Vou confessar um crime: creio firmemente em Deus.
Trata-se de um crime continuado, de um crime que tenho praticado, sem contrição ou atenuação, desde que nasci e, muito mais intensamente, nos últimos 30 anos. Infelizmente e para minha profunda tristeza, a ciência descobriu (creiam-me) que os céticos são mais inteligentes. Portanto, que os crentes são mais obtusos de mente. Pelo menos é isso que um certo e novo ateísmo tem propagandeado, em alto e bom som, na Europa e nos Estados Unidos. É também o que o nosso potencial de importadores furiosos de ideias nos tem feito absorver, no Brasil, sem saber bem o que traficamos.
Refiro-me às concepções e modismos de autores como o inglês Richard Dawkins (Deus, um delírio), os norte-americanos Sam Harris (The end of faith), Daniel Dennett (Breaking the spell) e Christopher Hitchens (Deus não é grande) e os franceses André Comte-Sponville (O espírito do ateísmo), e Michel Onfray (Tratado de ateologia). Entre muitas outras ideias, a maioria desses intelectuais evidencia boa dose de confiança em que os céticos são mais inteligentes do que os crentes.
Apesar de discordar de quase todas as suas teses centrais, concedo inteira razão a Dawkins, Harris e demais grandes sábios nesse ponto. Só tenho de completar que a questão sobre a inteligência de descrer é muito mais complexa do que eles costumam mostrar. A começar pelo fato de que a convicção, com que aqueles autores a proclamam, é fé e não descrença. Portanto, se têm razão, eles estão errados, pois são movidos pelo que chamam erro.
Tenho de completar, outrossim, que a fé dos crentes (a que, na minha funda ignorância, faço questão de regar e afofar, todos os dias) é, ao mesmo tempo, formada por tanta descrença! Creio em Deus, é verdade. Cometi e cometo esse crime todos os dias. Confesso-o, mas não contrito. E para tudo agravar, admito que li interminavelmente (como pude!), e ainda leio, as obras de dezenas de cientistas e filósofos céticos sobre a origem do Universo, da vida e das espécies. Com base nessas leituras, cometi a loucura de publicar minhas conclusões sobre a questão de Deus no livro A hipótese de Darwin – a compatibilidade entre Deus e a evolução.
Mas não creio somente em Deus: creio também que o Jesus dos Evangelhos é uma pessoa divina. Mais uma vez, essa crença absurda e atrasada (hoje está claro) levou-me ao cúmulo da pequenez de estudar, com máxima atenção, a discussão dos últimos 200 anos sobre o Jesus histórico e a escrever as minhas ideias sobre esse problema em O Mestre de Nazaré.
Tanto ao estudar a questão de Deus como ao deter-me sobre o Jesus histórico, do fundo da minha pequenez individual e do meu nada intelectual, minha fé foi tão fortemente confirmada que me tornei o exemplo perfeito do que a nova ciência denomina o controle da fé sobre a consciência (inclusive a razão). Parti da fé e tive minha fé confirmada: eis o iter criminis todo. Cheguei aonde estava quando parti: pode haver maior prova do meu equívoco?
Para ilustrar o que digo com um exemplo do mês em curso, no livro The believing brain (Holt, 2011), Michael Shermer demonstra como a fé torna a mente humana perdidamente tendenciosa (é o meu caso). Não há como discutir aqui as ideias de Shermer, que são tão próximas das dos autores citados antes (alguns dos quais se denominam brights, brilhantes). Limitar-me-ei a informar que ele se refere a quatro tendências desviantes da razão, que denomina anchoring bias (tendência à ancoragem), authority bias (tendência à aceitação da autoridade), belief bias (tendência a valorizar o pensamento baseado em crenças) e confirmation bias (tendência a buscar evidências que confirmem a crença, em vez de refutá-la). A mente humana é profundamente desviada da verdade por essas quatro tendências, que se nutrem da fé.
Sobre a tese de Shermer, só tenho a declarar que está corretíssima, mas como tudo o que vem do ateísmo atual ela pede algum complemento. No caso, o complemento de que o autêntico crente é um descrente contumaz. Sabe tão bem que crê e o quanto crê que desconfia mortalmente da sua fé. Claro que, sob esse ponto de vista, o crente perfeito é um perfeito Tomé. A tese de Shermer pede ainda outro esclarecimento, que até certo ponto ele próprio fornece: o que a ciência tem demonstrado não é que apenas a fé religiosa, mas que toda fé pode governar a consciência além do que é devido. Isso se aplica também (e como!) à fé científica dos novos ateus.
Juro, porém, que a experiência pessoal de fé religiosa pode gerar exatamente o contrário do que Shermer denomina belief-dependent realism (senso de realidade dependente da fé). Foi minha fé mineira, minha fé nutrida em entranhada desconfiança, que me levou a estudar os temas de Deus e de Jesus. Minha fé fez-me cético radical. Bem cedo, disse comigo mesmo: não caio nessa. Vou estudar, ponto a ponto, as questões de Deus e de Jesus. Enfrentarei toda e a melhor literatura que puder encontrar, sobre esses temas, para não me entregar à sedução de uma fé cega. Farei isso, esteja onde estiver, ocorra o que ocorrer.
É que as pessoas crentes, mas racionais e ajuizadas, sabem que a fé pode cegar. Então desconfiam profundamente dela. Algumas chegam a se resolver a tirar a prova. Foi o meu caso. Fazer questão de tirar a prova é um traço constitutivo da minha personalidade. Sempre cri, nunca acreditei. Nunca parei de pensar e de pensar criticamente. Tenho de dizer envergonhado: nem por um único dia. Muito longe disso.
