sábado, 30 de abril de 2011

Páscoa (4): A Escolha da Multidão

2- Tribunal, lugar chamado Lithóstrotos [Pavimento], em hebraico Gabbathá (Jo 18, 13)
3- «Ágora de cima» (praça do mercado e do tribunal)
5- Átrio da flagelação
12- Saída para o Calvário

Em Antiguidades, Josefo inseriu a famosa passagem sobre Jesus, logo após a narrativa de dois episódios em que Pilatos entra em confronto com multidões de judeus. Esse parece ter sido o contexto imediato do julgamento. À luz dos acontecimentos antecedentes, Pilatos deve ter considerado o caso de Jesus muito diferente: dessa vez, os acusadores do rabi galileu eram as autoridades máximas da nação de Israel.
Por outro lado, de todos os ângulos, o caso de Jesus parecia ser irrelevante para os romanos. Isso significava uma oportunidade para Pilatos agradar os maiorais da sua província, para ele ganhar a sua simpatia. Afinal, se não havia conflito de interesses, entre Roma e Israel, por que desagradar os sacerdotes judeus? Por que lhes negar o que suplicavam com tantas instâncias?
No entanto, a passagem mais elucidativa da morte de Cristo, que se encontra em Josefo, é a meu ver a informação transmitida por ele, não propriamente a respeito do caso, mas sobre o costume das autoridades judaicas de abrir as portas do Templo, à meia-noite da Páscoa. A passagem do historiador judeu diz exatamente: “Copônio governava a Judeia, quando chegou o dia da festa dos Ázimos, a que chamamos Páscoa; os sacrificadores, segundo o costume, abrem[iram] as portas do templo à meia-noite” (JOSEFO, Flávio. JOSEFO, Flávio. Antiguidades judaicas. In História dos hebreus – obra completa. 5ª ed., Rio de Janeiro: CPAD, 1999. Livro Décimo-Oitavo, Capítulo 3, p. 417).
Na cronologia da última semana, Jesus foi preso, na noite da Páscoa. A ordem de prisão emanara das autoridades do Templo, que parecem ter-se sentido desprestigiadas por ele ter expulsado os cambistas e vendilhões do Templo, sem autorização delas, quatro dias antes. Ora, se as autoridades haviam ordenado a prisão, nada mais adequado que Jesus ser apresentado a elas, após preso.
Porém, de acordo com Josefo, os sacerdotes e os chefes do Templo deviam estar naquele lugar sagrado, cujas portas haviam sido abertas, no horário em que a prisão ocorreu. Embora os Evangelhos não afirmem que Jesus foi levado ao Templo, mas à casa do Sumo-Sacerdote, um edifício ficava no caminho do outro. Qualquer mapa da Jerusalém da época de Jesus mostra que as portas mais próximas do caminho para o Getsêmani (onde ocorreu a prisão) abriam-se uma para o interior do Templo e a outra, para o muro lateral deste. Como a prisão de Jesus foi ordenada, pelos principais sacerdotes, que provavelmente estavam no Templo, quando ela foi executada, é provável que os guardas que o conduziram tenham entrado por uma dessas duas portas para avisar os sacerdotes de que a ordem fora cumprida.
Shimon Gibson escreveu Os últimos dias de Jesus, com o objetivo confesso de estabelecer, o mais definitivamente possível, a posição da Arqueologia sobre a última semana. A repercussão de sua obra, no meio especializado, pode ser resumida na seguinte declaração: "[O livro de Gibson] permeia a mitologia do século IV com evidências do século I, levantadas através do seu conhecimento profundo da notável cidade de Jerusalém" (KROSNEY, Herbert, co-autor de O Evangelho perdido: como o mundo veio a conhecer a versão de Judas Iscariotes sobre a morte de Cristo).
