Uma leitura apressada da parábola do tesouro (Mt 13:44) pode induzir à conclusão de que o descobridor o acha por acaso. Porém, o sentido do texto é outro. O tesouro está fora do alcance da vista das pessoas. Ao realizarem as suas atividades cotidianas, elas não o veem. Além disso, o homem descobre o tesouro num campo que não lhe pertence. Que estava a fazer ali? A parábola não diz que o lavrava. Mais provável é que procurasse jazidas de pedras e de metais preciosos: algo muito parecido com o que o descobridor da pérola também realizava (Mt 13:45-46), por força de sua profissão. De modo que as suas descobertas não foram casuais.
Tanto a parábola do tesouro como a da pérola repetem a lição de Jó 28. Esse capítulo abre-se com as palavras: “Na verdade, a prata tem suas minas, e o ouro, que se refina, o seu lugar. O ferro tira-se da terra, e da pedra se funde o cobre” (Jó 28:1-2). E continua: “Até aos últimos confins [pessoas] procuram as pedras ocultas nas trevas e na densa escuridade. Abrem estradas para minas longe da habitação dos homens, em lugares esquecidos dos transeuntes” (Jó 28:3-4). E a experiência de Deus, de onde se extrai? Também ela se tira de mananciais localizados bem longe do conhecimento ordinário. Também ela está no fundo dos poços e na escuridão das minas da existência humana. Por isso, não raro, o homem precisa encontrar um sofrimento radical, para realmente achar Deus.
O homem é um ser perdido, pois não sabe onde estão as coisas que mais lhe importam. Onde está Deus e quem é, onde estão as gerações passadas, onde podem ser encontrados os justos. Essa é a suma de todo o Antigo Testamento. Talvez o versículo que mais o expresse seja o do oitavo salmo: “Que é o homem, para que dele te lembres?”. A pergunta deve ficar sem resposta, para exprimir plenamente a condição humana. O homem é um ser perdido. Ele não sabe quem é. Isso é a lei e os profetas. Se não o for, é ao menos o preâmbulo deles. É a antropologia da Bíblia. Se amar a Deus e ao próximo é um compêndio do Antigo Testamento, saber quem é o homem e quem é Deus constitui o preâmbulo a toda Escritura.
O ser humano não se conhece, pois não conhece Deus, a cuja imagem foi forjado. E não conhece o seu Criador, pois este está oculto. Onde se esconde Deus? No fundo da terra, onde o tesouro se abriga, e nas profundezas do mar, onde está alojada a pérola. Assim como não se pode lançar mão das riquezas do subsolo e do mar sem um conhecimento especializado, os mananciais da experiência de Deus não se dão a descobrir sem certo grau de conhecimento bíblico. Buscar a Deus sem esse conhecimento é como buscar petróleo, sem dominar a ciência da sua prospecção e extração. A chance de o homem encontrar petróleo dessa maneira é igual à de encontrarmos as experiências mais elevadas do reino dos céus sem um conhecimento adequado das Escrituras.
"O conhecimento da Bíblia não é, em si mesmo, o ouro, a prata ou a pérola. Porém, assim como não se descobrem essas riquezas sem o conhecimento adequado, é impossível obter-se as experiências mais elevadas do reino dos céus sem certo grau de conhecimento bíblico."
“Estende o homem a sua mão contra o rochedo, e revolve os montes desde as suas raízes. Abre canais nas pedras, e os seus olhos veem tudo o que há de mais precioso. Tapa os veios de água e nem uma gota sai deles, e traz à luz o que estava escondido. Mas onde se achará a sabedoria?” (Jó 28:9-12). Claramente, a descoberta e a extração das riquezas do subsolo são comparadas à aquisição do verdadeiro saber. Por isso se diz que a sabedoria “está encoberta aos olhos de todo vivente, e oculta às aves do céu” (Jó 28:21).
O conhecimento da Bíblia não é, em si mesmo, o ouro, a prata ou a pérola. Porém, assim como não se descobrem essas riquezas sem o conhecimento adequado, é impossível obter-se as experiências mais elevadas do reino dos céus sem certo grau de conhecimento bíblico. Acaso, estaríamos a dizer o que dizemos, a conversar, pregar, ouvir e ensinar o que conversamos, pregamos, ouvimos e ensinamos, sobre o reino dos céus, se o Novo Testamento não existisse? O ressoar dessa pergunta deveria bastar para entendermos que aprouve a Deus sujeitar as experiências cristãs à mediação da Bíblia. Deveria bastar para que cessássemos imediatamente o que estamos a criar com a matéria-prima das opiniões humanas (sempre positivas e às vezes indispensáveis, mas infinitamente inferiores ao verdadeiro saber), a fim de buscarmos um conhecimento das Escrituras que realmente nos faça tremer.
