quarta-feira, 25 de abril de 2012

As Profecias e o Tempo (8): O Anticristo

Não há como ler a passagem sobre a emersão da besta semelhante a leopardo, em Apocalipse 13:1-10, e não a relacionar com o capítulo 7 de Daniel. Os dois textos são escatológicos; em ambos, um animal semelhante a leopardo surge do mar; e num como no outro, esse mar é o Mediterrâneo.
As similitudes não se suspendem aí. Como o quarto animal de Daniel, a besta de Apocalipse também tem dez chifres. E, assim como outros seres da profecia mais antiga, ela tem características de urso e leão. É preciso convir que as chances de as mesmas espécies de seres vivos serem citadas, em oráculos escritos com intervalo de séculos, seriam mínimas, se o autor não tivesse o propósito claro de relacionar o seu texto com o de Daniel.
Portanto, é provável que as semelhanças de várias partes da besta de Apocalipse 13:1-10 com as partes correspondentes dos animais de Daniel não ocorram por coincidência. Pelo contrário, elas relacionam estreitamente os dois animais. Anticristo não fará lembrar vagamente os pés do urso e a boca do leão dos últimos tempos. O paralelo entre eles será mais forte: o urso entregará a Anticristo, de modo irrestrito, o poderio representado pelos seus pés, e o leão colocará à disposição dele o poder simbolizado por sua boca.
Anticristo terá ainda maior participação nos poderes do leopardo do que nos do urso e do leão. Essa maior semelhança decorre de o reino anticristão e o terceiro reino de Daniel 7 serem representados por animais da mesma espécie (leopardos). Se, na profecia escatológica, povos diversos são indicados por animais distintos, dois seres da mesma espécie devem retratar o controle do poder por um mesmo grupo, exércitos e máquinas administrativas desenvolvidas por um mesmo método, talvez até ao mesmo tempo, em dois Estados. É o que sucederá com os leopardos de Daniel e Apocalipse.
Porém, apesar dos pontos em comum que possuem, o quarto animal de Daniel 7 não é a besta que sobe do mar em Apocalipse 13. Esta tem sete cabeças; do quarto animal não se diz outro tanto. Não se concebe que Daniel tenha visto o mesmo animal e não ressaltado as suas sete cabeças. Portanto, temos de concluir que o quarto animal de Daniel não tem sete cabeças e não é a besta de Apocalipse 13 e 17.
Mas uma segunda besta se ergue da terra, em Apocalipse 13. Contrariamente ao animal que a precede, ela dissimula sua natureza feroz sob a aparência de mansidão. Parece um cordeiro, mas fala como dragão. Tanto essa segunda besta como o dragão são animais. Em linguagem moderna, podemos dizer Estados. A segunda besta, em particular, é um Estado teocrático da última hora.
Ela promoverá o culto de Anticristo e levará o povo a erigir uma imagem a ele. Esse dado faz recordar a estátua, que Antíoco Epífanes fez instalar no santuário de Jerusalém, ao profaná-lo, no século II a. C. Porém, a lembrança daquele episódio estava bastante apagada na memória dos judeus, quando Apocalipse foi escrito. Mais viva devia ser a lembrança do episódio do século I d. C., em que Calígula tentou introduzir uma imagem sua no Templo, para ser adorada: “Não podendo tolerar que os judeus fossem os únicos, que se recusavam a obedecer-lhe, [Calígula] mandou Petrônio à Síria, para ser governador no lugar de Vitélio, com ordem de entrar com armas na Judeia e de colocar sua estátua no templo de Jerusalém” (JOSEFO, Flávio. Antiguidades judaicas. Livro Décimo-Oitavo, Cap. 11). O ato da época de Calígula prefigura o que o falso profeta praticará, no último tempo, embora não de modo literal.
O falso profeta fará com que as pessoas sob sua autoridade recebam uma marca na mão ou na fronte, com o nome ou o número da outra besta. A exortação discorre: “Aquele que tem entendimento calcule o número da besta, pois é número de homem. Ora, esse número é seiscentos e sessenta e seis” (Ap 13:18).
Por não possuírem sistemas numéricos, muitos povos antigos usavam as letras do alfabeto como números. Portanto, para eles, as palavras eram, ao mesmo tempo, formadas por letras e números. Cada qual tinha um valor correspondente à soma dos números das suas letras. O “número do nome” de Anticristo tem esse provável sentido.
Mas qual é o nome ao qual corresponde o número da besta (666)? Essa questão foi extensamente debatida  ao longo do História. Na minha opinião, duas respostas destacam-se como as mais consistentes oferecidas a ela. A primeira envolvem a expressão César Nero, que em hebraico tem valor numérico 666. Portanto, identifica Anticristo com Nero. A outra resposta baseia-se na palavra latheinos, (latinos, ou seja, romanos), que também tem valor numérico 666. De acordo com a segunda resposta, Anticristo seria o povo romano com sua cultura latina.
Como Apocalipse esclarece que o número da besta é “o número de um homem”, sua identificação com os latinos é menos adequada. Embora seja um poder político, a besta é ao mesmo tempo um governante, como o texto bíblico lembra: "A besta que era e não é, também é ele, o oitavo rei" (Ap 17:11). Portanto, a identificação da besta com César Nero parece superior à assimilação aos latinos. Até porque Nero foi o primeiro Imperador a perseguir os cristãos.
Não sabemos quem Anticristo será, mas as Escrituras sugerem que o espírito de César Nero encarnará nele. Por isso, o príncipe vindouro é denominado um dentre sete reis de Roma, cinco dos quais haviam caído, um existia e outro estava para subir ao trono, quando Apocalipse foi escrito: "Aqui está o sentido, que tem sabedoria: As sete cabeças são sete montes, nos quais a mulher está sentada. São também sete reis, dos quais caíram cinco, um existe, e o outro ainda não chegou; e, quando chegar, tem de durar pouco. E a besta que viste [...] procede dos sete, e caminha para a destruição" (Ap 17:9-11).
