A descoberta de uma grande verdade faz nascer no espírito um deslumbramento tão singular que excede toda verbalização. Essa experiência, talvez semelhante à do garimpeiro ao divisar o brilho intenso do diamante resgatado do seio da terra, não depende tanto do conteúdo do conhecimento cuja descoberta a produz quanto do modo como ele se constroi. Pode ser tão bem produzida por uma plácida visão religiosa quanto por uma complexa elaboração filosófica.
Mas exatamente por isso o descortinar-se da verdade aos olhos extasiados de quem se despoja de todos os outros bens para possuí-la é essencialmente inefável. Não pode ser enunciada, explicada ou traduzida. Como dizer a sensação que assalta o espírito ao descer à mais funda gruta ou subir ao mais alto cume do mundo para adquirir um sistema de conhecimentos ou uma simples verdade solitária? Tentar pôr em verso ou em prosa o que então se sente é como cantar o inefável e reduzir a termo o indizível.
O aspecto monumental da obra de Kant infunde veneração semelhante a essa. Faz germinar na mente aquela sensação de deslumbramento ante a beleza dos panoramas que vislumbra. Mas, confirmando que a experiência aludida é de todo inefável e não relacionada ao conteúdo da descoberta, notamos que o sistema de Kant assevera que a estrutura da descoberta de uma verdade pode, sim, ser descrita.
Dirão que o que Kant se dispõe a descrever não é o encanto da descoberta da verdade, mas sua estrutura lógica. Pergunto se as duas coisas podem mesmo ser separadas. Se não são tão indissociáveis que a tentativa de descrever um dos seus aspectos sem o outro resulta na mais oca verbalização.
Como a razão não seria capaz de dizer totalmente e bem o que ela, sozinha e por métodos próprios, cria? Não faz sentido supô-lo. Por isso, na sua Lógica Transcendental, Kant arrisca-se a descrever a estrutura da experiência de estremecer ante o brilho de uma verdade. E, não satisfeito, oferece-nos, em outras obras, dois sistemas complementares, a fim de enunciar o que a verdade total é para o espírito: a Metafísica da Natureza e a dos Costumes.
A confiança indispensável para empreender trabalho tão hercúleo, Kant a retira da inesgotável fonte da sua descoberta da razão pura, da razão como sistema fechado capaz de engendrar os seus conteúdos como o demiurgo forja os seus mundos. E o instrumento com o qual a razão cria os seus mundos, são as formas da sensibilidade e do entendimento.
Tanto quanto me é dado entendê-la, a descoberta de Kant parece-me inteiramente válida, porém limitada e circunscrita. Não é a descoberta do sistema da verdade inteiro, como às vezes parece ser. O sistema integral da verdade permanece inapreensível, incompreensível e, por isso, inefável. E, se assim realmente é, a pretensão básica da Lógica Transcendental e das Metafísicas deve ser resistida.
Por Metafísica dos Costumes Kant entende um sistema de princípios tão absolutamente a priori que não podem ser derivados da experiência como os juízos sintéticos a priori da ciência natural. Para traçar os contornos do contraste entre esses dois sistemas de princípios, o da ciência natural e o da moralidade, Kant recorda que a física newtoniana deriva da experiência a lei da ação e reação e que os químicos extraem da observação as leis de transformação das substâncias. Acrescenta que não é absolutamente assim com as leis morais, que são conhecidas totalmente à parte da experiência e, como tais, são absolutas.
A fim de enunciar as leis morais, discutir-lhes o sentido e descrever-lhes o sistema, a Metafísica dos Costumes parte do fundamento em que elas repousam e que é tão indemonstrável e, ao mesmo tempo, tão certo quanto os primeiros princípios da razão prática a que São Tomás se refere. Identifica esse fundamento com a liberdade e a ele se refere como única lei inata da razão prática:
"A liberdade [...] é o único direito original pertencente a todos os homens em virtude da humanidade destes. Este princípio de liberdade inata implica as seguintes competências: [...] igualdade inata, isto é, independência de ser obrigado por outros mais do que se pode, por sua vez, obrigá-los; daí uma qualidade humana de ser o seu próprio senhor (sui iuris), bem como ser um ser humano irrepreensível (iusti), visto que, antes de realizar qualquer ato que afete direitos, não causou dano algum a ninguém; e, finalmente, está autorizado a fazer aos outros qualquer coisa que em si mesma não reduza o que é deles" (KANT, Emmanuel. A metafísica dos costumes. São Paulo: Edipro, 2003. pp. 83-84).
Essa liberdade, que Kant considera “completamente suprassensível” (idem. p. 85), é a base absoluta do meritório (virtude), do devido (direito) e do culpável (delito) (idem. p. 70). Porém, assim como “nenhuma dedução teórica pode ser dada à possibilidade desse conceito de liberdade”, os princípios jurídicos que dele deduzimos “se perdem no inteligível e não representam ampliação alguma do conhecimento” (idem. p. 93).
