Homologada a condenação de Jesus por Pilatos, ele foi entregue aos soldados romanos, para ser crucificado. A paixão começou com o espancamento de que Jesus foi vítima.
Pouca dúvida resta sobre a historicidade desse espancamento. Embora abusiva, a prática fora introduzida no exército romano. Porém, o grau de flagelamento a que Jesus foi submetido envolve dúvidas. Foi ele torturado ao ponto extremo de A Paixão de Cristo, do diretor Mel Gibson? Vejamos o que o outro Gibson, arqueólogo, tem a declarar:
“A crucificação era, com frequência, precedida por açoitamento, amarrando a vítima a uma coluna e espancando-a com um flagellum – vara com cordões de couro ou correias com pontas de ferro duro ou de ossos. O espancamento não poderia constituir ameaça à vida, pois o condenado ainda deveria ter força suficiente para carregar a trava de madeira, horizontalmente, nos ombros até o local da crucificação. A vítima era levada por soldados, um dos quais levava o titulus – uma inscrição com o nome do criminoso e sua ofensa, para ser afixado na cruz, acima do moribundo” (GIBSON, Shimon. Os últimos dias de Jesus - a evidência arqueológica. São Paulo: Landscape, 2009. p. 125).
As palavras de (Shimon) Gibson são um bom resumo histórico do açoitamento. Cumpre acrescentar somente que a prática também podia constituir uma pena autônoma, ministrada aos culpados de delitos menores. Nesse caso, era preciso moderar o açoitamento, por não se tratar de pena de morte. Os soldados romanos eram adestrados para aplicar, corretamente, todas essas diversas penas. Eles eram particularmente condicionados a desassociar o flagelamento com açoites dos castigos que resultavam em morte. Teria sido uma inépcia sem paralelo aplicarem, em Jesus, o flagelo que antecede a crucificação em A Paixão, de Mel Gibson.
Não foi por outro motivo que (Shimon) Gibson declarou: “Saí de uma sessão do filme de Mel Gibson sobre os últimos dias de Jesus, A Paixão de Cristo, sentindo-me ensopado com o desnecessário sangue de Hollywood” (idem. p. 13). De fato, o sangue que o filme faz Jesus derramar, durante o açoitamento, é demasiado. Esse primeiro flagelo era ministrado, na dose necessária para debilitar o condenado, sem que os executores se arriscassem a matá-lo.
Mesmo assim, sabemos que Jesus foi rudemente golpeado, pelos soldados, e teve de carregar a própria cruz, como a Arqueologia descobriu ser comum na época. A cruz não podia ser pequena, nem leve demais, pois devia suster o corpo de um homem sem desabar. No entanto, não deve ter sido o objeto alto que se costuma representar.
Em 1968, arqueólogos descobriram os restos de um homem crucificado, numa cova judaica do século I d. C. O calcanhar direito estava atravessado por um prego de 11,5 centímetros de comprimento (idem. p. 126). Essa é a evidência física mais direta, de que dispomos de uma crucificação ocorrida, em Jerusalém, no século de Jesus.
Sabemos que os métodos de crucificação eram tão variados quanto as vítimas desse suplício. Por isso, os restos da vítima do primeiro século não nos dizem algo aplicável a todas as ocorrências da pena capital romana. As posturas do condenado na cruz variavam, conforme os tipos de traves e vigas disponíveis. Tudo dependia das circunstâncias. Normalmente, o condenado era preso à cruz, despido, por meio de cordas e pregos de ferro (idem. pp. 129, 131). Como não suportava o peso do próprio corpo, ele sofria espasmos musculares e morria asfixiado, em algumas horas.
Jesus caminhou com a cruz, do Pretório ao Monte Calvário. Embora ficasse fora da cidade, o lugar não era muito distante do Pretório. Porém, por se tratar de um monte, a sua escalada com a cruz foi particularmente extenuante. Por isso, Jesus teve de ser auxiliado por Simão Cireneu. O papel de Simão empresta autenticidade ao relato dos evangelistas, pois teria sido humanamente impossível a alguém carregar a cruz sozinho, por percurso tão longo e com trechos íngremes. No Calvário, Jesus foi crucificado.
Holger Kersten considera que o vinagre, que ofereceram a Jesus, quando ele estava na cruz, foi responsável pela perda de consciência e a morte aparente, que se seguiram. Kersten buscou essa teoria nos versículos de João que afirmam: “Disse: Tenho sede! Estava ali um vaso cheio de vinagre. Embeberam de vinagre uma esponja e, fixando-a num caniço de hissopo, lha chegaram à boca. Quando, pois, Jesus tomou o vinagre, disse: Está consumado! E, inclinando a cabeça, rendeu o espírito” (Jo 19:28-30).
