Cinquenta dias transcorreram, entre a Páscoa e o Pentecoste, quando Lucas afirma que a ressurreição de Jesus foi anunciada, publicamente, pela primeira vez. Esse foi o provável período de tempo, durante o qual a versão dos discípulos sobre a ressurreição foi elaborada. Nesta e nas próximas postagens, discutirei como a elaboração se deu.
Para enfrentar a questão, o melhor caminho será considerar, à maneira de uma perquirição judicial, as principais hipóteses explicativas do evento, por trás da ressurreição, e as evidências que as corroboram ou infirmam. Quatro são as hipóteses explicativas da ressurreição: a) Jesus sobreviveu à crucificação; b) o corpo de Jesus permaneceu onde foi sepultado; c) o corpo foi transferido do sepulcro para outro lugar; d) Jesus ressuscitou. Irei discuti-las nesta e nas próximas postagens.
a) A hipótese da sobrevivência
A hipótese da sobrevivência foi defendida pelos primeiros muçulmanos (nesse sentido, KHALID, Tarif, org. O Jesus muçulmano - provérbios e histórias na Literatura Islâmica. Rio de Janeiro: Imago, 2001. Introdução). Modernamente, foi retomada por Holger Kersten, no livro Jesus viveu na Índia (24ª ed., Rio de Janeiro: Best Seller, 2007). As tradições escritas sobre a sobrevivência não recuam além da época de Maomé. Não foi por outro motivo que Kersten teve de buscar na Índia evidências mais críveis de que Jesus teria sobrevivido. Porém, as evidências reunidas, no livro dele, fazem prova mais eficaz de que a Índia abrigou um enclave cristão, como o que comprovadamente existiu antes do primeiro século na Etiópia, do que da ida de Jesus para lá, após a crucificação.
Do modo como os etíopes criaram lendas, ligando a recepção das tradições judaicas, nas suas terras, a Moisés, Salomão e outras personalidades bíblicas, os indianos fizeram o mesmo com Jesus. Não precisamos emprestar crédito à tradição etíope de que uma parte dos israelitas que saiu do Egito desceu para lá, e outra parte foi para Canaã. Pelas mesmas razões, não precisamos tomar como fidedignos os relatos da ida de Jesus à Índia, que ali circularam durante algum tempo. O que há de certo, em ambos os casos, é que judeus migraram para a Etiópia e a Índia. No último caso, o sinal mais visível dessa migração é o fato de a Caxemira ter, até hoje, um idioma quase idêntico ao aramaico usado em Israel na época de Jesus.
A tradição cristã primitiva, recolhida em Eusébio (CESAREIA, Eusébio de. História Eclesiástica. Rio de Janeiro: CPAD, 1999), reza que Tomé foi pregar o evangelho na Índia. Não é impossível que a ida de um dos apóstolos tenha sido, ao depois, transformada no comparecimento do próprio Jesus.
Porém, nenhuma dessas evidências faz da ideia da sobrevivência mais do que uma invenção muito posterior à morte de Jesus. Ela é contrariada, pelo testemunho convergente dos quatro Evangelhos, de dois historiadores (Josefo e Tácito) e dos judeus (Talmude), que afirmaram que Jesus morreu crucificado.
Quando Josefo, Tácito e os autores do Talmude escreveram, os cristãos ainda não eram a comunidade numerosa e de âmbito mundial, que vieram a se tornar mais tarde. Apesar da Diáspora ou por causa dela, os judeus eram mais importantes que eles. Por isso, tanto Josefo como Tácito e os autores do Talmude tinham motivos de sobra, para expressar um ponto de vista judeu discrepante do cristão, sobre a morte de Jesus, caso tivesse existido. Como nenhum deles o fez, é de se concluir que nem os partidários, nem os opositores de Jesus acreditaram na hipótese da sobrevivência à crucificação.
A posição de Josefo sobre esse assunto é particularmente significativa. Os três últimos Livros das Antiguidades têm características diferentes dos dezessete que os precedem. Estes informam, concisamente, os fatos de cada época. Já os Livros XVIII, XIX e XX, que tratam do século em que Josefo viveu (I d. C.), trazem narrativas muito mais pormenorizadas. O poder dos irmãos Asineu e Anileu, da colônia judaica em Babilônia (Antiguidades. 5ª ed., Rio de Janeiro: CPAD, 1999. pp. 432-435), e o assassinato de Calígula (idem. pp. 436-443) são exemplos de acontecimentos narrados com tal riqueza de detalhes que chegam a causar espanto. É pouco provável que um autor tão bem informado, sobre os acontecimentos do primeiro século, tenha omitido os rumores da sobrevivência de Jesus à morte, se eles tivessem existido ou sido relevantes. Em suma: se as obras mais detalhadas da época não contêm o menor vestígio de que as testemunhas da morte de Cristo a entenderam de outra maneira, por que razes alguém de boa-fé, que não testemunhou aquele acontecimento, iria alterar o seu conteúdo séculos depois?