Pensar criticamente, para mim e creio que para todos os meus irmãos humanos, é também descrer, desconfiar, duvidar, questionar, dizer “não: é impossível”.
Quando fiz isso (seria melhor dizer que o senti), pela primeira vez, tinha apenas 18 anos. Lembro-me vivamente daqueles dias: de como entrei em transe. Desabei das nuvens do dogmatismo ao chão da dúvida. Essa experiência foi, certamente, tão forte e tão radical quanto a que os crentes denominam conversão. Aliás, foi uma conversão à verdade como ela é e não como sou. Os sentimentos que então me tomaram foram tão poderosos, tão avassaladores que, simplesmente, não consegui lidar com eles. Tive de bater em retirada, para não perder totalmente e tão cedo o equilíbrio, a higidez intelectual. Por sentir que não possuía o capital de maturidade, forças, saúde (por incrível que possa parecer) para continuar a passar por aquela experiência, tomei a resolução de adiar uma reflexão necessariamente profunda e angustiosa sobre as minhas dúvidas, bem como o encontro de vida ou morte (porque totalmente autêntico) com elas.
Três anos mais tarde, num outro estado de alma, iniciei a longa caminhada em que tenho examinado minhas dúvidas profundamente. Nunca mais deixei de desenvolvê-la, pois não é dado ao homem fazê-lo. Faço questão de confessar esse crime.
Pode haver um estado de apego maior à verdade, como ela é e não como queremos forçá-la a ser, que o da pessoa que se crê responsável diante de Deus? Essa pessoa sentirá o peso esmagador não da condenação ao inferno, mas da condenação a professar a mentira. Tenho experimentado isso, em algum grau.
Digamos, porém, que toda essa experiência seja lorota e que a divisão da moda seja mesmo entre inteligentes e nem tanto. Descrentes de um lado, crentes de outro. Que isso significa, na prática e no interior dos grandes problemas do conhecimento? Que significa, por exemplo, em termos da grande questão da origem da vida? Deus criou o primeiro ser vivo (seja lá o que tiver sido) ou as pecinhas de que este foi feito juntaram-se, ao som e à luz dos fenômenos daquela época? Se um Criador fez o primeiro ser vivo ou se os componentes juntaram-se, no milagre da protocélula, não são o objeto de dois épicos atos de fé?
Desde que Stanley Miller produziu aminoácidos em laboratório, há várias décadas, até estes tempos em que os cientistas, extasiados com a parafernália e a ciência incríveis à sua disposição, sintentizam pernas e braços de RNA, nada que se possa dizer um ser vivo mexeu-se nos laboratórios. Confesso-me o mais empedernido dos céticos quanto à possibilidade de vir a mexer-se, ao mesmo tempo em que mantenho minha tranquila fé no papel do Criador. Sou cético e crente, crente e cético. Pergunto, pois: e os novos ateus, que são? Deixemos Pascal responder: "Incrédulos, os mais crédulos. Creem nos milagres de Vespasiano, para não crer nos de Moisés'" (PASCAL. Pensamentos. Art. XVI, XCIV. São Paulo: Edipro, 1996. p. 138).
Anos depois da minha queda do céu dos dogmas, quando publiquei A hipótese de Darwin, meu prefaciador, o filósofo Regis de Morais, escreveu algo em meu favor. Disse que admirava como eu era capaz de me controlar, ao examinar tão demoradamente os despautérios de um ateísmo que se crê superior. Regis encontrou esse autocontrole em A hipótese. Pois devo afirmar, com a radical desconfiança que tenho dos elogios (à diferença dos ateus, que demonstram acreditar piamente neles), que minha paciência com aqueles senhores aristocratas esgotou-se. Não passam de uns fundamentalistas científicos. São tão perigosos (embora atuem por outros métodos) quanto o fundamentalista que matou quase 100 pessoas na Noruega, outro dia, para relançar os Templários. Não são mais que uns bregas, que não percebem que a sua aristocracia envelhecida não combina com o apreço pela verdade, nem com o tempo atual.
No entanto, o fim de minha paciência não significa que passarei a falar como esses senhores falam com o mundo: de cima para baixo. Não me entendam mal. O fim da paciência quer dizer que falarei ainda mais de igual para igual, pois esse é o único modo digno de um ser humano se dirigir a outro. Assim conversarei, seja com eles, seja com os seus seguidores (geralmente desinformados). Aliás, é fato que os templários científicos têm cada vez mais seguidores. Nossos jovens mergulham na onda ateísta em falanges. Virou moda, tornou-se intelectualmente chique, avançado dizer “não creio”, “não acredito em Deus”. Mesmo que não se tenha mais uma frase a juntar a essas.
A revista de ciência Galileu publicou uma reportagem, informando que a porcentagem de ateus é, hoje, de incríveis 85% na Suécia, 72% na Noruega, 80% na Dinamarca, 60% na Finlândia, 44% no Reino Unido, 44% na Holanda, 43% na Bélgica, 49% na Alemanha, 54% na França. Se considerarmos que, por muitos milênios, o percentual de ateus radicais (pessoas sem fé religiosa de qualquer espécie) foi sempre muito próximo de zero, perceberemos que, de repente, a humanidade deu um gigantesco salto adiante, em matéria de inteligência! Claramente, é chegado o tempo de o Ministério da Inteligência advertir: crer faz mal para o cérebro.