali como para as que se passaram na Tunísia, na Líbia, no Egito e no Oriente Médio.
Esses fatores não podem ser dissociados da crise de 2008. Por ter afetado o mundo todo e de modo particular as nações mediterrâneas, a exemplo de Portugal, Espanha, Itália e Grécia, a crise se transmitiu fortemente, embora de modo distinto, também ao norte da África. Com a crucial diferença de que a miserabilidade maior dessas populações tornou seus governos muito mais suscetíveis à insatisfação popular.
Esses ingredientes bastaram para que as agitações e os protestos se espalhassem da Tunísia ao Oriente Médio, com ajuda das condições civilizacionais semelhantes que imperam nesses lugares, num típico caso de efeito dominó. Não se pode negar que a língua, a história, a religião e os costumes comuns desses povos facilitaram a transmissão das agitações de país em país. Mas não devemos ir ao ponto de afirmar a preponderância de fatores culturais no processo. Embora subjacentes e invisíveis, as forças econômicas é que tiveram a palma das transformações.
E se os mesmos problemas básicos estão por trás das transformações no norte da África, no Oriente Médio e na Europa, é útil perguntarmos o que realmente causou a crise de 2008 e o que se pode fazer para evitar que problemas semelhantes repitam-se, propaguem-se e agravem ainda mais aqueles conflitos. Os problemas que a crise financeira desnudou são menos ideológicos e mais de ordem prática. Têm relação com o que se deve fazer para tornar o comportamento econômico menos errático e menos guiado pela obsessão com o curto prazo. Ou, em outras palavras, eles têm relação com o comportamento que cabe ao Estado adotar, com base no pensamento planejado, voltado ao presente, mas também às gerações futuras.
Embora a pergunta acima toque na antítese livre mercado – economia planificada, as lições do século XX permitem-nos bem evitar a velha contradição. Permitem-nos evitar também as hipóteses puras de que um ou outro termo da antítese é sempre superior ao outro. Definitivamente, vivemos em mundos sociais em que mercado e planejamento econômico coexistem. Nesses mundos, medidas maiores de um ou de outro só podem ser recomendadas, em vista de circunstâncias concretas, jamais em abstrato. Portanto, as condições para a existência básica tanto do mercado como do planejamento precisam ser diuturnamente preservadas.
Não se deve pensar que o planejamento da ação governamental tenha esgotado as suas possibilidades no mundo. Na verdade, ele continua a ser um destacado diferencial do sucesso maior de determinados países, em relação a outros. Um dos melhores exemplos é a China, de 1992 ao presente. Embora a ação planejada tenha começado muito antes, naquele país, os erros terríveis do Grande Salto e da Revolução Cultural, entre outros, fizeram os chineses perder tempo considerável na caminhada do desenvolvimento. Com o triunfo definitivo das propostas de Deng Xiaoping para o país e a rejeição das políticas inspiradas no marxismo-maoísmo ortodoxo, a partir de 1992, o país ajustou o direcionamento da ação estatal, no ponto básico da modernização da indústria de alto valor agregado. Desde então, a China acertou o caminho do desenvolvimento econômico. Apesar do excesso evidente de favorecimento à indústria em que o modelo produtivo chinês incorre, o recente milagre econômico que ele produziu permanece um exemplo das potencialidades da ação planejada na economia.
O ideal da ação social pragmática e planejada abre passagem a passos largos no presente, mas introduz uma série de implicações também pragmáticas. Embora o mercado seja tão necessário quanto o planejamento, o primeiro tende a se constituir e a se preservar com maior facilidade do que o último. Para o mercado existir, a principal condição é a liberdade. Mas a liberdade está longe de ser suficiente para introduzir o planejamento eficaz. Pelo contrário, planejar e fiscalizar a execução do plano envolvem restringir o comportamento humano. Por isso, o desafio posto às sociedades de hoje é o de induzir o planejamento eficaz sem asfixiar o mercado.
Mas a indução requer certas condições. Em primeiro lugar, a alternância dos partidos e das coalizões no poder não pode ser conflitiva, do ponto de vista das políticas econômicas e sociais. Para isso, não basta contar com a boa vontade dos políticos e administradores. É preciso desenvolver instituições que impeçam aqueles conflitos.
No Brasil, o principal instrumento para isso tem sido o Plano Plurianual (PPA), previsto no artigo 165, I e § 1º da Constituição. Porém, esse plano está sujeito a uma mutabilidade grande demais. Não que não deva ser permitido alterá-lo. A índole da atividade de planejamento e sua relação com os fatos exigem bom grau de mobilidade. Mas o grau hoje observado é alto demais. O artigo 21 do Plano Plurianual em vigor (Lei 12.593/2012) estabelece que qualquer alteração nos objetivos, iniciativas e metas de programas do governo implica mudança no PPA. Como essas alterações são comuns, conclui-se que o PPA é tão mutável que pouco se presta a manter o país numa trajetória macroeconômica consistente e progressiva.
Particularmente, quando ocorre mudança de partido ou de coalizão no poder, as alterações do Plano tendem a não configurar apenas correções e adaptações a novos desafios, mas verdadeiras negações do planejamento anterior, mediante a extinção e a modificação maciças dos programas em andamento e a criação de novos programas. Mesmo quando isso se realiza com base numa visão de futuro, a negação fácil e imediata do plano anterior importa a negação de outra visão prospectiva, o que é, no mínimo, perigoso.
