Uma lição imortal se enuncia da seguinte maneira: o senso comum se divide em senso comum comum e senso comum incomum. O último é a regra para o homem humilde, que abarca o sol com a mão espalmada e uns poucos centímetros de chão com os pés. O primeiro é o guia dos que constroem ciências vertiginosas para negá-las por meio do óbvio.
O depoimento de Pedro, sobre a ressurreição de Jesus, é importante por se tratar de uma testemunha presencial dos fatos. No entanto, o próprio Pedro nunca o registrou por escrito. Seu testemunho foi reconstruído, por Lucas, nos seguintes termos:
"Jesus, o Nazareno, varão aprovado por Deus [...] vós o matastes, crucificando-o por mãos de iníquos; ao qual, porém, Deus ressuscitou, rompendo os grilhões da morte.
[...] A este Jesus Deus ressuscitou, do que todos nós somos testemunhas.
[...] Matastes o Autor da vida, a quem Deus ressuscitou dentre os mortos, do que nós somos testemunhas [...] Em nome de Jesus Cristo, o Nazareno, a quem vós crucificastes, e a quem Deus ressuscitou dentre os mortos, sim, em seu nome é que este está curado perante vós.
[...] O Deus de nossos pais ressuscitou a Jesus, a quem vós matastes, pendurando-o num madeiro [...] Nós somos testemunhas destes fatos.
[...] Ao qual também tiraram a vida, pendurando-o no madeiro. A este ressuscitou Deus no terceiro dia, e concedeu que fosse manifesto, não a todo o povo, mas às testemunhas que foram anteriormente escolhidas por Deus, isto é, a nós que comemos e bebemos com ele, depois que ressurgiu dentre os mortos" (At 2:22-24,32; 3:15; 4:10; 5: 30; 10:40-41).
Apesar de claro e incisivo, como já vimos, esse testemunho de Pedro é indireto, pois foi redigido por Lucas, décadas depois de ter sido prestado. O único testemunho, aparentemente, de primeira mão, sobre a ressurreição de Jesus, é o do autor do Evangelho de João, que o transmitiu, cerca de 65 anos após a crucificação.
Uma marca da observação direta da ressurreição, pelo escritor de João, é a observação, presente somente nele, de que o lençol que envolvera o corpo de seu mestre estava apartado do lenço, que havia sido colocado na sua cabeça (Jo 20:7-8). Pormenores visuais como esse, invariavelmente, se apagam da memória com o tempo. É comum a testemunha visual de uma cena lembrar-se mais da sequência em que observou os diversos componentes dela do que de detalhes particulares. Estes só são recordados, se têm importância para a sequência ou para a memória do observador como um todo. Por exemplo: uma pessoa pode-se recordar de ter ficado doente e de ter sido levada para o hospital, num carro de marca e cor tais, há 20 anos, se o carro já fosse conhecido dela. Por se tratar de um objeto importante, a lembrança de detalhes como a sua cor se torna possível. Porém, se ela tivesse sido levada para o hospital num táxi, normalmente, a cor e a marca não seriam lembrados.
O sepultamento de Jesus foi realizado, por José de Arimateia e Nicodemos (Jo 19:38-39), não pelo autor de João. No entanto, ao contrário de hoje, naquela época, o sepultamento não era feito, por técnicos especializados, pois cada detalhe dele tinha significado religioso. João 19:40 dispõe: “Tomaram, pois, o corpo de Jesus e o envolveram em lençois com os aromas, como é de uso entre os judeus na preparação para o sepulcro”.
Por não se tratar de uma obra de especialistas, muitas pessoas sabiam realizar a "preparação para o sepulcro", a que João se refere, assim como as mulheres, que acompanharam o desfecho da crucificação e “se retiraram para preparar aromas e bálsamos” (Lc 23:56), a fim de embalsamarem Jesus. O autor de João também estava acostumado com o rito de exéquias. Por isso e somente por isso, muitos anos depois, ele pôde se recordar de ter visto um item importante dele: o lenço usado para cobrir o rosto.
