terça-feira, 30 de agosto de 2011

A Parábola do Fermento

Dentre as parábolas de Jesus, algumas se destacam por tratar de fatos negativos. Em Mateus 13, os textos a respeito do joio, do pé de mostarda e do fermento enquadram-se nessa categoria. Embora o crescimento da árvore de mostarda não precise ser considerado anormal (já que algumas variedades alcançam altura superior à de um homem), o sentido negativo das aves que se aninham em seus ramos permanece inegável. Se os pássaros que arrebatam o que foi semeado à beira do caminho representam o maligno, como Jesus afirmou (Mt 13:19), eles não devem significar algo positivo em outra parábola.
Não é diferente no caso da mulher que introduziu fermento em três medidas de farinha, até ficar tudo levedado (Mt 13:30). Para os judeus, o fermento tinha significado negativo. Levítico proibia a sua inclusão nas ofertas a Deus. Na mesma linha de raciocínio, Jesus advertiu seus discípulos contra o fermento dos fariseus (Mt 16:5-12), e Paulo exortou os coríntios a lançarem fora o velho fermento e a serem sem fermento (1 Co 5:7-8).
Tudo isso mostra que o reino dos céus não exclui aspectos negativos. Como as parábolas retratam esse reino e não uma miragem dele, sua intenção é mostrar que os elementos negativos fazem parte da esfera de governo de Deus. Isso significa que o reino está entretecido na realidade precária do mundo e a contém.
Por outro lado, há expositores que apagam o aspecto negativo das parábolas do grão de mostarda e do fermento, interpretando-os como positivos. Afirmam que as aves que se aninham no pé de mostarda representam os crentes, e a mistura do fermento à massa indica o crescimento espetacular do evangelho no mundo. Ainda outros intérpretes reconhecem o caráter negativo desses elementos, mas afirmam que eles se referem à aparência, não à realidade do reino de Deus.
Um problema dessas interpretações é idealizar excessivamente o reino. Tão longe foi a disseminação desse modo de pensar que se fez um hábito. O problema não está no início do hábito, mas no seu final. Não está no lugar de que parte, mas no destino a que chega. O ponto de partida do hábito é de uma beleza vertiginosa. Pautar-se por idealizações é como mirar uma estrela-guia no deserto. Porém, não se pode viver o tempo todo sob orientação das estrelas.
A idealização se transforma em problema, quando deixa de ser um exercício eventual e se converte em hábito. Uns a levam mais longe, outros menos. Porém, os entusiastas da idealização a exercitam até torná-la um hábito inveterado e bastante difícil de abandonar, pois a mente se agrada dele. Não é incomum interpretações sofisticadas da Bíblia, verdadeiros sistemas teológicos, serem erigidos pelo exercício de tal hábito.
A tendência à idealização manifesta-se, por exemplo, quando os cristãos interpretam o estado primitivo do Jardim do Éden. Costuma-se considerar que, no Éden, tudo era perfeito, nada se corrompia, não havia sofrimento, e nem uma flor murchava. Embora seja difícil explicar como as dores de parto puderam multiplicar-se, com a queda de Adão e Eva (Gn 3:16), a não ser supondo que existiram antes, toda uma teologia é construída sobre esse tipo de idealização.
Na Bíblia, as origens certamente retratam um momento privilegiado da experiência espiritual. Foi assim no início da humanidade (no Éden) e na igreja cristã primitiva. O que estou a afirmar é que é perigoso carregar nas tintas da idealização das origens. É perigoso criar um universo imaginário, por nossa conta e risco. E o risco não é pequeno: quando plasmamos um mundo mental perfeito, alojamo-nos dentro dele (talvez no seu centro) e queremos forçar tudo o mais a se moldar a ele, não criamos somente conflitos: deformamos a nossa própria representação do mundo, com todas a consequências nefastas que isso produz.
Nem um mestre cristão com os dotes espirituais e a inspiração de Watchman Nee escapou à influência desse hábito de pensamento. Em A vida normal da igreja cristã, Nee referiu-se à declaração de Jesus sobre o divórcio como um padrão aplicável a todas as áreas da vida da igreja. Segundo ele, as palavras “por causa da dureza do vosso coração é que Moisés vos permitiu repudiar vossas mulheres; entretanto, não foi assim desde o princípio” (Mt 19:8) devem nortear não apenas a relação marido-mulher, mas também a vida da igreja. Em tudo, devemos retornar ao princípio. Só assim, poderemos abraçar a vontade categórica de Deus (o texto em inglês diz vontade determinante), em lugar da sua vontade permissiva. No caso do divórcio, a vontade categórica do Criador está expressa no verso “E serão os dois uma só carne”; já a vontade permissiva está contida no mandamento dado mediante Moisés. Por isso, “se quisermos conhecer a mente de Deus, devemos olhar para os seus mandamentos em Gênesis, não olhar para as suas permissões posteriores, pois cada permissão tem esta mesma explicação: por causa da dureza do vosso coração” (NEE, Watchman. Normal Christian church life. Introduction).
Aprendi a respeitar profundamente o trabalho interpretativo tanto de expositores antigos, como Agostinho, quanto dos mais modernos, como Watchman Nee, na medida em que advêm da sua funda disposição de servir a Deus. Porém, não posso deixar de reconhecer que esses autores foram falíveis e o que me parece terem sido os erros deles. Parte dos ensinamentos de Nee é fruto de um tipo perigoso de radicalidade construído sobre a idealização.
Em A vida normal da igreja cristã, Nee toma a história de Atos como padrão a ser seguido à risca. Por exemplo: o Espírito Santo mandou os profetas e mestres de Antioquia separarem Barnabé e Saulo para a obra que lhes estava reservada (At 13:2). Logo, diz Nee, todo apóstolo deve ser designado por profetas e mestres. De onde é tirada a força desse argumento? Do princípio da origem. Atos 13:2 narra a primeira designação de apóstolos depois dos Doze. A primeira designação por vontade expressa do Espírito Santo. Por ser totalmente pura, a origem do apostolado tardio não estabelece somente um fato, mas uma norma a que toda a vida da igreja está absolutamente subordinada.
Todo mestre, todo escriba versado no reino dos céus, está inserido numa cultura. Porém, precisamos tomar o cuidado de separar o que há de cultural do que há de bíblico, nos seus ensinamentos. Tenho imensa admiração pela cultura chinesa, mas não posso deixar de observar que ela é uma das mais propensas à centralização de pessoas e relações em focos de poder incontrastável. O ensinamento de Nee sobre a designação dos apóstolos não deixa de refletir essa propensão. Ele observa “que o Espírito Santo não disse à igreja em Antioquia: Separai-me agora a Barnabé e a Saulo. Ele o disse aos profetas e mestres” (idem. Chapter 2). Se lembrarmos que Nee acrescenta que o ministério que os apóstolos, profetas, evangelistas, pastores e mestres devem todos desempenhar é único, pois Efésios 4:11 se refere a ele no singular, entenderemos a que alturas de centralização ministerial o seu ensinamento pode conduzir.
O cuidado com que Nee invariavelmente interpretava a Bíblia não o levou a questionar se a separação (para ele obrigatória) dos apóstolos, por profetas e mestres, em Atos 13:2, exclui a participação da igreja no ato de escolha. Tampouco o levou a indagar por que Deus se agrada de os presbíteros e os diáconos serem indicados pela assembleia local (como acontece no Novo Testamento), e os apóstolos não. Paulo sempre retornava a Antioquia, após as suas viagens; ele também foi enviado por aquela igreja a Jerusalém, juntamente com Barnabé, para tratar de um problema que afetava não só a Judeia e a Síria, mas também a Ásia: isso indica que o apostolado tinha importante raiz local, no primeiro século. Num tempo em que as assembleias cristãs eram pequenas, e as dificuldades de comunicação, enormes, não faz sentido conceber um apostolado sem raízes locais. Então, por que a igreja local podia indicar seus presbíteros e não os apóstolos procedentes dela? Teria Deus fundado esses dois ofícios em princípios contraditórios?

