No século XIV, Duns Escoto e Guilherme de
Ockham afirmaram que o fator decisivo para o mundo ser como é não é a razão de
Deus, mas a sua vontade. Com o tempo, essa opinião, que desafiou as de
Agostinho e Tomás de Aquino, provou-se um dos pontos a partir dos quais o
pensamento humano mais divergiu de suas antigas fontes racionais.
Porém, a brecha aberta pela opinião de Escoto e de Ockham pode ser fechada pela explicação de que o inteiro território do mal, com a vasta importância que lhe é reservada na Teologia Cristã, não procede sequer na mais tênue medida da vontade divina, mas do livre arbítrio das criaturas. Deus não quer, nunca quis o mal, o que desconecta o mundo da sua vontade. Conecta-o, porém, a algo em Deus, posto que o mundo não pode ser obra de Deus sem harmonizar-se com algo nele. Ouso pensar que esse algo, para Agostinho e Tomás, é a razão de Deus, não a nossa, na medida em que não compreendemos por que Deus escolheu um Universo moralmente mais livre e heterogêneo de preferência a outro mais puro e homogêneo. Mas entendemos, com Agostinho e Tomás, que ele o fez por sua razão, sem jamais ter querido o mal por sua vontade.
Porém, a brecha aberta pela opinião de Escoto e de Ockham pode ser fechada pela explicação de que o inteiro território do mal, com a vasta importância que lhe é reservada na Teologia Cristã, não procede sequer na mais tênue medida da vontade divina, mas do livre arbítrio das criaturas. Deus não quer, nunca quis o mal, o que desconecta o mundo da sua vontade. Conecta-o, porém, a algo em Deus, posto que o mundo não pode ser obra de Deus sem harmonizar-se com algo nele. Ouso pensar que esse algo, para Agostinho e Tomás, é a razão de Deus, não a nossa, na medida em que não compreendemos por que Deus escolheu um Universo moralmente mais livre e heterogêneo de preferência a outro mais puro e homogêneo. Mas entendemos, com Agostinho e Tomás, que ele o fez por sua razão, sem jamais ter querido o mal por sua vontade.
Para Agostinho não menos
do que para Tomás, não há brecha no modo racional de Deus governar o mundo.
Nada há, no Universo, que se deva à vontade sem dever-se também à razão divina.
Por isso, a diferença primordial entre os dois luminares do pensamento cristão,
no tocante ao papel da razão, não se põe no plano divino, mas no humano. Tanto
Agostinho quanto Tomás aceitam a doutrina da pecaminosidade humana depois da
queda. Porém o primeiro leva-a mais longe ao estender os efeitos da rejeição de
Adão a toda obra humana, inclusive as de índole racional, ao passo que Tomás,
ao recepcionar integralmente o aristotelismo em assuntos terrenos, abre exceção
ao que a razão é capaz de descobrir sem erro.
Essa diferença sutil
entre as antropologias de Agostinho e de Tomás, mais do que a aproximação
filosófica do primeiro em relação a Platão e de Tomás, a Aristóteles, explica
as dessemelhanças fundamentais entre o agostinismo e o tomismo. E o que nos
interessa particularmente é que a diferença antropológica mencionada repercute
no campo do direito mais do que qualquer outro aspecto do pensamento dos dois
filósofos cristãos.
Vimos que a impotência
do direito para preservar a civilização romana desempenhou papel decisivo no
pensamento de Santo Agostinho. Vimos também que essa conclusão foi confirmada,
de maneira espantosa, pelos acontecimentos do quarto século. O que nos arrasta
à constatação de que, na época de Tomás, em contraste com a de Agostinho, a
Cristandade pareceu ter conseguido realizar o que os romanos não foram capazes
de produzir, a saber: uma civilização culta, estável e temente a Deus. Essas
constatações contribuíram para inclinar o pensamento de Tomás numa direção
diferente e até mesmo oposta àquela de Santo Agostinho.
Pareceu a Tomás que a concepção otimista da lei natural de Aristóteles moldava-se perfeitamente a esse novo contexto histórico. Sua principiologia adaptava-se à crença medieval no triunfo da civilização cristã. Parecia até mesmo talhada para explicá-la. Não se passava o mesmo com a ideia de direito de Santo Agostinho, que supunha uma radical diferença entre a cidade terrena e a de Deus.
Pareceu a Tomás que a concepção otimista da lei natural de Aristóteles moldava-se perfeitamente a esse novo contexto histórico. Sua principiologia adaptava-se à crença medieval no triunfo da civilização cristã. Parecia até mesmo talhada para explicá-la. Não se passava o mesmo com a ideia de direito de Santo Agostinho, que supunha uma radical diferença entre a cidade terrena e a de Deus.