A liberdade na qual o direito e a ética se fundam não é a que constitui um princípio regulativo da razão especulativa, que não tem significado algum em termos de realidade (idem. 64). A liberdade a que a razão prática se refere “não pode ser apresentada teoricamente como noumeno” (idem. p. 69), no entanto
"prova sua realidade através de princípios práticos, que são leis de uma causalidade da razão pura para determinação da escolha, independentemente de quaisquer condições empíricas (da sensibilidade em geral) e revelam uma vontade pura em nós" (idem. 64).
Embora seja possível extrair consequências diversas do princípio original de liberdade, este não é deduzido de qualquer outro conhecimento. Por isso, em direito e moral, não é possível produzir qualquer conhecimento novo. Tudo o que se enuncia permanece um desdobramento do princípio original da liberdade.
Mas isso não significa que o dever não tenha uma ordenação, como o ser tem a sua, embora nem um, nem outro sistema tenha o seu conteúdo determinado pelas coisas em si. “No que tange à ciência natural, a qual diz respeito a objetos sensorialmente externos, é preciso contar com princípios a priori e é possível, com efeito necessário, preestabelecer um sistema desses princípios” (idem. p. 57). Portanto, a ciência da natureza é um sistema. E, semelhantemente, “a doutrina do direito deseja estar certa de que aquilo que pertence a cada um foi determinado (com precisão matemática)”, embora precisão semelhante “não possa constituir expectativa da doutrina da virtude, a qual não pode recusar algum espaço para exceções” (idem. p. 79).
Ao menos a doutrina do direito é tão certa e determinada quanto a ciência da natureza, com sua precisão matemática. Nesse sentido é que Kant reconhece, naquela doutrina, um sistema de direito natural. Reconhece nela também, de maneira expressa, uma metafísica.
Ao lado desse direito natural e dessa metafísica, subsiste o direito positivo, que não se confunde, nem é parte integrante do direito natural. Direito positivo, para Kant, é o conjunto de leis regentes do comportamento humano, cuja obrigatoriedade a razão não reconhece a priori, mas somente a posteriori (idem. p. 67). Desse modo, Kant funda o binômio direito natural – direito positivo na diferenciação que enuncia entre a parte do conhecimento que permanece independente e a que depende da experiência.
Essa fundamentação do direito empresta força absoluta não só ao princípio da liberdade, do qual as normas jurídicas derivam, mas a cada uma das suas partes, pois até mesmo as normas do direito positivo, embora dependentes da experiência, se fundam numa “lei natural que [...] estabelece a autoridade do legislador (isto é, a autorização [que ele tem] de obrigar os outros mediante sua mera escolha)” (idem). Desse modo, não apenas o princípio fundamental do sistema (a liberdade) é absolutizado, mas ele todo. Em cada uma de suas partes, o direito reveste-se de validade absoluta, assim como cada postulado da ciência natural é incontrastável e, por isso, não comporta exceções.
Vemos que, sem se reduzir à de São Tomás, a doutrina do direito de Kant é tão metafísica, perfeita e completa quanto ela. Tanto o filósofo medieval como o moderno realizam, de modos diversos, os ideais de racionalidade e completude que permitem elevar o conhecimento jurídico à condição de verdadeira ciência. Daí o atrativo perene dessas filosofias.
Porém, examinada a fundo, a doutrina jurídica de Kant revela-se desprovida de base demonstrativa, posto que a igualdade ou outro valor poderia ser posto tão bem como seu fundamento quanto a liberdade. Além disso, a ciência kantiana do direito permanece distante das instituições e dos próprios costumes. Incorre, por isso, no mesmo equívoco das lógicas cerebrinas e pouco aplicáveis à vida.
De natureza diversa é o direito natural dos romanos e, particularmente, de Cícero. De natureza diversa é o de Santo Agostinho. Aliás, as versões romana e agostiniana do direito natural são uma só quanto ao conteúdo. Diferenciam-se apenas quanto aos efeitos das normas que propugnam, que os romanos entendiam ser sumamente positivos, e Santo Agostinho considerava negativos. Esse direito natural romano e patrístico, embora muito menos abrangente que o escolástico e o kantiano, tem a decisiva vantagem de ser possível e poder ser aplicado por crescer rente à vida.
Com admiração, mas também com energia, devemos, pois, rechaçar as concepções idealizadas e impraticáveis do direito metafísico. Com energia havemos, não menos, de reconhecer que, onde o kantismo se fez influente, a tarefa de conduzir a doutrina do direito ao seu prumo foi dificultada, pela multiplicação de complexidades inteiramente desnecessárias. O velho problema do peso morto da metafísica revela, aqui, sua forma contemporânea e avançada. Não sem os mais nobres motivos intelectuais, é certo. Motivos tão nobres que o peso morto kantiano é até hoje saudado como avanço egrégio, enquanto a metafísica muito mais proporcionada, cujo fio o tempo não embotou, é motivo de risos sarcásticos e dissimulados. Como se, para o homem, o infinito e não a finitude e a modéstia pudesse constituir a medida certa.