De acordo com o autor do best-seller sobre a peregrinação de Jesus à Índia, o vinagre era utilizado para animar os condenados às galés (KERSTEN, Holger. Jesus viveu na Índia – a desconhecida história de Cristo antes e depois da crucificação. 24ª ed., Rio de Janeiro: Best Seller, 2007. p. 173). Não há dúvida de que os romanos ofereciam essa substância, também, aos condenados à morte. Kersten cita a passagem do Talmude que narra: “Aquele que caminhava para a execução recebeu um copo de vinho, com um pequeno pedaço de incenso, para que ficasse inconsciente (Sanh. 43a)” (idem). O vinho e o vinagre eram ministrados aos condenados, para entorpecê-los.
Até aí, Kersten caminha bem. Como a pena de crucificação era aplicada amiúde, em Israel (Josefo narra centenas de crucificações concomitantes), os judeus estavam familiarizados com os efeitos do vinagre ministrado aos condenados. A passagem de João é particularmente sugestiva de que Jesus desfaleceu, após ingerir o vinagre. Porém, nada disso significa que ele não morreu. A perda da consciência não significa que o processo de liquidação do seu corpo cessou. Muito pelo contrário, esse processo continuou, durante o período em que os judeus foram solicitar a Pilatos que mandasse quebrar as pernas dos condenados, para que morressem logo (Jo 19:30-33).
Para direcionar a perda dos sentidos por Jesus à sua teoria da sobrevivência, Kersten cita relatos de drogas que produzem tal estado de torpor, nos seus usuários, que eles parecem morrer. Fiel à sua tendência de ligar Jesus à Índia, esse autor busca evidências do uso de drogas com esses poderes, naquele país e na vizinha Pérsia. Nesta, ele encontra a haoma; naquela, o soma. Ambas eram extraídas da planta asclepias acida:
“Na Índia, a bebida do soma permitia que as pessoas familiarizadas com a droga ficassem aparentemente mortas por vários dias, despertando depois em um estado de euforia que durava também vários dias. Em tal estado de êxtase religioso podia manifestar-se uma consciência mais elevada, dotada de novos poderes de percepção” (idem. p. 173).
O problema é que não há provas de que os romanos ministrassem soma indiana aos seus condenados. Embora pudesse entorpecer, o vinagre que Jesus bebeu tampouco tinha as propriedades da asclepias. Ele foi ministrado, porque Jesus reclamou de sede, e era proibido dar água aos condenados.
Os sinóticos relatam que houve trevas, na terra, durante a crucificação. A localização de um fenômeno natural “na terra” ou “em toda a terra” é comum nas Escrituras. A palavra terra indica um lugar determinado, não o planeta todo. No caso, a cidade de Jerusalém.
As trevas mencionadas, nos sinóticos, foram interpretadas como um eclipse, pelos historiadores Talo e Flegão, citados por Júlio Africano. Embora adotada por vários estudiosos, a teoria do eclipse foi afastada, pela ciência moderna, que não identificou a possibilidade de um fenômeno assim ter ocorrido, nas datas prováveis da crucificação. Mais verossímil é que as trevas tenham sido causadas por nuvens pesadas e negras, que encheram o céu de Jerusalém, encobrindo o sol.
Mateus ainda informa que um terremoto ocorreu, na hora da morte: “Tremeu a terra, fenderam-se as rochas, abriram-se os sepulcros, e muitos corpos de santos, que dormiam, ressuscitaram” (Mt 27:51-52). O véu do santuário rasgou-se de cima a baixo, na mesma hora.
A ocorrência de um terremoto, na hora exata em que Jesus expirou, é improvável. Porém, não é esse o sentido do texto de Mateus. Seria absurdo um autor pretender estabelecer, décadas depois, de maneira exata, o momento em que um tremor se verificou. Não é isso que Mateus realiza ou sugere. O texto quer, tão-somente, informar que houve um terremoto em Jerusalém, naquele dia. Tanto é que ele continua: “e, saindo dos sepulcros depois da ressurreição de Jesus, entraram na cidade santa e apareceram a muitos” (Mt 27:53).
A ressurreição e as aparições a que Mateus se refere foram um processo, não um fato pontual. Os mortos só saíram dos sepulcros, “depois da ressurreição de Jesus”. Portanto, o terremoto não foi simultâneo à crucificação.
É provável que Mateus tenha em mente uma ressurreição continuada, que durou vários dias, meses ou mesmo anos. Sua intenção é associar a obra de Jesus, na cruz, à ressurreição dos santos. É mostrar que a ressurreição foi e é o efeito contínuo do evangelho. Como o termo ressurreição tinha sentido bastante elástico, muito provavelmente, Mateus se refere a visões, que várias pessoas tiveram de indivíduos mortos, nos dias que se seguiram à morte de Jesus.
