sábado, 3 de setembro de 2011

A Grande Pesca

A parábola da grande pesca nos diz de uma rede lançada ao mar, que “recolhe peixes de toda espécie” (Mt 13:47) e é arrastada para a praia, onde os pescadores, “assentados, escolhem os bons para os cestos, e os ruins deitam fora” (Mt 13:48).
Como se distingue um peixe bom de um ruim? Provavelmente, o critério por trás da parábola é o da dieta ordenada a Israel. Em Levítico 11:10, Deus declarou impuro “todo que não tem barbatanas nem escamas, nos mares e nos rios.” Por força desse mandamento, alguns peixes eram considerados puros, e outros, impuros. Isso afetava a prática da pesca em Israel: quando voltava do mar, o pescador tinha de separar os peixes com barbatanas e escamas dos que não as tinham e jogar estes últimos fora.
A parábola da pesca ensina que os crentes não autênticos, que guardam a forma da piedade, mas não seu poder, serão “lançados fora”. Esse abandono ocorrerá, por ocasião do julgamento de Deus, ao final do período de implantação do reino dos céus. Em Mateus 13, Jesus referiu-se duas vezes a tal julgamento como uma fornalha. Na parábola do joio, ele afirmou que os anjos recolherão os motivos de escândalo e os que praticam a iniquidade e os lançarão “na fornalha acesa” (Mt 13:41-42); e no texto sobre a grande pesca, ele tornou a dizer que os anjos lançarão os maus “na fornalha acesa; ali haverá choro e ranger de dentes” (Mt 13:50).
Choro pode indicar sofrimento, mas também desconsolo ou tristeza. Já o ranger de dentes às vezes implica dor, outras vezes, ira. De modo que a fornalha de Mateus 13:50 pode ser diversamente interpretada como um lugar de sofrimento e dor ou de tristeza e ira. Nas crianças, é mais comum o choro relacionar-se ao sofrimento; já em adultos, ele costuma indicar tristeza. Se entendermos que a fornalha é destinada a adultos, será mais coerente interpretar o choro como um sinal de tristeza e o ranger de dentes, que o acompanha, como a ira que os castigados sentirão, por terem sido desqualificados.

"O abandono ou não da pessoa por Deus é regulado pelo princípio da vida interior, não pela conduta externa."

Assim como o joio, os peixes maus da parábola representam os falsos crentes, aos quais Deus não infligirá sofrimento ou dor, mas mandará lançar na fornalha onde arderão os sentimentos mais reprováveis. Esse abandono será o castigo autoinfligido dos ímpios. Assim como, em Romanos 1, não é dito que Deus punirá os pecadores gentios com o fogo eterno, mas que ele os entregou “às concupiscências de seus corações, à imundícia” (verso 24), “às paixões infames” (verso 26) e “a uma disposição mental reprovável” (versículo 28), em Mateus 13, as pessoas que mantêm apenas a forma da piedade, no interior do reino dos céus, são abandonadas à frustração, tristeza e ira que elas próprias desenvolvem.
O abandono ou não da pessoa por Deus é regulado pelo princípio da vida interior, não pela conduta externa. A conduta de todos os peixes é aproximadamente a mesma. Eles não separados com base nela, mas em conformidade com a estrutura essencial do seu ser (barbatanas, escamas). À estrutura interior dos falsos crentes faltam as experiências e os elementos descritos por Paulo em Romanos 8. Embora possuam uma alma imortal, a vida superior de Deus não habita nessas pessoas, como uma esfera a envolver a sua alma e um complemento a plenificá-la. Por isso, nada no interior dos que têm a aparência da piedade, mas não receberam a vida divina, opõe-se aos maus sentimentos já mencionados. O resultado é que essas almas estão totalmente vulneráveis à atuação da fornalha.
Bem diferente é a situação dos peixes bons. Tais pessoas não são somente almas. Elas possuem a vida divina, por terem-se convertido genuinamente a Deus (Rm 8:3). Por isso, elas podem pecar, mas no seu interior permanece aquele que testifica com o seu espírito que são filhos de Deus. Elas podem sofrer angústias e gemer no seu íntimo (Rm 8:23), mas essas experiências não as oprimem, antes as favorecem profundamente. Posto que a vida de Deus está “instalada” na alma delas, como o software no hardware, o gemer interior dessas pessoas é acompanhado pelo do Espírito Santo, que intercede sobremaneira por elas, com gemidos inexprimíveis (Rm 8:26). Esses fatos fazem toda a diferença, tornam a pessoa um bom peixe e regulam distintamente a experiência dela, tornando impossível o desenvolvimento dos sentimentos de frustação e de ira que dominarão a alma dos falsos crentes no interior da fornalha.

