A ideia de discipulado se extrai da grande comissão, em que Jesus ordenou aos onze “Ide, fazei discípulos de todas as nações” (Mt 28:19). Nesse mandamento, o cristão é representado não apenas como quem crê, mas como alguém que se submete a um discipulado sério e contínuo.
O sentido do discipulado cristão é controvertido. Porém, como Jesus nunca ensinou algo desvinculado da realidade histórica, podemos tomar como certo que a formação de discípulos inerente à grande comissão é um desenvolvimento da relação típica do primeiro século. Vários aspectos desse desenvolvimento estão representados na última das oito parábolas proferidas por Jesus, em Mateus capítulo 13. No versículo 51, Jesus perguntou aos discípulos: “Entendestes todas estas cousas [as parábolas anteriores]? Responderam-lhe: Sim”. Então ele concluiu: “Por isso, todo escriba versado no reino dos céus é semelhante a um pai de família que tira do seu depósito cousas novas e cousas velhas” (Mt 13:52).
Diferentemente do semeador da primeira parábola, que é único e singular, os escribas de Mateus 13:52 são vários. Além disso, o semeador é um símbolo do Filho do homem (Mt 13:37); o escriba não é um símbolo, mas a realidade representada por ele. Sabemos disso pois, em Mateus, as parábolas começam com a expressão “o reino dos céus é semelhante”. Na comparação do escriba com o pai, essa frase não está presente. Em lugar dela, temos a declaração de que o próprio escriba é semelhante ao pai que retira coisas do seu tesouro. Portanto, o escriba está no lugar do reino dos céus. Ele é o objeto real simbolizado pela parábola.
“Ensinar após Jesus é como um músico se apresentar depois de Beethoven ou um pintor inexperiente exibir a sua tela na inauguração da Capela Sistina.”
Costuma-se debater se é lícito ao mestre cristão ter discípulos. A resposta da parábola é afirmativa, pois ela retrata um escriba no reino dos céus, não no judaísmo. Na época de Jesus, todo escriba era um mestre que tinha discípulos, como o professor atual tem alunos. Portanto, “o escriba versado no reino dos céus” era um mestre com seus discípulos, no interior do reino de Deus.
Esse é um princípio básico do discipulado. O princípio admite a ressalva de que, no reino dos céus, todo mestre exerce o seu ministério depois de Jesus ter proferido discursos como o Sermão do Monte. A inevitável comparação com Jesus faz com que os mestres cristãos se tornem não-mestres. Ensinar após Jesus é como um músico se apresentar depois de Beethoven ou um pintor inexperiente exibir a sua tela na inauguração da Capela Sistina. Em poucas palavras, ensinar depois de Jesus é sentir nas entranhas que nada se está a ensinar.
Com o seu ensino, Jesus alçou-se sozinho à categoria de Mestre de todos os mestres. “Vós me chamais o Mestre e o Senhor, e dizeis bem: porque eu o sou” (Jo 13:13). E também: “Não sereis chamados mestres, porque um só é vosso Mestre” (Mt 23:8). A proibição de ser chamado mestre, nesse último versículo, não deve ser considerada absoluta. Efésios 4:11 afirma que Deus concedeu mestres à igreja. Se ele o fez, não há problema em os chamarmos mestres. Como o mestre pressupõe discípulos, a relação discípulo-mestre é inteiramente cabível no reino dos céus. Porém, mesmo assim, o mestre cristão é, no fundo, um não-mestre.
Nesse sentido, é que a relação discípulo-mestre foi modificada por Jesus. O mestre cristão não é como o escriba cooptado pelo poder religioso do Templo, nem como o rabi que pensa entender muito bem e a fundo os mistérios de Deus. Ele é mais como Jacó, após Deus ter tocado o nervo da sua coxa. Jacó lutou com Deus. Ele até triunfou sobre Deus. Porém, apenas até Deus tocar a sua coxa.