Gibson discorda dos especialistas que fazem o percurso do Getsêmani à casa de Caifás passar pela porta por mim mencionada. Ele encontra um caminho talvez mais consentâneo com a mentalidade militar, que passa por aquela porta e segue até a entrada seguinte de Jerusalém, situada rente ao Tanque de Siloé.
Uma pequena tropa como a que realizou a prisão de Jesus deve ter definido o seu itinerário de acordo com as suas finalidades militares. Para Gibson, como tinham de ir à casa de Caifás, os soldados o fizeram da maneira mais discreta possível. Se uma multidão estava aglomerada no Templo, eles entraram pela porta mais distante do grande edifício religioso, em toda a extensão da muralha ao lado do Getsêmani. Porém, o caminho que penso ter sido o real sugere outro plano. Sugere que as autoridades judaicas planejaram e mandaram executar a prisão de Jesus de modo teatral. Foi seu propósito colocar Jesus contra a multidão de judeus que tinham ido celebrar a Páscoa e não o conheciam. Para isso, era importante que Jesus fosse aprisionado por uma escolta romana e outra judaica, o que indicaria a concordância das autoridades de ambos os povos. E era preciso fazer o cortejo com o prisioneiro passar rente ao Templo para que a convergência das autoridades e a culpabilidade patente do prisioneiro fossem demonstradas. Assim, a prisão ganharia relevo muito maior e imediato sentido político.
Ao avistar a escolta mista, o intrépido, mas precipitado Pedro reagiu da maneira mais apropriada à cena: atacou um dos guardas. Jesus o repreendeu por isso. Ele não faria parte da encenação. No que lhe dizia respeito, a sua morte seria um ato inteiramente autêntico, não encenado, jamais representado.
Antes de ser conduzido à casa do Sumo-Sacerdote, portanto, Jesus e a escolta passaram pelo Templo, segundo o que fora planejado pelos autores da ordem de prisão. É provável que o pomposo cortejo tenha até mesmo parado, algum tempo, onde a multidão se encontrava, antes de prosseguir para a residência do chefe da nação, que ficava no fim, à esquerda de uma linha reta traçada a partir da lateral do Templo. Foi nesse momento que a multidão aglomerada, nos arredores do imenso lugar sagrado, viu Jesus pela primeira vez. Porém, ela o viu, como as autoridades o tinham fantasiado: como um criminoso preso por seus atos contrários à lei. Jesus foi-lhes apresentado como uma personagem, não como uma pessoa. Foi-lhes apresentado como malfeitor.
Qualquer um que avistar um homem algemado conduzido por guardas para depor, no Fórum, nos nossos dias, pensará que se trata de um criminoso. Guardadas as diferenças devidas à época, foi o que a multidão reunida no Templo pensou, ao avistar Jesus. Ainda mais com uma escolta mista, judaica e romana, ao seu lado. Aos olhos da multidão, Jesus pareceu não apenas culpado, mas duplamente culpado, pois judeus e romanos o tratavam da mesma forma.
Nas celebrações da Páscoa, a cada ano, a população de Jerusalém aumentava várias vezes, devido à multidão de judeus, prosélitos e gentios devotos, que afluíam de todos os lugares do mundo. Segundo Josefo, quando Jerusalém foi cercada, antes da destruição do ano 70 d. C., mais de um milhão de pessoas estava ali e nas aldeias vizinhas. Não há dúvida de que o número é exagerado, como era habitual nos cálculos de multidões dos antigos. Mesmo assim, havia tanta gente quanto era possível haver, em Jerusalém, naquela Páscoa. E o que mais importa: quase todos os integrantes da multidão aglomerada no Templo não conheciam Jesus. Por isso, abraçaram a primeira informação, a respeito dele, que lhes foi transmitida pela encenação militar.