Há mais: por que os romanos, que condenaram Jesus à morte por crucificação, nunca se importaram em procurá-lo, se rumores consistentes de sobrevivência circularam? Os romanos não se interessarem pelo caso equivaleria a desautorizarem a sua própria ordem de execução do prisioneiro galileu. Equivaleria a proclamar ao mundo que as sentenças romanas não precisavam ser cumpridas, pois Jesus fora condenado à morte, escapara com vida, e os romanos haviam deixado tudo nesse mesmo estado.
b) A hipótese da morte comum
Não há indícios de que a ideia da permanência do corpo de Jesus no sepulcro tenha encontrado seguidores no primeiro século. Ainda assim, temos de considerar essa hipótese como uma das maneiras pelas quais se pode, teoricamente, explicar os fatos que se seguiram à morte e ao sepultamento.
A razão pela qual essa hipótese não pode ser verdadeira é simples: os cristãos tiveram nos saduceus, nos sacerdotes, nos escribas e em outras autoridades exaltados adversários. No entanto, nenhum deles mandou abrir o sepulcro, para provar que a pregação dos cristãos era falsa. Não há a menor notícia disso, em toda a literatura conhecida. Como teria sido extremamente fácil para qualquer indivíduo daqueles grupos mandar fazê-lo, a hipótese de que o corpo permaneceu no sepulcro parece profundamente equivocada.
Mesmo assim, em pleno século XXI, uma obra sensacionalista foi lançada, anunciando a descoberta da tumba de Jesus Cristo, em plena Jerusalém. A prova fornecida pelo descobridor - ninguém menos que o cineasta norte-americano James Cameron - é uma sepultura com os nomes de Jesus, Maria (Madalena, para Cameron e talvez também para Dan Brown) e o filho dos dois denominado Judas. Nada mais do que isso; porém, foi o bastante para o autor anunciar a maior descoberta da História.
Claro que o achado não foi realizado pelo próprio cineasta, mas por peritos em Arqueologia. Curiosamente, um desses peritos, o arqueólogo Amos Kloner, veio a público, depois de Cameron divulgar sua interpretação, para desmenti-la. De acordo com ele, a gruta encontrada continha caixões pertencentes a uma família judia cujos nomes são parecidos com os de Jesus e seus parentes. Nada mais do que isso. "Posso dizer positivamente que não aceito a identificação como pertencendo à família de Jesus em Jerusalém", declarou o arqueólogo à Agência Reuters (www.tumbadejesus. tripod.com/oglobo2).
Mesmo assim, o descobridor apresentou-se como autor da façanha imortal de vender dezenas de milhares de cópias do seu documentário e de um livro, em cima desse conto. Que me desculpem a obstinação em dizê-lo e em não aceitar tão boa prova de que os Evangelhos precisam ser reescritos, já que não houve ressurreição, e Jesus desposou Maria. De fato, nunca se matou dois coelhos mais importantes com a mesma cajadada.
Cameron arrazoa: como poderiam os nomes de três pessoas de uma família judaica do primeiro século serem idênticos aos de Jesus, Maria e Judas (o irmão de Jesus, como é óbvio) sem se tratar dos próprios? A conclusão é tão elementar quanto a inferência de que uma sepultura com os nomes João, José e Maria, localizada no Brasil, pertence por certo à família dos três indivíduos mais famosos com esses nomes e algum parentesco recíproco.
O apêndice "A tumba de Talpiot e o ossário de Tiago", incluído no livro de Shimon Gibson sobre a última semana de Jesus, esclarece, a meu ver cabalmente, a descoberta. O arqueólogo mostra que "dez ossários foram descobertos na tumba Talpiot". As inscrições mencionadas acima foram encontradas num deles. Outro ossário contém a frase: "Tiago, filho de José, irmão de Jesus". Gibson continua: "Os nomes Yehuda (Judas) e Yeshua (Jesus) eram muito populares no século I [...] Tem havido muita polêmica em todo o mundo sobre a sugestão de que a tumba Talpiot, talvez, seja a tumba familiar de Jesus. Além da semelhança entre certos nomes nos ossários de Talpiot e nomes conhecidos dos evangelhos (Jesus, Maria e José), o principal aspecto a favor desse argumento tem sido que Mariamene, inscrito em um dos ossários, é uma forma de Mariamne, que deveria ser identificada como Maria Madalena, e que o nome José, em outro ossário, deveria ser identificado como sendo o de José, irmão de Jesus [...] Contudo, conforme mencionado antes, a leitura apropriada da suposta inscrição Mariamne parece ser Mariame kai Mara, como grande número de estudiosos concluiu recentemente [...] Isso daria a entender que os restos de esqueleto de duas mulheres foram colocados no ossário [...] O nome Yosé, em um dos outros ossários, poderia, na verdade, ser uma forma abreviada de Yehosef, e, na minha opinião, é provável que seja o mesmo Yehosef pai de Yeshua de outro ossário da tumba" (GIBSON, Shimon. Os últimos dias de Jesus - a evidência arqueológica. São Paulo: Landscape, 2009. pp. 199-200).