Nas igrejas cristãs, é inconcebível se admitir um novo membro, celebrar um casamento ou sepultar um morto, sem a intervenção visível de líderes ordenados. Não apenas pela maior familiaridade que têm com a palavra de Deus, mas pelo papel simbólico que exercem, esses líderes são invariavelmente chamados a intervir nos momentos cruciais da vida das comunidades. Como se a sua não intervenção, de alguma forma, retirasse ou diminuísse a eficácia dos atos que então se praticam.
Podemos sentir certo desconforto com esse modo de pensar, mas o fato é que a dependência das comunidades para com a liderança tradicional tem motivos profundos. Subordinar a coesão de grupos ao destaque intrínseco de seus líderes é um hábito humano ancestral. Aliás, as palavras líder, liderança e autoridade têm, neste assunto, a função de eufemismos. Elas encobrem realidades muito mais cruas que a liderança e a autoridade. Encobrem o que realmente mantém a coesão das pessoas, no seio das comunidades, que é o poder puro e simples de um líder sobre todas as outras pessoas.
Não é diferente na igreja. Ao longo da História, a unidade cristã sempre dependeu do poder exercido por três tipos de líderes: o hierarca, o pastor e o ícone. O primeiro é o líder católico ou ortodoxo, que atua sob o do peso da estrutura eclesiástica que integra. O segundo é o líder protestante, cuja função principal é ensinar e pregar a palavra de Deus. Por trabalhar muito mais com a palavra, o pastor exerce um poder mais simbólico que coercitivo. Por último, o ícone é a figura carismática, em torno da qual se forma um grupo dissidente ou autônomo, no interior do Catolicismo ou do Protestantismo (agostinianos, franciscanos, dominicanos, jesuítas, salesianos, presbiterianos, metodistas, mórmons etc.). Essa figura pode ser a do fundador histórico ou a de um líder tardio do movimento. Enquanto o poder dos pastores decorre dos cargos que ocupam e não deles próprios, a autoridade dos grandes ícones decorre deles, dos seus predicados e história pessoal.
Não se pode negar que, embora seja o corpo de Cristo, a igreja não se dissolveu ou dissolve numa multiplicidade de células desconectadas, por causa da atuação desses líderes. O que mostra que, embora reconheça a palavra de Deus como sua única base, a igreja vive em constante contradição com essa base. Se a palavra fosse, na prática como é em doutrina, o único esteio da igreja, ela não tenderia a se dissolver tão facilmente em células desconectadas, pelo fato de seus líderes deixarem de exercer os papeis tradicionais que lhes cabem. Isso mostra que a igreja, a um tempo, está baseada na palavra de Deus e mantém a sua coesão por meio da liderança tradicional.
Essa tremenda contradição forma um dilema, em que a igreja vive mergulhada. Na parábola do bom pastor, Jesus tratou do dilema, sem rodeios ou atenuações, ao comparar os comportamentos do pastor e do ladrão de ovelhas. Enquanto o primeiro promove a coesão do rebanho por meio da sua voz, o segundo age pela violência. O pastor dirige-se ao vigia, que lhe abre a porta do curral para que entre; o ladrão, escala por outra parte, em busca de uma abertura destinada à ventilação do lugar. Por essa brecha, ele entra, para furtar as ovelhas. Como não consegue guiá-las por sua voz, o ladrão precisa espancar as ovelhas para retirá-las do aprisco. Ao fazê-lo, ele chega a matar algumas. Outras vezes, chega a destruir o próprio curral para remover as ovelhas. Por isso, o texto afirma que o ladrão vem para roubar, matar e destruir.
Essas diferenças de comportamento externo e esses resultados líquidos de atuação correspondem, porém, apenas às distinções mais visíveis entre o pastor e o ladrão. Estão longe de indicar a distinção mais básica. O que revela mais profundamente o caráter intrínseco da relação do pastor com as ovelhas são as vozes, que ele lhes dirige e por meio das quais as comanda. Essas vozes são ouvidas e reconhecidas pelas ovelhas; o falar do ladrão não. Ao ingressar no aprisco, o ladrão tenta comandar as ovelhas, com a sua voz, mas elas não a reconhecem.
Ao tecer essa observação sobre a voz, Jesus quis mostrar que a função essencial do pastor de almas é falar a palavra de Deus. O pastor não é seguido pelo emprego que faz da vara, mas pelo manejo que tem da palavra. Esse timbre particular, que ele e só ele emite, é inconfundível. A parábola indica que, no reino de Deus, algo diferente passa a ocorrer: a agregação do rebanho de Deus passa a se dar muito mais pelo ressoar da palavra divina, no coração das pessoas, do que pelos mecanismos de coesão baseados no poder coercitivo, simbólico ou pessoal.
Nenhuma declaração poderia deixar mais patente a mudança no princípio de liderança do que esta: “Todos quantos vieram antes de mim são ladrões e salteadores” (Jo 10:8). “Antes de mim” não é uma expressão com sentido cronológico (do contrário, todos os líderes do Antigo Testamento seriam ladrões), mas que aponta para uma experiência. Significa antes de conhecer Jesus subjetivamente e de maneira pessoal. Sejam líderes de outras religiões, hierarcas, pastores ou ícones cristãos, os que guiam as ovelhas sem serem guiados por essa experiência não são bons pastores.
