terça-feira, 21 de julho de 2015

Filosofia e Direito (17): A Lei Natural em Santo Agostinho

Os estoicos e os peripatéticos (seguidores de Aristóteles) associavam a lei natural à razão divina, o que os fazia diferir, nesse ponto, apenas em razão do modo como concebiam Deus. Para os estoicos e Cícero, Deus era uma inteligência difusa e impessoal. Para os peripatéticos, ele era dotado de atributos pessoais.
Embora os peripatéticos derivassem sua ideia de inteligência divina de Aristóteles, cujas obras rarearam até quase desaparecerem do Ocidente, nos primeiros séculos da era cristã, a concepção de Deus que eles preservaram foi absorvida por pensadores de outras escolas, a exemplo de Orígenes e Santo Agostinho.  Por isso também, a noção aristotélica da inteligência divina foi transmitida aos primeiros filósofos cristãos mais pelos peripatéticos do que por meio das obras do próprio Aristóteles.
O modelo de pensador cristão da Antiguidade foi Santo Agostinho, em quem a influência grecorromana e as tendências do pensamento patrístico se harmonizam no mais alto grau. Ao longo da sua vida, Agostinho foi o protótipo do homem romano tanto quanto o do pensador cristão. Por isso, nele se reúnem o melhor da cultura clássica e da tradição judaicocristã.
Tão vasta é a recepção da cultura clássica, e particularmente de Cícero, percebida nas obras de Santo Agostinho que não parece provável que o De legibus ou o De republica não tenham sido absorvidos por ele. Cícero é uma influência fortíssima em Santo Agostinho. Tão forte que é temerário admiti-la apenas nos anos que antecederam e sucederam imediatamente a conversão de Agostinho.
Não é possível afirmar o mesmo da influência de Aristóteles sobre Santo Agostinho. O desaparecimento do corpus aristotélico do mundo latino, no fim do século IV, impediu que Agostinho assimilasse Aristóteles na intensidade e profundidade em que absorveu a obra de Cícero. E esse diferencial de assimilação sugere que o santo concebeu a lei natural mais em termos ciceronianos do que aristotélicos.
Isso implica entender a ratio legis mais à maneira prática dos romanos do que à moda especulativa dos gregos. Mais conforme Cícero que segundo Aristóteles. E muito mais no interior das instituições de direito do que nas regiões do supraempírico.
Para Cícero, a ratio legis era mais do que uma lógica formal. Era o método pelo qual as instituições jurídi-cas funcionavam efetivamente. Assim, por exemplo, uma relação de filiação ou de compra e venda tinha a sua ratio própria. As interpretações das normas que as definiam podia variar, no entanto os advogados e os jurisperitos enfrentavam as questões de interpretação com base na mesma lógica de natureza material e não formal.
Ainda hoje, a lógica geral do direito é a mesma. Por isso, é possível ilustrar o funcionamento dela não só não só em instituições dos antigos romanos como dos povos modernos. Por exemplo, a concessão de serviços públicos, no nosso tempo, não obedece apenas às regras da Lógica Formal, mas também e principalmente a ratio material do instituto. O mesmo sucede com a função social da propriedade, cuja interpretação mais restrita ou extensa é intensamente debatida, sem que se discuta que, no direito brasileiro, por exemplo, ela coexiste com a propriedade privada. Portanto que a lógica jurídica, ao aplicar-se no campo da propriedade, está sujeita a esse limite de ordem material.
Podemos, assim, fazer a lógica do direito coincidir com a ratio legis de Cícero e Santo Agostinho, o que importa entendê-las não em termos formais, mas materiais. Claro que nem em Cícero, nem em Agostinho os princípios da Lógica Formal estão excluídos. Pelo contrário, a Lógica Jurídica resulta de mutações a que a Lógica Formal é sujeita em razão dos limites materiais a que o pensamento se sujeita no campo particular do direito.
No direito de muitos países, é vedado pensar que a propriedade não tenha função social ou que a função social dela exclua o feixe de faculdades que a propriedade privada assegura. A função social da propriedade e as faculdades inerentes à propriedade privada não são apenas mandamentos do legislador. São ao mesmo tempo princípios que informam a Lógica Jurídica. E ouso pensar que isso pouco mudou do Direito Romano a esta parte.
Precisamos entender que, embora ressaltasse a relação da lei humana com a ordem imutável do cosmos, Cícero não ia ao ponto de afirmar, com Aristóteles, que ela existisse à parte das instituições sociais. Pelo contrário, para ele, a ratio legis derivava de escolhas práticas do legislador.
Por isso, ao abraçar a concepção de direito de Cícero, Agostinho não lhe imprimiu a coloração metafísica que tinha em Aristóteles. Lei humana, para Agostinho como para Cícero, não era um dado natural. Não derivava da ordem das coisas, mas de escolhas sociais e políticas. Era criação do costume e do legislador, conforme o direito natural, ou então a lei não seria lei. Mas criação e não descoberta.
Essa diferença entre o conceito de lei humana de Cícero e Agostinho e o de Aristóteles aprofunda-se ainda mais, conforme o santo vincula a ratio legis ao Deus cristão e não à ordem das coisas. Por originar-se de Deus, a razão jurídica é concebida como um reflexo, embora esmaecido, da lei divina. Consequência prática disso é que ela é mais negativa do que positiva, visto que a função da lei, no pensamento apostólico, é reavivar o pecado.
Nesse ponto, a concepção de direito de Santo Agostinho afasta-se da de Cícero.Como reflexo da lei divina na consciência, a lei humana não promove a bondade, antes estabelece a culpabilidade do homem. Esse ponto de vista jurídico é o que, sobretudo, autoriza Agostinho a pronunciar a sentença sobre o mundo romano encontrada em A cidade de Deus. De acordo com a sentença agostiniana, a ratio legis não foi capaz de conduzir os pagãos a outro destino que não a ruína. Por isso, embora benigna, a queda do homem a tornou tão frágil que ela permanece incapaz de prover os povos de bens duradouros.
Essa fundamentação da tese central de A cidade de Deus, derivada da ideia agostiniana de direito, é a meu ver inequívoca. Prende-se de tal maneira ao entorno de Santo Agostinho que se torna uma só coisa com os fatos. Diferentemente do que acontece à concepção jurídica de Aristóteles, a de Santo Agostinho repousa no insofismável curso dos acontecimentos da sua época. Os ratos da História roeram Roma inteira e não só a roupa do seu rei, na medida em que a causa do intenso brilho daquela civilização, sua adesão à ratio legis, provou-se impotente para salvá-la.


