sábado, 7 de abril de 2012

Doze Cestos Cheios

O vídeo "Simple Church", exibido no YouTube, levou-me a procurar mais informações sobre a Igreja Simples, nos sites www.house2house.com e www.simplechurch.com. Como o vídeo aparece associado à organização Amigrace, examinei ainda www.amigrace.org.
Nesses sítios, a Igreja Simples aparece como uma experiência propagada, ao mesmo tempo, por muitas pessoas e pela Amigrace. Essa dupla propagação ocorreu repetidas vezes, na História, particularmente nos grandes avivamentos espirituais. O que vivi na Igreja Local assemelha-se, em vários aspectos, ao que o vídeo mostra. De sorte que a presente postagem aplica-se também a essa igreja.
Nos avivamentos, é comum o trabalho do Espírito Santo concentrar-se nas pessoas e, em muito menor escala, no interior de organizações. Com o tempo, essas duas vertentes, que chamarei individual-familiar e organizacional, tendem a se diferenciar cada vez mais, até produzirem resultados antagônicos e incompatíveis. Geralmente, a vertente organizacional se fortalece mais do que a outra e lança tentáculos poderosos sobre os indivíduos e as famílias.
A experiência da Igreja Simples não parece escapar a essa regra. Ela assemelha-se ao que, há algumas décadas, se tornou conhecido como igreja em células. O precursor desse modo de vida cristã foi o pastor argentino Juan Carlos Ortiz, cujos livros O discípulo e Ser e fazer discípulos, lançados na década de 70 e/ou início da de 80, criticam inteligentemente o Cristianismo organizado e propõem o desenvolvimento de uma vida da igreja em casas. A preocupação com os problemas práticos das pessoas era uma das propostas centrais de Ortiz para serem desenvolvidas nos lares cristãos. Ela se parece muito com o que o vídeo do YouTube denomina a igreja servir de “hospital, escola, exército”, conforme a necessidade das pessoas.
O modelo de Ortiz foi implantado, com ou sem modificações, em vários lugares do mundo. Foi muito difundido nos Estados Unidos (que não é?). Mas produziu os resultados numéricos mais espetaculares na Coreia do Sul, sob a liderança do pastor Paul (depois David) Yong Cho. No fundo, a Amigrace propaga uma versão renovada do discipulado de Ortiz. Digo-o porque uma das características centrais do Cristianismo Evangélico dos nossos tempos é a diversidade aparente. Se excetuarmos as seitas e as heresias, a multiplicidade estonteante de grupos, igrejas e organizações evangélicas é portadora de um número reduzidíssimo de propostas de vida cristã realmente distintas. Sob esse princípio, a Amigrace parece-me fortemente tributária da igreja em células de Ortiz.
No entanto, em que pesem os dotes pessoais notáveis do reverendo Juan Carlos, desde a origem, as suas propostas tenderam a produzir o contrário do que propugnavam. Ortiz sempre pregou a igreja em células, porém as suas propostas continham um perigoso elemento de centralização das igrejas numa rede de controle. Ortiz ensinava que cada cristão devia seguir fielmente um mestre e ser seu discípulo. Mais do que isso: como o Novo Testamento nos fala de uma igreja por cidade, para ele, os primeiros pastores das denominações deviam formar um Colégio de líderes a se reunir regularmente para governar as igrejas nas casas. Os milhões de adeptos da Igreja de David Yong Cho, na Coreia, são o exemplo acabado e palpável da hierarquia eclesiástica a que o modelo de Ortiz tende.
O DNA de uma organização não é tão definido pelo que ela professa quanto pelo que faz. E no tocante à prática, a Amigrace parece seguir um modelo de desenvolvimento ainda mais perigoso. Ela mantém um site .org e outro .com. Seus líderes Edson e Cristiane Sant’Anna intitulam-se respectivamente apóstolo e profeta. O espaço www.house2house.com, mencionado no final do vídeo, por sua vez, destina-se a difundir a Igreja Simples, mas pede doações o tempo todo. Enfim, a Amigrace parece uma organização de porte considerável, com líderes autointitulados, a promover o seu próprio fortalecimento por uma proposta de vida da igreja em pequenos grupos.
Todas as cenas do vídeo de 24 minutos foram gravadas em ambientes sofisticados. Embora não duvide da genuinidade da experiência nele retratada, não posso deixar de observar que ela é um tanto restrita à classe média alta e à classe alta de uma ou mais localidades americanas. É claro que o Espírito sopra onde quer, mas engarrafá-lo dessa maneira me parece difícil...
Não é incomum organizações surgirem, durante os avivamentos, para apoiá-los e difundir as experiências espirituais das pessoas envolvidas neles. O problema é que essas organizações tendem a se hipertrofiar e a exercer uma autoridade malsã sobre indivíduos e famílias. O resultado desse processo é indefectível e está resumido na imagem evangélica dos doze cestos cheios. Infelizmente, os cestos que a hipertrofia organizacional produz não são cheios de graça e de luz, mas de fracasso e de dor...
Essa modalidade de experiência organizacional começa subsidiária e termina contrária ao mover do Espírito Santo. Começa como instrumento precioso da ação divina e termina como uma multiplicação dos pães ao contrário. No texto sinótico, cinco mil sentam-se na relva, comem e se fartam (Mc 6:39-42). E ainda sobram doze cestos cheios (Mc 6:43). Quando a organização é usada para controlar as pessoas e suas famílias, a multiplicação que se dá é a da morte. Come-se e bebe-se morte e ainda sobram doze cestos transbordantes.
Na Igreja Local, não passamos também por isso, em algum momento? Vejo, contudo, uma enorme dificuldade para reconhecermos o nosso fracasso, em toda a sua extensão. Queremos cobrir nossos cestos lotados de fracasso. Ou dizer que seis deles contêm fracasso, não os outros seis. Que os cestos que os outros levam nas costas, após terem comido o alimento pútrido, estão contaminados, porém não os nossos.
Apesar de sua carga negativa, é possível fazer ressoar bem alto as palavras de Isaías, sobre essa situação: “O povo que andava em trevas viu uma grande luz; e sobre os que habitavam na terra de profunda escuridão resplandeceu a luz” (Is 9:2).