Há uma diferença notável entre as opiniões sobre a Bíblia e o ouro, a prata e as pérolas da palavra de Deus. Não podemos tratar a Bíblia como quem se deleita em palpites sobre política ou futebol. Assim como o bom trabalhador não aprende o seu ofício ouvindo opiniões, mas interiorizando e praticando com seriedade uma técnica, as experiências mais elevadas do reino dos céus requerem uma prospecção muito séria, por meio de noites em claro, vigílias e temores, no fundo escuro onde brilha o ouro.
Esse manancial é o dos apóstolos e profetas. Ninguém tem acesso a ele, sem se sentar aos pés dos instrumentos humanos eleitos por Deus. Porém, só o sentar-se e o ouvir não bastam. A leitura e a formação de opiniões sobre a Bíblia capacitam-nos a obter as experiências sublimes do reino tanto quanto é possível colher ouro e prata de árvores.
Para entrar no ventre das Escrituras, o homem perdido necessita sentar-se aos pés dos apóstolos e profetas e ouvi-los quase interminavelmente, até entender a mensagem desses portadores de filosofias bárbaras, como os romanos os denominavam. Precisa receber grandes doses da tradição originária de povos nômades da Idade do Ferro, como os modernos críticos da Bíblia a denominam. Embora depreciativos, esses juízos não são tão despropositados, pois não estão longe da concepção expressa na exclamação de Jesus em Mateus 11:25 (“Graças te dou, ó Pai” etc.). Para ele, de certo, o fazer-se pequenino, em vez de sábio e entendido, significava aderir aos pastores hebreus da Idade do Ferro e aos galileus do primeiro século.
Porém, somente aceitar tais pastores, apóstolos e profetas não é suficiente para acharmos o tesouro e a pérola onde se encontram, ou seja, no fundo da terra e no mar. Para isso, é necessário adquirir ainda um grau adequado de conhecimento deles. É preciso buscá-los. Ao mundo que desenvolveu uma ciência e uma técnica vertiginosas, Deus ordena não só aceitar, mas se aprofundar nos ensinamentos dos pastores da Idade do Ferro, dos apóstolos e profetas semibárbaros do primeiro século. Ele ordena buscá-los com afinco, ainda que para isso seja necessário descer aos abismos do despojamento da nossa cultura orgulhosa e altiva.
Essa é uma questão muito séria. Se não o fosse, Jesus não teria dito para vendermos tudo o que temos, a fim de comprarmos o tesouro e a pérola. Quando leio o Diário de John Wesley ou um livro de Watchman Nee, independentemente de concordar ou não com certas interpretações bíblicas deles, deparo-me com essa exata espécie de renúncia. Por isso, dou-os como exemplos. Wesley e Nee não só aceitavam as Escrituras como autoridade: eles as valorizavam altamente, o que é muito distinto. Tão distinto quanto achar ouro e cascalho. Esse valorizar radical, mais do que as paisagens interpretativas que os mestres da Bíblia frequentam, constitui o segredo das parábolas do tesouro e da pérola.
Por meio do conhecimento bíblico, descobrimos esses dois bens superiores. Comprá-los, porém, é todo um outro assunto. Para nos apropriarmos do tesouro e da pérola e denominá-los nossos, precisamos de uma experiência pessoal diferente do conhecimento bíblico: precisamos liquidar todos os nossos bens pelo preço que for possível alcançar. Vender significa trocar. Não se vende, dissipando, mas dando e recebendo algo em troca. O dinheiro que recebemos, ao vender tudo o que temos, ainda não é o tesouro e a pérola. Mas já é o equivalente deles: é o sentimento de fé, no qual o tesouro e a pérola habitam. Esse sentimento é implantado abundantemente, pelo Espírito Santo, em nosso coração, conforme nos despojamos de tudo o que constitui o nosso patrimônio, a nossa herança humana, os nossos conceitos, em suma, o nosso eu. Perdendo-nos nos encontramos. E encontrando-nos, o campo e a pérola que também achamos tornam-se nossos.