Ao mestre forte e invencível, ao Jacó que lutou com Deus e o venceu, opõe-se um segundo tipo de mestre, um segundo Jacó, que se tornou fraco e teve o seu nome alterado por Deus. A coxa desse segundo Jacó representa a sua força. Para formar Israel, Deus não precisa torná-lo forte: precisa retirar-lhe a força. Da mesma forma, antes de Deus o tocar, o mestre das Escrituras é um sábio, porém a sua sabedoria é usurpada. O toque divino, somente ele, o transforma em alguém que continua a ser mestre, mas já não se sente tal, que continua a ser professor, mas adquire consciência profunda da ilegitimidade dos seus títulos. Em poucas palavras, enquanto no judaísmo o rabi, o mestre no sentido forte, se impunha pela afirmação da sabedoria, no cortejo de Cristo, os mestres no sentido fraco do termo constituem-se mais pela negação do que pela afirmação do que sabem.
Durante todo o primeiro século, a Judeia e a Galileia ferveram com mestres e discípulos do primeiro tipo. A relação entre eles era das mais comuns e importantes na sociedade judaica. Na parábola do pai que tira coisas novas e velhas do seu tesouro, Jesus mostrou que, após o estabelecimento do reino dos céus, essa relação passaria por uma metamorfose. Mediante uma experiência como a do toque de Deus na coxa do usurpador Jacó, o mestre passaria a ser pai, e a relação dele com o Templo passaria a se desenrolar no interior de uma família.
A família são os filhos espirituais do mestre no reino dos céus. Que faz o pai para seus filhos? A parábola afirma que ele tira, não dos outros, mas de si mesmo, isto é, do seu tesouro. As coisas novas e velhas que tira são os ensinamentos do Novo e do Antigo Testamentos. Ao ser tocado por Deus, o novo mestre adquire essas coisas. Elas deixam de ser meros ensinamentos num livro, deixam de ser alheias para se tornarem suas: sua experiência subjetiva, a palavra de Deus escrita não em tábuas de pedra, mas em tábuas de carne.
"Esse dar não tem tradução, pois o amor é inefável. Por isso, foi omitido, transferido para o ar, transformado em exalação, na essência espiritual do amor do mestre versado no reino dos céus."
Que faz o pai com as coisas que saca desse incalculável depósito? A parábola não o diz. Jesus preferiu descrever com o silêncio o que está além das palavras. Com isso, mostrou que o mestre verdadeiro não é loquaz, pois sabe que o silêncio é tão importante quanto as palavras. O silêncio é como o espaço entre os fios que compõem a tapeçaria ou entre as células que integram o organismo. Assim como um corpo é também o espaço entre as peças que o formam, a geometria que o estrutura, o ensino de um mestre é constituído pelo seu silêncio e as suas palavras. Jesus o mostrou, ao omitir a palavra central da parábola a respeito do pai: dar. Ele não disse que o pai tira do seu tesouro, para dar aos filhos. Com isso, deixou implícito o que mais define o novo mestre: o que ele dá e o modo como dá. Esse dar não tem tradução, pois o amor é inefável. Por isso, foi omitido, transferido para o ar, transformado em exalação, na essência espiritual do amor do mestre versado no reino dos céus.
À luz da parábola de Mateus 13:52, a grande comissão de Jesus (“Fazei discípulos”) se mostra uma obra única, porém não a obra de um único mestre. Muitos escribas a realizam conjuntamente, já que não há ciúmes ou exclusividades no reino dos céus. Assim como realizou milagres e concedeu aos seus seguidores o poder de realizá-los, pregou e enviou seus discípulos para pregarem, cuidou das pessoas e nos ordenou cuidar delas, Jesus também ensinou e enviou seus discípulos a ensinar às nações. Ele instituiu um discipulado contínuo e compartilhado. Um discipulado que só quem teve o nervo da coxa tocado por Deus é capaz de exercer.