Em poucas palavras, o Plano Plurianual é predominantemente conjuntural. Não preenche, por isso, a necessidade de planejamento estrutural, que é a mais premente em qualquer país. Todo governo tem o direito de errar e acertar em questões conjunturais, uma vez que a definição de políticas governamentais consiste em grande parte nisso. Em matéria estrutural, porém, a liberdade dos governos deve ser tida como muito mais restrita, uma vez que não estamos mais no território das políticas de governo e sim no das políticas de Estado. Nesse território, a necessidade planejamento se faz tanto maior. E não podemos deixar de observar que existe um vácuo de planejamento estrutural, vale dizer, de políticas de Estado com eficácia normativa no Brasil.
Isso indica a necessidade de criarmos essa modalidade de planejamento. Mas não só isso, pois é preciso criar, ao mesmo tempo, mecanismos de controle da execução efetiva do que foi planejado. No Brasil, há parco controle da atividade de planejamento como tal. Ela é concebida como inteiramente discricionária, portanto sujeita à vontade governamental e não a um pensamento jurídico mais permanente que o do líderes no poder. Esse pensamento até existe. Está corporificado nas normas programáticas da Constituição. Porém, tais normas não são tratadas como as outras do texto constitucional. Às vezes, elas não são sequer entendidas como normas jurídicas, mas como diretrizes políticas. Isso faz com que a sua observância não seja demandada e os atos que as contrariam não sejam arguíveis como inconstitucionais. Na prática, isso significa que os movimentos erráticos das políticas públicas não podem ser questionados e impugnados, com base em objetivos superiores a alcançar.
Temos, portanto, um planejamento, mas não as condições necessárias para implementá-lo de modo continuado. Temos um plano, mas não o controle da sua execução com base num pensamento voltado ao que está além da próxima eleição. Não tenho certeza de que a criação desse pensamento e o exercício desse controle devam ser sujeitos a órgãos especializados, como o Conselho de Planejamento e a Superintendência Nacional de Planejamento, cuja criação o jurista Fábio Comparato propôs à Assembleia Constituinte de 1987-1988 (COMPARATO, Fábio Konder. Muda Brasil – uma Constituição para o desenvolvimento democrático. São Paulo: Brasiliense, 1986. pp. 42-43, 95-98). Comparato concebeu aqueles órgãos como inteiramente autônomos em relação ao Executivo. Por isso, situou-os fora desse poder.
Porém, uma estrutura governamental à margem do Executivo é, no mínimo, uma complexidade desnecessária, uma fonte adicional de gastos e, no máximo, um motivo de conflitos políticos sempre renovados e uma capitis deminutio para o Governo Federal. Mais simples e seguro do que criá-la seria instituir o controle de constitucionalidade dos atos que violam as normas programáticas.
Não se pode propor que esse controle caiba a qualquer outro órgão que não o Supremo Tribunal Federal. O Supremo e somente ele é o guardião da Constituição. Como as normas programáticas estão incluídas na Constituição, caberia ao Supremo exercer o controle dos atos que porventura as violassem.
Exemplos de normas constitucionais programáticas são: "Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação" (art. 3º). E ainda: "São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: [...] IV - salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo" (art. 7º, IV).
Alguém indagará sobre a competência científica dos Ministros do STF para exercerem controle sobre a realização de objetivos tão manifestamente socioeconômicos. Mas qual é a competência de qualquer juiz para determinar se um prédio está em vias de desabar ou se o DNA de uma criança formou-se a partir de um desconhecido a quem se atribui a sua paternidade? No entanto, os juízes pronunciam-se com frequência sobre questões como essas, após se munirem de laudos de especialistas. Em 2008, o Supremo não julgou uma ação sobre pesquisa com células-tronco? E, para fazê-lo, não se valeu de esclarecimentos de especialistas sobre a espinhosa questão científica do início da vida uterina?
Esses não são exemplos isolados. É cada vez mais comum os juízes se valerem da competência científica de outros profissionais para decidirem processos. O controle de questões de planejamento seriam alguns casos a mais. Ficaria adstrito, é claro, aos casos de conflito de planos governamentais e de negação injustificável de esforços administrativos de um governo por outro. O Supremo só atuaria na medida em que tais conflitos e negações ferissem normas constitucionais programáticas, como tais entendidas as relativas ao planejamento estrutural. Atuaria também para garantir a execução do planejamento conjuntural, porém de modo secundário e mais parcimonioso, visto que o foco do planejamento deve ser as políticas de Estado de mais longo prazo. Parece-me que atribuir tal competência ao Judiciário poderia ser benéfico ao país.
A atividade planejada e o hábito de pensar na próxima geração precisam ser tão aperfeiçoados, por meios como esses, quanto os preconceitos contrários à instituição do mercado devem ser aparados, a fim de que o mundo e cada país consiga sair das dificuldades introduzidas pela crise financeira de 2008, as quais devem marcar a fundo as próximas décadas. Sem planejamento eficaz, nenhuma estrela, nem todo o céu de princípios econômicos nos guiarão para fora da atual procela.