Do polo cultural da televisão, em que abundam programas sobre Jesus, ao polo oposto da ciência, que há dois séculos se dedida à investigação dos Evangelhos, tudo confirma que Jesus de Nazaré continua a ser fundamental para o que costumamos denominar o Ocidente. Por outro lado, não é menos inegável que o Cristo profético, o Cristo como ele próprio se viu, tem sido apagado das mentes e dos corações pelo Jesus construído por uma nova cultura disseminada por meios eletrônicos e científicos.
O objetivo desta série foi mostrar que a perda de Jesus, não como homem comum, mas como o Cristo, é muito mais que um problema científico. É um mal civilizacional, na medida em que diz respeito à identidade profunda do mundo ocidental e de partes do oriental. Aquele mundo brilhante, que se tornou perverso e violento, é antes de tudo cristão. Por esse motivo, ao perder a consciência do Cristo, ao se descristianizar, o Ocidente se despojou da sua própria identidade. Ao despojar-se, ele colocou em risco a sua própria civilização.
O declínio do Ocidente é um tema reiterado, na literatura universal. Desde Spengler, ele tem sido explicitamente elaborado. Alguns acontecimentos reforçaram a tese da decadência. Foi o caso das Guerras Mundiais do século passado. Outros fatos pareceram refutá-la. Por exemplo: a era de prosperidade encravada, entre a Segunda Guerra e a primeira crise do petróleo. Ao combinar a superação dos conflitos globais com a descoberta de uma saída para a Grande Depressão, o desenvolvimento tecnológico, as liberdades democráticas e os benefícios do Estado de bem-estar, esse período brilhante pareceu sugerir que o declínio era uma falácia.
Fato é que o tempo passou, o sonho do comunismo acabou, a bipolaridade política encerrou-se, as utopias tiveram seu caráter ilusório desmascarado e, ainda assim, o que avultou foram graves problemas. A prosperidade da era de ouro do século XX se foi. A crise de 2008-2009 encerrou o outro ciclo de prosperidade, que se esboçou a partir de 1990. Ao mesmo tempo, o fim da Guerra Fria não produziu a redução dos índices de violência, alcançados pelo Nazismo e o Socialismo Soviético. É o que nos lembram os atentados terroristas e as intervenções militares norte-americanas em vários lugares do mundo. Por esses motivos, voltamos a nos perguntar, seriamente, o que se passa com o Ocidente. Voltamos a nos perguntar se ele não retomou, ou simplesmente manteve, seu prolongado processo de decadência.
O Ocidente acusa o Islã de atraso e obscurantismo. No entanto, o entusiasmo que os muçulmanos demonstram com o seu próprio desenvolvimento, a vontade de mudança que eles revelam, as taxas de crescimento demográfico que ostentam sugerem que os seus povos não estão em maior decadência que o Ocidente. O Islã vive um dilema profundo, uma dúvida essencial, sobre como se modernizar sem se ocidentalizar. Nós não temos tal dilema: temos outros e piores; temos espasmos de identidade tão violentos que levam intelectuais a indagar se não atravessamos uma crise de regressão.
Civilizações surgem, desenvolvem-se, atingem o apogeu, decaem e se extinguem. As duas últimas etapas do ciclo da sua existência assinalam-se por crises de identidade e pelo afrouxamento da disciplina empregada para desenvolver a cultura. Nem sempre uma civilização decadente se extingue, porém ela pode retroceder aos núcleos originais de que nasceu. Pode ser que o Ocidente atravesse um processo tendente a esse fim.
Depois de haver perdido a noção do que o Cristo foi em si e por si, após tê-la substituído pela noção que as igrejas fizeram dele, a civilização ocidental ameaça voltar-se, em definitivo, contra a figura de Cristo. Não se voltar abertamente, não atacar essa figura de frente, é verdade, mas substituí-la, quase imperceptivelmente, pelo Jesus histórico entendido como o Jesus comum, que no fundo e em síntese não faz sentido religioso algum; por um Jesus que faz, até mesmo, escasso sentido civilizatório. Aonde esse processo leva, a não ser à perda da identidade civilizacional do Ocidente?
Esta série procurou mostrar que a troca do Cristo por Jesus, do Messias divino pelo homem comum, deu-se pela moeda da história, porém a moeda era falsa. Foi o que procurei mostrar, pelo menos, em relação à última semana. A crítica científica, histórica e literária ao Cristo das Escrituras cresceu a ponto de se transformar numa hipercrítica, que ameaça descarrilar de vez. O super-homem que concebeu esta última veio a óbito, porém deixou como herdeira a obstinação por liquidar o núcleo da religião e, com ele, o da própria civilização.