Para identificarmos corretamente esses reis, precisamos entender primeiro que eles são as cabeças da besta que também tem 10 chifres. Sobre a besta se assenta a prostituta. Como ocorre com todos os conjuntos formados por uma montaria e aquele que a monta, a besta não realiza o que quer, mas os desígnios de quem a dirige, ou seja, a prostituta. Essa é claramente identificada com a cidade de Roma: "A mulher que viste é a grande cidade que domina sobre os reis da terra" (Ap 17:18). Precisamos entender, porém, que não é a cidade física, mas o poder que a governa. Mais do que isso, é o poder quando se prostitui.
Mas, assim como nenhuma mulher nasce prostituta, a cidade de Roma não se prostituiu desde a sua fundação. Como, nas profecias bíblicas, a prostituição costuma indicar a corrupção do culto ao divino, devemos entender que Roma não se prostituiu, propriamente, por adorar outros deuses, pois foi politeísta e idólatra desde a sua fundação, mas quando passou a adorar seus Imperadores. O culto ao Imperador é a prostituição da mulher, isto é, da cidade de Roma. Portanto, os sete reis identificados como as cabeças da besta são sete governantes adorados em vida.
Todos ou quase todos os Imperadores de Roma foram cultuados depois da morte. A instituição desse culto póstumo chamava-se apoteose. Porém, alguns Imperadores foram cultuados em vida. É provável que, em Apocalipse, esse culto tributado a um ser humano ainda em vida seja considerado o mistério da iniquidade, a manifestação histórica mais clara e concentrada do espírito anticristão.
Por isso, as sete cabeças devem ser sete Imperadores cultuados em vida. O filósofo judeu do primeiro século Fílon escreveu: “A Augusto [...] foram prestadas honras divinas e em diversos lugares lhe foram consagrados templos tão grandiosos que não podemos encontrar outros semelhantes” e ainda “O imperador [Calígula] ordenou que se colocasse a sua estátua no santuário [de Jerusalém] e que se escrevesse na coluna o nome de Júpiter” (ALEXANDRIA, Fílon de. Relato de Filom. In JOSEFO, Flávio. História dos hebreus. Rio de Janeiro: CPAD. pp. 768, 771). O culto a Tibério é descrito por David Flusser: "Imperadores romanos eram normalmente deificados apenas depois de sua morte, mas [...] Pilatos ergueu o pequeno santuário para Tibério,cuja inscrição dedicatória foi descoberta" (FLUSSER, David. Jesus. São Paulo: Perspectiva, 2002. pp. 128-129). De acordo com Flusser, a palavra tiberium veio a ser empregada para indicar um templo a esse Imperador, o que mostra que o edifício cujas ruínas foram encontradas não foi o único. O culto a Calígula, Cláudio e Nero é atestado em Eusébio de Cesareia (CESAREIA, Eusébio de. História eclesiástica. Rio de Janeiro: CPAD. pp. 54,76,95-96). Penso serem esses as cinco primeiras cabeças da besta.
Apocalipse 17:10 divide as sete cabeças em três grupos: as cinco primeiras, a sexta e a sétima. Diz que as cinco primeiras haviam passado, a sexta vivia na época em que o livro foi escrito, e a sétima ainda ia surgir. Sabemos que o profeta João foi exilado em Patmos. Como Domiciano foi o primeiro a perseguir os cristãos depois de Nero, é provável que o livro tenha sido escrito na época dele, o que explica a afirmação de que a besta (Nero) "era e já não é" (Ap 17:8), existira e não mais existia. Se essas considerações estiverem corretas, Domiciano será a sexta cabeça, e Nerva, seu sucessor, a sétima. O oitavo rei, Anticristo, por sua vez, pertence a uma quarta categoria, correspondente a um futuro não imediato.
A divisão das oito cabeças em quatro grupos não é sem significado: as cinco primeiras são Imperadores consecutivos. Após o reinado do quinto Imperador, há um intervalo, no qual outros Césares assumem o poder. Seguem-se a sexta e a sétima cabeças, que também são consecutivas. Por isso, são agrupadas. Outro intervalo de extensão ignorada se estende até a oitava cabeça, Anticristo.
Em suma, o fator espiritual que dirigirá a atuação de Anticristo será a meretriz, o poder governante de Roma, que sustentou o culto aos Imperadores em vida. Não necessariamente o Império Romano será revivido. Não necessariamente, o culto aos Imperadores será restaurado de modo ostensivo, nos últimos tempos. O que Apocalipse indica é que um dos espíritos que se elevou à posição de Deus, no primeiro século (o de César Nero), voltará à Terra como governante do país representado pela besta de Apocalipse 13 e 17. O fato de se tratar de Nero é, em si, suficiente para associá-lo à perseguição aos cristãos e ao culto do Imperador em vida, pois Nero foi cultuado, quando reinou no primeiro século. Não necessariamente, portanto, o culto será repetido. Menos ainda será necessariamente repetido de modo ostensivo, no extremo final dos tempos. O mistério da iniquidade será, essencialmente, o retorno à Terra do espírito que impulsionou aquele culto.
Essa interpretação da grande tribulação é eminentemente futurista. Ela, Anticristo e seu reino são todos vindouros. Parece-me, pois, um erro entender a besta como o Império, e os 10 chifres que ela tem na cabeça como poderes daquela época. Eles não são poderes passados, nem que serão restaurados do modo como existiram no passado. São poderes vindouros que assumirão uma forma também nunca vista.