O terremoto também causou avarias, no recinto interior do Templo, onde só o Sumo-Sacerdote podia ingressar, uma vez por ano. A tradução da frase “o véu se rasgou de alto a baixo” é um tanto enigmática. Parece indicar um movimento anormal. O véu ficava pendurado numa estrutura, que o encimava e que deve ter sido abalada pelo terremoto. Se essa estrutura tivesse duas partes, elas poderiam se desencaixar, e o véu poderia voltar ao repouso em posição inclinada, após o terremoto. Se isso tiver ocorrido, o verbo rasgou-se seria melhor traduzido fendeu-se ou abriu-se.
O interesse particular dos judeus na crucificação de Jesus fez com que o encerramento do ato fosse apressado, pois o dia seguinte era sábado, quando não podem realizar trabalhos. O método de antecipação da morte, que os romanos mancomunados com as autoridades judaicas se dispuseram a usar, consistiu em quebrar os ossos de Jesus e dos ladrões crucificados com ele. Porém, quando os soldados foram fazê-lo, Jesus já havia morrido.
Nesse momento, um soldado perfurou o lado de Jesus com a lança, para se certificar de que ele estava morto. Do lugar perfurado, saiu sangue misturado com água. A maior parte dos autores explica essa mistura como o soro que se forma em lugar do sangue, durante o processo de decomposição. Numa época pré-científica, esse soro sanguíneo foi descrito, com admirável precisão, como uma mistura de “sangue e água”.
Porém, o sangue só entra em decomposição, seis horas após a morte. Por isso, talvez tenhamos de optar entre a exatidão do horário da morte, em Mateus e Marcos (a hora nona, três da tarde), e o jorro de sangue e água do lado de Jesus pouco antes do sepultamento. Como esse jorro foi testemunhado de modo específico (Jo 19:34-35), na necessidade de optar, parece melhor fazê-lo em favor da perfuração e recuar o horário da morte. Talvez até o da crucificação.
Sobre esse ponto, vale recordar que Marcos fornece duas informações de horário: as trevas que envolveram Jerusalém e arredores estenderam-se da sexta à nona hora, e Jesus morreu na hora nona (Mc 15:33-37). Mateus, que segue a narrativa de Marcos quase palavra por palavra, relativiza o horário do segundo acontecimento, ao dizer "por volta da hora nona" (Mt 27:46). Mas o mais importante é que Lucas recua as trevas (portanto, a própria crucificação) para antes da hora sexta e retira toda referência ao horário da morte: "Já era quase a hora sexta e, escurecendo-se o sol, houve trevas sobre toda a terra até a hora nona. E rasgou-se pelo meio o véu do santuário. Então Jesus clamou em alta voz: Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito! E, dito isto, expirou" (Lc 23:44,46). A localização da morte, em Lucas, é dada pela palavra então ("Então Jesus clamou [...] e expirou"). Mas essa palavra se refere ao momento em que o véu se rasgou, não à hora nona.
Morto, Jesus foi sepultado, por Arimateia e Nicodemos. Shimon Gibson considera que a localização exata do túmulo é impossível de ser determinada, com base no conhecimento atual. Ele não descarta uma localização próxima da Igreja do Santo Sepulcro, mas deixa a questão em aberto.
Ao relato do sepultamento, Mateus acrescenta o da designação de uma guarda para o sepulcro. Mateus não inventou esse relato, mas recolheu-o do meio religioso em que vivia e o registrou no seu livro. Em todos os evangelistas, o processo de recepção, seleção e transmissão de uma história, em forma escrita, é orientado por seus propósitos redacionais. No caso de Mateus, o propósito foi provar que Jesus cumpriu as profecias messiânicas. A ressurreição era uma predição messiânica. Para aumentar o grau de certeza de que Jesus a cumprira, o autor de Mateus selecionou o relato da guarda do sepulcro.
Claro que a pergunta merece ser formulada: houve de fato uma guarda? Não é preciso responder que sim, para que o relato de Mateus seja considerado histórico. Pode ser que o ponto em questão tenha sido adicionado por copistas interessados em afastar a versão do furto do corpo de Jesus. Devemo lembrar-nos de que o relato da guarda não aparece em qualquer dos outros Evangelhos e de que Mateus recua o horário da ressurreição de 10 a 12 horas em relação aos demais Evangelhos. Isso pode indicar algum grau de manipulação do relato desse livro, por copistas interessados em exacerbar o propósito original de Mateus, que era provar o cumprimento das profecias messiânicas.