Essas diferenças
marcantes de contexto histórico e de inspiração filosófica refletiu-se no conceito
de lei natural de Agostinho e Tomás. Para o primeiro, a lei, natural ou humana,
tem sentido prático negativo, pois serve para tornar o homem culpável diante de
Deus. Essa conclusão Agostinho extrai-a do uso que o apóstolo Paulo dá à lei
natural, em Romanos, onde ela é apontada como causa da culpabilidade do homem,
conheça ele ou não os mandamentos de Moisés.
Em Tomás, ao contrário,
a lei natural tem sentido positivo, por constituir inclinação para um ato e um
fim adequados (AQUINO, Tomás de. Suma teológica. “Tratado sobre a lei”. 2ª ed., 4ª impr., Chicago:
Encyclopaedia Britannica, 1993. Vol. 18. Questão 91, art. 2, p. 209).
É, a lei natural, a mais alta participação possível na lei eterna, pela qual
Deus rege todas as coisas e cujo conteúdo só ele conhece.
Divide-se a lei natural
nos seus primeiros princípios e nas conclusões extraídas deles. Tais
conclusões são incontáveis, pois não há termo para o processo de particularização
da lei natural, a fim de atender as diversificadas necessidades da vida humana.
Quanto mais longe vai o processo, mais a lei natural se particulariza. E
quanto mais variadas as necessidades que o ditam, mais ela se diversifica, a
fim de atendê-las.
Daí Tomás afirmar que,
por constituir uma medida, a lei deve ser homogênea àquilo que mede, isto é, o
justo e o injusto humanos (Idem. Questão 96, art. 2, p. 231). Mas a
lei só pode alcançar essa plasticidade, só pode moldar-se à variada matéria da
vida humana ao submeter-se ao processo de particularização mencionado acima.
Esse processo realiza-se
mediante a contínua promulgação das leis pelo poder soberano. No entanto, por
vasto que seja e por mais que as conclusões atingidas ao longo dele se distanciem
dos primeiros princípios, elas não se desnaturam, enquanto se limitam a
particularizá-los como é devido. Assim, o resultado prodigioso da
particularização dos primeiros princípios da lei natural chega a ser o imenso
sistema do justo humano, com suas leis, decisões e execuções.
Esse sistema tão
diversificado quanto as situações que a vida apresenta tem, para Tomás, uma só
natureza da primeira à última norma e da primeira à última aplicação delas, a
saber: a natureza do justo. É, por isso, essencialmente bom. Esta a concepção
geral de direito de Tomás de Aquino.
A diferença entre ela e
a concepção de Agostinho só pode ser considerada sutil na aparência. Tomada em
profundidade, ela avulta extraordinariamente. Torna-se tão imensa quanto a
distinção que vigora entre o bem do mal. Para Tomás, com efeito, a lei é boa,
assim como muitos dos atos humanos medidos por ela, ou então não seria capaz de
medi-los, e o sistema legal inteiro não teria razão de ser.
Agostinho não destoa da
descrição que Tomás fornece do impressionante processo de particularização do
justo a partir dos seus primeiros princípios. Também ele concebe o direito
como sistema produzido a partir dos primeiros princípios da lei natural.
Porém, Agostinho diverge
de maneira egrégia de São Tomás ao atribuir caráter negativo ao processo acima
descrito de produção do direito. Ou antes Tomás destoa de Santo Agostinho, ao
reconhecer no homem uma aptidão natural para a virtude. De qualquer modo, aqui,
um dos dois deve estar errado, pois afirmam coisas opostas sob o mesmo ponto de
vista. Pode parecer que Agostinho labora em erro, pois Tomás argumenta a partir
da lógica essencial ao pensamento jurídico. Porém, a um exame mais
aprofundado, Agostinho parece partir do que crê constituir a lógica de Deus
exposta nas Sagradas Escrituras.
Para Agostinho, de fato,
questões de dever-ser, diferentemente de questões sobre o ser, não dependem da
lógica humana, mas da consideração de Deus e da interpretação que ele lhes dá.
Agostinho encontra essa interpretação nos textos bíblicos que afirmam que Deus
considera pecados as boas ações não nascidas da graça divina, por sua fraqueza
inerente e pelo modo como seus autores vivem a oscilar entre o bom e o mau e
entre o mau e o pior.
Essas divergências entre
Agostinho e Tomás podem parecer destituídas de importância prática. Mas é preciso
lembrar que a opinião de Agostinho tem a seu favor a importância dos fatos que
a confirmam. Proporcionalmente ao ponto do qual surgiu, o primitivo seio da
loba, Roma talvez tenha sido a mais prodigiosa civilização de todos os tempos. Mas
caiu fragorosamente, ante Alarico e o olhar atônito do bispo de Hipona. Caiu
apesar de tudo o que ergueu e das virtualidades do seu sistema jurídico. E, por
serem engendradas pelas mesmas forças, cairão depois dela todas as outras
civilizações. Esta parece ter sido a aposta de Agostinho, ao considerar todas
as civilizações, todas as cidades, uma só cidade. Tomás dobrou decididamente a aposta.
A quem caberá a sorte ou, se houver diferença, a razão?