A forma como o autor sagrado narra esse pormenor é bastante significativa. Ele afirma que Pedro entrou primeiro e viu os lençois “e o lenço”:
"Saiu, pois, Pedro e o outro discípulo e foram ao sepulcro. Ambos corriam juntos, mas o outro discípulo correu mais depressa do que Pedro e chegou primeiro ao sepulcro; e, abaixando-se, viu os lençois de linho; todavia, não entrou. Então, Simão Pedro, seguindo-o, chegou e entrou no sepulcro. Ele também viu os lençois, e o lenço que estivera sobre a cabeça de Jesus, e que não estava com os lençois, mas deixado num lugar à parte. Então, entrou também o outro discípulo, que chegara primeiro ao sepulcro, e viu" (Jo 20:3-8).
O relato é o de uma testemunha ocular, direta, presencial. Não há outra razão para o pormenor do lenço ter sido mencionado. Quem afirmou ter visto o túmulo vazio e não compreendido que Jesus ressuscitara foi alguém que ali esteve. Isso significa que o alheamento dos discípulos à ressurreição é um dado verídico. Os discípulos não cogitavam disso.
O alheamento não fica sem consequências, para a hipótese do furto do corpo, que já discutimos. Se os discípulos mais próximos de Jesus, que o seguiam o tempo todo, viram o túmulo vazio, mas não atinaram que ele havia ressuscitado, como poderiam outros ter concebido o plano de furtar o corpo, para forjar a ressurreição? A ideia da ressurreição não surgiu, no curto período de 35 horas, entre o sepultamento e a descoberta do túmulo vazio, mas depois. Portanto, não houve furto do corpo.
Shimon Gibson considera que a utilização de um lenço para cobrir o rosto do morto, nos rituais fúnebres, quando o sudário seria suficiente para envolver o corpo todo, devia-se ao estágio embrionário da Medicina, na época, e aos relatos comparativamente frequentes de pessoas que despertavam nos túmulos. Como os mortos eram sepultados com pés e mãos atados, ser-lhes-ia mais fácil remover o lenço do que o sudário. Pela mesma razão, os mortos não eram propriamente enterrados, mas colocados em cavernas, onde poderiam sobreviver se não tivessem verdadeiramente morrido (GIBSON, Shimon. Os últimos dias de Jesus - a evidência arqueológica. São Paulo: Landscape, 2009. p. 46).
Tudo isso ajuda a entender por que milhares de pessoas começaram a aderir à fé cristã, 50 dias após a crucificação. Tantas conversões, inclusive de incrédulos tão proeminentes quanto Saulo de Tarso e Tiago, irmão de Jesus, demandam uma razão suficiente. A ressurreição aparece, naturalmente, como essa razão, como a explicação natural e única do complexo contexto dos últimos capítulos dos Evangelhos e dos primeiros de Atos dos Apóstolos.
Assim como a Páscoa reunira judeus e gentios piedosos de todo o mundo, a Festa de Pentecoste seguinte operara algo semelhante. Nessa última solenidade, muitas pessoas que haviam pedido a Pilatos que Jesus fosse crucificado foram feridas no coração, pela pregação de Pedro. Como se não bastasse a conversão, o grau de arrependimento daquelas pessoas, ante as evidências oculares da ressurreição de Jesus, pode ser aquilatado por haverem vendido tudo o que possuíam para entregar à comunidade cristã. Como explicar tudo isso, a não ser pelo reconhecimento de que algo extraordinário ocorrera?
A ressurreição é o extraordinário, que se ergue acima do ordinário e do óbvio. É o despertar do espírito imortal, o triunfo da chama sobre o ar que a alimenta e sufoca. É a insurreição contra os versos: “Que não seja imortal/posto que é chama/mas que seja infinito/enquanto dure”.