Embora os peripatéticos derivassem sua ideia de inteligência divina de Aristóteles, cujas obras rarearam até quase desaparecerem do Ocidente, nos primeiros séculos da era cristã, a concepção de Deus que eles preservaram foi absorvida por pensadores de outras escolas, a exemplo de Orígenes e Santo Agostinho. Por isso também, a noção aristotélica da inteligência divina foi transmitida aos primeiros filósofos cristãos mais pelos peripatéticos do que por meio das obras do próprio Aristóteles.
O modelo de pensador
cristão da Antiguidade foi Santo Agostinho, em quem a influência grecorromana e
as tendências do pensamento patrístico se harmonizam no mais alto grau. Ao
longo da sua vida, Agostinho foi o protótipo do homem romano tanto quanto o do
pensador cristão. Por isso, nele se reúnem o melhor da cultura clássica e da
tradição judaicocristã.
Tão vasta é a recepção da
cultura clássica, e particularmente de Cícero, percebida nas obras de Santo
Agostinho que não parece provável que o De
legibus ou o De republica não tenham
sido absorvidos por ele. Cícero é uma influência fortíssima em Santo Agostinho.
Tão forte que é temerário admiti-la apenas nos anos que antecederam e sucederam
imediatamente a conversão de Agostinho.
Não é possível afirmar o
mesmo da influência de Aristóteles sobre Santo Agostinho. O desaparecimento do corpus aristotélico do mundo latino, no
fim do século IV, impediu que Agostinho assimilasse Aristóteles na intensidade
e profundidade em que absorveu a obra de Cícero. E esse diferencial de
assimilação sugere que o santo concebeu a lei natural mais em termos
ciceronianos do que aristotélicos.
Isso implica entender a ratio legis mais à maneira prática dos
romanos do que à moda especulativa dos gregos. Mais conforme Cícero que segundo
Aristóteles. E muito mais no interior das instituições de direito do que nas
regiões do supraempírico.
Para Cícero, a ratio legis era mais do que uma lógica
formal. Era o método pelo qual as instituições jurídi-cas funcionavam
efetivamente. Assim, por exemplo, uma relação de filiação ou de compra e venda
tinha a sua ratio própria. As
interpretações das normas que as definiam podia variar, no entanto os advogados
e os jurisperitos enfrentavam as questões de interpretação com base na mesma
lógica de natureza material e não formal.
Ainda hoje, a lógica
geral do direito é a mesma. Por isso, é possível ilustrar o funcionamento dela
não só não só em instituições dos antigos romanos como dos povos modernos. Por
exemplo, a concessão de serviços públicos, no nosso tempo, não obedece apenas
às regras da Lógica Formal, mas também e principalmente a ratio material do instituto. O mesmo sucede com a função social da
propriedade, cuja interpretação mais restrita ou extensa é intensamente debatida,
sem que se discuta que, no direito brasileiro, por exemplo, ela coexiste com a propriedade
privada. Portanto que a lógica jurídica, ao aplicar-se no campo da
propriedade, está sujeita a esse limite de ordem material.
Podemos, assim, fazer a
lógica do direito coincidir com a ratio
legis de Cícero e Santo Agostinho, o que importa entendê-las não em termos
formais, mas materiais. Claro que nem em Cícero, nem em Agostinho os princípios
da Lógica Formal estão excluídos. Pelo contrário, a Lógica Jurídica resulta de
mutações a que a Lógica Formal é sujeita em razão dos limites materiais a que o
pensamento se sujeita no campo particular do direito.
No direito de muitos
países, é vedado pensar que a propriedade não tenha função social ou que a
função social dela exclua o feixe de faculdades que a propriedade privada assegura.
A função social da propriedade e as faculdades inerentes à propriedade privada
não são apenas mandamentos do legislador. São ao mesmo tempo princípios que
informam a Lógica Jurídica. E ouso pensar que isso pouco mudou do Direito
Romano a esta parte.
Precisamos entender que,
embora ressaltasse a relação da lei humana
com a ordem imutável do cosmos, Cícero não ia ao ponto de afirmar, com
Aristóteles, que ela existisse à parte das instituições sociais. Pelo contrário,
para ele, a ratio legis derivava de
escolhas práticas do legislador.
Por isso, ao abraçar a
concepção de direito de Cícero, Agostinho não lhe imprimiu a coloração
metafísica que tinha em Aristóteles. Lei humana, para Agostinho como para
Cícero, não era um dado natural. Não derivava da ordem das coisas, mas de
escolhas sociais e políticas. Era criação do costume e do legislador, conforme
o direito natural, ou então a lei não seria lei. Mas criação e não descoberta.
Essa diferença entre o
conceito de lei humana de Cícero e Agostinho e o de Aristóteles aprofunda-se
ainda mais, conforme o santo vincula a ratio
legis ao Deus cristão e não à ordem das coisas. Por originar-se de Deus, a
razão jurídica é concebida como um reflexo, embora esmaecido, da lei divina. Consequência
prática disso é que ela é mais negativa do que positiva, visto que a função da lei,
no pensamento apostólico, é reavivar o pecado.
