“Acercando-se dele os discípulos, disseram-lhe: Por que [às multidões] lhes falas por parábolas? Ele, respondendo, disse-lhes: Porque a vós é dado conhecer os mistérios do reino dos céus, mas a eles não lhes é dado” (Mt 13:10-11).
Jesus ensinou as multidões por parábolas, para lhes proporcionar o primeiro vislumbre das coisas do reino dos céus. Nessas parábolas sobre fatos cotidianos, como a semeadura de um campo, e em outros ensinamentos simbólicos, ele ocultou a mensagem a respeito do reino. O discurso sobre o pão da vida é um desses ensinamentos com sentido oculto, que Jesus proferiu. A peculiaridade dele e dos outros discursos do Evangelho de João é que, após os ter proferido, Jesus explicou publicamente o seu significado.
Em claro contraste com o ensinamento público de Jesus, o discurso religioso das multidões da Galileia e Judeia era marcado por forte literalismo. Um dos motivos desse modo de se comunicar eram as altíssimas taxas de analfabetismo das massas. O outro era a influência dos fariseus. O historiador Flávio Josefo (ele próprio um fariseu) mostrou que, no século I, Israel estava dividido em vários grupos e seitas, que entendiam as Escrituras de maneiras muito variadas. Porém, a maioria do povo era simpática ao partido dos fariseus, cujas interpretações da Torá, dos Profetas e da História de Israel eram em geral bastante literais.
Não foi por deslize que o fariseu Nicodemos entendeu literalmente a afirmação de que, ao homem, era necessário nascer de novo (Jo 3:3-4). De modo semelhante, ao ouvir Jesus exclamar “Eu sou o pão que desceu do céu”, alguns integrantes da multidão murmuraram: “Não é este Jesus, o filho de José? Acaso não lhe conhecemos o pai e a mãe? Como, pois, agora diz: Desci do céu?” (Jo 6:41-42).
Havia motivos para o povo daquela época adotar uma interpretação literal das Escrituras e das falas de Jesus. Isso deve, no mínimo, suavizar o sentido da declaração de Mateus 13:10-11 de que à multidão não era dado conhecer as coisas ocultas do reino de Deus. A declaração não é uma imputação de culpa. Tampouco significa que Deus não desejasse revelar os segredos do reino às multidões. Porém, uma grave crise de comunicação estava no ar. As coisas de Deus eram costumeiramente entendidas em termos terrenos. Deus tinha um Templo em Jerusalém e desejava ser adorado ali. Necessário era que o homem lhe oferecesse determinados sacrifícios, de acordo com determinadas regras, e dissesse certas orações em horários prescritos. Essa maneira de pensar era projetada pelos judeus, nas Escrituras, que eram vistas como mananciais de obrigações semelhantes àquelas.
Enfim, tudo ou quase tudo, na fé de Israel, era terreno. No entanto, Jesus tinha por missão apresentar realidades totalmente celestiais, que as pessoas nem sequer suspeitavam. Como o povo estava acostumado a pensar e a sentir em termos terrenos e literais, não havia outra maneira de comunicar realidades celestiais a ele, a não ser partindo de terrenas. Porém, a maior parte das pessoas não entendia, quando Jesus o fazia, por meio das suas parábolas e ensinamentos simbólicos. João 6 foi o clímax da incompreensão ocorrida. Não apenas as multidões ficaram decepcionadas com o que Jesus ali ensinou como muitos discípulos deixaram de segui-lo.
A situação é diferente, em princípio, nos dias de hoje. Na maioria dos países, o grau de instrução do povo aumentou. Os princípios do discurso simbólico passaram a ser dominados, por um número muito maior de pessoas. A trajetória de 20 séculos do Cristianismo também preparou o terreno, para que as pessoas entendessem que as coisas de Deus estão inseridas numa dimensão espiritual e não terrena. Porém, apesar de tudo isso, a interpretação literal da Bíblia ainda é adotada de modo um tanto indiscriminado. Boa parte da experiência religiosa das pessoas é guiada por esse tipo de interpretação.
