Dentre as testemunhas da multiplicação dos pães, algumas conceberam o projeto de fazer Jesus rei. Em toda a História secular, não me recordo de alguém que tenha recusado semelhante oferta. Jesus permanece num canto dos tempos, sozinho, nesse tocante, pois rejeitou todas as insinuações e propostas dos que pretenderam fazê-lo chefe de uma rebelião contra Roma e o novo rei de Israel (Jo 6:15).
A recusa de Jesus tem semelhanças com a tentação ocorrida no deserto, quando Satanás lhe ofereceu todos os reinos do mundo e a sua glória, sob condição de que o adorasse (Mt 4:8-9). O primeiro ponto comum, entre os dois episódios, é o conteúdo das ofertas recebidas. Em ambos os casos, o poder, a glória e a realeza dos povos foram ofertados a Jesus. A segunda convergência, porém, é que, nos dois episódios, Jesus rejeitou as propostas recebidas.
Um homem pode ser salvo da tentação do poder, com ajuda de pessoas que o aconselham ou arrebatam da situação tentadora. Porém, sempre chega o momento em que lhe cabe, e a mais ninguém, olhar nos olhos do tentador e dizer não às suas ofertas. Não é fácil fazê-lo. Não é à toa que a História é tão pobre em exemplos de recusas dessa espécie. Para rechaçar a oferta de poder, o homem precisa ter mais que um desejo de servir a Deus. Ele precisa de um fundo discernimento dos planos divinos. Do contrário, nem sabe o que rejeitar ou por quê.
A tentação de ser rei não se restringe à dimensão secular. Na ordem espiritual em que Jesus sempre situou o seu ministério, também existe o perigo do auto-engrandecimento. A instituição religiosa também pode funcionar como um reino. Assim como os homens da época de Jesus quiseram proclamá-lo rei, seus discípulos estavam prontos para fazê-lo chefe do sistema religioso centrado no Templo de Jerusalém.
Para entendermos esse segundo desejo dos judeus em relação a Jesus, é útil lembrar que a Dinastia dos Hasmoneus, que governou Israel desde a libertação do domínio grego, em 164 a. C., enfeixara em suas mãos tanto o poder político como o governo do Templo. Esse precedente durou um século. Portanto, deixou uma marca profunda na consciência daquele povo. Na época de Jesus, a experiência da última dinastia judaica ainda possuía a força sugestiva de um mapa empoeirado, nas mãos de um viajante perdido. Por isso, fazer Jesus rei envolvia a centralização não apenas do poder político, mas também do religioso, nos líderes da revolta contra Roma.
Não há notícia de disputas por poder entre os discípulos de Jesus, até a primeira multiplicação dos pães, que fortaleceu a ideia latente em alguns de fazer Jesus rei. A partir de quando essa intenção política se tornou manifesta, os discípulos começaram a disputar, seriamente, entre si, o primeiro, o segundo e ainda outros lugares de honra na sua corte. Muito provavelmente, eles passaram a disputar, também, o governo do Templo. Jesus não apenas se opôs a esses pensamentos como declarou que, entre os discípulos, não deveria ser assim.
No capítulo 22 de seu Evangelho, Lucas chegou a anexar a advertência contra a concentração do poder à passagem sobre a instituição da eucaristia, o que certamente não é destituído de significado. O memorial do corpo e do sangue de Cristo é o ponto culminante da história ministerial de Jesus. A anexação da advertência a ele mostra que a fé cristã é algo essencialmente contrário ao poder religioso.
Como Lucas reflete as convicções de Paulo, não há dúvida de que esse apóstolo também estava entre os mais resolutos adversários da concentração do poder espiritual em líderes humanos. Claro que tanto Lucas como Paulo entendiam que era preciso haver líderes na igreja. Isso não se discute. Porém, eles consideravam que a concentração desmedida do poder espiritual nessas pessoas devia ser rejeitada, com o mesmo ímpeto com que Jesus disse não a Satanás no deserto. A advertência de Lucas 22:24-27 nos estimula a levar a cabo essa rejeição.