E o fragoroso fracasso do direito romano não é casual. Tem, em Agostinho, uma motivação perfeitamente clara: "Considerações de justiça à parte, que são reinos a não ser grandes bandos de salteadores? E que são bandos de salteadores, senão pequenos reinos? O bando é formado por homens. Governa-o um príncipe. Sua coesão é mantida por um pacto de solidariedade, e os despojos são divididos com base na lei consentida por todos. E, se, pela incorporação de homens abandonados, esse domínio cruel se expande a ponto de possuir casas, cidades e povos, passa a chamar-se reino" (HIPONA, Agostinho de. The city of God. In Great books of the western world. 2ª ed., Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1993. Vol. 16, p. 231).
A glória de um reino e o esplendor extraordinário dos maiores deles não anula o fato de um reino não ser outra coisa que a hipertrofia de um mal, de uma injustiça. E o fundamento desse modo de ver os reinos e o direito, não o podemos negar, pelo menos em Agostinho, é a doutrina cristã do pecado original. Para o santo de Hipona, o direito é destituído da força necessária para cumprir sua augusta função civilizatória, porque o homem é fraco. E o homem é fraco, porque sobre ele pesa a sentença de Deus em razão do pecado.
Claro que a fonte de uma doutrina não se confunde com a prova de sua verdade. A fonte da concepção de direito de Santo Agostinho é a doutrina do homem, mas o que a coroa e lhe imprime o timbre da veracidade é a confirmação dos fatos. E que fatos: a queda do mais glorioso império da História, eis o que presta confirmação à ideia agostiniana de que a mais consistente adesão à racionalidade da lei é incapaz levar a qualquer resultado prático que não seja a completa ruína!
Duas, portanto, e não uma são as doutrinas básicas do direito natural que os tempos prestigiaram mais do que outras: uma, a de Cícero, reinou nos últimos séculos da Antiguidade; outra, a de Santo Agostinho, triunfou da queda de Roma ao fim da Alta Idade Média. Uma terceira concepção, a de São Tomás, será proposta no século XIII e regerá o pensamento jusnaturalista, ao menos em parte, no resto da Idade Média e no Período Moderno.
A voga das ideias de Tomás só não foi maior, porque o direito natural foi colocado em bases totalmente novas por Kant e seus seguidores, o que reduziu a influência da concepção tomista. Mas temos boas razões para desconfiar da solidez da revolução kantiana nesse terreno, como procurei demonstrar nos capítulos anteriores. E, se as três ou quatro opções a que acabo de me referir representam um balanço das discussões ocorridas em torno do direito natural, ao longo da História, é indispensável manter consciência delas ao tomar o partido dos que se colocam a favor ou contra essa doutrina.
Pode parecer que, ao fazer o jusnaturalismo depender da conexão entre direito e moral, e o juspositivismo da separação entre eles, Alexy põe o problema diferentemente de mim (ALEXY, Robert. The argument from injustice – a reply to legal positivismo. New York: Oxford, 2002. pp. 3-4 ). Mas não creio tratar-se realmente disso. Em sentido especulativo profundo, a querela do jusnaturalismo com o positivismo é, de fato, uma questão de conexão ou separação entre direito e moral. Porém, em sentido prático, que é o que mais me interessa, o problema resolve-se no reconhecimento de que a conexão ou separação põem-se no plano da ratio das instituições jurídicas e dos costumes, mais que no dos valores. O que está longe de ser destituído de consequências filosóficas.