Em 1ª aos Coríntios, Paulo perguntou: “Se eu orar em outra língua, o meu espírito ora de fato, mas a minha mente fica infrutífera. Que farei, pois?” (1 Co 14:14-15). Ele próprio respondeu: “Orarei com o espírito, mas também orarei com a mente” (1 Co 14:15). Essa curta passagem é extremamente importante para entendermos a experiência mística, a experiência de Deus.
Perceba-se que a mente que o apóstolo disse não compreender a oração é a da própria pessoa que ora, não apenas a dos seus ouvintes. Paulo denominou orar com o espírito esse procedimento. Portanto, para ele, o espírito excluía a razão. Ele era uma faculdade totalmente transracional. Essa é a principal característica, pela qual o espírito se distingue da alma (1 Ts 5:23). No espírito, está a vida de Deus, porém as manifestações desse órgão são ininteligíveis: “Se tu bendisseres apenas em espírito [...] o outro não é edificado” (1 Co 14:17).
O espírito é o lugar em que o homem recebe a sabedoria e conhece Deus. Sabemo-lo porque Jesus se declarou o pão da vida e, em João capítulo 6, escolheu o verbo comer, para descrever a experiência do crente ao recebê-lo. Para comer e especialmente para metabolizar o alimento, o homem não necessita exercitar sua razão. Isso sugere que a experiência de tomar Jesus se passa no espírito humano.
"Os falsos místicos pensam que, por ter sido assim contaminada, a faculdade racional deve ser substituída pela vida irracional do espírito. O estudo da Bíblia deve ser trocado pelo uso irrefletido dos versículos. A oração pode ser histérica ou ininteligível."
Os místicos cristãos sempre compreenderam a disjunção entre o espírito e a mente, entre a experiência mística e a da razão. Porém, alguns deles incorreram em dois graves equívocos: excluíram a contribuição da razão para a espiritualidade e atribuíram poder excessivo ao livre arbítrio do homem.
O primeiro erro foi determinado pela convicção de que a queda de Adão tornou a razão impura e inimiga de Deus. Os falsos místicos pensam que, por ter sido assim contaminada, a faculdade racional deve ser substituída pela vida irracional do espírito. O estudo da Bíblia deve ser trocado pelo uso irrefletido dos versículos. A oração pode ser histérica ou ininteligível. E a comunhão dos cristãos uns com os outros há de ser dirigida por regras contraditórias ou incompreensíveis. É o que pensam certos crentes radicais.
Os resultados dessa hipertrofia mística são extremamente perigosos, pois podem paralisar as faculdades racionais do ser humano. Deus criou o homem racional, para que exercitasse a razão. A queda não tornou a razão negativa, pois o homem continuou a ser a imagem de Deus (1 Co 11:7). Por isso, Paulo exortou os coríntios a orarem com a mente e não apenas com o espírito.
O segundo erro dos falsos místicos consiste em se atribuírem um excedente de livre arbítrio, que os particulariza. Não há dúvida de que a vontade livre foi o dom mais precioso feito por Deus ao homem, ao lado da razão. A essa vontade independente, formidável e brilhante, denominamos livre arbítrio. Jesus não nos advertiu contra todos ou vários tipos de uso dessa vontade, mas contra a utilização dela, numa única situação e para um único fim, a saber: para elevar o homem a Deus.
O discurso sobre o pão da vida nos lembra de que o ser humano come para que os nutrientes do alimento sejam incorporados às suas células. Para que essa metabolização aconteça, não lhe é necessário tomar qualquer decisão. Não lhe é necessário usar o livre arbítrio. Quando Jesus declarou “ninguém pode vir a mim se o Pai que me enviou não o trouxer” (Jo 6:44), a impotência do livre arbítrio do homem para colaborar, de qualquer maneira, com a salvação de Deus foi afirmada.
João 6:44 exclui da experiência mística toda colaboração voluntária, todo exercício do livre arbítrio. Conhecer a Deus é receber algo do alto, não realizar esse algo voluntariamente. Se Deus não disser “haja luz”, não haverá luz. Porém, se ele o disser e quando o disser, a luz brilhará no espaço do coração humano.
Essa é a verdadeira experiência mística. Seu princípio orientador, por chocante que possa parecer, é a ausência do livre arbítrio. Os encontros do homem com Deus não estão sujeitos à vontade humana, mas à de Deus. Por isso, eles se assemelham mais à metabolização do que à mastigação do pão. Metabolização é o processo pelo qual o pão se transforma nas nossas células e gera o mais pleno estado de saciedade. Quando declarou que é o pão da vida, Jesus quis dar a entender que deve ser metabolizado por nós, porém não por um ato da nossa vontade.
"O erro pelagiano não foi totalmente esquecido, nos nossos dias. Ele se faz presente, por exemplo, quando alguns místicos associam a experiência de Deus de tal forma a uma prática (individual ou coletiva) que se convencem de que podem conhecer a Deus tão facilmente quanto podem realizar aquele exercício espiritual"
Pelágio foi um grande místico, um monge que dedicou a sua vida a Deus, no século IV. No entanto, a espécie excessiva de mística, que ele abraçou, o levou a pensar que Deus e o homem operam juntos a obra de salvação. O erro pelagiano não foi totalmente esquecido, nos nossos dias. Ele se faz presente, por exemplo, quando alguns místicos associam a experiência de Deus de tal forma a uma prática (individual ou coletiva) que se convencem de que podem conhecer a Deus tão facilmente quanto podem realizar aquele exercício espiritual. Isso é como atribuir ao homem não só o poder de comer e beber a Cristo, mas também o de o metabolizar. No limite, essas pessoas chegam a sentir que o cortejo triunfal de Deus não se move, no mundo, sem a contribuição ou o concurso do livre arbítrio delas.
Curioso é que esses falsos místicos entregam ao seu livre arbítrio o que retiram de Deus. Eles não se dão conta de que, ao comparecerem ao encontro com Deus, por sua própria vontade, conduzem Deus acorrentado até lá. Tiram de Deus o livre arbítrio que se atribuem. Assim, criam uma das maiores monstruosidades da história do espírito humano e fazem lembrar o ditado: seria engraçado, se não fosse tão trágico.
Com essas palavras, oponho-me ao livre arbítrio? De modo nenhum. Oponho-me apenas ao reconhecimento de poder excessivo à vontade humana, que causa um inchaço na superfície da mística. Em si mesmo, o livre arbítrio é um dom tão divino quanto a razão. Porém, o ensino do Novo Testamento é claro, ao atribuir a experiência do pão da vida apenas à misericórdia de Deus, ao próprio Deus, e não ao livre arbítrio do homem.