Nesse ponto, a concepção
de direito de Santo Agostinho afasta-se da de Cícero.Como reflexo da lei divina na consciência, a lei humana não promove a bondade, antes estabelece a culpabilidade do homem. Esse ponto de vista jurídico é o que, sobretudo, autoriza Agostinho a pronunciar a sentença sobre o mundo romano encontrada em A cidade de Deus. De acordo com a sentença agostiniana, a ratio legis não foi capaz de conduzir os pagãos a outro destino que não a ruína. Por isso, embora benigna, a queda do homem a tornou tão frágil que ela permanece incapaz de prover os povos de bens duradouros.
Essa fundamentação da tese central de A cidade de Deus, derivada da ideia agostiniana de direito, é a meu ver inequívoca. Prende-se de tal maneira ao entorno de Santo Agostinho que se torna uma só coisa com os fatos. Diferentemente do que acontece à concepção jurídica de Aristóteles, a de Santo Agostinho repousa no insofismável curso dos acontecimentos da sua época. Os ratos da História roeram Roma inteira e não só a roupa do seu rei, na medida em que a causa do intenso brilho daquela civilização, sua adesão à ratio legis, provou-se impotente para salvá-la.
Essa fundamentação da tese central de A cidade de Deus, derivada da ideia agostiniana de direito, é a meu ver inequívoca. Prende-se de tal maneira ao entorno de Santo Agostinho que se torna uma só coisa com os fatos. Diferentemente do que acontece à concepção jurídica de Aristóteles, a de Santo Agostinho repousa no insofismável curso dos acontecimentos da sua época. Os ratos da História roeram Roma inteira e não só a roupa do seu rei, na medida em que a causa do intenso brilho daquela civilização, sua adesão à ratio legis, provou-se impotente para salvá-la.
E o fragoroso fracasso
do direito romano não é casual. Tem, em Agostinho, uma motivação perfeitamente
clara: "Considerações de justiça à parte,
que são reinos a não ser grandes bandos de salteadores? E que são bandos de
salteadores, senão pequenos reinos? O bando é formado por homens. Governa-o um
príncipe. Sua coesão é mantida por um pacto de solidariedade, e os despojos são
divididos com base na lei consentida por todos. E, se, pela incorporação de
homens abandonados, esse domínio cruel se expande a ponto de possuir casas,
cidades e povos, passa a chamar-se reino" (HIPONA, Agostinho de. The city of God.
In Great books of the western world. 2ª ed., Chicago: Encyclopaedia
Britannica, 1993. Vol. 16, p. 231).
A
glória de um reino e o esplendor extraordinário dos maiores deles não anula o
fato de um reino não ser outra coisa que a hipertrofia de um mal, de uma
injustiça. E o fundamento desse modo de ver os reinos e o direito, não o
podemos negar, pelo menos em Agostinho, é a doutrina cristã do pecado original.
Para o santo de Hipona, o direito é destituído da força necessária para
cumprir sua augusta função civilizatória, porque o homem é fraco. E o homem é
fraco, porque sobre ele pesa a sentença de Deus em razão do pecado.
Claro que a fonte de uma
doutrina não se confunde com a prova de sua verdade. A fonte da concepção de
direito de Santo Agostinho é a doutrina do homem, mas o que a coroa e lhe imprime
o timbre da veracidade é a confirmação dos fatos. E que fatos: a queda do mais
glorioso império da História, eis o que presta confirmação à ideia agostiniana
de que a mais consistente adesão à racionalidade da lei é incapaz levar a
qualquer resultado prático que não seja a completa ruína!
Duas, portanto, e não
uma são as doutrinas básicas do direito natural que os tempos prestigiaram mais
do que outras: uma, a de Cícero, reinou nos últimos séculos da Antiguidade;
outra, a de Santo Agostinho, triunfou da queda de Roma ao fim da Alta Idade
Média. Uma terceira concepção, a de São Tomás, será proposta no século XIII e
regerá o pensamento jusnaturalista, ao menos em parte, no resto da Idade Média e
no Período Moderno.
A voga das ideias de
Tomás só não foi maior, porque o direito natural foi colocado em bases totalmente
novas por Kant e seus seguidores, o que reduziu a influência da concepção
tomista. Mas temos boas razões para desconfiar da solidez da revolução kantiana
nesse terreno, como procurei demonstrar nos capítulos anteriores. E, se as três
ou quatro opções a que acabo de me referir representam um balanço das discussões
ocorridas em torno do direito natural, ao longo da História, é indispensável manter
consciência delas ao tomar o partido dos que se colocam a favor ou contra essa
doutrina.
Pode parecer que, ao fazer
o jusnaturalismo depender da conexão entre direito e moral, e o juspositivismo
da separação entre eles, Alexy põe o problema diferentemente de mim (ALEXY, Robert. The argument from injustice – a reply to legal positivismo. New
York: Oxford, 2002. pp. 3-4
). Mas não
creio tratar-se realmente disso. Em sentido especulativo profundo, a querela do
jusnaturalismo com o positivismo é, de fato, uma questão de conexão ou
separação entre direito e moral. Porém, em sentido prático, que é o que mais me
interessa, o problema resolve-se no reconhecimento de que a conexão ou
separação põem-se no plano da ratio das
instituições jurídicas e dos costumes, mais que no dos valores. O que está longe de ser destituído de consequências filosóficas.