Nenhuma informação sobre Jesus teria sido tão eloquente, nem tão eficaz para inculcar à multidão quem era aquele revolucionário (pois Jesus nunca fora outra coisa), no dia da Páscoa, quanto a cena do homem conduzido, com circunstância, por duas guardas oficiais. Nem uma só palavra foi necessária para convencer os mal informados judeus e devotos de que Jesus era um criminoso da pior espécie. Não foi preciso adicionar uma única frase para convencê-los de que estavam diante de um homem culpado. Disso persuadida, portanto, a multidão passou a difundir a informação que recebera. A notícia correu a cidade e arredores não de que Jesus era acusado, mas de que ele era culpado de um crime.
Muito provavelmente, os fariseus não tomaram parte no planejamento da farsa. Como David Flusser informou, eles eram peremptoriamente contrários à perseguição de movimentos proféticos (FLUSSER, David. Jesus. São Paulo: Perspectiva, 2002. p. 167), pregassem o que pregassem. Essa era uma das posições político-religiosas mais importantes, que distinguia os fariseus dos saduceus.
Por causa dessa divergência, os sacerdotes que prenderam Jesus devem ter sido saduceus. Os fariseus não devem ter participado ou, se participaram, devem ter sido meros observadores da reunião noturna, em que o Sinédrio considerou Jesus culpado de blasfêmia. Na verdade, eles nem devem ter sido chamados para a reunião.
Diferente deve ter sido a situação, na reunião oficial do Sinédrio, na manhã seguinte. Por se tratar de uma sessão oficial da Corte Suprema, os fariseus que compunham a Suprema Corte devem ter estado presentes, votado contra a condenação e influído, poderosamente, para que o convencimento formado, na noite anterior, não prevalecesse. Por esse motivo, Jesus deve ter sido absolvido da acusação de blasfêmia, contra o parecer proferido pelo Sumo-Sacerdote na noite anterior.
Não é incomum as cortes corrigirem seus erros. Especialmente, quando se reúnem em plenário e debatem inteiramente os casos. É o que deve ter ocorrido, na manhã daquela sexta-feira. Apesar de todos os pesares. Os votos dos fariseus não teriam bastado para absolver Jesus de blasfêmia. Alguns saduceus devem ter aderido ao parecer absolutório, arrastados por um proeminente sectário ou por algum fariseu de reputação particularmente elevada. Anás é um candidato a ter desempenhado esse papel. Com base na Lei de Moisés, ele e não Caifás devia exercer o Sumo-Sacerdócio. Portanto, aos olhos de muita gente, sua autoridade era grande. Gamaliel ou outro fariseu importante pode tê-lo influenciado a assumir posição a favor de Jesus. Porém, não temos como determinar o que aconteceu, Sabemos somente que a encenação dos saduceus foi anulada. Porém, o estrago já havia sido produzido. A multidão já considerara Jesus culpado. Com Jerusalém apinhada de visitantes, ela estava fora de controle. A notícia da prisão do criminoso galileu e dos fatos subsequentes correu Jerusalém, de boca em boca, como os discípulos a caminho de Emaús comentaram mais tarde. Não foi possível conter a multidão, no Pretório, quando Pilatos lhe perguntou se o privilégio pascal devia ser concedido a Jesus ou a Barrabás.
Desse modo, uma das contradições mais centrais da narrativa dos quatro Evangelhos, sobre a última semana (a que se estabelece entre a aclamação de Jesus como o Messias, ao entrar em Jerusalém, e o clamor da multidão para que ele fosse condenado), é eliminada. A informação de Josefo de que as portas do Templo eram abertas, na noite de Páscoa, é a informação fundamental que nos permite explicar o contraste entre as duas multidões.
A antiga ideia de que alguns sacerdotes se infiltraram, no meio da multidão aglomerada no Pretório e a incitaram à decisão capital é demais imaginativa. Beira o ridículo. As narrativas convergentes dos quatro Evangelhos mostram uma multidão convicta da culpabilidade de Jesus, mas não explicam como a convicção se formou. A informação de Josefo é o que melhor supre a lacuna. Sugere que a multidão se convenceu da culpa de Jesus, na noite anterior, pelos mecanismos teatrais de poder concentrados no Templo.