O discurso sobre o pão da vida foi proferido, em resposta ao anseio da multidão por alimento material, mas também em resposta à aspiração desmedida de alguns por poder. Com ele, Jesus quis mudar o assunto proposto pelos que desejavam fazê-lo rei. Ele quis mostrar aos judeus revoltosos e aos discípulos influenciados por eles que todos possuíam uma outra necessidade subjacente. Uma necessidade que os revoltosos não percebiam, mas os discípulos de Jesus já notavam. Essa necessidade era a de pão espiritual.
"Assim como a fome do corpo é saciada pelo pão físico, a fome espiritual é extinta, pela experiência mística da saciedade."
Jesus é o pão da vida. Demorei para afirmá-lo, para não faltar com os cuidados necessários à abordagem da Bíblia em termos realistas (históricos). Contextualizar corretamente a Escritura é sempre útil para nos despojarmos das nossas elucidações (para não dizer alucinações) particulares do texto bíblico. No entanto, o objetivo de João 6 é apresentar o grande, o imortal pão da vida.
Assim como a fome do corpo é saciada pelo pão físico, a fome espiritual é extinta, pela experiência mística da saciedade. Essa experiência é antes de tudo irracional. Porém, é preciso lembrar que, na Bíblia, o acesso à experiência mística só é facultado mediante a razão. A mística não é um atalho, mas um lugar situado no topo de uma colina, que é preciso escalar com auxílio da razão humana.
Será muito pensar que a razão do homem, a porca razão a que Lutero se referiu, num rompante de excesso, sirva o elevado propósito de aproximar-lo de Deus? Será blasfemo pensar assim? Há quem deplore o fato de Gênesis 1 e 2 nada afirmarem sobre a criação dos anjos. A exclusão foi necessária para esclarecer que os atos de Deus, nesses dois capítulos, são muito mais que uma criação: são também uma eleição. Em Gênesis, Deus criou muitos seres, mas elegeu um só deles: Adão. Não há notícia de que os anjos tenham sido objeto de eleição semelhante.
Essa é uma importante mensagem do livro inaugural da Bíblia, que o autor de Hebreus compreendeu com clareza particular. Hebreus reflete o espanto de seu autor com o silêncio bíblico não sobre a criação, mas sobre a eleição dos anjos. Ele chega a tomar esse silêncio como uma revelação. É como se Deus não houvesse eleito os anjos, ao criá-los, mas apenas o homem.
O que desejo apontar é que nenhum texto bíblico indica que a eleição de Adão, em Gênesis, tenha sido motivada pelos atributos que ele compartilhava com os animais, mas pelo atributo único com que Deus o cumulara exclusivamente: a razão. Não é por outro motivo que Romanos 7 e 8 preocupam-se com o que a salvação de Deus realiza na mente humana. Para onde vai a mente? Quem a governa? Quem reina sobre ela? São essas as perguntas que Paulo coloca no centro da sua maior epístola. Ele não o faz à toa, mas porque a razão está no centro do propósito de Deus para o homem. Em 1ª aos Coríntios 14:14-16, o apóstolo chega a afirmar que orar com o espírito é insuficiente. Necessário é ao homem orar com a mente, pois desde o Livro de Gênesis Deus a estabeleceu como a base da sua ação histórica.
Por esses motivos, a experiência de comer o pão da vida passa pelo uso integral dos atributos humanos criados e eleitos por Deus, entre os quais se destaca a razão. A experiência de Deus está guardada em palavras ora mais, ora menos claras. Ela é como a sabedoria escondida nos mais diversos recônditos da natureza (Jó 28). Para alcançar os tesouros dessa sabedoria, é preciso cavar, escalar, procurar quase infinitamente. Cavar, escalar, procurar são alegorias da atividade racional, embora o encontro com Deus, que a ela se segue, a deglutição e a assimilação do pão da vida, permaneçam irracionais.