Nesse contexto, nada é mais útil ou necessário do que reestudar quem realmente foi Jesus. Se o câmbio do Cristo da religião pelo Jesus humano se deu, mediante a moeda da história, é preciso celebrar a transação inversa, por meio da mesma moeda. É preciso verificar se é possível reencontrar o Cristo, pelo Jesus histórico. Foi o que tentei realizar, em parte, nesta série de artigos sobre os acontecimentos da última semana.
Em O choque de civilizações (Rio de Janeiro: Objetiva, 2010), o cientista político norte-americano Samuel Huntington afirmou a importância central da religião para a formação e a sobrevivência de qualquer civilização. Não é possível negar-lhe razão. Porém, o papel destacado da religião, na ordem social, não se deve a suas posições reacionárias, mas à sua capacidade de se renovar e assumir formas revolucionárias. Não é outro o valor específico da fé cristã demonstrado na última semana da vida de Jesus.
Jesus de Nazaré foi um homem da sua época, um adorador de Jeová, um cultor do Tanaque, a Bíblia hebraica, um observante das leis de Israel, um rabi que ensinava nas sinagogas e no Templo de Jerusalém. Antes de ser preso, Jesus discutiu, longamente, com representantes das principais correntes de pensamento da época. Essa era uma atividade rabínica bastante típica. Porém, o que distinguiu Jesus foi a maneira como ele denunciou os desvios das várias correntes da religião que professou, como se preocupou em introduzir uma nova aliança com Deus, pautada no amor e na compaixão, como pôs em movimento essa pregação e esse ensino, na sua própria vida, compadecendo-se dos fracos, doentes, pobres e oprimidos. Com isso, Jesus não criou uma religião totalmente nova, mas fez tudo o que era preciso para redirecionar e renovar a religião judaica. É inegável, também, que Jesus obteve o mais amplo sucesso nesse desiderato.
Mais que em qualquer outro momento dos Evangelhos, o caráter revolucionário do ministério de Cristo demonstra-se na sua última semana de vida. Nesse curto período, Jesus entrou em Jerusalém montado num jumentinho, cumprindo intencionalmente a profecia messiânica de Zacarias, expulsou os vendilhões do Templo sem permissão das autoridades, afirmou que o templo seria destruído (um ultraje grave), provavelmente curou pessoas, discutiu asperamente, em momentos consecutivos, com representantes das principais correntes de pensamento da época, com exceção dos essênios, condenou os escribas e os fariseus no discurso inflamado que proferiu no Templo, assumiu seu papel messiânico ante o Sumo-Sacerdote e respondeu, incisivamente, os interrogatórios judiciais a que foi submetido.
Durante todo esse tempo, inclusive nos interrogatórios, Jesus nunca se retraiu. Pelo contrário, ele se manteve sempre na ofensiva, respondendo não só com firmeza, mas até com agressividade aos juízes e líderes que o interrogaram. Chegou ao ponto de recusar a bebida oferecida para roubar-lhe os sentidos e atenuar-lhe o sofrimento na cruz. Jesus só tomou o vinagre, minutos antes de expirar. Portanto, ele decidiu enfrentar o maior e mais humilhante castigo público daquela época, em toda a sua brutalidade e sem atenuações. Tudo isso ele fez sozinho, pois seus seguidores o abandonaram. Fê-lo com resultado espantoso, pois a maioria dos juízes que o examinaram convenceu-se da sua inocência.
Esses dados indicam que o sentido da última semana é o de uma grande revolução espiritual. O Evangelho de João abre a narrativa desse tempo, que excede todos os outros em importância, com as seguintes palavras: “Tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim” (Jo 13:1). Essa frase é a chave para abrirmos os mistérios do que Jesus realizou nos capítulos seguintes, a saber, os acontecimentos revolucionários da última semana.
Ao mesmo tempo, ela desvenda o sentido da inteira vida de Jesus, antes e durante a última semana. De acordo com o célebre verso, antes daquele momento Jesus amara os seus que estavam no mundo; depois dele, amou-os até o fim. Talvez saibamos, embora mal, o que é amar. Porém, certamente, o mundo não havia conhecido, até então, o que é amar até o fim. Essa é razão bastante para dividirmos o Evangelho entre o que vem antes de João 13:1 e o que vem depois. A última semana, somente ela, desvenda o amor terminal, o amor sem limites, o amor até o fim, o amor diferente de tudo o que é terreno, de tudo o que é temporal, de tudo o que histórico.
Até João 13, vemos o amor temporal, o amor encarnado, o amor dentro do mundo e da história; a partir de João 13, contemplamos o amor atemporal na mais exata definição, o amor divino oculto dos séculos e das gerações, cuja luz não brilhara na Terra até então, mas que brilhou na espessa treva que envolveu Jerusalém, como um manto, durante as três horas finais. A luz brilha nas trevas: trevas por definição foram as que tomaram o Gólgota; amor foi o de Jesus.