Não precisamos ir além dos limites do capítulo 6 de João para o percebermos. Os católicos e alguns protestantes continuam a pensar, até hoje, que a carne e o sangue mencionados, em João 6:53, são o corpo e o sangue literais de Jesus na eucaristia: “Se não comerdes a carne do Filho do homem e não beberdes o seu sangue, não tendes vida em vós mesmos”. Nem Lutero se despojou desse resquício milenar de literalismo. Pelo contrário, tanto ele como a Igreja fundada com base nas suas doutrinas acolheram a presença física de Jesus na eucaristia. Tudo isso aponta para um desnível e um conflito de linguagem que, ao longo dos séculos, têm impedido as pessoas de entender em maior profundidade as palavras de Jesus.
Infelizmente, o entendimento de que o pão da vida é a hóstia ou o alimento sólido presente na Ceia é só um exemplo de interpretação de João 6 em termos terrenos. Quando deslocam o tema do poder religioso da periferia para o centro da experiência cristã e quando usam o nome de Jesus para arrecadar dinheiro, outros erros da mesma estirpe são cometidos.
Informações seguras mostram que, ao contrário do que já se acreditou, a Galileia era uma das regiões mais prósperas do mundo, no século I. Por isso, quando perguntaram a Jesus “que sinais fazes?” (Jo 630), os integrantes da multidão não apenas quiseram levá-lo a operar uma nova multiplicação de pães como o fizeram com a intenção de guardar e vender os pães que Jesus viesse a multiplicar. Não foi por outro motivo que eles provocaram Jesus incisivamente: “Nossos pais comeram o maná no deserto, como está escrito: Deu-lhes a comer pão do céu” (Jo 6:31). É como se dissessem: “E tu, que nos dás?”.
Sob esse ponto de vista, a verdade evangélica é simples: quando buscamos ou pregamos Jesus para arrecadar dinheiro, além do que basta para o nosso sustento, estamos a transfigurar, como mágicos, a realidade celestial em terrena. Estamos a intensificar a grande crise de comunicação sobre o reino dos céus. Estamos a dizer às pessoas que o evangelho é deste mundo.
Embora João 6:35-59 não constitua uma parábola, o ensinamento que transmite é simbólico, pois o discurso nele contido se dirige à multidão. O próprio Jesus esclareceu que o pão que desceu do céu é “em nada semelhante àquele que os vossos pais comeram, e contudo morreram” (Jo 6:58). Isso significa que o pão não é literal. Não é a hóstia ou o pão que se encontra na Ceia.
"Essa experiência é mais que um aprender intelectual. É mais que um olhar comovido, mas exterior para a cruz. É um banquetear-se com a carne e o sangue de Jesus Cristo, uma transposição da cruz para dentro do coração humano."
Assim como o pão da vida é espiritual, comê-lo também é uma experiência espiritual, que começa com um ato voluntário e continua no plano involuntário. A parte voluntária consiste em ouvir e aprender do Pai. Jesus afirmou que essa experiência cumpre Isaías 54:13: “E serão todos ensinados por Deus”. Esse ensinar divino nada mais é que a sua revelação nas páginas da Torá (a Lei de Moisés) ampliada, ou seja, do Antigo Testamento. É, porém, uma revelação plenamente assimilada pelo ser humano, do ponto de vista subjetivo. Quando o profeta proferiu a frase que Jesus citou, isso ainda não havia ocorrido. Ocorreria mais tarde, quando o Israel de Deus aprendesse, de modo mais pleno, que “Deus enviou o seu Filho ao mundo” (Jo 3:17).
Aprender as Escrituras, porém, não é apenas conhecer o Pai, mas ir ao Filho. Essa experiência é ainda mais profunda que a de ouvir e aprender o significado do Antigo Testamento. Ela é mais que um aprender intelectual. É mais que um olhar comovido, mas exterior para a cruz. É um banquetear-se com a carne e o sangue de Jesus Cristo, uma transposição da cruz para dentro do coração humano. Com essa transposição, a vida eterna se torna um elemento do coração do homem.