"As palavras acima devem levar-nos a perguntar se a ausência de um fato, na Bíblia, equivale à sua proibição, se a ausência de missões institucionalizadas equivale à interdição desses ministérios por Deus e se a ausência de outras organizações é o mesmo que a proibição delas."

Não há problema algum em adotarmos a história como padrão. Porém, devemos tomar o cuidado de não tornar o padrão muito normativo, de não transformar o fato (histórico) em norma. Esse método de transformação parece ter levado Nee a concluir: “As Escrituras não fornecem precedente algum para a separação e o envio de homens por um ou mais indivíduos, por uma missão ou organização. Até mesmo o envio de obreiros por uma igreja local é desconhecido na palavra de Deus” (idem. Chapter 2). As palavras acima devem levar-nos a perguntar se a ausência de um fato, na Bíblia, equivale à sua proibição, se a ausência de missões institucionalizadas equivale à interdição desses ministérios por Deus e se a ausência de outras organizações é o mesmo que a proibição delas.
Tudo isso mostra que o hábito da idealização pode dar base a uma espécie perigosa de radicalidade. Não pretendo estabelecer o quanto Nee se adiantou nesse processo. Não disponho de meios que me permitam extrair tal conclusão. Porém, o seu modo de proceder, às vezes, resvalou para a idealização excessiva do reino e da igreja, assim como para a transformação da história em norma sobre a qual não se pode transigir.
Aquele que disse que o reino dos céus é semelhante à mulher que ocultou fermento em três medidas de farinha não considerava o reino de Deus uma idealização. Pelo contrário, ele o considerava duro como o real. Tinha-o como um processo em que a natureza divina rompe a superfície da terra, e o fermento se espalha na massa: o divino e o humano, o certo e o errado, o bem e o mal, lado a lado, numa determinada relação.