O choro e o ranger de dentes, que evidenciam a frustação e a ira dos falsos crentes, têm pontos de semelhança com a experiência do rico, na história de Lázaro: “Havia certo homem rico [...] Havia também certo mendigo, chamado Lázaro, coberto de chagas, que jazia à porta daquele [...] Aconteceu morrer o mendigo e ser levado pelos anjos para o seio de Abraão; morreu também o rico e foi sepultado. No inferno, estando em tormentos, levantou os olhos e viu ao longe a Abraão e Lázaro no seu seio. Então, clamando, disse: Pai Abraão [...] manda a Lázaro que molhe em água a ponta do dedo e me refresque a língua” (Lc 16:19-20,22-24).
A alusão aos olhos, à língua e ao dedo do rico e de Abraão, nos versículos acima, são indícios de linguagem figurada, uma vez que se trata de pessoas mortas. Portanto, confirmam que o texto em questão é uma parábola sobre o estado da alma, entre a morte e a ressurreição, conforme a teologia rabínica do primeiro século o representava. Merece destaque o fato de Jesus ter-se referido à representação farisaica do ponto de vista do rico, como se fosse um acontecimento no interior da sua consciência: o rico sente o tormento, vê Abraão e Lázaro, informa ao primeiro o seu sofrimento, ouve a sua resposta, replica-lhe e ouve a manifestação final de Abraão. Quase nada é dito da condição de Lázaro ou do próprio Abraão.
Isso mostra que a parábola é uma revelação do que se passa na consciência do ímpio, durante o pós-morte. Se admitirmos que a morte é uma espécie de sono, como as Escrituras afirmam, não será absurdo considerarmos que as crenças farisaicas sobre o estado intermediário foram empregadas, por Jesus, como símbolos do que a mente dos maus cria e sente, durante aquele sono. Sob esse ponto de vista, o tormento do rico, a visualização de Abraão e de Lázaro, o diálogo travado com o primeiro não são realidades, mas símbolos do que ocorre no sono da morte. O princípio governante do sono é a diminuição das sensações. É o fato de a alma deixar de perceber o mundo material e voltar-se para si mesma. Isso é basicamente o que ocorre com a alma na morte. Cessam para ela as experiências do mundo visível, permanecem as experiências da própria alma.
Embora o sofrimento do rico retrate o estado da alma, entre a morte e a ressurreição, e o choro e ranger de dentes da parábola da pesca se refira ao estado dela após a ressurreição, os textos de Lucas e de Mateus têm vários pontos de contato. O rico é “atormentado nesta chama” (Lc 16:24); os falsos crentes da parábola da pesca são lançados numa fornalha. Há aqui uma primeira semelhança. No entanto, o ponto de contato mais importante, entre os dois textos, é que o estado desfavorável do rico e dos falsos crentes é produzido por eles próprios e não por Deus.
Estamos diante de um verdadeiro padrão da palavra de Deus. O estado futuro da alma é determinado pela vida que se desenvolve no seu interior. Se essa vida inclinar-se à satisfação do corpo, o desenvolvimento natural dela será o tormento causado pela privação dos bens físicos. Se se inclinar à manutenção da aparência de piedade, o resultado será a perda do reino de Deus e a frustração decorrente. Porém, se a alma se inclinar às coisas que não se veem, especialmente à vida de Deus, no seu interior, o resultado será a tranquila certeza e a glória vindoura de que Paulo nos fala em Romanos 8.