Porém, não devemos entender o bom pastor só à luz do ideal de amor que ele representa. Na Antiguidade, o pastor não representava só o amor e o cuidado, mas também a coragem e a força física. Apocalipse 2,26-27 dá-nos uma boa descrição desse outro aspecto do pastor: "Ao vencedor e ao que guardar as minhas palavras até o fim, dar-lhe-ei autoridade sobre as nações. Ele as apascentará com cetro de ferro e como vasos de barro quebra-las-á em pedaços".
Esses versos referem-se ao antigo ideal do rei-pastor, do rei que exercia a sua autoridade pelo pastoreio. Eles mostram claramente que a ideia do pastor não era a de uma pessoa sempre pacífica. A autoridade e o pastoreio a que os versículos se referem estão em paralelo. "Dar-lhe-ei autoridade sobre as nações. Ele as apascentará". Mas como apascentará? A própria passagem responde: quebran-do-as em pedaços com um cetro de ferro.
Uma característica surpreendente das palavras de Jesus aos anjos das sete igrejas, em Apocalipse 2 e 3, não é que elas contradizem as do Jesus amoroso dos Evangelhos, mas que eles mostram a face exigente daquele amor. "Eu repreendo e disciplino a quem amo" (Apocalipse 3:19). O amor não é só amor. É também disciplina e correção. Portanto, o pastoreio não é só cuidado, mas também exercício de força.
Verdade é que as ovelhas não precisam ser quebradas em pedaços, mas as nações precisam. Os cristãos devem aprender a ser pastores de ambos. Os líderes cristãos não devem ser tolos. Devem antes aprender os dois pastoreios em profundidade. Devem saber que ambos são um em princípio, e que a diferença entre eles decorre apenas do grau em que cada um exibe as faces branda e severa do amor.
O filósofo Friedrich Nietzsche acusou o cristianismo e o próprio Cristo de disseminarem valores como amor e compaixão, que implicam o louvor da fraqueza. Pensou que esses valores levavam a civilização ao colapso. Ele não viu que o amor de Cristo é um animal bifronte. Que ele tem um aspecto de ternura e outro de disciplina e punição.
Porém, nos versos seguintes da parábola, Jesus referiu-se a ainda uma outra personagem simbólica: o mercenário. “O mercenário, e o que não é pastor, de quem não são as ovelhas, vê vir o lobo, e deixa as ovelhas, e foge; e o lobo as arrebata e dispersa as ovelhas” (Jo 10:12).
Diferentemente do ladrão, o mercenário não é uma antítese perfeita do pastor. Pelo contrário, ele faz quase tudo o que faz o bom pastor: dirige-se ao porteiro, entra pela porta do aprisco, fala às ovelhas e é reconhecido, leva-as para o pasto e as recolhe de volta, no fim do dia. A diferença entre o mercenário e o pastor só se manifesta quando vem o lobo. Nessa ocasião extrema e somente nela, os dois se distinguem: o mercenário foge, o bom pastor dá a vida pelas ovelhas.
"Assim como estão presentes na igreja, a liderança tradicional e a nova, que o bom pastor introduziu, estão no interior do nosso coração. Olham-se nos olhos, como titãs que se enfrentam e nunca se entendem, por serem irreconciliáveis. Um dos titãs quer guiar as ovelhas por sua vara; o outro, por sua voz."
O par pastor-mercenário foi analisado por Jesus, com o objetivo de diferenciar o primeiro não só dos que lideram por meio do poder, mas também dos que lideram pela palavra, com base no motivo errado. O problema do ladrão é a violência que usa para conduzir as ovelhas; o do mercenário é a motivação pela qual as conduz. Mercenário é alguém que faz tudo o que tem de fazer, mas o faz com vistas ao dinheiro que receberá. É alguém que pensa em si mesmo e não nas ovelhas. Por isso, quando vem o lobo, ele as abandona.
A parábola do bom pastor fecha e sitia, por todos os lados, os equívocos da liderança tradicional. Infelizmente, costumamos lê-la como se fizesse referência a um problema do judaísmo ou de hereges. Difícil é reconhecermos que a autoridade hierárquica, a pastoral e a baseada em ícones, tão comuns no meio cristão regular, seguem o exato modelo tradicional que a parábola combate. E ainda mais difícil é rompermos com esse modelo.
Assim como estão presentes na igreja, a liderança tradicional e a nova, que o bom pastor introduziu, estão arraigadas no coração de cada cristão. Ali elas se fitam, como titãs que se enfrentam, por serem irreconciliáveis. Um dos titãs quer guiar as ovelhas por sua vara; o outro, por sua voz. O primeiro dirige as ovelhas, por ser dirigido por hábitos ancestrais de poder. O outro as guia, pois seu amor infinito o libertou daqueles hábitos. No entanto, ao impasse desse modo constituído aplica-se inteiramente o ditado: "Não se pode servir a dois senhores".